Somos Contemporâneos do Impossível – Uma apresentação

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]omos contemporâneos do Impossível desdobra-se em quatro grandes frentes: I. Uma casa no Mar, II. A habitação do gesto, III. Fundamentos do Eco e IV. Corpo em queda. Cada uma destas partes faz sistema com um todo orgânico. Neste todo orgânico, há um espírito que aí encarna, que aí se incorpora, e o dota de uma alma que habita a forma especial deste corpo existir. A geografia peculiar do sentido de José Anjos raras vezes é directa, nem é de compreensão simples ou imediata. O mundo que lhe serve de referente não é “real” nem primária nem o mais das vezes. Não o é, pelo menos, numa primeira leitura, que se quisesse rápida ou desatenta.

Não o é também, porque a própria realidade objectiva, material, visada de modo literal, no indicativo, é já uma construção complexa resultante de despojamento, abandono, desaparecimento, morte.

O horizonte poético de Somos Contemporâneos do Impossível abre-se numa dimensão extrema da vida, onde tudo é radicalmente problemático. Tendencialmente, o ser do sou eu é extremo e vive a fazer espargata entre o horizonte de um passado havido (que não é já habitável) e o horizonte de um futuro por haver (que não está ainda à nossa disposição). Ambos fixam-se em projecções. O passado deixa uma marca indelével em nós. Não o recuperamos tal como terá acontecido. Tem uma vida independente no nosso espírito. As impressões que foram no passado deixadas em nós permanecem, mesmo adormecidas, à espera de nós na hora da nossa morte. São mutantes e metamorfoseiam-se. O futuro resulta muitas vezes da nossa capacidade de imaginação e fantasia para criar ficções, fora do âmbito da realidade, onde viver poderá ser possível.

Entre os escombros da memória e a fantasmagoria do futuro: real, onírico, ficcionado, o “si mesmo” procura um protagonismo que parece só ter de facto, mas não de iure. Todas as formas, outrora salientadas do plano de fundo da vida, encontram-se assim, imersas, latentes. Um acontecimento do passado pode durar uma véspera, a véspera de Natal, por exemplo. E, contudo, é trabalhado pelo olhar interior e ciclópico da vida, acabando por transformar o que quer que tenha acontecido: descobertas, invenções, modos de ser nossos e dos outros.

Ao passado só podemos aceder por processos complexos de melancolização de horizonte, exumação da existência das pessoas que aí estiveram connosco, reinvenção de cidades inteiras, antes vivas e, agora, fantasma. Os referentes podem ser os mesmos, mas o seu sentido, a sua conotação, é produzido pelo ser poético que os revisita, ou antes, que os recria, dando-lhes significação.

Nada já existe como era. O eu passado foi-se para sempre e com ele todos os que tratamos por tu. A entidade “nós” é irrecuperável como foi. Tudo se desmorona continuamente, existindo como ruínas, sob a acção (e na dependência) de uma memória afectiva e uma protensão de futuro que se projectam entre nós e o presente, resultante de uma incapacidade real para se poder ser, nos aguentarmos, conseguirmos estar vivos.

A constituição do presente, do passado e do futuro implica assim uma abertura a um horizonte que neutraliza, tanto quanto tal é possível, o facto da realidade e afirma exclusivamente a existência de significados. O referente existe em face da presença de espírito do poeta e, enquanto tal, parece existir de forma ainda mais presente do que todas as actualidades para o ponto de vista natural que lida apenas com realidades: situações, circunstâncias, conjunturas: coisas, pessoas, os próprios, as geografias das nossas vidas reais, o passado, futuro e o presente como achamos que são na realidade.

Mas este referente implica-se totalmente num (está absolutamente dependente de) um sentido. A exploração poética, a criação de um poema, é a produção do único horizonte de habitabilidade num mundo de escombros, num presente que lhe é devedor, num futuro que se perspectiva, no limite, como o lado negativo de um diapositivo em que a vida foi visivelmente a ponta de um iceberg, mas com uma base invisível, que é forma e fundo de todas as possibilidades não encaradas, muito menos concretizadas.

