Colagens

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m texto sobre partes da carne e fragmentos. É do “corpo-aos-pedaços” de que se trata. “Este texto é feito de impressões, sobretudo visuais, que resultaram [da] infância”.

[…] “O texto tenta fixar algumas interrogações para tratar um assunto concreto: a representação dos fragmentos.” […] [É] tentar pensar essas imagens ‘aos bocados’. O fragmento, […] miniatura, isolado … e …inteiro em si mesmo (Schlegel). “São Vicente é o paradigma do corpo fragmentado, a sua expressão extrema”. [N]ão era senão aos pedaços”. […] “queimado, rasgado e despedaçado. […] [L]ançado às feras para estas o devorarem. [M]as são impedidas de o fazer. [I]ntervenção de um corvo. […] “[S]éculos mais tarde, [dá]-se um naufrágio e toda a tripulação soçobra.”[…] “[E]stratégias de recuperação das relíquias de um mesmo santo espalhadas pelo mundo. Com vista [à] reconstituição coesa.” “Mas [a]s nossas experiências da dor e, consequentemente, as representações do corpo a ela associadas, alteraram-se radicalmente.” […] “Hoje, [há] químicos.” […] “O contrário de uma imagem fragmentada do corpo [pode] ser simplesmente a parte da representação (da parte) do corpo que falta para investir de significado, […] complemento simétrico dessa parte no contexto do corpo, geralmente estruturado por dualidades simples (diretas: mão esquerda/mão direita, ou indiretas: peito/costas; ou , ao nível da linguagem, uma parte que se lhe oponha (cabeça/pés); ou sujeito a uma dimensão performativa do corpo (boca/ ânus ou boca/orelha); ou social, ou moral). Ou, ainda, em última instância, o salto que vai do fragmento do corpo biológico ao corpo cósmico ou divino.” (PHILIP CABAU)

“A paisagem é a natureza? Se a paisagem for o que o meu olhar abarca, que papel desempenha o meu corpo na apreciação de uma paisagem? São Vicente a caminho de Lisboa teria tido uma experiência da paisagem?” […] “A visão terá porventura primazia, mas a paisagem não é apenas o visível, ela reclama […] cheiros, sabores, sons, a sensação de frio, calor, humidade ou secura do ar, ao vento ou sua ausência, a percepção táctil da suavidade ou firmeza do solo e dos elementos que a compõem.” A experiência é “a reunião de todos os elementos percepcionados “existencial[mente]”: “[o] ciclo das estações do ano […] vegetal, mineral, animal, vital” (MOIRIKA REKER).

“A nau é um símbolo da segurança possível na travessia perigosa que é tanto a vida quanto a morte, remetendo no Antigo Testamento para a Arca da Aliança e no Novo Testamento para a Igreja. Muito profunda é a observação de Bachelard de que a barca simboliza simultaneamente um berço redescoberto, o seio ou a matriz e o caixão, que considera ter sido porventura a primeira barca (além de ser a última). Seja como for, quem embarca não desembarca igual. A barca é símbolo da mais profunda e constante viagem, a do espírito ou da consciência, aquela “na qual nasce o próprio viajante”, como escreveu José Marinho. A barca é símbolo de transição e passagem, de metamorfose, de conversão de um limite em limiar.” (PAULO BORGES)

“À flor da pele, bem te quero” (NELSON GUERREIRO)

“[N]os alvores do cristianismo, as relíquias de partes dos corpos de mártires eram importantes, pois considerava-se que seriam estes os primeiros a levantar-se no momento da ressurreição, liderando os fiéis a caminho da vida eterna.” É, pois, por isso, que “[n]a génese da visão de todo este Projecto está o cartografar dos farrapos de um mito que sobrevivem na memória colectiva (pavimentos em calçada portuguesa, candeeiros urbanos), mas igualmente a promoção de uma sensibilidade sempre emergente.” (MÁRIO CAEIRO)

“A referida proliferação de escritos íntimos e memórias, e não questionação do significado disso, vão contribuindo para reduzir a realidade a um conjunto de aparências nas quais nenhum objeto se inscreve, na medida em que o objeto é justamente o-de-fora-de-aparência, o seu vazio, aquilo que se inscreve nela como a sua eternidade, ou a sua desaparição.” […]“É na desaparição — dos objetos, que estão aí diante de nós carregados da morte com que os fixamos — que se guardam os vestígios da aparição do Outro, daquilo que no objecto é sem medida comum” (Mallarmé).” (NELSON GUERREIRO)

9 Fev 2018

Direcções das Estrelas Voadores para 2018

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s geomantes do Feng Shui prevêem para 2018 um ano de Extremos.

O Caule Celeste Wu, associado ao elemento terra yang, conjugado com a Terra do Ramo Terrestre Xu, dá para este ano, terra dentro de Terra, encerrando no seu interior o fogo. Este, ao criar ainda mais terra, fará transbordar a água, cortada pela terra. Como se tal não bastasse, encontra-se a direcção Centro, Terra, o yin yang do ser humano, enclausurado dentro de si, sem poder harmonizar as quatro estações do ano.

Encontradas as direcções do posicionamento das nove Estrelas Voadoras para 2018, aqui se deixam as previsões, por nós entendidas das feitas por Lei Koi Meng (Edward Li), sobre o que ocorrerá no mundo.

Referindo as características e localizações das Estrelas Voadoras, primeiro trataremos das quatro de malévolas energias, seguindo depois nas boas vibrações das outras cinco. No entanto, para este ano, a bafejante estrela voadora 9 Roxo (Jiu Zi, fogo) estará localizada ao centro (terra) do Tai Ji (quadrado mágico de nove Palácios, fazendo o do meio de espelho, linha reflectora entre a materialidade da Terra e o espírito do Céu, a essência que dá à substância o significado das realidades) e por isso se refere estar aprisionada. Estrela a representar harmonia e paz, cooperação e o visionar do que está para vir, enclausurada, não permite encontrarem-se esses atributos. Deixa as gerações jovens sem esperança, pois não conseguem vislumbrar o que virá. Tal leva-as a encerrar-se em casa e isoladas, ficam os exteriores contactos feitos apenas pelo telemóvel e internet no computador.

Ligando com o corpo humano, a 9 Roxo representa os olhos que, aprisionados ao ecrã, lhes provoca inúmeros problemas devido à luz vir contra eles, aprisionando-os à projecção, mas sem criar reflexão. Energias interiores condensadas, sem vivos interlocutores para serem trocadas, descarregam-nas pelas ainda mortas máquinas. Essa falta de comunicação com o espaço exterior leva, perante as realidades, a transformarem-se em agitados maníacos. Tal continuará a ocorrer até ao fim de 2019.

Para analisar um país, uma coisa se sabe, é necessário conhecer quem o dirige. Em 2018 serão raros os países que contam com governantes conscientes da consciência, e a conseguir pelos 5 Elementos entender as acções a tomar. O fogo e a terra poderosíssimos, sem a água para lhes fazer balança! Representando a água, sabedoria e mente limpa, pode-se assim imaginar um dirigente sem tal, o que ele poderá fazer!?

Para este ano, desastres provocados pela Natureza, como tsunamis, erupções vulcânicas e tremores de terra, tufões, inundações devido a fortes chuvadas e grandes nevões, tal como as catástrofes criadas pelos humanos, como ataques terroristas e grandes flutuações nos mercados bolsistas, causarão um grande desgaste aos dirigentes. Assim, ficam em intenções todos os internacionais projectos de cooperação, pois não haverá energia para os levar por diante. Cada país apenas terá tempo para se proteger e pensar em si.

A estrela voadora 5 Amarelo (Wu Huang, terra), instável, causadora de obstáculos e problemas, tem em 2018 a sua maligna influência perturbada colocada a Norte (água), localizada na Rússia, onde se prevê ocorrer perdas, também de saúde, doenças e tragédias. Já para a Europa, a 2 Preto (Er Hei, metal), localizada a Oeste (metal), trará doenças longas e incuráveis se os seus habitantes este ano não tratarem com cuidado esta direcção. A beligerante estrela voadora 3 Jade (San Bi, madeira), que traz conflitos, disputas e caos, encontra-se a Nordeste (terra), localizada na Península da Coreia. Se não colocarem mais fogo, poderá continuar em Paz. A 7 Vermelho (Qi Chi, metal), estrela voadora violenta que traz injúrias, roubo, fogo e acção nos tribunais, leva a perdas financeiras e muitas disputas tanto em casa como no emprego, localiza-se a Leste (madeira), na América e Japão. Terra é o elemento do nascimento dos EUA e o do seu actual presidente, que, ampliando-se com mais a tripla terra deste ano, dá para imaginar o que pode ocorrer! Edward Li faz fervorosos votos para que reine a Paz e não haja guerra. Refere que, para resolver os problemas causados só grandes chuvadas e nevões, o que parece já ter começado a acontecer, qual ajuda celeste a refrear os ânimos.

Tratando agora a localização nas direcções das auspiciosas estrelas voadoras: a 1 Branco (Yi Bai, água) estrela da prosperidade para o que virá, traz sucesso na carreira, boas relações de amizade e reputação, assim como a fama e promoção na carreira. Localiza-se este ano a Noroeste, (metal) e encontra-se nos países da Europa do Leste. Já a 6 Branco (Liu Bai, metal), agora enfraquecido o seu celeste abençoar, traz potencial de inesperadas vantagens e riquezas, estando colocada a Sudoeste (terra), localiza-se sobre a Índia e ajuda a emigrar e a trabalhar fora do país.

A estrela voadora 8 Branco (Ba Bai, terra), da Prosperidade e Saúde, a melhor entre todas as nove estrelas, traz riqueza, fortuna, nobreza e boa saúde, favorece promoções, incrementa o salário e leva ao sucesso na carreira. Localizada a Sudeste (madeira), apresenta-se nos países do Sudeste Asiático. Por fim a 4 Verde (Si Lü, madeira) que, apesar de ser benéfica, no actual período 8 dos ciclos do Feng Shui contém aspectos positivos e negativos. Por estar a Sul (fogo), regerá Macau, Hong Kong, Austrália, assim como os países de África.

Previsões para alguns meses

Neste início da Primavera, entre 4 de Fevereiro a 5 de Março, o yang menor do elemento madeira, direcção Leste, tem a complementar o yin maior do Inverno, a água do Norte, e assim, a dupla terra deste ano encarcera o fogo alimentado pela madeira e cria mais terra, levando a erupções vulcânicas, tremores de terra, acções terroristas e ainda um apagão eléctrico. As pessoas deverão ter muito cuidado e prevenir-se de ataques de coração e AVC’s. No mês seguinte, a juntar a tudo isso, epidemias e algo a sair da nossa capacidade de controlo.

Em geral, pode-se dizer que as pessoas nascidas entre 7 de Novembro e 3 de Fevereiro, isto é, no Inverno, terão um ano mais vantajoso, pois necessitam de fogo e ele não faltará. Por oposição, quem nasceu no Verão, entre 5 de Junho e 7 de Agosto, deverá tomar maiores precauções, pois ao seu fogo juntar-se-á ainda mais fogo e ficará ON FIRE. Cuidado com o fogo dentro de casa.

Já no nono mês, sob o signo de Cão, tal como o ano, de 8 de Outubro a 6 de Novembro, o elemento é terra yang e aliada com o ano de terra yang dentro de Terra, cria a tripla terra, significando túmulo, que apaga o fogo e origina problemas como a interrupção de energia eléctrica. Assim confrontados, iremos ser obrigados a repensar o uso de aparelhos como telemóveis e computadores no nosso quotidiano. Será que não ocuparão um espaço demasiado grande nas nossas vidas? Faltando a electricidade…

Uma calamitosa desordem, a poder definir-se como caos do primaveril estado. E tudo se inicia pelo Vazio.

9 Fev 2018

Suspiro

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi depois da partida daquele amor que ela deu início ao seu jardim interior, que contemplava em momentos de maior aflição. Tornou-se vital criar raízes suplementares que a agarrassem ao chão sempre que este ameaçasse fugir-lhe debaixo dos pés. Acontecia a todo o momento. Ponderou, todavia, que não podia dar-se ao luxo de abrigar árvores de corpo inteiro, copas gigantes e ramos entroncados – teria de começar por plantas de pequeno porte e arbustos miúdos, raízes-penugem, de outra forma, como sustentar no tempo por vir o peso tomado entretanto para si? Além disso, as árvores acabariam por lhe exigir anos de pensamentos concêntricos antes que pudesse deixá-los fluir, e aos fragmentos dolorosos de si, através das ramadas finíssimas e das folhas quando chegasse a altura de se desprenderem, cansadas de se suportar, à medida das estações do ano.

Sentada no sofá da sala, o olhar preso do filme interior que discorria em câmara lenta para trás e para diante, sem nunca se cansar de o ver, balouçava o corpo num ritmo de quem queria só ir. Felizmente as raízes entretanto nascidas nas plantas dos pés puxavam-na de volta ao lugar em que, apesar de tudo, se obrigava a habitar. Pegava, assim, na chávena de porcelana, e sorvia um sopro de vida no chá quente.

O filme: certa vez tinham os dois viajado para um país de bosques e casas de madeira. Ansiavam por passear de mãos dadas, atentos aos sons e aos cheiros locais, por vogar nas águas do grande lago nas proximidades e, à noite, por assomar à vila, procurar os seus habitantes e talvez rir com eles. Inventaram tudo isso ao longo de três dias deliciosos, em que não abandonaram o quarto. No dia de regresso despediram-se do bosque encantado, do lago misterioso e das pessoas que tanto lhes haviam dado. Germinavam felicidade.

Àquelas lembranças o estômago contraía-se-lhe num aperto indizível. Dobrava-se então sobre as raízes ainda tenras e incapazes de sustentar tamanha perdição. Houve que lançar novas sementes dentro de si e conceder que botões de rosa minúsculos lhe despontassem no estômago. Suaves como a suavidade de que precisava para acalentar aquele lugar de dor recorrente. As rosas elevá-la-iam na justa medida das suas hastes trepadoras. Ténue, mas inexoravelmente, haviam de subir pelo avesso de si, redefinindo-lhe uma ossatura fibrosa sem a sobrecarregarem – e isso era importante. Os botõezinhos acomodaram-se, pois, àquele caramanchão quente e floresceram em rosas-púrpura. O seu estômago exalava um perfume maravilhoso e ela deu por si a ensaiar movimentos que não comandava, passos de dança inesperados e absurdos; estava longe dela pensar sequer em dançar. E ainda sem que conseguisse explicar porquê, sentiu que devia soltar o cabelo que trazia arranjado numa trança em redor da cabeça. E foi o que fez.

À medida dos dias, o espelho grande à entrada da casa devolvia-lhe a imagem de uma mulher a caminho de jardim. Nos cabelos dela despontavam brincos de princesa e lírios do campo e uma ou outra papoila bela como só as papoilas o sabem ser. Apeteceu-lhe tornar-se tão pequena que lhe fosse possível correr naquele abismo campestre que lhe tomara a cabeça, com a vantagem de o saber infinito, já que era redondo, como a Terra. Certo dia concentrou-se, olhos fechados, pensamento suspendido: começou por ouvir um zumbido de abelha, depois um bater de asas de cigarra nos dias em que o sol parece brotar directo do chão. Num sonho só de serenidade deixou-se ir através de um campo de espigas e, assim que viu uma papoila, correu a abraçá-la. A papoila também a apertou nos braços e depois estendeu-lhe um cestinho merendeiro, cheio de bolos de canela. Aquela proximidade revelou-lhe não ser a flor uma verdadeira papoila, mas a própria Capuchinho Vermelho. Então ela admirou os pézinhos leves daquela menina corada, um pouco parecidos com os seus, rodeados de uma penugem fina feita de raízes dançarinas. Deram-se as mãos e correram e saltaram pelo prado a imitar gazelas, rãs e andorinhas. E estavam entretidas nisto quando deram com um lobo cinzento a experimentar brincos de princesa nas orelhas felpudas. Convidaram-no logo a correr com elas e acabaram os três a saltar à corda. Passaram uma tarde deliciosa e foi só quando o sol mergulhou naquele mar doirado pontuado de flores, que ela viu os amigos desvanecerem-se a seu lado enquanto riam alto e lhe enviavam beijos de despedida ternurentos. A um tremor do corpo reencontrou-se na sua sala, ao lusco-fusco, o chá frio incapaz de lhe instilar vida. Levou as mãos à cabeça pensando que talvez recuperasse as criaturas sublimes para jantarem consigo. Mas nas mãos só grãos de terra, algumas sementes e sim, um pequeno caracol tão enfiado dentro de si que ou partira de vez ou se escondera como se para sempre.

Todavia, o encontro com o caracol deu-lhe o alento de que precisava para se levantar e caminhar até à cozinha obscurecida. Pousou o bichinho numa mesa junto à janela e dispôs-se a viver mais um pouco. E se preparasse um jantar para o caracol? Era uma ideia tão boa como outra qualquer. Prontificou-se a retirar de um louceiro de mogno polido um prato do serviço das visitas que não tinha, debruado a fio de ouro. Sorriu levemente ao pato real que voava no rebordo a que nunca escaparia. Tomou o peso ao prato e ocorreu-lhe que era pouco mais pesado que a casca do caracol. De uma gaveta do mesmo móvel escolheu um garfo, uma faca e uma colher de prata que não serviriam para nada, mas ajudariam a compôr a mesa que ela queria oferecer à sua visita. Noutra gaveta procurou um guardanapo de linho com rosas bordadas por ela num tempo de que não se lembrava. Finalmente, um copo de cristal onde habitavam veados minuciosamente cinzelados. Depois encaminhou-se para o quintal da casa.

O quintal era maior do que a sua casa de três divisões. Selvagem, verde, inebriante. Estava escuro e, assim que ultrapassou a porta de sacada da sala para o passeio de tijoleira, deu consigo a chapinhar. Apercebeu-se de que caía uma chuva miúda pelo que se apressou a enterrar-se na terra molhada e a deixar que as finas raízes nas plantas dos pés absorvessem a humidade que, pouco depois, lhe corria nas veias. A mistura de sangue e seiva conferiam-lhe um brilho especial à pele e ela sentiu-se crescer. Elevou os braços e tocou os ramos da magnólia a que normalmente não chegava. Depois lembrou-se de que ali fora em busca de tomilho fresco, que tencionava servir ao caracol. Isto se o caracol sempre existisse para além da casca.

Colheu algumas hastes da erva e logo lamentou estarem molhadas – não era natural que o seu visitante as fosse apreciar, imaginava-o a preferir iguarias transportadas em caravanas coloridas através de desertos inóspitos, em que tudo sabia garantidamente a seco. Pousou as hastes sobre o oleado de xadrez da mesa de cozinha e surpreendeu-se por distinguir tudo à volta como se tivesse acendido a luz. Que permanecia apagada. No entanto, ela via e deixava de entrever o vulto do caracol uma e outra vez – acabando por perceber ser ela própria a fonte de luz cadenciada, a partir do alto da sua cabeça-prado. Procurou o espelho à entrada de casa e fascinada, descobriu um rosto ainda de mulher mas em cujo cabelo, para além das flores, da erva, das espigas e lírios-violeta, cintilavam agora pequeninas estrelas: pirilampos. Eram eles quem desenhava os caminhos de intermitência que ora abriam ora fechavam círculos de luz à sua frente. Voltou à cozinha e sentou-se à mesa num banco de madeira, de frente para o caracol. Os pirilampos piscavam a sua coreografia natalícia e, a determinado momento, ela notou que a casca de caracol continha de facto um corpo minúsculo encolhido. Parecia um embrião. Chamou-o devagarinho, caracol caracolinho, muitas vezes, muitas vezes mesmo, experimentando tons de voz diferentes e até línguas desconhecidas. Deu por si a ensaiar uma cantiga de embalar a um embrião por nascer; então o seu corpo escolheu acompanhar o ritmo de vaivém da melodia e as raízes nas plantas dos pés flutuaram ligeiramente acima do soalho, as mais frágeis de entre elas feitas uma penugem que esvoaçava ao sabor de correntes de ar imperceptíveis. Finalmente, caiu num sono profundo.

