A última garrafa

(levanta-se na direcção do bar, enche um pouco mais os copos e regressa)

 

DOUTOR: [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uer então dizer que a situação tem-se agravado!

 

RAUL: Isso mesmo, doutor. (olhando para o copo) Este whisky é mesmo bom, doutor.

 

DOUTOR: É verdade! Do melhor, efectivamente. E é um prazer acrescido bebê-lo com alguém que sabe apreciá-lo.

 

RAUL: Obrigado!

 

DOUTOR: De nada. Como lhe disse, é um prazer acrescido.

 

RAUL: Mas estava a dizer-lhe que isto já não se suporta, doutor.

 

DOUTOR: Consegue descrever essa dor e onde é que a sente?

 

RAUL: É difícil, doutor. A dor não a sinto no corpo. Sinto-a não sei onde cá dentro. É como se a sentisse na origem de mim. Como se, onde eu começo, começasse também a dor. E é violenta. Uma espécie de explosão interna que se espalha por todo o corpo, embora não tenha origem nele, e que atinge a consciência como no momento culminante da explosão.

 

DOUTOR: A vida, portanto.

 

RAUL: Sim, a vida, doutor. Não há nada senão ela.

 

DOUTOR: Está, portanto, convicto de que não há uma outra causa, outra doença.

 

RAUL: Não, doutor. É a vida. Estou certo disso.

 

DOUTOR: Pode-me dar alguns exemplos. É que preciso compreender melhor, e está a ser muito difícil, sabe?

 

RAUL: Compreendo, doutor. Mas o que quer dizer com exemplos?

 

DOUTOR: Por exemplo, isso, a vida, não lhe pode estar a doer todo o tempo. Mesmo agora, você parece bastante calmo, a conversar e a beber whisky. Está a perceber?

 

RAUL: Sim, estou a perceber. Até pode parecer contraditório!

 

DOUTOR: Pois pode!

 

RAUL: E é seu costume oferecer whisky aos seus doentes?

 

DOUTOR: Você é um caso especial! Não só pelo caso em si mesmo, mas porque os doentes usualmente não gostam dos médicos.

 

RAUL: E o que é que o leva a crer que eu goste de médicos?

 

DOUTOR: Não é que goste ou deixe de gostar. Mas, pelo menos, não os odeia.

 

RAUL: Sente que o odeiam, quando aqui entram?

 

DOUTOR: Não é só aqui, meu caro. Em todo o lado as pessoas odeiam os médicos.

 

RAUL: Porque é que diz isso? As pessoas precisam dos médicos.

 

DOUTOR: Ora, aí é que está precisamente o problema! Por natureza, o ser humano tende a odiar aqueles de quem precisa. Mas no caso da sua saúde, ainda é pior. As pessoas pressentem em nós um poder ilimitado. Como se fossemos nós quem decidimos acerca do que lhes acontece. Repare que o médico é aquele que só procuramos porque há algo que não está bem, e por vezes até se suspeita do pior. Por outro lado, sentem sempre que estão a gastar dinheiro que, por direito, não deviam. Como se por direito lhes fosse concedido não adoecerem. Não tenha ilusões, meu amigo. Não vá nas cantigas das estatísticas, que afirmam que somos a classe mais reconhecida na sociedade. Balelas! Dizem isso por medo e por superstição. Porque, no fundo, odeiam mais os médicos do que você a vida. Por isso é que lhe digo que você é um caso especial. Nunca precisou de nós, e agora vem aqui para pedir ajuda com sinceridade e sem rancor, e sem preconceitos de espécie alguma.

 

RAUL. Talvez. Nunca tinha pensado nisso.

 

DOUTOR: Acredite que é assim. Mas continue, por favor! Em que momentos é que a dor aparece?

 

RAUL: Também é difícil de dizer.

 

DOUTOR: Por exemplo, será possível que, de repente, comece a sentir essa dor, agora, aqui?

 

RAUL: Ser possível é, mas não é muito provável.

 

DOUTOR: Porquê? Porque está acompanhado ou porque está a beber?