Em UMA CASA NO MAR, José Anjos abre o jogo. Lemos a descrição do tempo. Os verbos de movimento representam o ser. Topamos com as geografias complexas da superfície e da profundidade, constituídas em significado. Aqui, o regresso é apenas mental. Dá-se conta da sua irreversibilidade temporal. Identificamos a primeira ligação entre carne e espírito, corpo e alma.

Em Ecologia Fenomenal, a casa onde o tempo nasceu, podemos compreender como a lógica corresponde a uma tentativa de criar uma compreensão do sentido, no interior do habitáculo do humano, no seu nicho ecológico, no seu habitat natural. Mas também aqui se esboçam formas de compreensão para comportamentos e relações humanas que existem em prol de uma agenda que é tudo menos pragmática. A luta diária esforça-se por ser um combate contra a possibilidade da ininteligibilidade e, por vezes, da loucura. Os tópicos são para Anjos operatórios e não apenas paisagens descritivas da sua poesia.

Em causa está a criação de uma semiologia, de uma regra simbólica, que permita, ao mesmo tempo que está a ser inventada, descrever a própria realidade embebida em horizontes complexos de significação. O tempo é a dimensão em que cada um de nós nasce. É cada um de nós na sua singularidade individual. O tempo não é de um “eu” em que cada um caiba. Sou crónica e definitivamente temporal. Sou tempo. O tempo não é geral e universal no sentido em que é uma sequência a perder de vista para todo o sempre: a noite do passado, o presente, a noite do futuro. Antes, o tempo em que cada um nasce, a poder dizer “sou eu”, mergulha em si a casa onde se nasceu e na verdade é à escala mundial. Não apenas existe espalhado pelo mapa da sua existência. Ou antes, existe à escala universal. Este tempo de que cada um “sou” é portador tem como atmosfera inaugural a infância. A sua sequência é a da passagem. Ora toda a passagem é irrepetível, porque é irreversível. Nada é ultrapassável.

 

“no lago submerso

da infância

há uma casa habitada

pelo tempo que ficou

pendurado

na memória de um lugar

infinito sob os degraus”

(17)

 

Os primeiros instantes não são biológicos. São oníricos como todo o passado recuperado por uma memória afectiva e não cognitiva. Melhor, recuperados por uma memória simbólica:

 

“voo inaugural do sonho e

do corpo itinerante da cidade

empurrado pelo pulso de um remo

nas águas proibidas”

(15)

 

Numa tensão com a possibilidade de não vir a ser ou, sendo já, com a possibilidade de vir iminentemente a deixar de ser:

 

“depois do terror de quase ter desaparecido

sem ter perdido a lucidez”

(Ibid.)

 

Todo este espectro de sentido é um excesso relativamente ao que muitas vezes surge designado por “paredes”. A realidade material de uma casa é tão diferente, quando é tornada tão própria pela nossa habitação e partilha dela com outros. E é tão estranha, quando comparamos essa mesma casa habitada por nós com a casa que agora é: outra, alienada, estranha. Basta estar à venda e ser visitada por estranhos, ser habitada por outras pessoas ou já só um andar em ruínas:

 

“são memórias que transbordam como terra de um vaso

forçado à entrada do futuro em visita

ao seu próprio nascimento

repetido

discreto, vezes sem conta

– escoando pelas horas para dentro da casa

de onde nasce e ao mesmo tempo

deixa de pertencer”

(Ibid.)

 

O tempo da visita à casa sc. à infância escoa do lado de fora para o lado de dentro. É um fluir contínuo e discreto. Cada nascimento pode ser compreendido como cada visitação possível ao passado, pela chegada do passado até nós. Como pode ser entendida a compatibilidade do esquema da existência em geral com o facto de cada um de nós ter só uma vida e esta ser individual, singular? Cada ser humano encerra em si a marca do ser da vida e, por outro lado, é individual, único, singular. Cada um de nós existe desde sempre num escoar de fora para dentro e de novo de dentro para fora. A vida dá definição aos contornos dos corpos, em movimentos basculantes, oscilatórios, como um baloiçar sobre o posso do abismo. O escoamento, a infiltração, fomentam fantasmas negros. O envelhecimento é o tempo em que nos sobrevivemos a nós próprios. Ao envelhecemos, compreendemos que sobrevivermos a nós próprios. Tudo o resto fica alagado por esse significado do tempo inescapável.