O sonho: uma infinidade de beijos, a soma de todos os que haviam dado com a dos que não tinham chegado a dar. Ela procurava reter o cheiro da pele dele e cumprir o número infinito de vezes com que prometera saudá-la, docemente. Ele ria: de felicidade, das cócegas, do mundo lá fora tão sério quando tudo era tão engraçado. A caminho do infinito ela adormeceu de bruços para um sonho dentro do sonho e foi a vez dele pousar os lábios sobre o corpo dela, professando o desejo dos dois rumo ao número impossível. Ao longo do dia chegaram a ser um único beijo planetário, capaz de encher a casa onde moravam e até de tocar cada erva do jardim que a abraçava. Foram dormindo e acordando, observando-se num silêncio cúmplice. No único momento em que ela desviou o olhar para o ramo de flores silvestres à cabeceira da cama surpreendeu um pequeno caracol sobre um galho seco. Pensou que havia de levá-lo para junto do tanque no jardim, antes que a noite caísse.

Acordou anos depois, curvada sobre a mesa da cozinha, desperta pelo frenesim matinal dos pássaros excitados com o festival de orvalho que sucedia à chuva da noite anterior.  Deveriam estar a tomar banho, a beber e a tratar de dar de beber água aos filhos. Era uma situação que noutro tempo lhe teria dado vontade de rir e apreciar ao vivo: os pássaros pareciam perder o juízo, atropelavam-se, chamavam-se nomes, namoriscavam as penas lavadas machas e fêmeas, nada no mundo seria capaz de os desiludir em tais alturas. Mas agora a sua gritaria alegre era-lhe quase insuportável aos ouvidos. Desviou a atenção para as próprias mãos e julgou ver raízes – mas ainda não, era só impressão, as suas veias é que palpitavam animadas com a seiva fecundada pela chuva. Quando levantou a cabeça deparou com o caracol à sua frente, no exacto sítio onde o tinha deixado. Olhava para ela e, no cimo dos pauzinhos, os seus olhos sorriam.

Ela procurou as hastes de tomilho, que encontrou intocadas. Perguntou ao caracol se queria que ela o servisse, mas ele disse que não apreciava tomilho fresco, preferia de longe bolinhos de canela. Ela ficou logo angustiada, há meses que não fazia bolinhos de canela, a Capuchinho Vermelho é que agora andava com eles no cesto merendeiro, mas sabia lá quando a ia encontrar de novo. Levou as mãos à cabeça mas só conseguiu despentear-se muito, tanto que o caracol se encolheu para a casca um tanto perplexo – afinal só queria bolinhos de canela. Ele não sabia que ela deixara de fazer compras. Há muito tempo que a sua despensa não tinha canela ou tão-pouco farinha, muito menos manteiga fresca… a ideia de sair de casa apavorava-a embora parecesse quase boa quando comparada à de ter que entrar na mercearia. Talvez pudesse encomendar os bolinhos de canela? Como, se não tinha telefone e não comunicava com ninguém desde não se lembrava quando? Ela e o caracol trocaram um olhar prolongado e face ao óbvio desespero estampado no rosto dela, ele acabou por anuir que talvez um chá de tomilho…

Aliviada ela pegou nas hastes e preparou-as para uma infusão. Deixou a água ferver, mergulhou o tomilho dentro do tacho a tremer sobre o lume forte e aguardou por que o líquido ganhasse cor. Não cheirava a chá que ela pudesse gostar de beber mas faria companhia ao simpático caracol. Entretanto meditava que não estava a ser uma boa anfitriã, e isso afligia-a, na verdade era tão raro ter visitas… acabou por se dirigir ao roupeiro do quarto e de lá puxou um capote. Vestiu-o de frente para o espelho, à entrada de casa. Puxou o capuz sobre os olhos. Teria de servir. Preocupavam-na mais os pés. Era preciso encontrar as suas velhas socas de jardinagem. Desapareceu para a arrecadação no exterior e veio de lá com um par de socas vermelhas e tachas de latão, cobertas de teias de aranha. Lamentou destruir assim o maravilhoso trabalho de uma tecedeira mas livrou as socas das teias e conseguiu enfiá-las nos pés com as raízes aconchegadas entre a sua pele e a pele do calçado. O caracol estava animado e agradeceu a chávena de chá comentando que era uma bebida muito agradável. Ela sorveu uns goles fugidios da sua própria chávena e, muitíssimo inquieta, desapareceu para a rua atirando com a porta de casa.

Seguiu pela calçada empedrada rente ao muro exterior da casa, depois da casa seguinte, e da seguinte, e da seguinte ainda. Não se cruzou com ninguém excepto duas borboletas que passaram a segui-la numa alegria inexplicável. Pareceu-lhe distinguir muito ao fundo, sob o capuz, uma vozinha conhecida. A Capuchinho Vermelho?! Pois claro, ela adorava borboletas, pela certa estaria a tentar convencê-las a saltar à corda… que pena, que pena tremenda faltar a tal encontro. Teve de atravessar uma rua e fugir apressada de um cão que felizmente caminhava com o dono pela trela, de contrário teria vindo a correr ter com ela. Olhava-a com o maior espanto, o focinhito no ar, baralhado com a mulher-jardim. Se o cão alimentava um sonho, era o de ter uma dona assim. A certa altura, dois pardalitos pousaram-lhe no ombro, depois foi a vez de joaninhas e de uma abelha a adoptarem; a todos estes pequenos seres fascinava o jardim com pernas – felizmente a mercearia era ao virar da esquina. Farinha, ovos, manteiga e canela. Pagou e saiu tão depressa quanto entrara, ouvindo ainda o comentário a respeito do maravilhoso perfume a rosas daquela senhora estranha.

Que prova, caracol caracolinho. Que desconcerto íntimo, que avalanche de emoções. Era como se caminhasse sobre arame. Se alguma vantagem havia a retirar daquela saída sofrida era a de esclarecê-la definitivamente sobre o futuro próximo. Claramente, o seu lugar já não era ali. De resto, se quisesse ser honesta consigo própria, sabia-se agora mais jardim que mulher. Estava na altura de partir, partir apenas. Escreveu mentalmente o anúncio que haveria de afixar na montra da mercearia por causa da sua casa: oferece-se bom jardim com casa, seguindo-se uma descrição minuciosa das árvores de fruto e das floribundas, da horta e ervas de cheiro e dos canteiros carregados de bolbos, roseiras bravas, malmequeres, cravinhos, sardinheiras, alecrim e alfazema. A propósito da casa indicaria as três pequenas divisões: a sala e o quarto aconchegados, a cozinha minúscula e a casa de banho exígua, alertando para o facto do telhado deixar entrar água, o que tornava a cultura de cogumelos profícua e especialmente bela de apreciar no outono – ainda que o seu consumo fosse desadequado ela decidiu que era uma mais-valia a enumerar. Podia ainda referir a arrecadação exterior e oferecer todo o recheio da casa. Com certeza alguém se interessaria.

Mas ninguém se interessou. Volvidas duas semanas não houvera quem tivesse manifestado estar disposto a aceitar a sua oferta generosa. Talvez achassem que o anúncio era uma brincadeira? Entendeu que não valia a pena pensar muito no assunto e que tudo se resolveria por si só, num acordo tácito superior aos desejos banais dos homens, das mulheres e até dos animais. Passou a fazer bolos de canela dia sim, dia não. Partilhava-os com o caracol e os pássaros, desde que acordassem em silenciar o turbilhão de pius que se gritavam a toda a hora, como se o cansaço não existisse. Um casal de pombas brancas habituou-se também a lanchar com ela e a partilhar daquele silêncio comovido. Dentro de si o jardim crescia e, à flor da pele, ela passou a trazer o perfume das ervas de cheiro que rodeavam o tanque de água: manjerico, hortelã, coentros, salsa e rosmaninho. Sentia agora uma hera tenra envolver-lhe os ossos dos braços e só podia estar agradecida aos seus caules maleáveis mas firmes, que embora a afastassem sempre mais do mundo de pessoas que um dia fora o seu, lhe amparavam os gestos a que emprestavam graciosidade e onirismo. Passava a maior parte das horas no jardim da casa, prolongando-se pela terra em que se enterrava, bebendo a água da chuva e da atmosfera, acolhendo o sol, o vento, a geada. De vez em quando procurava a Capuchinho Vermelho para um passeio campestre e esses eram os momentos em que deixava de se preocupar porque se esquecia. Andavam tanto, tanto que era o lobo quem acabava por carregá-las às costas, geralmente ao pôr do sol. Despediam-se uns dos outros a cantar, trocando abraços carinhosos e recordações gulosas para o caracol – que preferia recordar a esquecer e dispensava acompanhar aquelas excursões que só adiavam o inevitável. As horas seguintes eram sempre extraordinariamente difíceis para ela porque já não podia esquecer o esquecimento e era então tolhida por uma mágoa que parecia abrir buracos dentro de si, nomeadamente por não ter como partilhar e usufruir mais da felicidade que a preenchera até há menos de nada. O caracol fazia os possíveis por lhe dar alento, nunca se cansando de lhe fazer festas com os pauzinhos – de resto, remetia-se ao silêncio. Pouco a pouco ela acabava por dar de si, pouco a pouco ela era outra vez um pouco, mesmo que um pouco menos. O caracol só não queria que ela deixasse de ser ao menos um pouco.

E isso não aconteceu. Quando estava prestes a abismar-se no vácuo do esquecimento, quando se contavam já três dias desde que ela se pegara à terra, decidida a ser só mais uma planta no seu jardim, os poros perfumados da sua pele gotejaram algum orvalho ao raiar da madrugada e depois germinaram em nada de concreto e em tudo o que se possa imaginar. Fragilizada, incapaz de concentração e até de entender o que poderia estar a acontecer-lhe começou, através deles, a dar à luz uma e outra vez. Num ciclo de gestações curtíssimas, ela fazia nascer filhos e filhas de cores, texturas e formas variadas, alimentados da sua seiva e do seu sangue e, felizmente, ao contrário dela, vigorosos e dispostos a uma vida longa. Horas mais tarde ela acabaria por ceder ao cansaço, exausta mas também muito feliz por ser uma mãe-natureza, perplexa com a beleza das plantas, flores e até dos pequenos arbustos que se lhe colavam ao corpo, como que a pedir-lhe colo e amor. E ela sim, sempre que despertava do seu torpor abraçava-os e transbordava a seiva que alimentava aqueles filhos que a preenchiam como a um duplo que ganhava forma e corpo a seu lado. A noite chegou e ela não resistiu ao sono mais profundo. O caracol velava por ela, só mais um pouco.

A verdade: Na manhã seguinte os pássaros respeitaram o silêncio do jardim. Quem quis desdizer piares e coisas do dia-a-dia foi mandado para outras paragens, com patos e flamingos em debandada. As pombas anicharam-se sob as flores das ervilhas de cheiro ao redor do tanque e o caracolinho preparou-se para saudar a sua amiga. A mulher-jardim demorou a acordar. Sentia-se bem, mas deu por si deitada sobre a erva húmida, até um bocadinho fria. À medida que tomava consciência do corpo, entrou inicialmente em pânico… estava deitada no solo porque as plantas se tinham ido de dentro de si e não tinha mais como contrabalançar o peso do mundo à sua volta – caíra desamparada. Os seus filhos! Apalpou em volta e procurou a medo pelos recém-nascidos formosos. Ao seu olhar revelou-se, no entanto, colada ao seu corpo muito esguio, uma forma dupla de si. Tocou-a e entrelaçou os dedos por ela, o coração a bater acelerado, a respiração primeiro ofegante, depois desaustinada: filhos e filhas eram agora um só, um pouco maior que ela, esguio também, nu. Quem era? Ela olhou em volta e deu com o caracol assente num raminho seco ao pé de si. E então lembrou-se do sonho: da aragem levíssima, dos corpos quentes, do beijo cósmico… e desenhou um sorriso interior. Compreendeu que lhe cumpria uma tarefa infinita: tantos beijos por dar… o seu duplo adormecido não tardaria a abrir os olhos. Foi assim que apertou num abraço o seu amor maior e pousou os lábios sobre a sua pele docemente perfumada, tal como a recordava desde sempre.

8 Fev 2018

Duas fábulas sobre lembrar e esquecer

03/02/2018

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra.

Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti.

A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo…

Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós…

A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira.

Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza…

Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar.

05/02/2018

Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica.

Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe.

Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo.

Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço.

Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos.

O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos.

Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião.

Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky.

O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista.

De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas.

Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!

8 Fev 2018

Impressões de um bárbaro do sul

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste texto não é sobre esse objecto de qualidade singular que é uma película de cinema, mas sobre algumas impressões sensoriais e reflexivas nesta mais recente passagem no território da RAEM. Registo de viagem que afinal é quase sempre próximo do a-e-i-o-u da sintaxe do cinema, travelling, panorâmica (horizontal, vertical), plano fixo, escala de enquadramento, a que se junta a exploração da rede cromática do visível e o universo sonoro e, no caso, a meteorologia, bem como essa casa de tudo, o tempo, esse escultor de infindáveis e invisíveis braços.

É certo que todo o regresso a um lugar onde se já esteve é sempre uma perda de espontaneidade, surpresa, e muitas das vezes frescura.

Sobre Macau, escreveu o ex-embaixador de Portugal em Pequim, João de Deus Ramos:

“Dos cerca de seis milénios da história da humanidade, a China entra pelo menos nos últimos quatro. E, caso, único, só ela, ao longo desse tempo, não sofreu soluções de descontinuidade na sua evolução como civilização e cultura, sempre igual a si mesma, sempre percorrendo a mesma linha evolutiva. Olhando para os quatro mil anos da História da China, para essa vasta unidade de que os chineses tem bem consciência, vemos que as expedições marítimas de Zheng He aconteceram num passado psicologicamente bem recente, o equivalente para os portugueses, em termos de percepção da duração, ao tempo da queda da monarquia em 1910. A percepção do ‘meio-caminho histórico’ para os Chineses, está em torno da dinastia Han, da altura em que Cristo andou pela terra. Mas, para nós portugueses, a viagem do Vasco da Gama está no centro temporal do nosso percurso. Assim, enquanto nós olhamos para a viagem à Índia de 1497 como um evento bem longe no tempo, os chineses intuem as viagens de Zheng He como acontecimentos da época moderna, quase contemporânea. Ignorar estas realidades falseia, à partida, olhares que se lancem sobre as viagens chinesas e portuguesas, numa perspectiva não apenas de comparação, mas sobretudo de abordagem conjunta. Vale a pena quedarmo-nos um pouco no sentido que pode ter a ‘aceleração’ do presente, tendo como contraponto a relativa ‘desaceleração’ do passado. . .

“Macau não é fácil de ‘explicar’… A cidade do Nome de Deus sobreviveu a mudanças dinásticas, de regime e a revoluções, em Portugal e na China, a crises económicas tremendas, à concupiscência das potências, a duas Guerras Mundiais, a confrontos militares navais e terrestres, a actos de banditismo e de pirataria e a episódios que, normalmente, teriam posto termo à ligação do território a Portugal. Provável era que Macau tivesse acabado algures em meados do séc. XVII; improvável, que perdurasse por mais de quatro séculos.”

Macau continua e vai continuar, agora, desde o início do séc. XXI, com administração pelas suas gentes e soberania Chinesa. Na verdade, são os registos das complexas práticas referentes ao exercício da soberania por parte da administração portuguesa, esse exercício da soberania quase sempre foi formal e informalmente partilhado com o mandarinato próximo, imperador, e governos da república de 1911, ou de 1949 quando da constituição da RPC. Um exercício com a sabedoria do bambu ( phyllostachys), dobrando-se segundo a direção dos ventos mas permanecendo firme no lugar de crescimento.

É curioso o facto da transição administrativa de Macau, corresponder a um momento em que globalmente os centros de poder financeiro, económico, comercial, tendem a deslocar-se do Ocidente para o Oriente. Sendo certo que Macau foi pioneira na sua qualidade de porto marítimo aberto ao comércio do mundo no processo de globalização contemporâneo, é de alguma forma uma cidade com identidade proto-global, o que é uma outra forma de dizer cidade multicultural na sua matriz vivencial e identitária.

A identidade da RAEM, na qual as marcas da europa através de Portugal são incontornáveis, parece integrar-se movimento do que se pode chamar afirmações de identidade locais dentro da grande China, ou seja na afirmação do direito a ser diferente, ter uma identidade própria, dentro da identidade da grande China.

A percepção nesta visita é a de que, tal como na mais recente cinematografia de Godart, o multiculturalismo maioritariamente vivido na cidade acontece por camadas, estratos sociais étnicos demográficos que vivem sobrepostos no mesmo território em comunidades pouco abertas para fora de si mesmas. É uma percepção, que em muito resulta do desconhecimento da língua Chinesa, mas também da realidade social observada.

Por falar em língua, Macau parece mais ter tido como potência administrante o reino de sua majestade do que Portugal. Inglês todos falam, Português, só na gravação indicativa das paragens nos autocarros se consegue ouvir, grosso modo claro.

Na cidade o contraste entre a hipermodernidade e um parque habitacional em decadência parece ter aumentado, provavelmente em razão de espera do investimento em negócio do imobiliário. Para um estrangeiro cineasta há sempre encanto nas marcas do tempo impressas na falência das velhas paredes, guardiãs de antigos sonhos, quotidianos, vidas, mas revela também uma certa forma como a cidade se vê e se trabalha a si mesma e, atendendo aos números do encaixe financeiro, talvez fosse de esperar um outro cuidado com os velhos muros.

É muito provável que seja de mim e não da realidade sempre tangencial com que me tenho cruzado, talvez mesmo da perca de fervor entusiástico que a repetição de lugares também provoca, mas tenho sentido uma alegria débil, ou quase a falta dela, na comunidade portuguesa a viver no território. O Ano Novo Chinês está aí. Onde anda a alegria?

 

7 Fev 2018

A morte é um insulto

Horta Seca, 22 Janeiro 2018

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uvem andarilha em fundo azul de paisagem, certos escritores passam por nós riscando-nos com o mistério intemporal de contar, de nos pôr a viajar longe ao que não existe, perto ao miolo de personagens que talvez possamos ser, ter sido, vir a ser. A mecânica de fluidos da convenção literária faz com que escritores como Ursula K. Le Guin (1929-2018) pouco existam na espuma dos dias da autoritária novidade, instantânea e avassaladora. E contudo são correntes do grande oceano. Precisava ter extraído do caos arrumado o exemplar da Fragmentos de «Tão Longe de Sítio Nenhum» (a que tradutor atribuir tão belo título?) para confirmar que sobrevive além de incandescentes adolescências. «A Mão Esquerda das Trevas» ou «Os Despojados» também me pedem o prazer da releitura. Deixo-me ir por este rio tranquilo?

Horta Seca, 23 Janeiro 2018

Venceu muito mais que os cem anos, este Nicanor Parra (1914-2018). Desconfio até que dobrou os números à maneira dos versos, relâmpagos do pensamento. Conhece-se pouco, dolorosamente pouco, de Parra, o que erguia o dedo médio às entrevistas: «cada pergunta é uma impertinência, uma agressão». Há tanto para fazer no que a este continente diz respeito. Faltou-me partilhar um tinto com o velho, mas haverá sempre tempo amanhã para um Último brinde:

«Lo queramos o no/ Sólo tenemos tres alternativas:/ El ayer, el presente y el mañana.// Y ni siquiera tres/ Porque como dice el filósofo/ El ayer es ayer/ Nos pertenece sólo en el recuerdo:/ A la rosa que ya se deshojó/ No se le puede sacar otro pétalo.//
 
Las cartas por jugar/ Son solamente dos:/ El presente y el día de mañana.// Y ni siquiera dos/ Porque es un hecho bien establecido/ Que el presente no existe/ Sino en la medida en que se hace passado/ Y ya pasó…,/ como la juventud.// En resumidas cuentas/ Sólo nos va quedando el mañana:/ Yo levanto mi copa/ Por ese día que no llega nunca/ Pero que es lo único/ De lo que realmente disponemos.»