 

RAUL: Bom, o facto de estar acompanhado causa um certo atordoamento na doença, sem dúvida. Mas se estivéssemos aqui mais uma ou duas horas, passaria a surtir o efeito contrário. Beber, usualmente não bebo. Sou um bebedor moderado, se quiser.

 

DOUTOR: Vive sozinho, presumo.

 

RAUL: Sim.

 

DOUTOR: Sente-se só?

 

(toca o telemóvel do doutor, três, quatro vezes, por fim pega nele para atender)

 

DOUTOR: Peço desculpa, mas é a minha mulher. (ao telefone) Olá, querida! Como está?… Tudo bem! Olhe que não vou poder ir jantar… Pois… Não! Estou com um paciente e ainda me vou demorar… Não me incomoda nada… Outro para si. Até logo. (pousa o telemóvel sobre a mesa) Desculpe-me, mas sabe como são estas coisas. Aliás, não sabe! Era precisamente acerca disso que estávamos a falar. Não se sente só?

 

RAUL: Não, doutor. Pelo contrário, sinto-me muito bem. Ter alguém à minha espera ou ter de esperar por alguém é que seria um grande problema. Para conseguir tornar a minha doença menos penosa do que já é, desde muito cedo que tive de saber cortar com as coisas que mais caracterizam a vida. Olhe, não sei mesmo se alguma vez amei! E, se o fiz, foi há tanto tempo que já nem me lembro.

 

DOUTOR: Amor?! Não pense nisso. (pausa) Se quer que lhe diga, sinceramente, não acredito no amor. Há compromissos e contractos.

 

RAUL: O doutor é um pessimista.

 

DOUTOR: Não, meu amigo, lúcido. Não faço mais do que interpretar o mundo. Pessimista é o senhor, que pretende pôr termo à vida.

 

RAUL: Não se engane, doutor. Não tenho nada contra o mundo. Não consigo é suportar mais as dores que a doença me causam. O senhor doutor julga que os doentes terminais são pessimistas? Não conseguem é aguentar mais as dores.

DOUTOR: Meu amigo, mas o que você não consegue suportar é a vida.

 

RAUL: Sim, a vida, não o mundo. Não tenho nada contra as pessoas e as suas relações. Nem contra o estado de coisas. Não é o mundo que me dói, doutor, é a vida.

 

DOUTOR: (levantando-se) Bom, mais um whisky?

 

RAUL: Por favor, doutor! Já agora, também eu abro uma excepção.

 

DOUTOR: (de volta à mesa com a garrafa, volta a pôr whisky nos copos) Já agora, fica aqui. Não me levanto mais. (novo brinde) Às excepções!

 

RAUL: Às excepções!

 

(breve silêncio e toca de novo o telemóvel)

 

DOUTOR: Peço desculpa uma vez mais.

 

RAUL: Faça favor, doutor.

 

DOUTOR: Viva! Como está?… Bem, obrigado…. Não, minha querida. Tenho imensa pena, mas não posso ir ter consigo agora…. Estou no consultório…. Vou tentar passar mais tarde… Um beijo também para você, querida… Até logo. (desliga e pousa o telemóvel) Desculpe, mas não posso desligar agora o telemóvel. Espero uma chamada urgente do Hospital.

 

RAUL: Não tem importância, doutor. Espero que a chamada não lhe tenha trazido problemas.

 

DOUTOR: Não! Era uma amiga que se está a divorciar. Pessoas que ainda precisam de razões para entristecerem. Nos dois últimos anos, pelo menos, não ligava nenhuma ao marido, e encornava-o a torto e a direito. Agora, é isto. Anda triste, arrependida. Arrependida, mas é o caralho! Desculpe lá a linguagem. (Raul dá a entender que não tem importância) Se o marido voltasse atrás na decisão de se divorciar, em pouco tempo voltava ao mesmo. É o que é a vida, amigo.

 

RAUL: Mas, pelo menos, não lhes dói.

 

DOUTOR: Doer, dói-lhes. Mas arranjam remédio. A vida dói a todos. O senhor é o primeiro que encontro que diz que não tem cura. Nem é bem cura o que aqui está em causa. Porque, cura, nenhum tem.

 

(pausa)

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