Andorinha

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão era tudo negro, nem pensar. E não era tudo claro, também. Mesmo quando eu abria muito os olhos, sempre que despertava ou era intempestivamente despertado do meu ciclo de sono, não via senão o que sentia: uma intermitência de farolim que se pode ou não tocar.

Lembro, pois, cambiantes de luz. Nada de cores, nada de definido, só impressões de claridade – ou de menor obscuridade –, bolsas luminescentes no microcosmos líquido que me sustinha. Deixei que o farolim me indicasse um lugar.

No início é assim: pressentimos estrelas e planetas como fogachos numa noite de breu. Podemos escolher caminhar ao seu lado sem ter nada a ver com eles ou permitir que se entranhem fundo em nós. De resto, ainda aquém de mim nascido, aprendi que ver não era o mais importante.

Ver o quê… para quê, ouvindo e sentindo, pouco mais que embrião fecundado num de entre muitos acasos de desamor, a perdição da minha Mãe e a brutalidade lasciva do Monstro? Como conseguiu ela amar-me tanto ainda assim, que me dispôs à lua e ao sol?

Nasci do abrupto, como não podia deixar de ter sido. Não tive tempo de me preparar, talvez não tenha chegado mesmo a ser acabado, os pulmões, sobretudo, suspiravam mais que respiravam… no entanto, aceitei seguir o rastro de luz.

Não nasci aflito porque não estava em mim afligir-me a não ser com a hipótese remota de um dia não poder palmilhar descaminhos e neles encontrar-me, perdido para sempre dos que me tinham gerado.

De resto, foi tudo muito rápido: os pontapés dele na barriga dela, a queda, as contracções fantásticas, o coro de gritos das mulheres e eu a ser empurrado por uma força sobre-humana para um mundo novo.

Tomei apenas algum do líquido morno de que me despedi para sempre e despedi-me ainda da Mãe, que senti partir num último fôlego cansado. Retirado do seu mar quente, optei por só pousar a terra brevemente e logo escolhi o ar.

Não sou um menino, sou uma andorinha.

Depois de reconfigurado em corpo desligado desse outro corpo que me acolhera, houve quem me desse colo e alimento. Ninguém em especial, nessa altura. Vizinhas velhas e uma tia que a partir de um dado momento,  desapareceu de vez.

Mas havia as Mimis – não recordo os seus nomes individuais e elas não me levarão a mal. As Mimis eram as meninas da aldeia que pegavam em mim e me levantavam no ar como se eu fosse o boneco animado que não tinham.

Entre si rodavam-me até à vertigem, delas e minha, bem no alto dos seus braços abertos ao céu. Riam e eu talvez risse também. Chorar não chorava. Lá em cima, reconhecia a minha natureza de pássaro.

No entanto, à medida que o negro se adensava à minha volta, as luminosas Mimis foram aparecendo cada vez menos, assustadas com o Monstro que as queria levantar no ar também. E depois deitar por terra.

Sobrou só a minha Mimi, uma menina mais crescida, protegida por uma cara feia e um corpo anão, a única que recordo olhar-me nos olhos e sorrir com eles para mim, instilando-me alegria e vontade de viver.

A Mimi visitava-me muitas vezes, não todos os dias mas sempre que conseguia encher o garrafão de plástico com vinho, pelo menos vinho, que pousava à entrada da casa para adormecer o Monstro.

Trazia-me um ovo cozido que partia em bocadinhos e me dava à boca, a sorrir meiguice. No inverno dava-me uma laranja, no verão amoras silvestres. Fazia-me festas e dizia que me ia ensinar a voar.

Era uma boa ideia, eu tardava em aprender a andar. Balançava incerto do chão debaixo dos pés e tinha tendência para me desequilibrar e cair. Passei, por isso, a erguer os braços e a movimentá-los numa cadência de pássaro.

A Mimi levava-me para o terreno em volta da casa térrea minúscula onde eu vivia e os dois ensaiávamos corridas breves, a bater as nossas asas, o corpo atirado para a frente e o rosto ligeiramente erguido.

Quando eu era uma andorinha, nunca caía.

A Mimi teve ainda outra boa ideia: como o Monstro nunca se lembrava de me dar de comer nem cuidar que eu tivesse um sítio onde dormir, aprendi com ela a fazer ninhos. Por segurança, escolhemos erguê-los sobre o chão.

Só os outros pássaros sabiam que pelo terreno afora havia ninhos escondidos feitos de erva ressequida e de toda a espécie de palhas e raminhos onde me encolhia como no microcosmos do início de mim.

Sob esses ninhos cavei buracos, alguns muito fundos, serpentes direitas ao centro da Terra, tão largos que eu cabia lá dentro. Abrigava aí amêndoas, nozes, pinhões e relíquias que coleccionava, como as palhinhas de plástico que segurava à vez entre os lábios, a fazer de bico.

Ao correr do tempo fui compreendendo os sinais do Monstro. Captava-os no ar, trazidos por uma energia negativa poderosa: sabia quando ele ia desaparecer, quando estava para chegar, se me devia esconder, se ia ser fechado no buraco.

Se ficava fechado no buraco era pior. Nenhum pássaro, menos ainda uma andorinha, suporta gaiolas, douradas que sejam. Quando ali era trancado voltava a mim antes de mim e, na semi-obscuridade, relembrava a mãe-placenta e resistia.

Todos os outros estados do Monstro me permitiam mais ou menos acolher-me aos ninhos ou treinar o bater de asas em corridas desajeitadas e bambas. E tecer na imaginação as rampas de vôo de que me lançaria, um dia.

Olha o Andorinha! – ouvia, sempre que me aventurava pelos caminhos da aldeia. – Ainda não partiu, pobre dele. Quando regressas para junto dos teus? Os bandos debandam! – gritavam pessoas.

Eu calava o bico, os lábios cerrados esticados para a frente e lançava-me numa corrida demonstrativa, as pernas atiradas ao deus-dará mas os braços firmes, acima abaixo, acima abaixo. Ouvia rir e sabia que partiria dali. Iria voar.

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