 

Horta Seca, Lisboa, 29 Janeiro 2018

Não tarda, todas as entradas se sublinharão com o marcador negro da necrologia e a página estender-se-á campo santo. Acontece. Tropeço na notícia que não lhe faz justiça, mas como poderia? Cruzei-me com o Ângelo Teixeira, que trabalhava para os lados do nuclear, por alturas de movimentações congregadoras em torno PSR e conservo a generosidade e a alegria que explicou ser, sem o dizer, a ossatura de uma cidadania activa. Resultou ainda ser a centelha de criatividade em qualquer gesto público, nas manifestações mais festivas como nas agrestes, distribuía mais sorrisos que folhetos, ergueu sempre a frase que desprezava o sound bite, por vezes de forma quase íntima, gritando baixinho, inventou farol com engenharias várias no capacete. Enfim, e suspiro, não deixou nunca de ser o indivíduo no meio da multidão. Viveu época em que a rua foi palco. Vivemos.

Salgadeiras, Lisboa, 30 Janeiro 2018

Em comentário aos massacres de Sabra e Chatila, nos idos de 1982, António [Antunes] publicou, no seu Expresso de sempre, cartoon polémico, como deviam ser todos (algures nesta página). Pegou em fotografia tristemente célebre do gueto de Varsóvia, na qual uma criança levantava os braços e trocava para sempre a inocência pelo medo face às espingardas nazis, e espelhou-a. As vítimas da barbárie de então apontavam agora as armas e o miúdo era palestino de kefiah. O estilo do António tornou a cena ainda mais soturna. Tantas décadas depois, a imagem mantém-se tragicamente actual e o Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente, dirigido pela Maria do Céu Guerra, editou-a em serigrafia e, a pretexto, chamou-me para conversa. Além do concreto da situação, ainda de chumbo, o assunto interessa por causa das imagens, do que muda quando o argumento se faz ilustrado, em força mas não necessariamente em clareza. Está disseminada a ideia falsa de não que precisamos aprender a ler as imagens, que estas são objectivas, transparentes. Este tema suscitou, no pós 25 de Abril, mais debate do qualquer outro (além deste caso, também no jornal Combate, com João Fonte Santa, e no Diário de Notícias, com André Carrilho), muito pela obscena vitimização que confunde os que sofreram a Shoah com o estado e a política israelita. Quem critica Israel não está a defender o nazismo ou a cometer pecado de anti-semitismo. Ainda assim, na sanha proibitiva que nos assalta, alguns estados prepararam-se para proibir em letra de lei qualquer crítica ao estado de Israel. A prazo, humidade no ferro, isso minará a estrutura das sociedades dita democráticas. O tema será sensível e complexo, mas o papel do cartoonista reside numa simplificação que tantas vezes detecta o essencial. O lugar libertado da opinião, e da opinião desenhada, foi árdua conquista que se encontra hoje ameaçada com vigilâncias de tipo variado, do mais subtil ao directo, e dos mais dispersos quadrantes, da esquerda bem pensante à direita trauliteira e vice-versa. Abdicar da sensibilidade pessoal, até íntima, para discutir o que nos divide, sem a tentação dos argumentos censórios ou violentos, só ajudaria ao entendimento do… essencial. E se determinada perspectiva aguenta a corrosão do riso, para mim, estará mais próxima de uma qualquer verdade – chamemos-lhe assim, por falta de tempo para encontrar melhor. Entendo que alguém se possa sentir insultado com determinada representação, que até pode pisar o risco do estereótipo, mas diz-nos a História que se respira melhor quando, por exemplo, no humor desenhado, a liberdade chega à ofensa. A infância ensina-nos a enfrentar os muitos matizes do ultraje e do vilipêndio. E depois, o chão do medo será sempre movediço.

Vão de Escada, Cossoul, 1 de Fevereiro 2018

O Vasco [Gato], de conluio com outros cidadãos, anda a alimentar a alma da [Guilherme] Cossoul e pede-me para me sentar nos degraus da devoluta casa de Santos. O frio empurra-nos para o bar, o que não me desconforta. Podia lá ser de outro modo? Horas antes varri os livros à mão de semear e cheguei a uma escolha das mais heteróclitas, pondo-me a ler em voz alta banda desenhada e até cartoon. Hei-de repetir. Fugi dos autores da casa, mas nem tanto. Tentei de mim escapar, mas lá mostrei restos de Má Raça. Fui à Itália do António [Mega Ferreira] e às sombras de Zagajewski. Visitei Pessanha, por sermos próximos e ter versão de bolso. Por falar em sonetos, e para minha surpresa, a rede pescou do passado, «Mecânico de Ovnis», uns 20 do Fernando Grade que celebram «Portugal em «p», pequeno país de puritanos»: «Gaivotas que desceis pro sobre a polpa/de um beijo feito de água e neblina/ quando a tarde é um tango ou uma polca/ e os dedos são aranhas nos sobre até à boca.» A noite, que foi de tango, subiu-nos à boca, com mágoas a que voltarei, talvez. Só a dong hai-sopa ácido picante do Dim Sum Macau, a melhor de Lisboa, nos confortou.

7 Fev 2018

RENÉ CHAR

Olhamos o mundo de modo estranho quando ao redor não vemos os Homens – ao redor – gravitam agora os assimilados de uma antiga espécie desaparecida – intermédio ser que tanto faz, que tanto fez, e que desfaz o que todos fazemos- que se encontra em clausura entre o humano e a máquina, uma espécie expectante e espectadora avisa-nos do perigo da diluição perante o coração reluzente dos soberbos mistérios; somos nós essa pegada, estagnados no movimento como plantas de raízes aéreas que trepam pelas hospedeiras, do chão, nem nele enterramos já o cadáver que sobrou incinerado de si próprio.

René Char é um fenómeno da natureza toda e só podemos medir estes tamanhos pela destilação dos efeitos concentrados, pelo imponderável, pela lembrança telúrica da essência de um antigo xamã, não nos é dado ir para a cama com os seus livros, nem com eles fazer leituras comparadas, são coisas que precisam de alguma solenidade vertical pois que um leitor atento sabe que não deve jamais elevar a curiosidade para patamares novelísticos quando tem diante de si um autor que pode muito bem reverter em maldição os olhares desatentos, melhor será então que poucos o sigam pois que se manterá viva a fímbria de uma casualidade imortal que é o que está ali plasmado sem que saibamos porquê.

Transporta, sim, esse – Furor e Mistério – intactos no espaço fundo do poema; é um Titã, um Atlas, mude o mundo, mas não se pode estancar este silêncio, este contágio com a força do raio; outrora quando escutava « Allégeance» era possuída por adágios mágicos, escutava uma tradução de uma língua que ninguém sabe e que tinha na sua um efeito desconcertante e irrevelado. Há sempre estes caminhos que começam por fenómenos naturais e que por serem fenómenos se dão raras vezes, visitações de outras fontes, lembranças do corpo que transportamos, tudo isto me parecia escutar na sua voz dura: porquê, então, tão radicalmente poética?

O que se aproxima mais de uma adjetivação poética é o estado de rochedo, dessa dureza, de imutabilidade, talvez o mineral seja o elemento poético por excelência e não o vegetal coroado em seu louvor em cada início de Primavera. Uma festa que traduz também a queda na fonte de Narciso que passa a representar a poetização do fracasso, Char, não é Primavera, ele ilumina-nos no escuro de uma noite eterna da alma, de um outro posto de vigília que nos quebra as doces sensações, ele está para o poema que transporta de forma assombrada, como nós os seres intermédios estamos para os deuses. Ele lembra-se do início das coisas. Há aquela energia que não é a das vozes canoras, ele dizia: -é o salto que leva ao caminho pondo na acção poética esse «saxífraga» o vegetal que despedaça a pedra.-

Ligado ao movimento Surrealista torna-se também um crítico e ainda participa na Resistência com o nome de «Capitão Alexandre» manteve-se assim na linha da frente contra a ocupação e contra o mal que o seu tempo padeceu, era um guerreiro; em menino viu um raio a que lhe chamou o grande relâmpago e tudo ao seu redor deixou de ter importância, talvez paralisado pela transcendente manifestação. Para ele, só existiria para sempre a noite e a claridade, e os dias eram sombras, e o que cintila de tempos a tempos, aquele número restrito de vezes durante uma vida pode ter sido a raiz de uma tal pujança poética «é sabido que o poeta vive na maldição, isto é, assume perigos perpétuos e renovados do mesmo modo que recusa, com os olhos abertos, aquilo que os outros aceitam com os olhos fechados. O poeta passa por todos os graus solitários de uma glória colectiva, da qual as regras de jogo o excluem. Deve aceitar o risco de a sua lucidez ser considerada perigosa.»

Nada na sua dinâmica é um acto simplificador, seria submeter uma indomável energia a uma noção de causa efeito, e Char, era alguém de uma cultura e sensibilidade linguística sem paralelo, mas tudo o que transmite está inteiro como um átomo, os gomos de uma laranja…ele sabe daquilo que o Homem intermédio esqueceu e todo esse saber só pode ter por veículo a poesia. A sua vida fora dedicada a ela, recebeu ao que se sabe uma boa herança, e por outro lado as sociedades inteligentes não deixam morrer os seus poetas. As que não vêem raios nem escutam o brotar das águas nos rochedos, essas, nem sabem que os têm, mas saber-se-á um dia delas pelas piores razões. Ele segue a estrela, não quer o diálogo poético, quer ser visitado mesmo correndo o risco do inaguentável lampejo…ele firmou o seu destino que é diferente de ter uma vida.

 

POST- SCRIPTUM

Écartez-vous de moi qui patiente sans bouche;

A vous pieds je suis né, mais vous m´avez perdu;

Mes feux ont trop précisé leur royaume;

Écartez-vous de moi qui patiente sans bouche:

Le trèfle de la passion est de fer dans ma main.

 

Numa corrente ainda Surrealista é do profeta Ezequiel de que me lembro por analogia a este belo poema« filho do Homem, come este rolo. Então abri a boca e me deu a comer o rolo». A Bíblia, os textos litúrgicos, continuarão a ser os mais puros elementos do Surrealismo mundial, e isso, que fez Escola, firmou correntes, sabem-no, sempre o souberam os poetas.

6 Fev 2018

A SOMBRA DE PARMÉNIDES

Parménides, que viveu entre 530 a 460 a.C., foi um filósofo da Grécia Antiga, de Eleia, e deixou-nos como registo do seu pensamento um poema, que irei expor aqui uma versão do seu início, seguido do fragmento quinto e, posteriormente, o célebre terceiro fragmento, de modo a aproximarmo-nos do que ele nos faz ver. O poema de Parménides está dividido em duas partes: a Via da Verdade (primeira parte do poema) e a Via da Opinião.

 

POEMA DE PARMÉNIDES

São os cavalos que me levam, e tão longe quanto o meu coração podia desejar,

Pela famosa estrada da Deusa,

A que pelas suas próprias mãos espalha nas cidades

Os homens que perseguem o conhecimento.

E assim também eu fui

 

Lançado numa carruagem, puxada por esses cavalos únicos,

Com donzelas a abrirem-me o caminho.

O eixo que liga as rodas imita o som de um ser alado,

Tal é a velocidade a que deixo os alicerces da Noite

Na direcção da Luz, por vontade das filhas do Sol,

 

Que retiram de suas cabeças os véus que as ocultavam.

E vejo os portões que conduzem ao Dia e à Noite:

A envolverem essas altas portas,

Um lintel em cima e uma soleira de pedra em baixo;

Cabendo apenas à Justiça, que de todos decide,

Fazer o uso das chaves que as fecham e que as abrem.

 

Com palavras bem ditas as donzelas

Convencem-na a destrancar os ferrolhos dos portões

E assim que as portas se abrem

o abismo surgiu por entre as folhas (…)

 

E a deusa recebeu-me com alegria,

segurou-me a mão com uma das suas e disse-me:

“É necessário que oiças tudo,

Tanto a estranha e imóvel rotunda verdade,

Quanto as opiniões dos mortais,

Que não têm fundamento de verdade.

Irás também aprender isto:

Que as aparências são necessárias apenas aparentemente

E estão em todo o lado, à nossa volta.”

 

E no fragmento 5, na primeira parte do livro, “A Via da Verdade”, podemos ler: “É tudo para mim o mesmo, onde quer que comece; pois aí voltarei na devida altura. Vamos e dir-te-ei – e tu escuta e apreende as minhas palavras. Só há dois caminhos para se pensar: um, o caminho que é e não pode não ser, que é a via verdadeira, pois acompanha a Verdade; o outro é o caminho do que não é, e que é forçoso que não exista, e acerca desse, digo-te, é um caminho totalmente impensável. Pois não poderás conhecer o que não é (isso é impossível), nem declará-lo, pois a mesma coisa tanto pode ser pensada como pode existir”.

Ele diz aqui uma coisa fundamental, que hoje pode parecer, por um lado uma redundância e por outro um absurdo: há dois caminhos para o pensar, o do ser e o do não-ser, sendo que este não é.

Afirmar a não existência do não-ser, é uma afirmação de grande alcance. Se o não-ser não é, o ser sempre foi e é e será, por conseguinte não houve um momento em que surgiram todas as coisas, elas sempre foram; o mundo sempre foi, o ser sempre foi. Por conseguinte, o ser é uno, imutável e infinito. Não pode ser senão uno, pois se tivesse em si o seu contrário, como diziam os pitagóricos, teria de ter em si o não-ser, e isso não é possível, pois o não-ser não é; não pode ter havido um tempo em que o não-ser era, pois se tivesse havido, o ser teria sido não-ser, a origem do ser seria o não-ser, por isso ele é imutável; nem o ser pode ser outra coisa que não seja ser, por isso é imutável. O não-ser sempre não foi, por conseguinte o ser sempre foi. O ser é derivado da linguagem, de einai, o verbo ser, tornando assim o pensamento de Parménides um pensamento lógico, isto é, lógico-ontológico, já que se trata de uma lógica aplicada ao ser e aos entes. Tal como em Pitágoras, estamos diante de um pensamento racional, mas que, ao invés de ser matemático, é lógico, ao invés de ser geométrico, é gramatical. E há três formas verbais que dão conta de tudo: einai, estin e on ( to ón); ser, é e sendo (o que está a ser). Reparem que sem “é” nada é. Nós dizemos “aquele homem é alto” “aquela mulher é magra”, “a minha irmã é loira”, “tu és moreno”. Mas dizemos também, e pensamos, “a vida é trágica”, “a vida é bela”, ou “o homem é mortal”. O “é” surge como predicado ou como existencial, o “é” está em todo o lado, é a parte visível do ser, assim como o sendo. Sendo, ou aquilo que está a ser, to ón, foi traduzido para o latim por “ens” e para português por ente. E ente é tudo aquilo que está a ser, que tem existência; o mundo é um composto de entes. O ser não é um ente, mas todo os entes são ser. No nosso mundo ocidental tudo é: o amor é…, a amizade é… a vida é… Tudo é. Parménides descobriu que quando se diz “a parede é branca”, não só temos a parede e o branco, mas temos também o “é”, que penetra nas duas coisas e faz com que ambas tenham uma relação. O “é” faz com que as coisas sejam uma para a outra. O “é” é a cola que permite que os elementos não sejam isolados. Mas este modo de pensar não encontra correlato na maioria das línguas orientais, a maioria delas não conjugam o verbo ser. E, por isso mesmo, chamamos à filosofia um pensamento ocidental. Dizer filosofia oriental é como dizer marciano da Lua, não faz qualquer sentido. Há modos de pensar estritamente orientais, tão ou mais importantes do que a filosofia, mas a filosofia é um modo de pensar à volta do verbo ser.

O ser não é a origem de todas as coisas – como tinha sido pensado até Parménides –, o ser é a essência de tudo. Tudo é e sempre foi e sempre será. Não obstante, o to ón, o ente, tem uma relação indissociável ao presente, através do nous, da consciência, que é preciso entender.

No célebre fragmento III, Parménides escreve: “Tò gàr autò noein estín te kai einai (por conseguinte, pensar e ser são o mesmo)”. Mas nous ou noein, isto é pensar, encontra-se numa relação necessária com o presente, com o aqui e agora de cada momento, e assim nous pode ser traduzido eficazmente por consciência, no sentido em que é um “dar-se conta de”; e sempre que nos damos conta de algo é no imediato, é aqui e agora. Ninguém se dá conta de algo no passado ou no futuro, embora possamos dizer que “só mais tarde me dei conta de que estava a ser imprudente”, por exemplo. Aquilo que vem à consciência, vem à consciência agora, isto é, temos consciência dos pensamentos no momento em que pensamos. Distraídos não nos damos conta de nada. Imaginemos a seguinte situação. Saio de casa, começo andar na rua, atravesso a estrada, dou mais uns passos e, de repente, vindo do nada, ocorre-me este pensamento “será que me esqueci dos óculos em casa”? De repente, paro. Os óculos, até aí completamente esquecidos, inexistentes do meu pensamento, alagam toda a minha atenção, e começo a procurar os óculos na mochila. Os entes têm esta estranha relação com a nossa consciência, fora da nossa consciência eles não são. Por isso costumamos ouvir dizer “andas muito distraído”, querendo com isso dizer que não nos estamos a dar conta do que se passa, não nos estamos a dar conta da realidade. A realidade, isto é, os entes vêm até nós pela nossa consciência em relação a eles. Por conseguinte, a distracção é a morte do artista, a morte do nous, a morte da consciência. Distraídos andamos na vida como fora da realidade. Por outro lado, o facto de não me dar conta de uma realidade não quer dizer que ela não exista, já que ela existe para a consciência de outro. Mas isso só reforça o seguinte refrão: tudo é, e só é, para a consciência, para o nous. Levando o refrão ao extremo, diríamos que o que não existe para a totalidade das consciências, não existe. Por isso Parménides afirma, ao negar peremptoriamente o não-ser, que não é possível pensar o que não há. Mas qualquer um de nós já pensou no tele-transporte e ele não existe. Mas existe enquanto imaginário, assim como o Unicórnio e o Minotauro, pois são entes que vêm à consciência. Nada é sem consciência. Do ponto de vista colectivo e do ponto de vista individual. Por isso, a distracção assume o papel de maior inimigo, não só do conhecimento, mas também do escamoteamento da realidade. Na verdade, todos sabemos que distrair-nos é esquecermo-nos de nós, é dar uma folga a nós mesmos, às nossas preocupações, uma folga à nossa vida. Embora haja quem viva distraído a vida toda, talvez não das preocupações do dia a dia, mas distraído da sua própria vida, do sentido da sua própria vida.