 

“a cada nascimento produz-se um som tão definido

como o contorno de um corpo que perde volume

entra e sai da casa

como um baloiço sobre o poço (cada vez mais visível)

dos anos que se infiltram através das paredes

um fantasma negro

um bolor que cresce na carne até ser só carne e peso

e corpo que já não sabe ser corpo e que atira o corpo

e espírito ao chão

o tempo envelhece a casa

dentro do homem

como um visitante irreversível

até que nas paredes esboroadas

se abrem janelas lençóis esvoaçantes

por onde a vida inteira sai disparada

numa só respiração

frágil e determinada

como a flecha que o vento roubou das mãos de uma criança

para ir morrer dentro da árvore

.

.

.

infância:

lugar que esquece o sobrevivente

sem se fechar

nem o deixar sair”

(18-19)

 

Se o poema inaugural marca o princípio do fim, em PALÁCIO descreve-se, de alguma maneira, um desses momentos em que caio em mim à lupa: “entrar para dentro de mim” é ganhar a “nitidez dos contornos que se habituam/ à escuridão”, “devolver à luz baça da cozinha o seu amor pelas manhãs de sábado”, “as manhãs violentas e doces assim – com a sede/ à boca do leite e da manteiga” (20).

Na lógica dos dias, sábado é o dia partilhado com a família, mas que é sempre diferente de domingo. O domingo é antes de segunda-feira. A segunda-feira já exerce pressão sobre nós. Sábado, pelo contrário, vem depois de sexta-feira e faz corpo com ela. É um dia com tempo. Está ligado ao verão da infância ou da primeira juventude:

 

“sinto a fragrância quente da tarde a tentar morder a penumbra

do meu quarto no verão”

(21)

 

As partes do dia de sábado são entidades complexas que fazem um sistema orgânico e com um sentido de tempo que nos constitui. O acesso a esse passado, não necessariamente o acesso a essas memórias (porque as memórias despertam quando o passado se acende, intrometendo-se entre nós e a actualidade real) resulta de uma canalização, de uma sintonização, com o havido de mim naquelas situações e circunstâncias. É como se ficassem acesos ou iluminados dias e dias de sábado da minha infância e juventude, perdidos para a escuridão:

 

“que penetro sem dor

sou como se respirasse uma leve brisa

que se acende e me faz entrar

por portas sublimes

até descobrir os sítios onde não sou

mas ainda consigo estar”

(21).

 

As portas não são metáforas para entrar ou sair, prender ou soltar. São os operadores activos que coincidem e estão sincronizados com o acesso. É complexa a condição para a lucidez despertar o haver sido, o ser e o haver de ser no horizonte da significação, do sentido. Não se trata aqui de possibilidades físicos que nos permitem transitar para espaços contíguos em geometrias simples. São portais que dão para dimensões de significação que não estão disponíveis para um olhar desprevenido ou ingénuo. E ao falar de canais devemos entender não a simples sintonização de um posto de rádio ou canal de TV, mas um meio de transporte telepático que encosta a nós dimensões mediúnicas que nos fazem entrar em transe, numa êxtase compreensiva sem nos fazer perder inteiramente na loucura da ininteligibilidade.

 

Em A ESTE VERÃO lê-se uma descrição desta êxtase centrífuga inteligível:

“há uma criança que corre pelos campos

deixa-se levar pelo tempo

como uma gazela caça o caminho

foi um lugar que me esqueceu

mas é impossível reduzir a produção do sol

a uma janela só”

(22)

 

Tal como em EXPLICAÇÃO DE UMA TEMPESTADE, há uma cristalização do domingo obtida por uma revisitação da cadência própria, do ritmo entediante de Domingo:

 

“bátegas que embatem contra

a parede lenta de domingo

desfazendo-se com a brevidade

de um pássaro acabado de voltar

a casa pedindo

para entrar no texto

como o vácuo pelo ar”.

(24)

 

Nos três NOCTURNA, identificamos a contradição paradoxal que anima o significado que se projecta sobre a realidade objectiva, existência em e por si que não é independente da realidade da subjectividade poética. Antes, depende inteiramente dela para dizer a impossibilidade da habitação: o peso do desaparecimento, a plenitude da morte.

