Somos contemporâneos do impossível (Parte II)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] futuro é narrativo, não no sentido em que narrativa quer dizer pode querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que entroncam numa dimensão a haver.

A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio. É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita, proibida.

As narrativas da possibilidade projectam-se no próprio interior do poema em construção, não são a sua formulação gráfica na escrita, na palavra dita. São a própria constituição, concepção, produção poéticas. O narrar-se a si, o dizer-se a si como é consigo, o contar o que se passou consigo são situações que projectam cada si a quem lhe acontece ser na dimensão latente, não descoberta, da profundidade da experiência fáctica da vida. Não se trata de adivinhas interpretativas, estocásticas. É o próprio sentido da possibilidade que está a assomar o horizonte. A narrativa da realidade é meramente indicativa, usa o enunciado declarativo como meio de expressão. O seu mundo pode existir sem ninguém. Pode resultar de um esforço, de uma concentração, de uma atenção: técnica, teórica ou estética. Mas o narrar-se a si que diz de si como é consigo no que se passou exprime a abertura activa e espontânea da exposição possível à cadência e à vibração, ao ritmo e à melodia no interior dos quais o significado ganha corpo de conteúdo.

Como se lê em A DESTRUIÇÃO DO GESTO

 

“é preciso pensar o poema sem pensar

o poema

já acabado sem ter existido

a vida só existe no seu próprio revestimento

para isso é preciso vestir o poema antes do poema”

(42)

 

Em DIÁRIO DE UM CORPO MENOR lê-se a forma específica em que o poema é dado à luz. Espírito e o corpo da letra são o resultado de um debate: “tento definir os seus breves contornos” (43). Os contornos do poema são breves não porque tenha um corpo mínimo a ocupar espaço, mas porque a sua dimensão é temporal e dura um abrir e fechar de olhos, um piscar de olhos “até chover a sua própria carne” (Ibid).

 

“a nuvem escura de um poema

paira à minha frente

como uma pulga crepitando

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves

contornos

entre a certeza de cada salto

que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre

sombra

mordendo mordendo sempre

até chover a sua própria carne

um gesto visível

para quando

cair sobre a luz”

(43)

 

Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:

 

“o poema nasce da colisão

entre o projéctil tatuado por gestos e lugares

e o peito voluntário que lhe serve de alimento

fosse ele o seu momento seminal”

(44)

 

O poema numa das suas actividades possíveis:

 

“o poema fere mata desvela”

(Ibid.)

 

O poema descrito na sua camuflagem e dificuldade de ser agarrado:

 

“é difícil apanhar o poema no rasto do gato

que ainda vive em transgressão

ao seu mal intrínseco”

(Ibid.)

 

É existência dependente do leitor como o é do seu inventor:

 

“se o poema tem de morrer que não seja por dúvida

que seja por culpa e sentença de quem o lê”

(44)

 

É no poema que eu compreendo o haver sido abismal da noite eterna do passado:

 

“sou a impossibilidade de olhar para trás

a distância toda antes do nascimento”

(45)

 

O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:

 

“o poema é só

uma face possível de veludo

na parede do problema”

(47)

 

“O poema nasce da colisão”, “o poema fere, mata desvela”, “anda no rasto de um gato”, “se o poema tem de morrer que não seja por dúvida, que seja por culpa e sentença de quem o lê”, porque quem o escreve diz na primeira pessoa do singular: “sou a impossibilidade de olhar para trás a distância toda antes do nascimento” e é quem tem, por isso, a consciência de finitude: “o poema é só/ uma face possível de veludo/ na parede do problema”. Não tem lugar, porque o seu elemento é a viagem, depende de um pensamento que nos é oferecido, líquido, fluído ou não. Servirá se “chegar a algum sítio”.