Por outro lado, para Parménides, a via da opinião, da doxa, é a via da mentira, a via do engano, a via do “parece ser”. Platão irá herdar este modo de pensar, que irá alastrar a todo o pensamento filosófico. Hoje até temos uma frase, que não sei se é de Portugal ou do Brasil, que diz: um homem sem opinião é como um jardim sem flores. E quer-se com isto dizer que a opinião é um patamar elevado da inteligência humana, quer-se dizer que devemos pensar por nós mesmos, como se a opinião tivesse alguma coisa de nós mesmos. Essa frase reflecte um modo de estar no mundo completamente inverso ao modo de estar no mundo do filósofo. Seja como for, aqui e agora, hoje em dia, opinião quer dizer “uma expressão individual acerca de qualquer assunto”, mas ao tempo de Parménides, que o que aqui nos traz, quer dizer “aquilo que parece ser mas não é.” Não deixa de ser curioso que, contrariamente a tantos livros, que começariam por nos mostrar o falso, para depois nos mostrarem o verdadeiro, este livro de Parménides começa pela verdade e deixa para o fim a falsidade. A que se deve isso? Podemos pensar que ele prefere começar pelo essencial, de modo a que sejamos impelidos a continuar; por outro lado, também porque os exemplos de “parece ser” são muito mais do que os de ser. Assim que o ser fica definido, em contraposição ao não-ser, que não é e nunca foi, nada mais há a mostrar, a não ser a multiplicidade de “parece ser” em que vivemos mergulhados no dia a dia, e que ele mostra no caminho da Doxa, da opinião (embora a maior parte do livro que não chegou até nós seja a da segunda parte). Em suma, para Parménides, a opinião é aparência. Estamos aqui com Parménides, confrontados entre o mundo da verdade e o mundo da aparência. Mas qual é o motor deste mundo de aparências, se assim podemos chamar? Os sentidos. Sentidos em grego dizia-se aisthesis, estética. Tudo aquilo que chega até à nossa consciência através dos sentidos, chega através da estética. Por conseguinte, há um mundo estético, o dos mortais, isto é, do corpo humano, da aparência, e um sentido ontológico, isto é, do Nous, do imortal, da consciência. É com Parménides, e depois com Heráclito, que pela primeira vez a estética, no sentido dos sentidos, se torna um problema filosófico. A nossa vida está presa à diferença entre estética e espírito, ou sentidos e consciência. O mundo da verdade é o mundo da razão, o mundo do pensar, da consciência; e o mundo da aparência é o mundo dos sentidos, o mundo da opinião. Mas como se passa do mundo da verdade para o mundo da opinião? Isto é, como é que a opinião influência alguém consciente da verdade? De outro modo: é possível viver só no mundo da verdade? Não. Porque a estética, os sentidos são parte integrante do humano. Por isso é necessário ter um conhecimento da via da opinião, de modo a não confundi-la com a via da verdade. E a partir deste momento, a partir deste poema, uma enorme sombra parmenideana se espalhou ao longo do Ocidente.

6 Fev 2018

Poemas de Georg Trakl

A musa da noite

 

À janela, em flores, regressam as sombras do campanário

E do ouro. A testa quente abrasa em repouso e silêncio.

Do ramo do castanheiro, uma fonte cai na escuridão-

E então tu sentes: É bom!, no esgotamento doloroso.

 

O mercado está vazio de fruta de verão e de grinaldas.

Em uníssono concorda a pompa negra dos portões.

Num jardim, ecoam os sons de um suave jogo,

onde amigos se encontram depois de uma refeição.

 

Os contos do mágico branco escuta com enlevo a alma.

Em redor, escuta-se o barulho do vento no trigo que o ceifeiro colheu à tarde.

Paciente calam-se duras as vidas em cabanas;

ilumina o suave sono das vacas a lanterna do estábulo.

 

Inebriadas pelos ares logo cerram as pálpebras

E abrem-se, sem barulho, para os sinais estranhos das estrelas.

Endimião emerge da escuridão entre carvalhos velhos

E curva-se sobre a tristeza profunda da águas.

 

Abendmuse [1]

 

Ans Blumenfenster wieder kehrt des Kirchturms Schatten

Und Goldnes. Die heiße Stirn verglüht in Ruh und Schweigen.

Ein Brunnen fällt im Dunkel von Kastanienzweigen –

Da fühlst du: es ist gut! in schmerzlichem Ermatten.

 

Der Markt ist leer von Sommerfrüchten und Gewinden.

Einträchtig stimmt der Tore schwärzliches Gepränge.

In einem Garten tönen sanften Spieles Klänge,

Wo Freunde nach dem Mahle sich zusammenfinden.

 

Des weißen Magiers Märchen lauscht die Seele gerne.

Rund saust das Korn, das Mäher nachmittags geschnitten.

Geduldig schweigt das harte Leben in den Hütten;

Der Kühe linden Schlaf bescheint die Stallaterne.

 

Von Lüften trunken sinken balde ein die Lider

Und öffnen leise sich zu fremden Sternenzeichen.

Endymion taucht aus dem Dunkel alter Eichen

Und beugt sich über trauervolle Wasser nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 18.

 

Ao menino Elis

 

Elis, quando na negra floresta canta o melro,

Esta é a tua decadência.

Os teus lábios bebem a frescura da fonte azul na falésia.

 

Deixa que a tua fronte sangre levemente

Lendas muito antigas

E a interpretação obscura do voo das aves.

 

Mas tu caminhas com suaves passos em direcção à noite,

Que pende cheia de uvas cor de púrpura

E tu agitas de forma mais bela os braços no azul.

 

Ecoa um arbusto,

Onde se encontram os teus olhos lunares.

Oh!, há quanto tempo, Elis, morreste tu.

 

Teu corpo é um jacinto,

No qual um monge mergulha os seus dedos de cera.

O nosso silêncio é uma caverna negra,

 

De lá sai, às vezes, um animal meigo

E lentamente fecha pesadas as pálpebras.

Sobre as tuas têmporas goteja orvalho negro,

O último ouro das estrelas caídas.

 

An den Knaben Elis[1]

Elis, wenn die Amsel im schwarzen Wald ruft,

Dieses ist dein Untergang.

Deine Lippen trinken die Kühle des blauen Felsenquells.

Laß, wenn deine Stirne leise blutet

Uralte Legenden

Und dunkle Deutung des Vogelflugs.

Du aber gehst mit weichen Schritten in die Nacht,

Die voll purpurner Trauben hängt

Und du regst die Arme schöner im Blau.

Ein Dornenbusch tönt,

Wo deine mondenen Augen sind.

O, wie lange bist, Elis, du verstorben.

Dein Leib ist eine Hyazinthe,

In die ein Mönch die wächsernen Finger taucht.

Eine schwarze Höhle ist unser Schweigen,

Daraus bisweilen ein sanftes Tier tritt

Und langsam die schweren Lider senkt.

Auf deine Schläfen tropft schwarzer Tau,

Das letzte Gold verfallener Sterne.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 17.

 

Noite de trovoada

Oh!, as horas encarnadas da noite!

Cintilante vacila na janela aberta,

Confusa a folhagem para o azul

Lá dentro os fantasmas da Angústia fazem o seu ninho

 

O pó dança no fedor das sargetas

O vento crepitante bate nos vidros das janelas.

[como] Um esquadrão de cavalos selvagens,

nuvens deslumbrantes atiçam relâmpagos.

 

Com estrondo estilhaça o espelho de água.

Gaivotas gritam no encaixe das janelas.

Um cavaleiro de fogo salta da colina

E desfaz-se no abeto em chamas.

 

Gemem doentes no hospital.

Azuladamente freme a plumagem da noite.

Cintilante troveja a chuva,

de súbito, sobre os telhados.

 

Der Gewitterabend[1]

 

O die roten Abendstunden!

Flimmernd schwankt am offenen Fenster

Weinlaub wirr ins Blau gewunden,

Drinnen nisten Angstgespenster.

Staub tanzt im Gestank der Gossen.

Klirrend stößt der Wind in Scheiben.

Einen Zug von wilden Rossen

Blitze grelle Wolken treiben,

Laut zerspringt der Weiherspiegel.

Möven schrein am Fensterrahmen.

Feuerreiter sprengt vom Hügel

Und zerschellt im Tann zu Flammen.

Kranke kreischen im Spitale.

Bläulich schwirrt der Nacht Gefieder.

Glitzernd braust mit einem Male

Regen auf die Dächer nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, pp. 17-18.

 

Gospel

Sinais, um raro bordado,

Pinta um ondulante canteiro de flores.

Sopra a brisa dourada de Deus

Para dentro da sala no jardim

Serena.

Ergue-se uma cruz na vinha selvagem.

 

Escuta na aldeia como tantos se alegram,

O jardineiro apara a relva junto ao muro.

Suave o órgão soa.

Mistura som e aparição dourada,

Som e aparição.

O amor abençoa o pão e o vinho.

 

Meninas pequeninas entram também,

E, por fim, o galo canta.

Devagar abre-se uma cerca podre.

E nas coroas de rosas e fileiras,

Nas fileiras de rosas,

Descansa Maria, branca e fina.

 

O mendigo, ali na pedra antiga,

Parece ter morrido em oração.

Suave desce a colina o pastor,

E um anjo canta no bosque,

Próximo do bosque,

Onde crianças adormecem.

 

Geistliches Lied[1]

 

Zeichen, seltne Stickerein

Malt ein flatternd Blumenbeet.

Gottes blauer Odem weht

In den Gartensaal herein,

Heiter ein.

Ragt ein Kreuz im wilden Wein.

Hör’ im Dorf sich viele freun,

Gärtner an der Mauer mäht,

Leise eine Orgel geht,

Mischet Klang und goldenen Schein,

Klang und Schein.

Liebe segnet Brot und Wein.

Mädchen kommen auch herein

Und der Hahn zum letzten kräht.

Sacht ein morsches Gitter geht

Und in Rosen Kranz und Reihn,

Rosenreihn

Ruht Maria weiß und fein.

Bettler dort am alten Stein

Scheint verstorben im Gebet,

Sanft ein Hirt vom Hügel geht

Und ein Engel singt im Hain,

Nah im Hain

Kinder in den Schlaf hinein.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 19.

5 Fev 2018

A grande purga

[dropcap]N[/dropcap]ão disseram muito, à chegada. Mostraram-nos a identificação e perguntaram-nos pela exposição temporária. Com um nó na garganta, porque não os esperávamos e porque da presença deles nunca resultava nada de bom, conduzi-os até à ala onde eram ultimados os preparativos da exposição. “Estejam à vontade”, disse-lhes, “obrigado, estamos sempre”, respondeu um deles.

Os vídeos não lhes mereceram especial atenção. O mais velho, no entanto, deteve-se num quadro. “Confirma-me que isto faz parte da exposição?”, dirigiu-se-me. “Sim”, respondi, “é um dos trabalhos constantes do catálogo. “Bem, já vi o suficiente”, adiantou. “Fechem tudo”. “Como”? Respondi, incrédulo. “Esta exposição foi devidamente autorizada pelo Ministério da Arte e da Moral, como consta do documento afixado à entrada do museu. Enviámos fotografias de todas as peças que pretendemos exibir e nenhuma foi alvo de objecção, tenho a certeza de que”. “Fechem tudo”, interrompeu-me, “fechem tudo agora mesmo”.

Aparentemente, havia sido uma notícia numa revista de celebridades que espoletara o encerramento coercivo da exposição. Um rapaz alegava que certa vez tinha ficado sozinho com o artista e que este comentara o seu aspecto físico. O artista, claro está, era o autor das peças que nos preparávamos expor. Uma notícia destas podia passar perfeitamente despercebida ou propagar-se pelas redes sociais como lume em pasto seco. É fácil perceber o que acontecera. Replicada vezes sem conta ao longo do dia, a notícia obrigou o Ministério a tomar uma posição que aplacasse a fúria justiceira que ameaçava repercutir-se negativamente na imagem do governo.

Fecharam a exposição, queimaram as peças apreendidas e encerraram-nos o museu durante seis longas semanas, nas quais tivemos que fazer vários pedidos de desculpa públicos e demonstrar “o mais sério e sincero arrependimento respectivo aos factos que motivaram o castigo aplicado”. Demos diversas entrevistas através das quais aferimos a avaliação que as redes sociais faziam da nossa sinceridade. Se desconfiassem da honestidade da nossa contrição, poderiam nunca mais autorizar a reabertura do museu. Felizmente, o nosso advogado era muito competente na gestão de processos públicos desta natureza. Para além da preparação que nos ministrou antes de cada entrevista, ainda nos deu uns comprimidos – de que nunca ouvira falar – que nos fazia parecer imbuídos de pena como se tivéssemos acabado de enterrar o nosso melhor amigo. “A molécula da tristeza”, segredava-nos, enquanto tomávamos os comprimidos.

Felizmente, a pena foi a menor possível. O museu, apesar das perdas consideráveis que uma publicidade desta natureza acarreta, sobreviveu. O mesmo não se pode dizer do autor das peças que originaram o castigo a que fomos sujeitos. Depois de semanas de bullying público – queimaram-lhe o carro, envenenaram-lhe o cão, grafitaram-lhe as paredes – o homem acorreu à polícia para pedir ajuda. Após consultarem o processo, disseram-lhe que nada podiam fazer: o Ministério da Arte e da Moral tinha ascendente hierárquico sobre o Ministério do Interior, que tutelava a polícia.

Um dia, ao sair do supermercado, deu conta de que o filho chorava compulsivamente. “Eles disseram-me que te iam esfolar vivo à minha frente, pai”. Irado, virou-se para trás e gritou indiscriminadamente para as pessoas que se acotovelavam junto das caixas registadoras. Alguém terá testemunhado ter ouvido um insulto de género. Era dos poucos casos do processo penal que dispensavam provas ou testemunhos. Foi condenado a dois anos de prisão mas não chegou a cumpri-los. Suicidou-se passados seis meses e várias surras recebidas.

5 Fev 2018

O lugar das coisas

[dropcap]O[/dropcap]s sistemas de rotina nem sempre coincidem de pessoas para pessoas. Basta perceber que há pessoas arrumadas e pessoas desarrumadas. Há quem ache que um terceiro vive no caos, quando esse terceiro se dá perfeitamente com o ambiente que criou. O ponto fundamental parece ser este. Um objecto pode ser identificado num “topos” que não é a sua “chora”, o seu território, por assim dizer. Cada objecto tem o seu território e o território identifica também outros objectos com os quais está relacionado. Sem esses outros objectos, um objecto pode estar isolado. Há um sistema, uma rede de forças, que identifica logo uma coisa no seu sítio com uma relação intrínseca com outra coisa que pode não estar no seu sítio. Imaginemos as loiças da casa de banho e as da cozinha. Um bidé não fica na cozinha por razões óbvias e o lava-loiças não fica bem na casa de banho. Mas o lava-loiças implica uma zona para ter tachos, pratos e talheres sujos e uma outra zona onde eles são colocados para serem enxugados.

O armário onde serão arrumados está próximo, etc., etc.. A própria relação do território de cada objecto pode ser alargado. Pensemos na relação que há entre pôr a mesa ou equipar a mesa e levantar a mesa para lavar a loiça. Há uma relação entre os sítios próprios onde se arrumam copos e pratos, os armários da loiça, e os sítios próprios onde estão tachos, panelas e fervedores, por exemplo. Há um sítio onde está o pão e o seu cesto. Um sítio onde estão os talheres. As gavetas dos talheres têm divisórias para garfos, facas e colheres, e até para colheres de várias dimensões. Estes “artigos” viajam até à mesa. São colocados sobre a toalha posta. Têm um sítio apropriado, cada lugar está reservado para cada pessoa específica da família e sem grandes cerimónias. Podemos alargar a consideração. Olhemos para a nossa mesa de trabalho. Pode ser a secretária onde uma miúda ou um miúdo estão a fazer os seus trabalhos de casa. Pode ser a secretária de um arquitecto, engenheiro, médico, filólogo. A secretária é estruturalmente diferente para cada profissão e cada profissional tem a sua maneira de arrumar as coisas. Por exemplo, a sua posição relativamente à luz. Um dextro recebê-la-á pela esquerda. Será posta junto à janela ou afastada dela, para não haver distracções. Há livros que eu tenho à esquerda e outros à direita. A posição do computador tem de ser confortável para escrever, para prevenir até a fadiga física. Se pensarmos nos sítios das nossas vidas, percebemos que ginásios, hospitais, cafés, sítios públicos e privados têm os seus sítios estruturalmente determinados para as suas coisas. A nossa vida lida com sítios inteiros, espaços públicos, locais e localidades precisamente como lida com o açucareiro, leite e café. Organizamos a nossa vida de acordo com os sítios pelos quais a nossa vida está distribuída. Essa organização é temporal.

2 Fev 2018

Ano Cão embrenhado numa montanha de problemas

[dropcap]N[/dropcap]o próximo Domingo, 4 de Fevereiro, celebra-se a Festa da Primavera (Li Chun, 立春, Princípio da Primavera), que para os geomantes do Feng Shui é o dia da mudança na regência do signo do ano, quando termina o do Galo Solitário e se dá início ao do Cão na Montanha.

Em 2018, pelo calendário lunar, na China o primeiro dia da primeira Lua do ano será a 16 de Fevereiro e assim começará o ano do Cão na Montanha ainda sem ter ocorrido a celebração do Ano Novo Chinês. No último dia da décima segunda Lua, a 15 de Fevereiro, dar-se-á um eclipse solar.

No ciclo de 60 anos (60 Jia Zi, 六十甲子), encontro do Céu com a Terra, este ano Cão na Montanha terá o número 35 e o nome Wu Xi (戊戌), pois corresponde ao Caule Celeste Wu (戊, associado ao elemento yang da terra) conjugado com o Ramo Terrestre Xu (戌 representado no carácter do animal Cão).

Sendo Xu (戌) sempre terra e o Caule Celeste corresponde este ano a Wu, elemento Terra yang, teremos para 2018 terra sobre Terra, o que levará a ampliar os dois elementos a si associados: o fogo que cria a terra e a água que é cortada pela terra (pelos elementos água e fogo se criou a Terra).

O fogo do Verão, alimentado pela madeira na Primavera, sem água para o cortar, amplia a terra e coloca-nos num dos extremos previstos para ocorrer este ano. Nesse período haverá tremores de terra e os vulcões expelirão magma, terra fortalecida que corta a água e, com esta seca, facilmente se dá a ignição, originando grandes incêndios. Com o fogo a criar mais terra, irá esta ocupar o lugar da água, mas com o metal no Outono a sulcar a terra, a água no Inverno provocará grandes inundações.

Calamitosas condições a originar também doenças, epidemias e distúrbios na mente humana, que a poderão levar a enlouquecer. Organizada no caos, já sem compreender as imagens mentais que controlam a intervenção humana, está a mente predisposta a insanos extremismos, com apologia à descriminação e à guerra. Quando pelo semelhante, o desequilíbrio é levado a atitudes trazidas por fundamentalistas razões criadas pelas individuais verdades. Devido à liberdade de escolher que temos dentro da forma do pensar, cremos serem essas verdades produto do nosso pensamento. Alia-se a isso uma ciência positivista que, enquanto Religião, escolheu como modelo a máquina e assim realiza-se no Deus do Imperfeito.

A conjugação de todos estes elementos torna-se um vulcão pronto a expelir a terra que tem dentro de si e serão os efeitos dessas catástrofes a dar folga à mente para vislumbrar de novo o Espírito da Terra. Desde esse Espaço, que dá os significados à matéria, consegue-se reflectir o subconsciente com que materialmente formatamos as realidades, podendo conseguir assim limpar as poeiras projectadas no espelho. Individual ou do Universo.

Terra sobre terra

Ano que vai ser de extremos: ocorrerão grandes mudanças com variações entre boas e más situações, consoante a Visão de cada um. É pelas bordas da História que consciencializamos e reconhecemos o lugar por nós ocupado. Por isso, quem olha as realidades, sem necessidade de nelas se impor, e pelo envolvente espaço se coloca como meio, vê-se a ganhar consciência das imagens mentais com que criamos o Universo e o ano servirá de grande aprendizagem e agudeza sobre o que viemos ao mundo fazer.

Para quem parte já com verdades, pois ao entrar na realidade logo pela memória se projecta nas materiais formas que alimentam o seu observar subconsciente, não dá espaço ao que fora de si está e o envolve num todo e, por isso, apenas se irá encontrar pelo individual pensar, mantendo-se assim num ano embrulhado em caos e ruído.

