Ouro, Incenso e Mirra

Sou negro, mas sou rei. Talvez um dia mande inscrever no frontão do meu palácio esta paráfrase do canto da Sulamina «Nigra sum, sed formosa» ….até ao dia em que o loiro irrompeu na minha vida.

Michel Tournier in «Gaspar, Belchior & Baltasar»

 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssim inicia o célebre romance de Tournier que celebra a trindade das oferendas com uma riqueza metafórica impressionante e um incontornável fulgor histórico. Há porém uma lenda da ortodoxia russa que nos diz que existe um quarto rei mago que faltou ao encontro de Belém, assim como um heterónimo de Pessoa que será mais uma espécie de Rafael Baldaia que na mágica heteronímia resolve ser astrólogo mas que não chega à “manjedoura”, um auto-nominado Bernardo Soares .

Atravessar um deserto real ou metafórico requer cautelas inimagináveis sendo os riscos mil vezes superiores à travessia dos mares, pois que ele é uma antecâmara que dá para um outro mundo. É lá que alucinamos, escutamos, olhamos, nos fustigam ou libertam, é lá que toda a sede se torna uma necessidade sobrenatural. Tem metástases aquele vasto corpo que rápido nos levam e gotas ínfimas que de repente nos salvam. Atravessá-lo, só com o olhar alto e a visão de um deus. O saque das caravelas é a mais requintada forma de roubo desenvolvida no mundo e aos reis que atravessem desertos nos seus camelos só mesmo a força de serem magos os pode afastar da requintada arte destes assaltantes.

Os reis seguiam ao que parece uma Estrela, mas que efectivamente era um cometa. Era chamada estrela cabeluda por causa do lastro dourado à sua passagem, assim como um cabelo sem cabeça; foi ao que parece uma grande viagem – partir é para estas gentes uma cura de desaparecimento – desde o delta do Nilo passando por Tebas, os nossos reis lá foram guiados, suados, mas como eram mágicos falavam com todos os elementos naturais, e nisto, Baltasar exclama o seguinte: “Quem sabe se o sentido da nossa viagem não se resume a uma exaltação de negritude?” Talvez percepcionemos aqui uma “magia” de espécies humanas atravessadas pelo deserto de um esquecimento qualquer e já que a Estrela se encaminhava para Norte fosse clareando Adão, que significa exactamente, terra ocre.

De Palmira vinha Belchior, séquito não tinha até se juntar aos outros e foi exactamente o mais pobre que levava o ouro. Atravessaram então todo o deserto da Judeia e na mansidão das noites devem ter contado coisas que só as areias escutaram; as noites arrefecem muito nos desertos e, nesta época do ano, são enormes. Estes viajantes tinham apenas um senão: eles não controlavam o tempo! Tiveram mesmo que iludir Herodes com quem antipatizaram, tendo, sem que o previssem, despoletado a ira do hirsuto rei: crianças mortas às mãos de algozes que lhes tiram o direito ao futuro, primogénitos tão caros a suas mães, meninos que esperávamos para salvar o mundo. Estas cicatrizes não se curam com a bondade sábia dos Magos nem as suas oferendas redimem a pobreza dos que esperam e nunca são saciados. A divindade de qualquer criança deve ser abençoada com estes nobres viandantes e constitui matéria de herança que de velha a nova se renova e todos aqueles que nascem têm o direito de ser por todos nós louvados. Os nossos magos não quiseram por isso atravessar as cidades e despedir-se de Herodes, seguiram as suas viagens depois de nascer o Menino e deles não mais ouvimos falar perdidos e indiferentes aos desígnios estranhos dos assassinos de crianças.

Todos os anos o meu coração de criança deseja vê-los, desejo nascer e olhar para eles no fundo de um tempo que tenha cometas cabeludos, mas por aqui, nesta imensa necrópole, nada passa, muito menos o nascimento de um Criança. É um céu gelado com luzes artificiais como tudo o que inventámos para fazer a festa. Mas a festa é um maravilhamento trazido em vasos solenemente doados aos que nascem. Aqui não chegou ninguém, e creio que até a morte se possa agora esquecer, tal a existência de vazio. Consegui não ir para o deserto onde me esperava Satanás e os Anjos, amargamente dou por perdidas todas as etapas do caminho, todos os anos regresso em sonhos à gruta que dá vida, e sem o velho culto de Mitra, festejo os dias que vão crescer e que não banharão a Terra na tão temida noite eterna.

Lá longe ficam os Homens.

O incenso e a mirra têm o poder de afastar os insectos e as serpentes, a mirra é um bálsamo medicinal, o ouro faz bem ao sangue, todas as componentes para se andar nestes locais sem ser mordido e afectado pelas pragas. Mais tarde as serpentes vêm com suas bocas abertas mas na voragem dos solos nada terão para tragar, os males não se curarão mais com plantas espinhosas, mas com o mel das últimas abelhas, que dizem, que ao deixarem de existir o mundo perecerá, e com leite, enquanto formos mamíferos e pela carne e o seio nos propagarmos no espaço circundante.

Aos que enaltecem a dádiva e nos protegem do solo sempre agreste nos cantarão as lendas ficando nós suspensos como jardins da Babilónia – nós – esses felizes herdeiros dos sonhos. Por ora cessam as Fadas madrinhas que tinham no fim das bênçãos a escatológica harpia que num anátema disferia o golpe mortuário. Dessa ninguém se livrou nem algures uma criança que fora abençoada por reis.

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