 

“um lugar sem lugar é o sítio onde acordei

a querer estar como se pertencesse

e existia

agora a minha cabeça explode como um barco no rio

afinal, o pensamento líquido só serve se para chegar

a algum sítio

foi tão bela a viagem mas temo que me tenha afogado

e o meu coração é agora um planeta, tantos são

os oceanos onde deixei viagens

por acabar”

(48)

 

O poema não é um conjunto de versos ou uma composição de um só verso, numa formulação sintaticamente bem formada. Pode ser uma só palavra, pode ser um verso, pode ser um conjunto de versos que procuram fazer sentido. Mas um poema é sempre uma versão da realidade, uma versão de veludo que é forma de um plano de fundo complexo. Como se todos os momentos auto-biográficos de uma vida pudessem ser expressos por um poema do qual temos apenas poemas avulso, episódicos, sem um fio condutor. Mais, como se cada vida humana, em todas as gerações passadas, presentes e futuras tivesse um único poema composto caleidoscopicamente de poemas avulsos, episódicos sem fazer sentido nem composição, para além do que compreendemos deles: serem dados auto-biográficos de uma narrativa de futuro a haver sem concretização real.

 

“sei que tudo é pontual

mas tem de haver uma frase para se chegar ao ponto

o que pressupõe sempre a construção de um texto:

dos pontos usufrui-se a percepção da viagem

o seu sentido pleno

sem frases não haveria pontos

e é impossível ler para trás

isso seria a própria definição de peso”

(48)

.

“todos os livros

sejam viagens sólidas por acabar

talvez seja essa a proposta que me resta navegar:

a construção de um sentido líquido

o único possível?

para conquistar um porto não definitivo

o resto resolve-se em conjunto”

(49)

 

Em III, sob designação de FUNDAMENTOS DO ECO, symposium ou a invenção da distância, encontramos uma expansão dos elementos fundamentais de I e II, o mundo próprio e a vida, por um lado, e a expressão desse mundo e dessa vida tal como a semiótica e a significância os conotam. O referente não existe em si, mas sob a dependência do horizonte poético. Um poema é a unidade mínima não apenas da expressão ou da descrição do que acontece, mas fundamentalmente do próprio sentido. A realidade é uma parede, um fundo superficial ou profundo, com uma topologia complexa.

Tudo existe alicerçado no tempo irreversível da existência.

Sem poema, não há realidade poética. Sem realidade poética, há factos. A realidade pura e dura depende de um mundo criado por um irreducionismo sem ponto de vista. A vida sem poesia é dada a ver para um ponto de vista que tudo perspectiva a partir de nenhures (Thomas Nagel) ou é uma vida pensada por ninguém (Husserl). A narrativa resulta da reconstrução ou da prefiguração que dá forma às figuras do passado e do presente, num lance que se projecta em antecipação como realidade possível e nunca como facto. Habitamos a possibilidade e, por isso, é que há impossíveis. Nunca há a realidade do modo indicativo, tendencialmente desprovida de possibilidade, simplesmente objectiva.

“é preciso regressar ao fundo do abysmo

sem o deixar ganhar

.

até onde vamos para entender o desaparecimento?”

(53)

Agora aparece uma possibilidade extrema de nos relacionarmos com outro, num sistema complexo de antecipação que paira em suspenso sobre o vazio, onde as falas são inventadas a cada instante, as conversas requeridas por dois a serem um com o outro como possibilidades e não realidades. Esta possibilidade de ser um com outro é a que inventa um futuro, porquanto o próprio si está encerrado na cápsula do seu tempo e, quando muito, reage como reflexo ao reflexo da realidade dos outros, que existem apenas como impressões. Ora as impressões, mesmo que indeléveis, são impressões. Foram deixadas em nós. Podem ser alimentadas com a nossa imaginação e fantasia ficcionais.

“sim, o futuro existiu na distância percorrida de um para o outro

entre o gesto e o eco que o espelho devolvia secretamente

carregado de partículas geradas por essa impossibilidade

que os anos, morrendo à distância, vieram ridículos

a chamar de paixão”

(54)

A distância percorrida de um para o outro: gesto, eco, são fundidos como reflexos de quem gesticula ou de quem fala, sempre para outro. O próprio reage ao gesto ou ao eco do outro como reflexos num espelho que nunca é visto como espelho, mas como a própria realidade. A reacção ao que aparece no espelho é uma reacção ao próprio e nunca a um reflexo. Na paixão, como a descreve Platão, é por nós que estamos apaixonados. Não é pelo outro. Isso é imperceptível a quem olha. Não percebemos que somos nós lá plasmados no outro.[1]

(continua)

[1] Shakespeare na Comedy of Errors, põe Antifolo de Siracusa a dizer: “Call thyself sister, sweet, for I am thee. Thee will I love and with thee lead my life: Thou hast no husband yet nor I no wife. Give me thy hand.”

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários