O clitóris e outros filmes

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando usei pela primeira vez a palavra clítoris? Certamente depois duma ida ao cinema; nessa “câmara escura” é que as coisas se passavam, em sadia troca de mãos, membros, bocas e flores carnívoras.

E tendo lido num livro sobre sexologia trazido de Badajoz que estimular o clítoris fazia a diferença, isso passou a fazer parte da “conversa, clínica e técnica” que ocorria sempre depois das sessões: gostaste, tiveste orgasmo…etc., etc.

Afinal, o que é um bem cultural? Se for toda a manifestação que incide directamente na consciência crítica do público e é objecto de experiência e de participação, naquele tempo o clítoris (e a obsessão analítica dos seus efeitos) era um inexcedível bem cultural. E era público: contaminava de decência qualquer discurso, como Wilhelm Reich, de resto.

Um dia emperrei. Numa sessão de cine clube às 18h30, um filme antigo a preto e branco para nos abstrairmos de réstia de interesse pelo mesmo, e comprámos bilhete para o segundo balcão do Cine Incrível, um “albergue espanhol” afamado desde que uma jovem imitou no orgasmo os carrilhões de Mafra. Era o nosso jardim edénico.

A luz apagou-se e a primeira poalha colorida foi projectada. E emergiu aquela voz tonitruante, hipnótica. Seguiu-se uma narração que à época julgava labiríntica e actuava como um anzol. E esqueci-me do nobre desígnio a que havíamos encomendado as almas. O filme chamava-se Citizen Kane e foi o primeiro que me arrebatou, numa viagem ao desconhecido. No fim, ela desviou-me para a garagem de uma amiga mas eu só me lembro do enigmático Rosebud.

De outra vez, entrei desprevenido numa sessão da meia-noite e saí de lá vidrado por uma felina prostituta de meias verdes, a que Shirley MacLaine encarnava em Irma, la Douce. E só se atenuou quando sete anos depois fui ver Laços de Ternura e me apanhei dividido entre mãe e filha, precisamente a mesma Shirley e Debra Winger.

Tenho saudades de me apaixonar no cinema. Ou de sentir que um filme ameaça a minha vida, como quando fui ver Lawrence da Arábia com a namorada e percebi no fim que a nossa relação tinha os dias contados porque ela saíra absolutamente apardalada pelo Omar Shariff, enquanto eu me aparentava ao Peter O’Toole, uma alva magreza de vela, com cabelos fulvos.

Não sei o que procuram os jovens que se inscreveram no meu curso sobre Guionismo e que teve dia 16 a primeira aula.

Suspeito que ao analisarmos a narrativa de Táxi Drive se estejam nas tintas para a estrutura trinitária das sequências, ou lhes passe ao lado o que quero eu dizer quando defendo que a montagem de um filme de acção é mais eficaz quando a sua progressão rítmica respeita o número de ouro no desenrolar das sequências. Não estão maduros para este tipo de informação ou para assimilarem que há uma geometria secreta na fabricação das histórias.

Basta-lhes que haja miúdas e movimento, se possível um bom turning point, no fim do primeiro acto, e uma orgia barroca a marcar o clímax.

Nada de revelações “estáticas” como a que ocorre no final de The Dead, de Huston, quando um homem olha do fundo da escada a sua mulher e percebe numa troca de olhares dela com um terceiro que a sua vida é uma soma de inapercebidos actos falhados. O “débacle” de uma vida há-de parecer-lhes pouco movimentado.

Mas tudo tem uma segunda face.

Esta semana – toujours en retard dans la vie – soube em Maputo que faz precisamente um ano que morreu Alberto Seixas Santos, para quem eu escrevi três filmes de ficção.

Os equívocos pessoais e profissionais em que nos embrulhámos não retira a menor parcela à evidência de que ele me ensinou a olhar e me aguçou o pensamento analítico.

Colaborei em três projectos: em Paraíso Perdido, em O Mal, e naquele que seria o projecto da vida dele mas de que ele desistiu sem nos dar cavaco, a mim e à Maria Velho da Costa, que estivemos um ano a escavar em três episódios de hora e meia sobre o Camilo Castelo Branco – visto sob o ponto de vista do dinheiro, do amor e da escrita, guião que acabei por publicar dez anos depois sob o título Inferno.

O Paraíso Perdido, o primeiro filme integralmente de ficção de Seixas Santos, foi um caso descoroçoador de junção entre a total inexperiência (a minha), uma absoluta conjunção de azares, nabices, e falta de nervo, dele, e uma circunstância um pouco canalha que para ser esmiuçada daria um livro.

Várias más escolhas entretanto se avolumaram, de actores e técnicos. Coitado do Seixas passava tardes a mostrar álbuns do Hooper ao cameraman que reagia a “tais arrebatamentos da sensibilidade artística” com o ar perplexo de quem nos dias de folga se maravilha com a pornografia.

O Alberto não aguentava a pressão. Era excelente a discorrer “no seu território” sobre qualquer aspecto da cultura. Com tempo e vagar. Não sitiado por uma equipa e actores que rogam por respostas prontas e um planeamento eficaz que não comporte lugar para a dúvida. A sua enorme capacidade analítica não se traduzia em beat, em ímpeto criativo, sobretudo naquele ritmo e numa produção desapiedadamente industrial.

Numa sequência filmada na Biblioteca Nacional a equipa técnica chegou às seis e trinta da manhã para preparar o trabalho e esteve à espera até ao meio dia enquanto ele, de bloco na mão, riscava e tornava a riscar, tentando decidir sobre a decupagem das cenas. Isto repetiu-se em inúmeros dias, o que lhe minava a autoridade diante da equipa.

O talento dele cumpria-se no vagar, não na prontidão das boxes.

Amanhã vou olhar de frente os meus alunos e vou tentar adivinhar qual deles daqui a vinte e cinco anos escreverá uma crónica em que me recorda como um homem cheio de talento mas incapaz de estar pronto.

Um homem sem clítoris – perdido para o pique, a sensação do instante, portanto.

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