A estratégia poética é a de alterar campos sensoriais e campos semânticos com um referente complexo já na rede de sentidos e significados, onde não há factos nem realidade. Um facto só existe pela anulação e neutralização paradoxal do que é já acamado num sentido. Um facto esvaziado de sentido tem ainda sentido, no limite é irredutível para um sujeito. É possível obter esta nudez de todo o revestimento de sentido a respeito de tudo quanto acontece a cada uma das nossas vidas. Mesmo até quando há diferentes pessoas a viver na mesma casa e a partilhar as mesmas horas, o sentido de “a mesma casa”, “partilhar as mesmas horas” pode ser intradutível por cada pessoa para cada outra pessoa. Sobretudo, quando a diferença é apurada no ser que faz de cada sou uma singularidade absoluta, expressa, por exemplo, em formulações como “morada exacta do tempo” (30) ou o próprio título do poema JANELA IRREVERSÍVEL (31).

Em NOCTURNUM, declara-se essa atmosfera:

 

“há um silêncio dentro desta casa que rasga

o manto de tranquilidade que deixaste para trás

nesse silêncio a casa resume-se ao sonho

de uma escuridão exterior – como se não tivesse portas

mas medo em vez delas

só uma réstia de luz derrama ainda

a consciência infinita de uma infância sonhada

entre estas quatro paredes

que agora se fecham nos meus pulmões

uma penumbra irreal desmaia

esmagada pelo peso da tua mitologia

 

é um silêncio inflamável, tempestuoso, que traz a aridez líquida

de um quadro pintado há muito tempo

escuro como a noite que nasceu do teu leito

e cai agora ao meu lado estremecendo

já sem qualquer espanto”

(25)

 

“Silêncio”, “manto de tranquilidade”, “sonho”, “escuridão exterior”, “sem portas”, “réstia de luz”, “quatro paredes fechadas”, “penumbra irreal”, “desmaio”, “esmagamento”, “mitologia”, “aridez líquida”, “noite”, “já sem qualquer espanto”. A ambiência gótica pode despegar-se da casa em que nos encontramos agora, por poder ser a mesma da infância. É a casa abandonada pelas pessoas que lá viviam, por mim que lá esteve. Agora que aquelas pessoas já não vivem e eu já não sou quem sou. Quem assoma o horizonte é outro e sou eu. Pode ser uma memória que emerge no horizonte e visitamos uma casa sem ninguém que era a nossa casa de infância. A casa e o prédio, a rua e o bairro surgem mergulhados neste halo onírico que nos transforma estruturalmente durante o tempo em que todo esse mundo perdido vem à memória e nós vivemos efectivamente a memória. Perdemos a percepção da própria realidade, ainda que possamos sentir frio ou calor conforme seja o caso. Mas estamos completamente metidos numa dimensão estruturante do passado que nos trabalha a partir do seu interior.

Em NOCTURNUM II lemos claramente:

 

“já não é uma casa

as divisões não são as mesmas

dentro delas o tempo sangra parado sobre mim

como uma recordação ferida

as horas que compunham o conteúdo dos dias

perderam o seu significado

por entre paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento

a casa perdeu a sua definição

onde antes era casa é agora outro lugar

embora com feições semelhantes e ainda a mesma

regra de tijolo, madeira e linho

materiais despidos de uma realidade que desapareceu

cofres de memórias apenas visíveis pela sua ausência

nos interiores demasiado amplos, demasiado obsoletos

para conter o deserto que agora esvazia a casa por dentro

como uma nuvem ardendo

depois da tempestade

a casa onde nasci era um ventre que se fechou

numa só madrugada

 

*

agora

há uma porta que se abre

para nada”

(25-27)

 

“Já não é uma casa”, “as divisões não são as mesmas”, “as horas que compunham o conteúdo dos dias perderam o seu significado”, “paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento”, “casa sem definição”, “antes casa, agora outro lugar”, “materais despidos de uma realidade que desapareceu”. Agora/ há uma porta que se abre para nada. A conclusão preparada pelas premissas Nocturnum I e II vem agora sem apelo nem agravo, a realidade pura e dura da atmosfera peculiar que habitamos em NOCTURNUM III:

 

“este lugar só agora existe

no futuro, é uma ruína

este lugar não existirá e será

para sempre uma casa

que o tempo trancou

chovendo à sua volta

sem parar”

(28)

 

O Futuro existe, mas aparentemente trancado, sem conteúdos inovadores ou sem a possibilidade deles. Não há vasos comunicantes nem um canal de sintonização que permita compreender que a cada instante a realidade do facto puro e duro, em bruto, é a única coisa que estará presente no futuro a haver. Mas, nesse futuro, as paredes não falarão connosco. Serão paredes habitadas por outras pessoas, gente estranha, que nunca poderá perceber como é que dentro de paredes as histórias falam para quem as olha mas são diferentes quando outras gentes as habitam.