Prevê-se com um grande segurança, e todos inconscientemente sentimos, que não será um ano fácil, pois não haverá meio-termo. Tudo acontecerá de repente e, descontrolando a mente, valerão essas calamidades para acalmar a loucura propícia ao brotar do vulcão que é a mente humana. Esta, educada no cartesiano sistema de projecção, com o Erro de Perspectiva a empurrá-la para o caos, sem a consciência na Geometria Sagrada da Natureza, só vinga formalmente pela autoridade estatutária. Estruturada num caminho rectilíneo e uniforme, tudo começa e acaba no Eu individual, que é o fim, sem espelho no ondulatório criar ciclos, para alimentar as imagens mentais. Caótico labirinto, sem enredo para levar à saída do subconsciente e, nesse estado Superior de adulto, por que julgamos ser, somos juízes das verdades adquiridas no ouvir dizer e nas narrativas relatadas até à exaustão como notícias, acompanhadas por imagens de televisão que, qual S. Tomé, se tornam verdades. Do vazio, as fontes de informação e educação estruturam o espaço das nossas imagens mentais, transfigurando-as em formais Verdades, pelas quais cegamente lutamos.

Veja-se o valor para as nossas vidas que as máquinas têm e lhes damos. A luz da máquina de encontro aos nossos olhos, poderosamente coloca na mente as verdades do ter visto. Com o suporte a receber a luz do meio ambiente, permite reflectir o que os nossos olhos vêem: espaço entre os objectos e a mente.

É perante esta balança que o ano vai oscilar, sendo por isso diferente consoante o espaço dado. Em reflexão pelo nosso interior ou no continuar a esquecer o Erro da Perspectiva, crendo conseguir viver sem estar e a projectar, observa-se de fora revertido ao ponto de fuga. Por que se julga, com o estatutário poder do ser, fazemos o julgamento.

Sabe-se pela História, a existência de personagens que, pela autoridade natural e do saber, conseguiram resolver difíceis problemas surgidos e evitaram guerras. São milénios a usarmos a Natureza, sem lhe dar o respeito ao que dela retiramos pois, se somos nós a finalidade, é pelas nossas verdades que a tomamos. Vale ser o cão um animal fiel e emocionalmente sentir o tratamento ético que lhe é dado por quem com ele coabita, entregando-lhe com amor a sua fidelidade. Terá sido o primeiro animal que se deixou domesticar pelos humanos, o que ocorreu há 17 mil anos.

Só a partir do vazio se volta a criar ordem, para conseguir sair desse fosso onde já há dois milénios estamos atulhados, sem a ancestralidade proveniente do inconsciente Céu.

O fogo controla a terra e esta, aumentando, será inundada pela água; catástrofes poderosas, provocadas pela Natureza que, descontrolando a mente, poderão levar alguns dirigentes a entrar na loucura, valendo a grande neve ou os enormes incêndios para os acalmar. Assim, o poder é entregue naturalmente à solidariedade das pessoas para juntas enfrentem as adversidades.

O que temos a esperar para este ano, positivo ou negativo, está na vontade ou desejos colocados por cada um. No Próprio do Todo Um onde nos encontramos inseridos ou, individualmente, no cada um por si.

2 Fev 2018

Descida aos infernos

1

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo o dramaturgo ateniense Agatão, o único poder negado aos deuses é o de desfazerem o passado. Isto, coitados, são os deuses gregos. De outro expediente, insusceptivelmente eficaz, os políticos moçambicanos que fazem e desfazem o passado, à sua medida e ambição. O seu poder (é a crença instalada) sustenta-se no desiderato de apagar a memória.

Tive um jantar com amigos. Alguns trabalharam em arquivos e outros fazem investigação e dependem da frequência dos arquivos. A conclusão é unânime: em Moçambique os arquivos estão mortos, arrasados por um banimento infindável.

Começa pela desorganização voluntária dos serviços, no fito de servir interesses dos funcionários. Por exemplo, se os dados estatísticos mostram que naquela biblioteca ou arquivo há uma maior solicitação de determinadas publicações, de xis temas e eventos, então rapidamente desaparecem essas publicações e as páginas referenciais mais requeridas (arrancadas sem pejo), de modo a que posteriormente possam ser solicitadas “particularmente”, contra o pagamento de uma quantia.

Os primeiros funcionários do Arquivo Histórico rasgavam os jornais para embrulharem o pão e o mata-bicho – delatado com vergonha pela primeira directora do Arquivo. Hoje, metade das colecções de todas as publicações foi espoliada, destruída, despedaçada. Não há modo de empreender qualquer investigação séria com balizas cronológicas: as faltas, omissões e os hiatos serão fatais. Dois terços dos livros da Biblioteca Nacional foram vendidos na rua, em duas décadas de desvios para as bancas de rua. A única colecção nacional provavelmente incólume será a do Banco de Moçambique, fechada ao público. Um dos comensais contou ter orientado uma formação para bibliotecários e arquivistas e como sete dos nove formandos escolhidos pela comunidade eram analfabetos.

A sanha de vender os livros ao desbarato ou de se desfazerem do “papel” começou depois da independência, no gesto de se deitar para o lixo os arquivos das Conservatórias, como as pastas com as certidões de nascimento, “porque já não eram necessárias!”, mas estes primeiros actos de irresponsabilidade, ignorância e inconsciência, volveram depois actos de amputação voluntária ao sabor da conveniência política e estenderam-se a todos os domínios. Os arquivos de cinema não estão catalogados – ou seja: não existem -, os arquivos da televisão pública foram literalmente apagados, etc., etc.

A última, contada ao jantar: há duas semanas um dos convivas quis consultar vários números da revista Tempo – um baluarte da comunicação em Moçambique, antes e após a independência – e respondeu-lhe o funcionário da instituição: o arquivo da revista Tempo foi “confiscado pela Presidência”.

A tentar adivinhar, sopesar, esmiuçar o que signifique tal “confiscação” bebemos mais duas garrafas à mesa – talvez em luto.

Até que alguém deixou cair:

– Havia um apagamento deliberado da memória que envolvesse os portugueses e agora impõe-se outro, eles não querem que se recorde que hoje os grandes defensores do capitalismo mais cru e selvagem eram os ortodoxos líderes socialistas de antigamente…

Réplica imediata de outro dos comensais, erguendo o copo numa saúde:

– Ah, menos mal, se afinal é um gesto de decoro…

– É o decoro de A Grande Farra… – atira um terceiro.

 

2

Ao arrepio do que se passa em Moçambique, a norte o desnorte ecoa o ditado apocalíptico de Baudrillard: «Hoje o meio mais seguro para neutralizar a alguém não é saber tudo sobre ele, mas sim dar-lhe os meios para ele saber tudo sobre tudo. Já não é necessária a repressão e o controlo, substituído com vantagem pela saturação da informação e da comunicação, porque o consumidor está encadeado pelo vício da pantalha. De forma mais segura será o vulgo paralisado com o excesso de informação sobre tudo (e sobre si mesmo), do que privando-o de informação». Eis o lado negro e obsceno da avalancha mediática que tem, contudo, outras virtualidades e recortes menos sombrios até porque na verdade às imagens de um espelho ninguém as consegue penhorar ou confiscar.

3

Morreu esta semana o poeta chileno Nicanor Parra, aos cento e três anos. Poeta e matemático, posicionou-se com Antipoemas (1955) como o anti-Neruda, enveredando por uma poesia discursiva e narrativa e que evita a metáfora.

Cheguei ao poeta chileno por causa de uma dedicatória de Fernando Assis Pacheco, que lhe chamava «meu mestre».

Nicanor – irmão da cantora Violeta Parra e do artista de circo Óscar Parra, conhecido como el Tony Canarito – foi Prémio Cervantes de 2011.

Dele fiz a tradução de dúzia e meia de poemas, aqui deixo a sua VIAGEM PELO INFERNO:

 

Numa sela de montar /fiz uma viagem pelo Inferno. //No primeiro círculo vi umas figuras/ placidamente recostadas/ a uns sacos de trigo.// No segundo círculo borboleteavam homens em bicicleta, / à rasca, sem saber onde apear-se/ – pois estavam bravas as chamas!// No terceiro círculo reparei / numa só figura humana/ que parecia hermafrodita.// Era criatura sarmentosa/ e dava de comer aos corvos. //Trotando e galopando queimei/ um intervalo de várias horas/ até ter chegado a uma cabana/ no interior de um bosque/ onde vivia uma bruxa. // Sacrista do cão,/ foi por um triz! // Já no círculo número quatro/ topei um ancião de longas barbas,/ calvo como um sandeu/ que montava um pequeno barco / no interior de uma garrafa. / Que afável o seu olhar! // No círculo número cinco vi / uns jovens estudantes jogando futebol / araucano com uma bola de trapos. / Fazia um frio de rachar. // Tive de passar a noite em claro / num cemitério, encostado/ a uma tumba / para não morrer de frio.// No dia seguinte continuei a minha viagem por uns cerros/ e vi pela primeira vez os esqueletos/ das árvores incendiadas por turistas. // Só restavam dois círculos./ No primeiro lá estava eu / sentado a uma mesa negra. / Lambuzava-me com um passarinho/ e a minha única companhia/ era um candeeiro a petróleo.// No círculo número sete não vi/ absolutamente nada, só me chegaram ruídos/ estranhos e uns risos espantosos/ enleados nuns miados, suspiros/ profundos, que perfuravam a alma.

1 Fev 2018

Andorinha

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão era tudo negro, nem pensar. E não era tudo claro, também. Mesmo quando eu abria muito os olhos, sempre que despertava ou era intempestivamente despertado do meu ciclo de sono, não via senão o que sentia: uma intermitência de farolim que se pode ou não tocar.

Lembro, pois, cambiantes de luz. Nada de cores, nada de definido, só impressões de claridade – ou de menor obscuridade –, bolsas luminescentes no microcosmos líquido que me sustinha. Deixei que o farolim me indicasse um lugar.

No início é assim: pressentimos estrelas e planetas como fogachos numa noite de breu. Podemos escolher caminhar ao seu lado sem ter nada a ver com eles ou permitir que se entranhem fundo em nós. De resto, ainda aquém de mim nascido, aprendi que ver não era o mais importante.

Ver o quê… para quê, ouvindo e sentindo, pouco mais que embrião fecundado num de entre muitos acasos de desamor, a perdição da minha Mãe e a brutalidade lasciva do Monstro? Como conseguiu ela amar-me tanto ainda assim, que me dispôs à lua e ao sol?

Nasci do abrupto, como não podia deixar de ter sido. Não tive tempo de me preparar, talvez não tenha chegado mesmo a ser acabado, os pulmões, sobretudo, suspiravam mais que respiravam… no entanto, aceitei seguir o rastro de luz.

Não nasci aflito porque não estava em mim afligir-me a não ser com a hipótese remota de um dia não poder palmilhar descaminhos e neles encontrar-me, perdido para sempre dos que me tinham gerado.

De resto, foi tudo muito rápido: os pontapés dele na barriga dela, a queda, as contracções fantásticas, o coro de gritos das mulheres e eu a ser empurrado por uma força sobre-humana para um mundo novo.

Tomei apenas algum do líquido morno de que me despedi para sempre e despedi-me ainda da Mãe, que senti partir num último fôlego cansado. Retirado do seu mar quente, optei por só pousar a terra brevemente e logo escolhi o ar.

Não sou um menino, sou uma andorinha.

Depois de reconfigurado em corpo desligado desse outro corpo que me acolhera, houve quem me desse colo e alimento. Ninguém em especial, nessa altura. Vizinhas velhas e uma tia que a partir de um dado momento,  desapareceu de vez.

Mas havia as Mimis – não recordo os seus nomes individuais e elas não me levarão a mal. As Mimis eram as meninas da aldeia que pegavam em mim e me levantavam no ar como se eu fosse o boneco animado que não tinham.

Entre si rodavam-me até à vertigem, delas e minha, bem no alto dos seus braços abertos ao céu. Riam e eu talvez risse também. Chorar não chorava. Lá em cima, reconhecia a minha natureza de pássaro.

No entanto, à medida que o negro se adensava à minha volta, as luminosas Mimis foram aparecendo cada vez menos, assustadas com o Monstro que as queria levantar no ar também. E depois deitar por terra.

Sobrou só a minha Mimi, uma menina mais crescida, protegida por uma cara feia e um corpo anão, a única que recordo olhar-me nos olhos e sorrir com eles para mim, instilando-me alegria e vontade de viver.

A Mimi visitava-me muitas vezes, não todos os dias mas sempre que conseguia encher o garrafão de plástico com vinho, pelo menos vinho, que pousava à entrada da casa para adormecer o Monstro.

Trazia-me um ovo cozido que partia em bocadinhos e me dava à boca, a sorrir meiguice. No inverno dava-me uma laranja, no verão amoras silvestres. Fazia-me festas e dizia que me ia ensinar a voar.

Era uma boa ideia, eu tardava em aprender a andar. Balançava incerto do chão debaixo dos pés e tinha tendência para me desequilibrar e cair. Passei, por isso, a erguer os braços e a movimentá-los numa cadência de pássaro.

A Mimi levava-me para o terreno em volta da casa térrea minúscula onde eu vivia e os dois ensaiávamos corridas breves, a bater as nossas asas, o corpo atirado para a frente e o rosto ligeiramente erguido.

Quando eu era uma andorinha, nunca caía.

A Mimi teve ainda outra boa ideia: como o Monstro nunca se lembrava de me dar de comer nem cuidar que eu tivesse um sítio onde dormir, aprendi com ela a fazer ninhos. Por segurança, escolhemos erguê-los sobre o chão.

Só os outros pássaros sabiam que pelo terreno afora havia ninhos escondidos feitos de erva ressequida e de toda a espécie de palhas e raminhos onde me encolhia como no microcosmos do início de mim.

Sob esses ninhos cavei buracos, alguns muito fundos, serpentes direitas ao centro da Terra, tão largos que eu cabia lá dentro. Abrigava aí amêndoas, nozes, pinhões e relíquias que coleccionava, como as palhinhas de plástico que segurava à vez entre os lábios, a fazer de bico.

Ao correr do tempo fui compreendendo os sinais do Monstro. Captava-os no ar, trazidos por uma energia negativa poderosa: sabia quando ele ia desaparecer, quando estava para chegar, se me devia esconder, se ia ser fechado no buraco.

Se ficava fechado no buraco era pior. Nenhum pássaro, menos ainda uma andorinha, suporta gaiolas, douradas que sejam. Quando ali era trancado voltava a mim antes de mim e, na semi-obscuridade, relembrava a mãe-placenta e resistia.

Todos os outros estados do Monstro me permitiam mais ou menos acolher-me aos ninhos ou treinar o bater de asas em corridas desajeitadas e bambas. E tecer na imaginação as rampas de vôo de que me lançaria, um dia.

Olha o Andorinha! – ouvia, sempre que me aventurava pelos caminhos da aldeia. – Ainda não partiu, pobre dele. Quando regressas para junto dos teus? Os bandos debandam! – gritavam pessoas.

Eu calava o bico, os lábios cerrados esticados para a frente e lançava-me numa corrida demonstrativa, as pernas atiradas ao deus-dará mas os braços firmes, acima abaixo, acima abaixo. Ouvia rir e sabia que partiria dali. Iria voar.

1 Fev 2018

AL- ANDALUZ

 

«Conheço-vos as areias e os sonhos»

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os céus está agora um belo quarto crescente que no levante indica que a Primavera não tarda e que o que cresce na alta noite tem um nome que para os mortais ainda é difícil enunciar.

É uma noite que recrio no reino dos Almorávidas, a lua crescente é uma figura geométrica e naquela curvatura que fechará o circulo reside o desenho de toda a vida: é um embrião, e não paramos de olhar os pontos fixos dos eixos extremos, é uma contemplação extraordinária.

Não me esqueço que me passeio por antigos reinos de califados, omíadas e taifas, que o refrão das suas vogais nos penetra todos os dias e que devemos muito do pão da terra às noras, aos alambiques às alquitarras.

Pese embora o exaltante momento das Descobertas, foi este antigo Império o grande civilizador, pois que a nossa presença em África nunca o foi, salvaguardando o interesse do ouro do Brasil, nada empobreceu mais a nação que epopeia marítima e a relação com África: primeiro, visto que não havia método civilizador, nem o catolicismo era uma atraente matéria antropológica; depois, já que os homens se foram e ficaram os incapazes, daí um país que se geriu por mulheres fecundadas por seres estranhamente diminuídos de quem somos herdeiros vai para quinhentos anos. E se isso não bastasse, o retrocesso da nossa civilidade ao instituir a escravatura como tráfico de mercadoria.

Por tudo isto, e até hoje, creio que África nos despojou de outra vocação bem mais interessante que era o tanger da cítara e da natureza de um reino de refinados poetas, pois jamais esquecer a terra de Al-Mu-Tamid, Beja, que fora rei de Sevilha e o maior poeta árabe antigo, o que é difícil numa era de poetas excelentes. Acabámos negreiros, colonizadores (que é diferente de invasor) e sem herança alguma a não ser a estranha associação PALOP que nasce de complexos de culpa e em termos de civilização nada acrescenta.

Aquando da reconquista, Ibn-Sara, poeta árabe nascido em Santarém, escreveu assim: «ficar para um homem livre em terra de aviltamento é mostrar por minha fé uma bem grande impotência. Viaja, e se não encontrares homens generosos, pois bem, vai de homem vil em homem vil. A ignorância atrai a riqueza como o íman».

Mas tenhamos sempre presente que mesmo a reconquista cristã teve momentos altos de confraternização e uma tácita diplomacia muito distinta das narrativas ensanguentadas que nos querem fazer acreditar. Parece mesmo, ao contrário do que supúnhamos, que eram muito civilizados em contraste com tudo o que aconteceu depois. E para tanto vejamos o clima de tolerância entre cristãos, judeus e muçulmanos, populações nascidas das três, moçárabes, muladis, tudo isto deu no conjunto dos dialectos o árabe-hispânico, o ladino, e toda a estrutura do que são hoje as línguas peninsulares de raiz romana.

Creio que qualquer ser que esteja de fora olha para a estrutura evolutiva sem saber da sua designação. Não é certo que tenhamos evoluído, quando chegámos a África. Em território nacional fizemos um local absolutamente obscurantista como jamais tinha existido, andamos agora a “remendar” a língua para provarmos a eficácia humanista de gentes que quase nem se falam… queremos falar e não conseguimos… Mas dentro da língua estão os dadores da seiva fonética, esses, os que não podemos contornar, e nenhum retornado dessas selvas africanas terá com a saudade dos trópicos escrito algo que se parecesse com a diáspora de todos os fins de Impérios esta beleza de saudade imensa: «Só eu sei quanto me dói a separação! Na minha nostalgia fico desterrado à míngua de encontrar consolação. À pena no papel escrever não é dado sem que a lágrima trace teimosa linhas de amor na página da face. Se o meu grande orgulho não obstasse iria ver-te à noite: orvalho apaixonado, de vista às pétalas da rosa.»

A saudade é um sentimento requintado, devemo-lo muito a judeus e árabes, os povos que mais civilização transportam e que prendem de memória os espaços ocupados. Para nós, o amor ficou para sempre ascensional, bem distinto da noção linguística gaulesa do «tomber amoureux».

Há efectivamente um crescente poético que convém lembrar, que são temas sempre esquecidos nos compêndios escolares e sobretudo muito oscilantes com a matéria dos regimes. Os nacionalismos são efervescências nascidas no século dezanove no centro e leste europeus, nós não tínhamos que os seguir nem com eles ter alinhado em um momento histórico, mas também não parece que este novo paradigma tenha feito lembrar alguma coisa, é certo, e vamos recriando os paradoxos como se tudo fosse um filme alimentado pela cabeças estranhas de cada um.

