Do que eu gosto

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma festa de anos. Eu, bêbedo. E, entre os convivas, encontrava-se J., um dos mais reputados mestres de karaté do país, homem, à altura, de cinquenta e muitos anos, mas cuja observação, sem que se esteja toldado pelo álcool, basta a perceber que é detentor de capacidades físicas incomuns. A dado momento, armado em valente e em parvo, pus-me a questionar, sobranceiro, as chamadas artes marciais:

— Mas o que é que vocês fazem que eu não consiga fazer?

Entre nós encontrava-se uma mesa de vidro com, talvez, metro e meio de largura; diria que, no total, nos separavam uns três metros. Ora, num ápice, em resposta à minha pergunta, J., com uma agilidade como nunca antes vira, saltou sobre essa distância, encostou-me a mão aberta à garganta, ficando a milímetros desta, e disse:

— Você é capaz de fazer tudo o que eu faço, só que mais devagar.

Escusado será dizer que, nessa noite, pela minha parte, a garrafeira do nosso anfitrião teve de ser castigada em dobro.

Desse encontro, aparentemente não muito agradável, nasceu uma relação que viria a resultar em que se acrescentasse mais um cargo à lista daqueles que poderiam constar no meu currículo (se o tivesse), sem que, na prática, impliquem qualquer esforço relevante da minha parte – o de Presidente da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Sumo.

Neste caso, porém, a relação com a instituição não era totalmente descabida, já que sou um grande apreciador da modalidade, como, aliás, de tudo o que ao Japão tradicional diz respeito.

Gosto da arquitectura japonesa, da cerimónia do chá, das roupas, da música, do espírito samurai, dos haikus, da literatura contemporânea (com destaque para Yasunari Kawabata, Yukio Mishima e Kakuzo Okakura), de ikebana, etc.

Estou, aliás, em crer que um dos mais belos planos da história do cinema se encontra em “Hachi-gatsu no kyôshikyoku” (“Rapsódia em Agosto”), filme de Akira Kurosawa, datado de 1991: uma velhinha, frágil, munida de um guarda-chuva que de nada lhe vale, luta contra a chuva e o vento, no meio de um arrozal. Imagem poética que, evidentemente, se perde na mera descrição. Aliás, o filme é, todo ele, muito belo, maculado, apenas, pela participação (porquê, meu Deus?) do pseudo-actor Richard Gere.

Outras imagens cinematográficas, daquelas de que ficamos para sempre reféns: o travelling inicial de “Recordações da Casa Amarela” (1989), de João César Monteiro, com a Lisboa ribeirinha filmada a partir de um cacilheiro; o lago cor de sangue de “L’Enfer d’Henri-Georges Clouzot” (1964), filme que, na realidade, nunca existiu, isto é, de que só conhecemos os trechos incluídos num documentário realizado quarenta e cinco anos mais tarde; a neve de “Im Kampf mit dem Berge” (1921), de Arnold Franck; a leitura de um trecho de Thomas Mann, na praia, em “O Cinema Falado” (1986), de Caetano Veloso; a estrada enevoada em “Identificazione di una donna” (1982), de Michelangelo Antonioni; a casa de praia de “Pauline à la Plage” (1983), de Eric Rohmer; ou, até, uma outra casa de praia, a de Elizabeth Taylor, em “The Sandpiper” (1965), de Vincente Minnelli.

(Só agora, ao reler estas linhas, reparo que a água – líquida, congelada ou condensada, salgada ou doce – é comum a todas estas imagens).

Mas não me posso esquecer do sexo nos filmes de dois Marcos – o fellatio de Maruschka Detmers em “Diavolo in corpo” (1986), de Bellocchio, ou toda aquela orgia de “La grande bouffe” (1973), de Ferreri.

E, claro, os rostos das duas mulheres mais belas da história do cinema: Romy Schneider e Monica Vitti. Só para vê-los valeria a pena estar vivo.

Ou Claudia Cardinale — cara de falsa inocência num corpo todo ele desejo.

Gosto também, e muito, de gastar o meu tempo vendo filmes maus, lendo livros maus, ouvindo música má – e por maus quero dizer, apenas, despretensiosos. Situemo-nos, pois, por breves instantes, no campo do puro entretenimento. Escapism, como dizem os ingleses. Gosto de policiais norte-americanos, escritos a metro, a contra-relógio, com o objectivo de vender, de chegar ao maior número possível de pessoas, sem complicações. Gosto de filmes policiais franceses dos anos 70, americanices adaptadas à realidade gaulesa. Gosto de bandas-sonoras ligeiras, muitas vezes de pendor erótico, bem sixties/seventies – François Roubaix, Armando Trovaioli, Larry Manteca, Phillipe Sarde, Maurice Lecoeur, Laurie Johnson, André Popp, Giovanni Fusco, Piero Piccioni, Roberto Pregadio, Mike Colicchio, Christopher Gunning, Michel Magne, Georges Garvarentz, etc. Investiguem. São a música perfeita para um fim de tarde de Verão num bar de praia.

E, já agora, três canções lindas, cantadas por mulheres e que figuraram em filmes: “L’Appuntamento”, por Ornella Vanoni, “C’est ainsi que les choses arrivent”, na voz de Isabelle Aubret, e “Who were we”, por Kylie Minogue.

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