Quando lemos UM COPO DE VINHO DA CASA, estamos já no universo poético onde há só sentido, significação, e o que possam ser factos ou a própria realidade só podem ser detectados a partir do esforço de cair na própria realidade ou então quando o sortilégio poético nos abandona e desaparece, fechando a sua dimensão.

Perdemos a sintonização. Quem aparece como gente surge a um ponto de vista dissociativo.

 

“e inundaram as praças de gente provisória e outras só casacos

ainda rígidos pelo repouso da obrigação

gente em cujo movimento fresco habitei contigo a vontade

– que tomei de empréstimo –

de descobrir o que sou sem saber qual a direcção

gente aos magotes toda unida (nós também)

na reinvenção diária da escolha

que tínhamos conquistado por direito e por dinheiro

 

Quem é esta gente?”

(29)

 

“Gente provisória” como eu que habitei a “vontade que tomei de empréstimo”. A descoberta de quem se é dá-se à custa de não se saber “qual a direcção”. “[G]ente aos magotes”- não em conjunto- a reinventar diariamente “a escolha conquistada por direito e por dinheiro”, ou seja, por tudo aquilo que não permite, genuína e autenticamente, fazer escolhas ou tomar opções. Esta gente não consegue sequer vislumbrar a hipótese hermenêutica que na verdade se constitui como um processo ou um encaminhamento que está plasmado em DE UMA JANELA IRREVERSÍVEL:

 

“A infância como possibilidade a perda da infância é a perda de possibilidade.

queria poder dar-te uma escada

para inverter o pensamento

tornar mais alta a distância

abreviar a infância inacabada

e o desaparecimento de todas as possibilidades”

(31)

 

“aí nesse sítio onde ainda era verão

vivias como um lugar sem lugar

como o silêncio vive por baixo

da chama”

(32)

 

A gente é adulta e não é já criança. A vida que perdeu a infância perdeu a possibilidade. Viver é ver desaparecer todas as possibilidades. Não esquecê-las, porque expor-se a elas é estar “nesse sítio onde ainda era verão” (32). A infância descrita em O HOMEM ACRESCENTADO é uma praesentia in absentia: a “morte uma longa irmã” (33). A casa da infância:

 

“um cristal de tempo

repetia-se todos os dias, rodopiando centrípeta

para dentro das supremíssimas cabeças

das crianças que conheceram o fortúnio – o tão legítimo fortúnio

de serem crianças sem o saber

ainda rodopia

talvez a tentar mudar

talvez a tentar fugir

talvez apenas eu já só force

a minha entrada

para a impedir”

(34)

 

Em II, na A HABITAÇÃO DO GESTO lemos uma meditação poética sobre a expressão do sentido ou do horizonte de significação que é a própria atmosfera que filtra a realidade. Esta parte analisa o sentido da semântica, a relação complexa entre palavras e coisas, entre poema como constituição do sentido e a realidade como o seu referente. em fingerspitzengefühl, lê-se

 

“procuro a porta a palavra

a fonte semântica

de todas as coisas”

(40)

 

E abre-se a porta à EXPLICAÇÃO DO POEMA que ainda não existe

 

“uma porta

uma chave para abrir

e outra para fechar

por dentro

a semente contínua de um gesto

a colher o homem

por fora, o eco

repetição interminável

de um corpo irrepetível

e o sonho de um gato depois de morrer

guardam a sua natureza

irreversível”

(41)

 

JOSÉ ANJOS (2017). Somos Contemporâneos do Impossível. Lisboa. Abysmo. https://www.abysmo.pt/livros/94-somos-contemporâneos-do-imposs%C3%ADvel

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