A bússola devemo-la aos árabes peninsulares que não são bem os muçulmanos da África portuguesa no Índico. Já todos a Oriente conheciam aquelas costas e creio que delas fugiram pois não lhes interessava – os jardins de laranjeiras a sul e as estradas das suas flores, um sistema agrícola que não precisou de latifúndios nem da reforma agrária onde as águas irrigavam as terras e os solos floriram sempre – foi sem dúvida o que mais interessou.

No século XIII, Afonso X de Castela, avô de D. Dinis, reúne aquilo que pode ser um pacto de amizade hispânica, o acervo árabe para castelhano. Eles não se esqueceram de manter vivas as heranças dos destituídos pois que lhes sabiam da importância cultural e civilizadora e assim por longo tempo, nessa dita e obscura Idade Média, se parece ter vivido o que hoje a globalização não sabe, nem ideia tem para contemplar.

Hoje sabemos deles pela desgraça actual dos atentados terroristas e não há correspondência alguma pois que os terroristas islâmicos são um produto dos Estados ocidentais: em vez de fazermos amigos, fizemos terroristas. O mundo parece ter-se esquecido que existe para além dos seus interesses económicos imediatos e cá andamos nós feitos miméticos a ver se passamos entre os vários estertores. Agora, todos virados para a Europa, num país de contornos bravios que tende para a desertificação sem freio e para uma esterilidade programada: haja quem o compre que é isso que se está a fazer e o inglês tornou-se o dialecto dos bárbaros globais que potencializa a má linguística de todas as nações.

O crescente vai a passar nos céus de um antigo reino, que teve nos últimos Almorávidas os vencidos, e quase sinto o cheiro das laranjas em frescos jardins como se os céus me transportassem um fulgor de Deus tão intacto que espanta e seduz.

 

Minha pupila liberta

Quem da página é cativo:

O branco, da margem certa.

E da palavra, o negro vivo.

( daríamos as nossas para tão lúcido instante)

 

IBN AMMAR, nascido em Silves

31 Jan 2018

A Bela Cidade

A bela cidade

 

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]elhas praças solarengas calam-se.

No azul profundo e ouro imersas,

Precipitam-se sonhadoras freiras doces,

Para baixo das faias abafadas e sufocantes.

 

Das claridades castanhas das igrejas,

Contemplam da morte imagens puras,

belos escudos de grandes príncipes.

Coroas cintilam nas igrejas.

 

Cavalos emergem da fonte.

Ameaçam das árvores garras de flores.

Meninos brincam confusos pelos sonhos,

À tarde, em sossego, ao pé da fonte.

 

Meninas de pé estão junto às portas,

Olham tímidas para a vida colorida.

Estremecem os lábios húmidos

E aguardam junto à porta.

 

Trepidantes vibram os sons das campânulas,

Ecoa o tempo de marcha e a chamada dos guardas.

Estrangeiros escutam sobre os degraus.

Alto no azul há sons de órgão.

 

Claros instrumentos cantam.

Através da folhagem dos jardins,

ecoa o riso de mulheres belas.

Baixinho cantam jovens mães.

Furtivo sopra em janelas floridas

As fragrâncias de incenso, alcatrão e lilases.

Prateadas cintilam cansadas as pálpebras

Através de flores à janela.

 

 

Die schöne Stadt

 

Alte Plätze sonnig schweigen.

Tief in Blau und Gold versponnen

traumhaft hasten sanfte Nonnen

unter schwüler Buchen Schweigen.

 

Aus den braun erhellten Kirchen

schaun des Todes reine Bilder,

großer Fürsten schöne Schilder.

Kronen schimmern in den Kirchen.

 

Rösser tauchen aus dem Brunnen.

Blütenkrallen drohn aus Bäumen.

Knaben spielen wirr von Träumen

abends leise dort am Brunnen

 

Mädchen stehen an den Toren,

schauen scheu ins farbige Leben.

Ihre feuchten Lippen beben

und sie warten an den Toren.

 

Zitternd flattern Glockenklänge,

Marschtakt hallt und Wacherufen.

Fremde lauschen auf den Stufen.

Hoch im Blau sind Orgelklänge.

 

Helle Instrumente singen.

Durch der Gärten Blätterrahmen

schwirrt das Lachen schöner Damen.

Leise junge Mütter singen.

 

Heimlich haucht an blumigen Fenstern

Duft von Weihrauch, Teer und Flieder.

Silbern flimmern müde Lider

durch die Blumen an den Fenstern.

 

TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, pp. 15-16

31 Jan 2018

Conversão e Existência

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onversão é uma palavra importante no Novo Testamento, que tem a sua etimologia no grego clássico, epistrophe, de onde é original a palavra. Por outro lado, há uma outra origem para a palavra, também no grego: epi + stroph. “epi” é uma preposição que quer dizer “acerca de” ou “em volta de”, ou “sobre”. E este “sobre”, que muitas vezes pode ser sinónimo de “acerca de”, aqui não encontra a sua sinonímia. “Sobre”, aqui, não acusa apenas algo em relação a algo, como o “acerca de”, é algo acerca de algo, mas acima do algo a que se refere. “Sobre”, aqui, quer dizer “ver de cima aquilo de que se fala”. Falar “sobre” alguma coisa é falar de cima acerca dessa coisa, isto é, é falar com conhecimento. Mas este “de cima” implica necessariamente um “ir acima”; um ir para cima e neste subir ver aquilo de que se fala. “Sobre” é, assim, subir alguma coisa para ver melhor uma outra. Por isso “conversão” traz duas coisas distintas: traz um sujeito a dirigir-se para um objecto e uma identidade subindo para avistar melhor outra.

Converter-se é ver melhor o ser humano. É este o sentido que encontramos no Novo Testamento. Mas aqui esta visão é concedida pela Graça de Deus e não por um esforço humano. A conversão rompe com o anterior modo de ver, com o anterior ponto de vista de onde se olhava o humano, de onde se olhava a vida e, por conseguinte, representa uma catástrofe com todos os pontos de vista anteriores. Veja-se o exemplo da fervura da água para explicar o que seja isto, uma catástrofe. Durante um determinado tempo, sob o efeito do calor, a água vai aquecendo, aquecendo, aquecendo, isto é, ela vai aumentando de temperatura, mas mantendo sempre a sua qualidade líquida, a sua identidade. Não obstante, ao chegar ao grau 100, produz-se uma catástrofe.

A água deixa de ser água para ser gás. A água deixa de ser ela mesma, deixa a sua identidade para ser uma outra coisa. A água vai ficando mais quente (mais forte, se quiséssemos moralizar) até ao grau 99, mas milésimos de segundos depois o seu carácter líquido desaparece para dar lugar a outra coisa, a uma outra identidade. É também assim que Saulo se transforma em Paulo. Através de uma catástrofe, Saulo transforma-se em Paulo. Não é a visão de Cristo na estrada de Damasco que opera a catástrofe, mas sim a entrada de Ananias, já em Damasco, com Saulo acamado e cego, que o faz passar a ver. O ponto de fusão, o ponto de catástrofe de Saulo chama-se Ananias, o seguidor de Cristo, cuja presença em frente a Saulo lhe restitui a vista que este perdera ao ver Cristo.

Mas a primeira conversão verdadeira, catastrófica, de que temos conhecimento na história do Ocidente é a de Abraão, tal como Kierkegaard nos mostra no seu livro Temor e Tremor. Em que consiste esta conversão de Abraão? Analisemos, seguindo o génio de Kierkegaard. O conceito fundamental na conversão de Abraão é o paradoxo. Que é um paradoxo e como é que ele acaba por dar conta do que acontece na vida de Abraão? A história vem escrita na bíblia e, segundo Kierkegaard, não tem sido realmente lida. Pois aquele que ler realmente a história de Abraão só pode sentir terror. Um terror enorme por aquele gesto, um terror enorme pelo que acontece àquele homem.

E o que acontece, que até os leitores mais fieis não vêem? Em idade muito avançada, Deus concedeu a graça a Abraão de sua mulher dar à luz um filho seu, Isaac, único da longa vida deles. Poucos anos depois, Deus pede a Isaac que o sacrifique, que suba a montanha com ele e, aí, o sacrifique como a um cordeiro. Abraão, ao invés de rejeitar o pedido de Deus, ou de perder a sua fé, aceita aquele pedido, aceita realizar o pedido de Deus, que sacrifique seu filho Isaac. O que está aqui em causa é uma catástrofe. Não devido ao pedido de Deus a Abraão, mas devido a este não tê-lo rejeitado. Esta não rejeição de Abraão coloca-o num patamar completamente diferente de todos os outros homens, um patamar diferente dele mesmo até então. Abraão deixa de fazer sentido para os outros humanos, isto é, à luz da lei que rege as vidas humanas o gesto que Abraão aceita levar a cabo deixa de fazer sentido. Abraão deixa o ponto de vista ético para entrar no ponto de vista religioso. O exemplo que Kierkegaard dá em relação a esta catástrofe é o gesto de Agamémnon, ao sacrificar sua filha Ifigênia.

Agamémnon, contrariamente a Abraão, nunca deixa o ponto de vista ético, pois ele sacrifica a sua filha pela cidade, pela Ática, pelo seu povo, pela honra do seu povo. O sacrifício de Ifigénia, exigido pela deusa Ártemis, é um gesto ético e não religioso, um gesto compreensível à luz do humano, pois os guerreiros só poderiam partir e lavar sua honra se ele sacrificasse a sua filha. Assim, tal como Kierkegaard escreve, Agamémnon troca uma ética por outra. A cidade compreende-o. Mas ninguém pode compreender Abraão. Quem pode compreender um homem que sacrifica o seu filho mais querido, o seu filho único? Quem pode compreender que alguém escutou Deus pedindo isso? Esta é a grande tragédia – é este o termo que Kierkegaard usa – da vida de Abraão. Literalmente, ele vê-se afastado do humano tal como o conhecia até então, até àquela sua catástrofe. Este é o paradoxo: ficar só e com Deus. Só para os humanos e pleno para Deus.

Mas qual o sentido da conversão, alcançar o paradoxo, se não se for religioso? Fora do ponto de vista religioso, um dos exemplos mais conhecidos do paradoxo é o que é enunciado em Ecce Homo por Nietzsche: “tornar-me naquilo que sou”. Repare-se bem no escândalo da frase. Mostremos então o seu paradoxo. Tornar-me naquilo que sou é, antes de mais, deixar de pensar em Deus. Tornar-me naquilo que sou é, antes de mais, tornar-me humano. A este tornar-se humano, Nietzsche chamou de übermensch, o sobre-humano, de modo a distingui-lo do deteriorado humano, agarrado às saias da sua mãe judaico-cristã. Este sobre-humano é, obviamente, aquele que se converte, aquele que caminha montanha acima alargando o seu horizonte sobre o humano – alargando o horizonte de seu coração, diria São Paulo. Mas o sobre-humano não alarga o seu coração, alarga a terra, a natureza, isto é, restitui a natureza ao humano, a natureza perdida na religiosidade judaico-cristã. O sobre-humano sobe a montanha à procura de si, procurando tornar-se nele mesmo, tornar-se naquilo que ele mesmo é. Sobe à montanha para deixar Deus e regressar à sua natureza, à sua humana condição. Sobe a montanha para, nessa caminhada, ir despindo tudo aquilo que quiseram que ele fosse e não é ele, todo o excesso de alteridade que o impede de se ver a si, de se ser a si. O sobre-humano alarga o humano. Mas o que é o sobre-humano? Aquele que cria os seus próprios valores, aquele que não segue o que já encontrou quando nasceu.

Nos textos de juventude, Nietzsche usava o termo génio, para designar o que mais tarde designou por sobre-humano. Ter isto bem presente é importante para que se entenda o que Nietzsche tem em mente quando diz übermensch, pois sobre-humano não é outra coisa senão um humano criador, um humano com capacidade de elevar o humano, um humano acima da esterilidade de não fazer melhor. O sobre-humano está imerso na sua cultura e na criação dela. Por conseguinte, tornar-se naquilo que se é, é despir-se de tudo o que nos foi imposto, de tudo o que não somos nós e criarmos nós mesmos este nosso nós. Tornar-me naquilo que sou, não é voltar a ser quem fui, mas quem nunca fui ainda. Quem nunca fui, não porque não posso ser, mas porque não me deixam ser, e eu deixo que assim seja. Tornar-me naquilo que sou é libertar-me. Aquele que se converte, liberta-se. Converter-se é libertar-se. Libertar-me da morte, representada pelos valores judaico-cristãos e da filosofia idealista alemã, para assumir plenamente a vida, a vitalidade da vida, que nunca pode ser conceptual, mas estética e prática. A vida é apreciação e construção.

Muitos séculos antes, Platão entendia também que “tornar-se naquilo que se é” era uma libertação. Uma libertação do fundo da caverna, onde o nosso conhecimento das coisas não passavam das sombras que víamos projectadas nas paredes através da luz das fogueiras. Para Platão, libertar-se era libertar-se do jugo dos sentidos. Não só dos sentidos, mas também das opiniões, da doxa, libertar-se de tudo o que não dê um conhecimento seguro acerca de nós e das coisas.

Por conseguinte, em Nietzsche e Platão estamos perante a mesma necessidade, a mesma urgência de libertação, apesar das suas hermenêuticas antípodas. Para Nietzsche o humano tem que se tornar sobre-humano, isto é, tem de se libertar das ideias, tornar-se natureza e alargá-la, alargar o fazer e a apreciação desse fazer, isto é, alargar a criação. Para Platão, o humano tem que se libertar do jugo dos sentidos, do jugo daquilo que parece ser, mas não é, como ele mesmo escreve no seu livro Sofista. Podemos afirmar sem medo algum de errar que, independentemente das hermenêuticas antípodas levadas a cabo para a libertação do humano, esta libertação é tanto necessária a Platão quanto a Nietzsche. Parece que eles discordam em tudo, menos em que o humano nasce escravo e precisa de se libertar. E não é também escravo, para o  cristão, todo aquele que não vê a sua própria vida em Cristo, todo aquele que não vê a sua própria vida para além de si mesmo, para além da sua própria vida, como se a sua vida Real e Verdadeira estivesse para além da sua vida?

Apressadamente poderíamos ser levados a pensar que o sentido da vida humana encontra-se na fuga, que existir é fugir. Poderíamos ser levados a pensar que a vida humana é fugir de si própria para se encontrar verdadeiramente em si. Mas fuga pressupõe algum medo, e nesta catástrofe há, tínhamos visto antes com Abraão, um ver acima do medo que se sente. Um ver acima do terror que a acção que nos é pedida causa. Pois fugir e libertar-se não são da mesma ordem de significados. Aquele que foge nunca se encontra. Aquele que se liberta encontra-se a si mesmo. Aquele que é livre não precisa de fugir. Podemos falar, recuperando conceitos anteriormente usados, que a vida humana só encontra o seu sentido pleno se se converter, isto é, se se libertar daquilo que ele julgava que o mundo e o humano eram, para passar a ver como o mundo e o humano são. No fundo, converter-se é passar a ver. Converter-se é deixar de ser cego.

Com esta imagem da cegueira, iniciamos agora uma análise do convertido mais famoso da história do Ocidente: São Paulo. É conhecida a história. Seu nome era Saulo, era judeu, fazia parte da nobreza e era um fervoroso perseguidor de cristãos. Um dia, na estrada de Damasco, uma luz intensa ilumina o céu, o cavalo empina-se, fazendo-o cair. Cristo surge-lhe no céu falando com ele, perguntando-lhe porque razão ele O perseguia. Ele cega e a cura da sua cegueira é-lhe revelada por Cristo: Saulo só passaria a ver quando passasse a vê-Lo, a Cristo, como seu Senhor. Esta “cura” aconteceria através da visita de um dos fiéis de Cristo, já em Damasco, Ananias. Temos aqui duas realidades que parecem antagónicas: por um lado Saulo cega e deixa de ver, por outro, para passar a ver tem de reconhecer em Cristo o seu senhor. Ou seja, para voltar a ver tem de se tornar escravo. Mais: tem de se oferecer ele mesmo como escravo. Para que melhor se compreenda o que aqui está em causa, façamos uma digressão no caminho.

Aquilo que, antes de mais, define o ser humano é o tempo. Tempo é o que se acaba quando acabamos e o que começa quando começamos. E, na medida em que nós somos tempo, o emprego que fazemos deste é aquilo que somos. Definimo-nos pelo tempo que somos, isto é, pelo que fazemos nesse tempo que somos. Dizer que tempo é dinheiro é reduzir a nossa vida, o nosso tempo não apenas a uma coisa, mas a uma só coisa. Mais: é reduzir-nos a coisa. Por outro lado, aquele que usa o seu tempo, que se usa a si no tempo dos outros, na vida dos outros é aquele que está afectado pelo tempo dos outros, pelos outros, isto é, aquele a quem a vida dos outros é tão ou mais importante do que a sua. A esta afectação São Paulo chamou, em grego antigo, de ágape.

Ágape teve a sua tradução latina na palavra caritas e chegou até nós como caridade. Assim, caridade não é dar esmola a outrem, mas tempo a outrem. Caridade é darmo-nos ao outro, darmos o nosso tempo ao próximo. Quem se dá ao outro, dá-se por gosto. Como diz a expressão portuguesa: quem corre por gosto não cansa. Quem se dá ao outro não é escravo daquele a quem se dá. Dar-se ao outro, liberta. Se para Nietzsche a libertação era libertarmo-nos das ideias que nos tinham imposto, e para Platão libertarmo-nos dos sentidos e das opiniões, para Cristo a libertação é darmo-nos aos outros. A libertação é, por conseguinte, libertarmo-nos de nós próprios e darmo-nos àqueles que amamos. Darmo-nos, dar o tempo que somos e temos a quem gostamos, é libertarmo-nos de nós mesmo, libertarmo-nos da caverna onde vivíamos ou dos ideais pré-fabricados que nos tinham imposto. Parece um paradoxo e é: libertar-se é sair de si.

É quando vê isto, que Saulo compreende isto. Muda de nome, para Paulo, e dedica o seu tempo todo àquele que ama: Cristo. Dar-se a Cristo é, para Paulo, libertar-se. Aquele que se liberta de si mesmo é o humano. Libertar-se daquele que se era, que não nos deixava ver quem somos.

30 Jan 2018

Três amigos, Camilo Pessanha, Padre Manuel Teixeira e Armando Martins Janeira

 Com Camilo Pessanha, em São Miguel de Seide

 

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m São Miguel de Seide,

rasgado pelo esplendor de um estranho ocaso,

falo de Camilo, o outro, o grande Pessanha,

“morto vivo” em Macau.

 

Lá longe, as paredes da casa humedecidas pelo tédio,

uma imensa “abulia, sem remédio”,

as mulheres chinesas, o desamor, o descarinho,

o ópio enegrecendo os dias, de mansinho.

 

Aqui, o cintilar das rimas, no triste entristecer,

lá fora, água cristalina nos lameiros,

a luz insinuando-se pelos meandros do entardecer,

o ondular da bruma nos outeiros.

Apetece ajoelhar, reverenciar o deus da poesia,

beber o sublime das palavras, do sentir,

em tempo de extremado sofrer, de melancolia,

os lábios numa prece. E depois partir.

 

 
Com Monsenhor Manuel Teixeira, em Freixo de Espada à Cinta

 

Sempre o conheci,

de batina e barbas brancas ondulando na brisa,

sobraçando livros e canhenhos,

a História de Macau, os missionários,

a gesta portuguesa pelo Extremo-Oriente,

tudo na confusão e poeira dos arquivos,

depois a baloiçar na ponta da sua pena.

Alegre e afável na companhia das gentes,

as senhoras bonitas para a fotografia,

com os amigos bebericando o “chá da Escócia”,

excelso whisky com uma pedra de gelo,

garantia certa, dizia, “para afastar o calor.”

Todos os dias, às sete da manhã,

missa na capela de Santa Rosa de Lima,

o padre falava com Deus,

levava chinas ao Céu.

Em Trás-os-Montes,

na sua Freixo de Espada à Cinta,

de onde saiu menino,

venho ao seu encontro,

na memória distante

do Portugal que lhe corria no sangue.

Por Macau, viu passar dezanove governadores,

quase oito décadas de vida

de mãos abertas para a cidadezinha

na foz do rio das Pérolas

que, para sua tristeza,

passou de portuguesa a chinesa.

Velho, aproximou-se de Deus

e foi, depois do regresso

à sua bravia terra transmontana,

que, serenamente, fechou os olhos e partiu.

Deixou escrito:

“O homem é pó. A fama é fumo e o fim é cinza.”

 

Com Armando Martins Janeiro, em Torre de Moncorvo

 

Armando, meu amigo,

nado e criado na singeleza assombrosa destas terras,

sob a silhueta azul do céu

e os verdes e castanhos esparramados pelos montes.

Criança ainda, no alpendre da casa da avó,

na aldeia de Felgueiras,

crescia o sonho de conquistares o mundo.

Quem diria, havia todo o Japão à tua espera,

séculos de história luso-nipónica,

Wenceslau, mais mil diplomacias,

e gueishas perfumadas levitando no requebro dos dias!

Chego a Torre de Moncorvo

com o sol poente descendo pela crista da montanha.

Entro na velha igreja onde foste baptizado,

a pedra carcomida pela erosão dos anos,

a voz silenciosa das colunas medievais,

um altar barroco, anjos e querubins,

a Senhora intercedendo por nós, diante de Deus.

Em mim, uma prece, o joelho

descendo para a laje fria do templo

e saio com o repicar dos sinos.

Sigo depois pela encosta da vila,

ao encontro do teu busto de bronze,

cinzelado tal e qual como te conheci,

o Armando, excelente cepa transmontana,

orgulhoso e humilde, inteligente e sagaz.

Uma saudação, um afago na luz ténue do teu rosto,

uma despedida e sigo viagem,

pelos últimos raios do entardecer,

entre montes dourados onde a noite nasce.

26 Jan 2018

Uma instrução positivista

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]eguimos pela carta do Senhor Z, publicada a 11 de Abril de 1894 no Echo Macaense, dia seguinte à chegada de Camilo Pessanha a Macau.

“Dirá V. Exa. que eu sou defensor do atraso da instrução; não sou, não Sr.; le monde marche e caminhemos com ele e como ele; mal vai a quem assim o não fizer. E este meu modo de pensar e obrar, não sei se é ajuizado; quer-me parecer até que o não é; mas tenho muita e muito boa companhia, e isso me consola do meu desatino e do desgosto que por vezes sinto em não ver melhor encaminhado em Macau o estudo da língua portuguesa, cujo conhecimento é, como acima disse, da mais absoluta necessidade para os seus filhos.

Esta necessidade, porém, embora seja de grande monta para nós, tem de se amoldar às circunstâncias que predominam em geral nesse ensino, e essas circunstâncias não podem ser senão as que se dão no reino; e se elas são ali desfavoráveis, o ensino em Macau tanto do português como do mais há-de ressentir-se disso fatalmente.

Que elas são desfavoráveis ao reino, sabe-o toda a gente; mas para melhor se ver isso, vou transcrever alguns trechos da obra O DOUTOR MINERVA crítica do ensino em Portugal, por Manuel Bento de Sousa, publicada no princípio deste ano [de 1894]. Diz o citado autor: “Entretanto, se por um lado é evidente que degeneramos, e por outro é uma verdade impressa nas consciências das sociedades civilizadas – o ser a instrução meio certo e bem formar homens para as dificuldades da vida – qual é a influência que nos abastarda, a nós que tanta instrução temos?

“Evidentemente também a resposta é esta: – é a mesma instrução, por ser falsa, fingida, desvirtuada, numa palavra, porque não presta. E, porque não presta, tudo vamos perdendo do que tínhamos, até a nossa bela língua, a qual, não falando já do português familiar (essa mesclada algaravia tão semelhante àquela gíria dos circos, em que o arlequim mete palavras de quantos países atravessou) vai notavelmente decaindo no que em público se diz e se escreve, como não pode deixar de ser, visto o modo porque a ensinam. [Lembre-se! Está a ler um texto do último decénio do século XIX.]

“Já de muitas escolas foi banida a gramática portuguesa para a substituírem umas coisas do Sr. Fulano ou do Sr. Cicrano, verdadeiras antigramáticas, amparadas por aprovações superiores e divulgadas por mestres, que, uns por necessidade e outros por timidez, as admitem nas suas lições.

“Bastará correr as primeiras páginas do que mais voga tem no centro do país para admirar com espanto que tão errada e confusamente se exponham matérias, que era fácil tornar mais claras e é difícil tornar tão obscuras, o que tem levado muita boa gente à convicção de que tal atrapalhação seja intencional num ensino que, como todos o sabem, se torna assim mais rendoso.

“Com tal ensino ninguém deve admirar-se de que a língua se corrompa, devemos todos esperar que dentro em pouco esteja reduzida ao que entre nós sempre se chamou – língua de preto.

“O que vai pela gramática vai por tudo o mais. O estudo do latim foi desviado da sua direcção, deixando de ser uma base para ser um acessório.

“No ensino antigo, logo que o estudante estava senhor da gramática portuguesa, passava para o latim e era conduzido de tal maneira, que ao terminar a sua latinidade achava-se, e sem dar por isso, sabendo bem o português, o português ao mesmo tempo singelo, puro e másculo, que o padre Malhão falou e António Rodrigues Sampaio escreveu, sem lhes ter feito falta nenhuma o não os terem maçado em pequenos com a ciência do português. Desta riqueza, pelo menos, ficava possuidor o estudante aplicado, acontecendo muitas vezes ficar senhor de mais outra, que era saber a fundo uma língua morta, que o habilitava a seguir os modelos de uma literatura, os quais, digam o que disserem, não são para desprezar-se, (…). Hoje o latim acabou por ser uma língua desnecessária, um preparatório de formalidade, com o duplo encargo de fazer gastar dinheiro aos pais e tempo aos filhos e a dupla vantagem de se não ficar sabendo nem o latim nem o português.”

Liberal Educação

“Com tal ensino e tais livros, com tal tolerância dos governos que à sua sombra se vão decretando programas, que chegam a perguntar aos alunos das escolas primárias pelos serviços literários de D. Diniz e D. Duarte, e a pedir indicações do atraso intelectual dos primeiros tempos da monarquia – e dos progressos da agricultura, letras e ciências no século XVIII; com planos tão acertadamente traçados e sua execução tão magistralmente desempenhada, qual deve ser o fruto certo para todos os que não tenham meios de por outras vias e pessoas adquirirem os conhecimentos, de que precisem?

“Se o estudante for acanhado de inteligência, e sujeito a perturbar-se por esse mesmo acanhamento, mais se escurecerá o seu espírito, ficará ignorante e incapaz de ganhar a vida, dando no futuro um vadio perigoso, se os braços paternais do Estado o não ampararem para fazer dele um empregado obtuso. Se for vivo e talentoso, tudo vencerá com esforços de memória, repetirá coisas que não entende, com a mesma proficiência com que repetiria as máximas de Confúcio em língua chinesa, sem lhe saber os significados, e, amestrado na cábula e outros meios de vencer exames sem conhecimentos sólidos, ficará com o saber bastante para ser pedante e a arte precisa para ser velhaco, vindo a dar no futuro um sustentáculo deste desgraçado país …> Assim se expressa o Sr. Manuel Bento de Souza.

“Aí tem V. Exa., Sr. Redactor, bem debuxado o quadro do ensino em geral, e do estudo de português e latim em especial, no reino, e sendo ali essas as circunstâncias do ensino, que admira que em Macau o estudo do português e outros não estejam mais desenvolvidos e não produzam melhores resultados? O que realmente admira é que não estejamos mais atrasados tanto no português, como nas outras matérias.

“Não tem, pois, V. Exa. razão na referência que fez ao pouco resultado do ensino de português em Macau, o qual necessariamente há-de ressentir-se da viciosa norma superior que lhe é apresentada como modelo e como guia.

“Em conclusão, Sr. Redactor, permita-me V. Exa. que eu lhe declare com a máxima franqueza que o fim desta correspondência é mostrar que o seu artigo editorial, louvável no seu intuito, primoroso na sua forma, e sensato nos seus princípios gerais, peca todavia pela ingenuidade e pela inconveniência (para a vida positiva da época, já se sabe,) do seu alvitre para desenvolver a cultura da língua portuguesa, e pela inexactidão e uma tal ou qual injustiça na indicação da causa por que não é profícua em resultados práticos o estudo de português em Macau, que, sendo filha de Portugal, tem de lhe seguir os passos e há-de reflectir o seu modo de viver, seja ele qual for. É lei da natureza e da sociedade, a que não há fugir, por mais relutância que se sinta: ou bem que somos ou bem que não somos.

“Agradecendo a V. Exa. a publicação destas linhas, me confesso obrigado.

De V. Exa. etc., Z”.

26 Jan 2018

Esvaziar e Recomeçar

20/01/18

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]i na tv a viatura capotada no Paris-Dakar e lembrei-me de vos contar: como todos os estetas, em serpenteante caravana, sempre me desejei no deserto. Em miúdo. Quando o atravessei finalmente compreendi que não é incomum desejarmos muitas coisas idiotas.

Quando parámos no acampamento da tribo a quem pagámos escolta (para evitar o risco de nos assaltarem) subi uma duna na direcção contrária das tendas para urinar na encosta descendente.

E metia o peru para fora – como se chama no Brasil à minha agastada salsicha – quando o meu pé encalhou nuns dedos de uma mão feminina, de corpo soterrado.

Foram cinco minutos de calafrios, qual seria a atitude correcta?

Voltando a subir a duna, avaliei que nos circundavam quatrocentos quilómetros de areia escaldante em todas as direcções e interiorizei que estava de passagem e que destapar o caso talvez não me fosse vantajoso.

A cobardia não será um posto, mas a estupidez de protestar a nu contra kalashnikovs e jambias é igualmente um dom que não convém despertar. Desde aí que me interrogo sobre o que teria mudado na minha vida se eu tivesse feito alarde ou em que medida aquele silêncio ainda me cobra.

Se na altura (em 97) eu tivesse um telemóvel que fotografasse, com essa prova talvez tivesse agido assim que chegasse à cidade.

Ali entre cinquenta beduínos armados, duas dúzias de camelos, seis tendas, uma caligrafia de roupagens ao vento, e vinte turistas atarantados por terem de tomar chá com “indígenas” curtidos e de dentes verdes (por causa do qat) resguardei-me.

O chá soube-me como nunca.

À noite, chegados ao hotel, em Marib (perto das ruínas da cidade de onde era originária a Rainha de Saba), soubemos que numa “expedição” paralela à nossa e noutra tribo, haviam degolado um alemão que se recusara a entrar na tenda para se sentar frente a frente com os anfitriões.

Fui para o quarto, enchi de água a banheira, enfiei-me no caldo e refugiei-me no livrinho do poeta franco-libanês Georges Schehadé e sobretudo nesta passagem, que repetia como se fosse um mantra: «o barulho é eterno quando lhe tocamos, quando não lhe tocamos transforma-se em vento…e passa.»

E agora, na esteira de Baudelaire, contento-me em passear pelo grande deserto dos homens.

 

23/01/18

Releio (o notável) O Museu Imaginário e Malraux a páginas tantas deixa cair:

«Baudelaire não viu as obras capitais do Greco, de Miguel Ângelo, de Massacio, de Piero della Francesca, de Grunewald, de Ticiano, de Hals – nem de Goya, apesar da Galeria d’Orleans…». Não consigo evitar um estremecimento. É brutal, sendo caso para perguntar com Malraux: «Que viu ele, afinal?».

E contudo ele viu magnificamente – e sobre elas escreveu – as obras de Constantino Guys, Corot, Grandville, Daumier e de Delacroix. Foi mais ambíguo com Manet e Courbet. Mas visou quase sempre justamente, os seus escritos sobre arte ainda se lêem com agrado e proveito. E não obstante, apesar de habitar num dos pólos culturais do mundo do século XIX, Baudelaire não viu o El Greco, o Miguel Ângelo, Ticiano, ou Goya. Não viu Goya, meu Deus! Não consigo deixar de me espantar.

Hoje é tudo mais simples, com a net. Ou não será? Em 2006 apresentei o meu primeiro livro em Maputo, o de um escritor-médico Aldino Muianga. E, discorrendo sobre os “efeitos de realidade” e as diversas convenções para se ler e traduzir a realidade, contei uma anedota de Picasso. Era um momento calculado de distensão. Pelo silêncio que se seguiu e a falta de reacção à graça do episódio detectei que naquela sala (recheada de médicos, escritores e intelectuais moçambicanos) o grosso das pessoas desconhecia quem seria o Picasso. Despertei nesse balde de água fria, emigrara para um país onde o Picasso era um ilustre desconhecido. E exceptuando três ou quatro nomes da pop e do cinema estou certo de que no oriente se desconhece noventa por cento dos nomes da cultura que consideramos nucleares, experiência que aliás o poeta Guillevic corrobora ao contar que numa viagem ao extremo-oriente descobriu que ao contrário do que lhe haviam feito acreditar toda a sua vida a presença da cultura francesa nesses lugares era nula, menos que residual, e muitos intelectuais orientais com quem ele comunicou não estavam certos de saber apontar a França no mapa.

Portanto, temos aqui duas situações, primeiro o que a Baudelaire não foi dado ou permitido ver, apesar da sua curiosidade e do seu interesse pela área, e depois o que noutras zonas do planeta, dispensado o suposto universalismo euro centrista, é considerado prioritário para a formação humana e cultural, em absoluta incoincidência com o nosso repertório de valores. Ao que se junta uma condição antropológica: só vemos aquilo que compreendemos; o que nos faz estar cegos a tantas manifestações que nos são contemporâneas.

O que Baudelaire não viu não retira entretanto a propriedade e a pertinência ao quanto escreveu. A informação foi-lhe menos vital que a sua capacidade de reflexão e para escavar no que pôde ver. Ter visto Goya só confirmaria o que ele intuiu.

O que me leva a concordar com o escultor Rui Chafes: existe uma arte horizontal que investe nos inputs do exterior e que se limita a fazer remix, um jogo combinatório, a partir da informação recolhida; e uma arte vertical, que procede à espeleologia dos interiores. E precisa: «Há artistas que trabalham de dentro para fora, há artistas que trabalham de fora para dentro. Os primeiros trazem um imenso mundo dentro de si na necessidade imparável e na urgência de o trazer par fora; os outros limitam-se a recolher os elementos do mundo e a reorganizá-los à sua maneira. Só podemos oferecer o que nos cabe na mão».

Enfim, aos cinquenta e nove, constatando que por muito que vasculhe é inevitável que um qualquer (imenso) Goya me vai escapar só me resta escavar no muito que não sei, para bater em castelo essas trevas. Ou seja, esvaziar e recomeçar.

25 Jan 2018

Spleen punk

Possolo, Lisboa, 13 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] António [de Castro Caeiro] tomou por tema de trabalho a melancolia. Escolheu-a, sou testemunha, antes de começar dieta e desconfio que não a largará tão cedo. Ele pratica a filosofia como arte marcial, com treino e disciplina. Leitura, tradução e interpretação espelham-se no aquecimento, na dança saltitante e nos sucessivos golpes com que abre palavras, desvela conceitos, irradia perspectivas. A escola do Luís [Carmelo] está cheia e bebe cada palavra, que parte dos fluidos e humores de Aristóteles, pseudo ou não, passa pela acédia de S. Tomás de Aquino, para desembocar em Nietzsche e Heidegger. Apesar de ter trocado a cabeça por uma única nuvem negra e cerrada disfruto com prazer do fluxo de ideias. Fixo-me nesta «abulia espiritual quanto ao exercício das virtudes, especialmente no que respeita a culto e à comunicação com Deus». (Que bem me sabe este regresso aos dicionários, no caso o Houaiss, e tenho que me controlar para não correr a visitar outros.) Este enfraquecimento da vontade que atacava os monges a meio da manhã, que lhes oferecia o tédio como tentação, na vez de gozosos corpos ou luxuriosas riquezas, desemboca no punk: e se nada tiver sentido? O cultivo da palavra – amanho de terra, cravar da semente – continuou para descobrir na melancolia um desalinhamento, um desfoque entre o que somos e o que fazemos, entre suprema potência e acanhada preguiça. Tarde com vista para o super-homem, horizonte definido sem superpoderes.

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Estranho que o novo da Inês [Fonseca Santos], «Suite Sem Vista», dada a nossa comum atracção pelo treze a perturbe com mais um. As coincidências sussurram-me que o absurdo nos governa e, estranhamente, encontro nisso conforto. Juro-vos ser coincidência que o meu preferido, nesta viagem aos vários centros de uma rapariga emparedada em si, resulta ser o XIII: «No espelho da suite sem vista,/ o hálito da rapariga embacia// o tempo.//A rapariga fita a parede/ para lá do espelho:// demasiado contraplacado armado/ em paisagem.// Bebe de novo o tédio do lado rachado do copo./ E da boca da rapariga sai// a palavra/ sangue.» Um hálito que embacia o tempo, um olhar que vê a paisagem contraplacada, um tédio no copo rachado e a palavra sangue, este malabarismo entre imagem e ideia e verbo faz-me parar. E perguntar: onde estou? Durante o lançamento, que descambará não tarda em festa, tenho a companhia da Rita [Taborda Duarte] e do António [de Castro Caeiro], além da autora e da sua leitora íntima, a Filipa [Leal], no deserto do palco. Não me salvam dos gaguejos e brancas, mas oferecem-me o conforto das suas interpretações incisivas e de rasgo, que nos levam ao espaço arquitetónico desta rapariga que constrói cidades no peito e define os lugares com o corpo. Esta poesia devia ser enviada ao cuidado dos arquitectos, se eles ainda construíssem com atenção, na vez de concreto. O António falou da «personificação dos objectos», nas «peças de mobiliário da nossa existência». A Rita avisou este livro tem que ser sitiado, devassado por um voyeur. Esta «Suite» dá-nos acesso, permite-nos ver os vários centros, geodésicos e outros, de uma mulher. E dá-nos, pela palavra, a sua activação. De novo, a coincidência. Na abysmo, a poesia começou com «As Coisas», da Inês. Esta colecção «abysmo mão dita», que se pretende laboratório de geometria variável, desde que mais portátil e veloz, tem o primeiro volume com a sua assinatura (calhando ser a edição número sessenta e nove). Para as capas, procurámos o olhar de artistas plásticos, como o Francisco Vidal, que definiu um rosto a partir de cores e traços sanguíneos (algures nesta página), transformado depois pela Luísa [Barreto], em peculiar objecto, jogando com o dentro e o fora, o miolo e a capa.

Horta Seca, 17 Janeiro 2018

A sério? Coincidência? Tenho nas mãos o volume II das Obras Clássicas, ou seja, dos «Sonetos Completos» do Antero de Quental, que assina o logo. Sim, ele escreveu abysmo por tê-lo conhecido como ninguém, não tanto por ser hábito da época. O Miguel Macedo viu como voyeur, com prazer. Vamos ler com as mãos, se pudéssemos. Sem querer, mas fazendo do y antena para o advir, como quem lia cada detalhe, acima ou submundo, lendo o carácter que nos podia levar onde nunca fomos, de nunca fomos capazes de vir, a dar choque. Repousa como gato e a cor do tijolo, brincando com a característica de ambos. Muitos irão elogiar o aspecto, sem cuidar na imensidade de trabalho que fixa o texto, aquele que não pára de mexer. Antero tem que ser lido na fugida de todos os cânones. Hoje sou homem e na sombra enorme, achando, eu no diálogo com ele, Antero, que podemos ambos crescer além do spleen punk (com ou sem vírgula). Talvez pudéssemos, ao ler, recomeçar revoluções. Muito de súbito, derrama, ó leitor, o essencial disto que se parte a teus pés, teatro mínimo: «Que trazes ao mundo em cada aurora?» Pergunta íntima, descuidada, roupa interior: levanta-te e diz. Faz-te e anda. Ergue-te e fica. Acreditei, por instantes, mais logo lerei, cicatriz desenhada pela vontade na pele: «Mais que amor tenho crença: essa existência/ Pede-me um culto por que dera a vida,/ Por que dou esta dor, que aqui se encerra.»

Loreto, 19 Janeiro 2018

Estou doente, mas compro «Le un», a sinopse de bolso mais brutal e explosiva dos tempos sobre os quais no sentamos, dias de rabo, vistos daqui, folha dobrada e ilustrada a celebrar com luxúria o fim do papel (voltarei ao assunto). Ah, sim e o tema: «Est-il urgent de ralentir?», como quem diz: «É urgente parar?» Nomes depois de nomes dizem, pedem, exigem, imploram, lambem a paragem, quietude, o pranta-te quedo da minha infância. Logo eu com eles, mas penso, não tanto no tema, mas no modelo-papel. Há-de tudo e lembrei-me de Barthes. Não parou de chover. Continuo a lentidar, recordar com lentidão, que belo soa daqui o que vejo voando quieto.

24 Jan 2018

Felicidade naturalmente

Miguel Martins

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão me parece descabido dizer que fazer uma pessoa culta é caro. Implica leituras, claro, mas também a exposição a uma variedade de experiências — edificantes ou não — tão vasta quanto possível, mesmo as que, à primeira vista, podem parecer distantes de um conceito simplista de cultura. Implica mundo. Muito mundo. Implica viver de modo acelerado, pois o nosso tempo de vida é demasiado curto para quanto importa aprender. Implica não perder tempo com aquilo que nada nos pode ensinar. Ser culto deve poder ser o único objectivo de uma pessoa culta. É caro. Mais caro, ainda, é fazer uma pessoa sensível. Isso, regra geral, não se consegue numa só geração. Vai-se instalando e sendo passado, de pais para filhos, desde pequeninos. A arrepio da vida bruta das massas. Contra o materialismo. Contra os egoísmos. É caro, repito. E pressupõe o contributo dos incultos. Contudo, para uns e outros, muito mais caro é não investir nisso. Condena-os a ambos. Uns à diminuição do brilho, outros a navegarem sob um céu sem estrelas.

A disciplina militar prestante/ Não se aprende, senhor, na fantasia,/ Sonhando, imaginando ou estudando,/ Senão vendo, tratando e pelejando. – Camões.

R., poeta, foi, até à sua morte, director do instituto responsável pela divulgação da cultura do Estado Espanhol em Lisboa.

C., um conhecido comum, galego como ele, importador e exportador de peixe, proprietário de um bar no Bairro Alto e intelectual de esquerda, tendo R. afirmado que estava escrevendo a sua autobiografia, arremessou:

— Ouve lá: tu já estiveste preso?

— Não, respondeu o bardo.

— Já mataste alguém?, volveu o primeiro.

— Não.

— Então, concluiu C., não tens biografia.

Dito isto, é preciso não perder de vista o seguinte: a cultura, embora, muitas vezes, construa entraves a isso ou com eles se depare, deve ser, em última análise, um contributo para a felicidade, colectiva e individual.

E, concluí há tempos, não há melhor aferidor do grau de felicidade de cada um do que a quantidade de vezes que se canta ou assobia.

Cantar ou assobiar — no banho, na rua, de manhã ou à noite, sozinho ou acompanhado — é muito bom sinal. Denota que a cabeça não está tolhida por constrangimentos que não lhe permitam os voos mais leves, mais inconscientes, mais naturais, mais saudáveis.

E aqui, embora o Canon de Johann Pachelbel ou a Primavera de Vivaldi possam servir muito bem, a música popular assume a sua função mais nobre.

Foi no Domingo passado que passei

À casa onde vivia a Mariquinhas

ou

Penny Lane there is a barber showing photographs

Of every head he´s had the pleasure to have known.

A propósito de felicidade, um sítio com que tenho uma relação feliz, a um tempo paraíso perdido e terra prometida. Uma pequeníssima aldeia da Beira Litoral, praticamente uma só rua, muito inclinada, de casas de xisto, que desemboca num rio límpido e lindíssimo, que, ali, ante uma pequena represa, forma uma piscina de claridade e reflexos, num vale de brumas e sonho (é mesmo assim, não sou eu a alinhar palavras bonitas!).

Back to nature é a sensação que aí busco. E, de facto, nessa aldeia hoje desabitada é possível comer da natureza – nalguns pontos do rio as trutas ocupam mais espaço do que a água, sob as árvores acumulam-se frutos variados, nas silvas há amoras e framboesas, se soubesse e quisesse disparar uma arma os montes ao redor oferecer-me-iam grande variedade cinegética.

Dá que pensar.

Gostaria que um dia me fosse possível alternar os meus dias entre essa aldeia e Lisboa, entre essa represa e os 360º de vista sobre a cidade e o Tejo que o topo do Mosteiro de São Vicente de Fora nos oferece. É a mais bela vista da cidade. O olhar reganha um alcance que a vida entre prédios lhe roubara.

Ao encanto dessa aldeia, acrescenta a sua relativa inacessibilidade, que me dá uma espécie de conforto, de pertença inviolada.

Algumas pessoas queixar-se-iam da falta de investimento do Estado ou das autarquias, contribuindo para isolar povoações. Compreendo. Mas, por mim, não me queixo – até agradeço.

Certa vez, em Ceuta, quase não vendo muçulmanos nas ruas da cidade, pedi a um taxista que me mostrasse onde viviam. Após uma longa viagem, em que o taxista não parou de ofender aquela comunidade, lá chegámos a um bairro isolado, bastante mais pobre do que a cidade, no meio de uma zona arborizada. Estranhamente, e sem prejuízo das opiniões que formei acerca da situação, achei o local confortável. Senti que, ao menos ali, aquelas pessoas se podiam sentir em casa. E, por isso, também eu me senti um pouco assim.

O mesmo aconteceu com uma instalação da Colecção Berardo que vi em tempos e cujo autor, infelizmente, não recordo. Entrava-se por um corredor de pano preto, em completa obscuridade, e desembocava-se numa sala idêntica. Só que, nesta, se olhássemos para cima, veríamos a projecção da água de uma piscina, filmada a partir do fundo, e nela pessoas nadando. Silêncio. Paz. Útero.

No âmbito das instalações têm sido criadas algumas das peças mais interessantes das artes visuais das últimas décadas. Muitas carecem de “instruções”, o que faz comichões a muita gente, que acha que a obra deve bastar(-se).

E, contudo, se adquirirmos um lápis, de facto, não traz qualquer instrução, mas se se tratar de uma caneta de tinta permanente muitas vezes já vem acompanhada por um papelinho que nos ensina a enchê-la, limpá-la, etc. Caso compremos uma máquina de escrever, as instruções aumentam de tamanho. E se for um computador, preencherão, mesmo, um livro algo volumoso.

Por que não poderia acontecer o mesmo com as obras de arte?

24 Jan 2018

Caminhos errados

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] este o título de um livro de Aquilino Ribeiro, livro esse de novelas, tendo incluído para teor aquele que aqui nos traz « Menos sete». Este autor devia ser de leitura obrigatória pois que em tudo exerce o dom maior da contemplação da língua que não perde o fôlego na sua vasta produção.

Nós, que parecemos ter ficado em atrofia face a estas gerações que nos precederam pois que nos basta verificar as gentes da Primeira República, onde e quiçá, ainda estão os nossos avós, para verificarmos que eram mais altos, mais bem parecidos, mais civilizados. Só a geração que se lhes seguiu pareceu estranhamente ter mirrado, havendo sem dúvida uma atrofia notória em todas as suas dimensões. Tudo isto existiu sem que fosse muito nítido um subtil “crepúsculo dos deuses”, pois que entre estas gerações há efectivamente um hiato que nos faz aludir à estrutura do pensamento como arquitecto da forma.

O corpo pode ser também esse veículo mecânico e desmontável com as próteses em rosca que desagua na nossa geração de «Crash» do Cronemberg e os implantes podem ser a forma encontrada para diminuirmos o que em nós há de massa modificável, pois que já vem feita, é precisa e mantem-se inalterável. Mesmo com ideias medonhas de sedução e excitação sexual, a tecnologia exacerba aspectos outrora desconhecidos, ou conhecidos, mas não aperfeiçoados.

Janeiro é o teor da novela de Aquilino e isto, por causa dos gatos, das noites e do escrever para as Academias, recorda-nos como tal momento nos instiga a sacrifícios, a transformações interiores e a uma saudade na lonjura que sentimos face à Primavera e nos dói só de pensar que a não saudamos uma vez mais. – É o mês dos gatos – sim – do luar, do frio, do cio… de toda a semente fechada. A descrição do magistral Aquilo começa por se manifestar assim:

“O pior é que chegou o Janeiro e escancarou-se neste bicho todo o seu impossível ser. A três quartos do Inverno os gatos pressentem na orla de claridade, mais cheia, que vem do Nascente, a quadra do Renovamento. As noites de grande luar prateado, como praias de embarque para Citera, convidam-nos ao amor. Ao seu gosto de recato e de silêncio, mesmo à sua algidez de maneiras, agrada a incomparável serenidade que o céu reveste por estas alturas…. Os gatos, de certo… Assim se combina a poesia das noites de Janeiro, amplas e religiosas como catedrais.”

Sete é o tal número que abrange muita coisa e até há a interessantíssima obra de Trindade Coelho «O Senhor Sete» que são histórias tradicionais portuguesas, um levantamento etnográfico que ele foi escutando em regiões diversas do país, coisas maravilhosas que foram estrategicamente esquecidas para dar início ao Halloween, bem como a outras adaptações culturalizantes do país “moderno”. Tenho sete gatos, agora que se vão dois, ficarei com cinco «Menos dois» e não encontro nas bermas deste ciclo nada que se pareça com a majestosa dádiva deste conto que acaba mal, mas começa bem.

Sabemos da impetuosa virtude que tinha Aquilino, a de extinguir o que considerava ser o adversário, mas isso todos os homens orgulhosos de si o fazem com mais hábil ou inábil manifestação. Só agora é que temos este adormecido sistema de aceitação programada que nos faz engolir delirantes sapos vivos que vertem para os sistemas fechados do corpo os cancros que a todos abrasa e, delinquentemente, vão gerando a pestilência mórbida do desaire pensante. Mas ele sabia da soberba (não menos orgulhosa do que a sua) deste ser que o fez refém no seu mais poético conto: depois de ter corrido com todos do Jardim ele recorda ainda este episódio:

A Meni- meni nunca mais voltou a casa. Encontrei-a tempos depois à porta duma taverna a pentear-se ao sol, na companhia dum carocho lazarento como ela. Fingiu que me não conhecia.”

Há dilemas gigantescos nos corações dos escritores e atitudes menos prudentes quando a razão lhes pede coragem, como se a vida se confundisse já com uma página das suas obsessivas transmissões, depois de muito contemplarem podem ter súbitos desvios e mudanças repentinas de humor, perigosas para todos, sim, mas especialmente para eles.

Mas é dessa caldeira de lava transbordante que lhes advém a beleza de nos contemplarem. Por isso, não há método que os subjugue numa norteada vertente de si mesmos. Estão vedados aos bens multiculturais da estultícia dos étnicos e aos insubordinados curiosos da espécie, dado que podem não ter uma consciência nítida a que espécie pertencem. A travessia de um mês ou a relação com uma outra espécie não os centra de forma razoável na tão distante natureza humana e, por isso, saúdam os que somos todos nós com uma inédita maneira de se expressar.

Os gatos, nem sempre sabem que o são, também é certo, e pensaram-nos até de forma opulenta nas suas características que ora divinizaram ora ostracizaram, não havendo aqui a razoável medida que os contemple como seres normais, e vamos encontrar então estas duas espécies em grande confronto e osmose, de forma a refletirmos, todos, nas suas intransigentes e espectaculares características.

Não duvido que Aquilino tenha ido propositadamente averiguar onde andavam os que foram expulsos do Jardim e todos tenham sentido um orgulho arquejante às suas passagens a quando das avistações, que não se tivessem socorrido do arrependimento e os outros do perdão, afinal, faz parte do seus incontornáveis encantos. No fundo, não mais se esquecerão uns dos outros, mas cada um silenciou para sempre o seu amor. Que o amor deste silêncio certamente pertencerá apenas a criaturas divinas.

“Remontar de quando em quando o rio de Cronos, poder fechar na cara dos patifes as cancelas que em boa fé deixámos abertas para a nossa intimidade, libar segunda vez a dulcidão de certas taças, quem não mataria o mandarim, quanto mais um gato maltês.”

Se isto se diz!

24 Jan 2018

A última garrafa

[dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]OUTOR: (antes de atender) É a chamada que esperava, do hospital. (atende) Sim!… Morreu?… Assim que possa vou imediatamente para aí… Até logo.

 

RAUL: Más notícias, doutor?

 

DOUTOR: Não propriamente. Um doente meu que morreu. Mas já se esperava que isso viesse a acontecer esta noite. Melhor assim. Cancro no pulmão. Um sofrimento atroz, meu amigo. É como escrevem nos maços de cigarros: «Fumar mata».

 

RAUL: Doutor, viver mata.

 

(silêncio e o doutor levanta-se e anda pela sala, pensando)

 

DOUTOR: O senhor está decidido a não sair daqui sem o comprimido, não está?

 

RAUL: Estou, doutor.

 

DOUTOR: E também já sabia disso quando para aqui veio, não sabia?

 

RAUL: Sim, já sabia, doutor.

 

DOUTOR: Diga-me mais uma coisa, sinceramente. Está armado?

 

(silêncio)

 

RAUL: Julgo que o doutor merece a verdade. Estou sim. Venho armado.

 

DOUTOR: E então?

 

RAUL: Então o quê, doutor?

 

DOUTOR: Já se decidiu, se vai ou não usar a arma?

 

RAUL: Já me tinha decidido antes, doutor.

 

DOUTOR: E julga ser capaz de chegar ao ponto de me matar?

 

RAUL: Isso não lhe sei dizer, doutor. Julgo que só iremos saber no último momento. Você e eu. Mas espero que não seja necessário chegarmos a descobrir os meus limites.

 

DOUTOR: (voltando a sentar-se) Sabe o que é que eu penso? Penso que você não é capaz. É demasiado decente para isso. Não é que lhe falte a coragem ou a tenacidade. Falta-lhe não ter escrúpulos. Uma coisa é planear uma fraude, outra coisa bastante diferente é realizá-la. E não se esqueça que a fraude iria ser realizada por mim, não por si. Você só planeou. É só do que é capaz.

 

RAUL: Não vou sequer tentar contrariá-lo. Talvez até tenha razão. Mas está a esquecer-se do desespero, doutor. E o desespero é inimigo dos escrúpulos.

 

DOUTOR: (levantando-se e erguendo a voz) Mostre-me a arma! Vá, mostre-me a arma, homem!

 

RAUL: Tenha calma, doutor. Sente-se, por favor! Sente-se, peço-lhe.

 

(o doutor volta a sentar-se)

 

RAUL: Para que quer ver a arma? Não acredita em mim? Começa agora a duvidar de mim? Olhe que não é o momento certo para começar a ter dúvidas, doutor.

 

DOUTOR: (levantando-se e erguendo a voz novamente) Então sai! Saia, por favor!

 

RAUL: (levanta a camisola e tira um pequeno revólver, que tinha entre as calças e a barriga, e pousa-o sobre a mesa junto a si) Queria ver, então aqui está! Já está convencido ou ainda tem dúvidas?

 

DOUTOR: (pálido, volta sentar-se) E agora, que vai fazer?

 

RAUL: Depende de si, doutor. Eu só quero o comprimido. Se mo der, saio por aquela porta do mesmo modo que entrei e o doutor pode telefonar imediatamente à polícia. Se não me der o comprimido, vamos acabar por descobrir se sou ou não capaz de atirar num homem.

 

DOUTOR: E que ganha você com isso? Se me matar não vai poder levar o comprimido. Como é que vai descobrir qual deles é, no meio de tudo isto (e aponta para os armários).

 

RAUL: É verdade. O doutor tem razão, não ganho nada com isso. Só o doutor é que perde. De qualquer modo, talvez depois de matar um homem também já não tenha escrúpulos em me suicidar. Há sempre que contemplar essa hipótese. Talvez venhamos a descobrir que até sou capaz de matar para morrer em paz.

 

(silêncio)

 

RAUL: Então, que decide? Vamos jogar até ao fim, ou terminamos por aqui?

 

(o doutor volta a levantar-se de novo e anda pela sala, pensativo)

 

RAUL: (que não tira os olhos dele e segura o revólver) Espero que não vá tentar qualquer acto violento, porque é sempre assim que acontecem os acidentes.

 

(após algum tempo, o doutor dirige-se a um dos armários e, de volta à mesa, traz consigo um comprimido numa embalagem especial)

 

DOUTOR: Está aqui o comprimido, senhor Santos.

 

RAUL: (segura no comprimido e olha-o) Como é que vou saber se é este o comprimido, doutor? Não estará a enganar-me?

 

DOUTOR: Isso nem me ocorreu, homem! Para que é que o havia de enganar?

 

RAUL: Consigo encontrar mais do que uma razão, doutor. Quanto tempo leva o comprimido a matar-me?

 

DOUTOR: Cinco minutos. Mas em quatro adormece profundamente.

 

RAUL: Óptimo! Não parece que haja algum soporífero que me ponha a dormir em quatro minutos, pois não?

 

DOUTOR: Não. Mas porque é que me está a perguntar isso?

 

RAUL: Ora, doutor, não estava à espera que me fosse embora, correndo o risco de me ter enganado, pois não?

 

DOUTOR: Que quer dizer com isso?

 

RAUL: Quero dizer que o vou tomar aqui à sua frente e se em quatro minutos não estiver a dormir vamos finalmente conhecer os meus limites.

 

DOUTOR: Não pode fazer isso aqui, à minha frente!

 

RAUL: Porque não? Você é o meu médico. Tem o direito e o dever de me acompanhar até ao fim.

 

DOUTOR: Mas não foi algo que eu tenha escolhido. Nem sequer estou convencido de que seja um doente terminal.

 

RAUL: Por favor, doutor, já devia saber que escolhemos muito pouca coisa durante o tempo que temos neste mundo. Julga que escolhi ser doente? (olhando para o comprimido) Como é que isto se toma?

 

DOUTOR: Como uma aspirina.

 

RAUL: (retira o comprimido da embalagem, põe-o na boca e ingere um gole de whisky; e ainda com o copo na mão) Proponho um último brinde: às excepções! (pausa) Vá lá, acompanhe-me. Sei que não é um brinde original, mas também nunca fui pessoa muito original. Vá lá, doutor, faça-me esta última vontade!

 

DOUTOR: Às excepções!

 

RAUL: Obrigado. Não se preocupe que vou segurar firmemente a arma, para que a polícia possa comprovar a história que lhes vai contar.

 

DOUTOR: Julga que alguém vai acreditar no que aqui se passou?

 

RAUL: Talvez não. Mas vão acreditar na arma na minha mão. E não os pode levar a mal, doutor. O senhor também só acredita no que constata. Esperemos que a arma não se me escape da mão, doutor. O melhor será apoiar-me aqui na mesa. Não lhe quero causar problemas. (debruça-se sobre a mesa com a arma apoiada nesta e apontada na direcção do médico)

 

(o tempo passa, adormece)

 

DOUTOR: (pega no telefone e marca um número, ouve-se o telefone chamar, apagam-se as luzes)

23 Jan 2018