3. A viúva

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão vale a pena gritares ou chorares ou pedires para que tenha piedade. Não se trata de isto ser lógico ou de ser o destino ou de haver possibilidade de mudança. Estás aqui neste momento sem te poderes mexer e eu sou a viúva. É assim o nome pela qual sou tratada. Está tudo pintado. Todas as paredes. Sim, todas as paredes e o tecto também. Está tudo branco e apenas as folhas das plantas em verde criam sombras. Esta é uma harmonia própria que quero que sintas antes de fazer aquilo que tenho que fazer. E o macio arredondado do sofá à tua frente com padrões de ondas do mar nunca o irás sentir. Esse sofá será para o meu cliente se sentar.
Não vai ser fácil, e vai demorar tempo. Mas percebe que isto te vai acontecer. Tudo o que tens a fazer é aceitar. Desta vez aquilo que sabes de ti vai desaparecer. E nenhuma cirurgia plástica te salvará. Nenhum novo nome. Nenhuma nova terra. Considera que este é o momento de redenção. Livrares-te de todas as tuas posses. De todo o teu passado. Não te vais tornar outra pessoa. Serás a mesma pessoa. Como sempre fostes em cada mudança de rosto. Em cada mudança de nome. Em cada mudança de terra. Mas claro que serás compensado. Quanto de descobrirem serás notícia e as pessoas irão falar de ti. Como nunca falaram antes. Eu serei responsável por tudo.
Como te disse antes não tens nada a perder. O teu trabalho. Os teus nomes. As tuas vidas. Todas as tuas esperanças. Nada disso significa algo agora. E o teu rosto não importa. Eu vou apenas trabalhar a parte de cima da cabeça. Vi-te estremecer. Sinto-te confuso. Sinto a energia do teu cérebro. Imagino que te perguntes se aquilo que te vai acontecer será uma mudança para melhor? É tudo o que quiseres. Lembra-te apenas neste momento que eu sou conhecida como a viúva. Lembra-te apenas que esta minha expressão sombria está de acordo com o desejo de alguém que quer que existas sem saberes quem és. Não me perguntes quem é. Nunca sei quem é que me contrata. Depois de fazer aquilo que te tenho que fazer irei-me embora e o cliente irá sentar-se nesse sofá com padrões de ondas do mar, e ficará contigo o tempo que quiser para confirmar que o meu trabalho foi bem feito. 050973_Couture_A Widow Thomas_couture
Por esta altura já deves saber porque estás aqui. Lembras-te da tua mulher? Lembras-te quando ela viu a plantação de chá naquelas férias no Japão? Uma tristeza infinita se esboçou na sua alma. Tu deste ideias de não notar, mas a verdade é que sabias que toda aquela melancolia tinha origem no coração. No que ela deixou para trás para cumprir o desejo dos pais. Mas tu já sabias da melancolia dela e foi para teres certeza que a levaste aos campos de chá. Era uma tarde de primavera e o sol ainda não estava muito brilhante. Viste os olhos dela apagarem-se quando lhe apertaste o pescoço. Ainda hoje te perguntas se poderias ter escapado o destino. Aquele romance que nunca conseguiste ter. Quantas vezes imaginaste as longas conversas na cama que ela e ele tiveram? Quantas vezes quiseste ser ele? Lembras-te dessa tarde onde, arredondados, os lábios dela empalideceram?
Ainda vamos demorar um pouco. Tens que perceber que ninguém te virá socorrer. Seria interessante se conseguisses esboçar um sorriso. Em condição de canto do cisne. Devo dizer-te que não vejo qualquer obstáculo em relação à cirurgia plástica. Mas neste caso não te vai ajudar. Se tivesses mantido o teu rosto original ainda poderia ser que alguém te reconhecesse e viesse ao teu encontro quando te encontrarem. Eu sei que o facto de teres feito cirurgia não foi por uma recusa de gosto em relação ao teu rosto. Eu pessoalmente nunca gostei do meu mas também nunca tive uma ideia concreta de que rosto gostaria. Mas, como te digo, não tenho nada contra o teu. Ou contra os teus rostos. Outra coisa que não tens que te preocupar é que não vai perder amigos. Afinal toda a gente pensa que morreste com a tua mulher no Japão. Simulaste bem o suicídio em conjunto. Mas eu sei a verdade. Aquele corpo do homem não era o teu.
Eu tenho muitas vidas passadas. Vidas das quais não sabes nada. Eu sou a viúva e ninguém pode mudar aquilo que é suposto eu fazer com casos como o teu.
Eu tive dois filhos. Um menino e uma menina. Ele era cinco anos mais jovem que ela. Ele desapareceu há já muito tempo. Em relação a ela falaremos mais tarde. Eu e o meu filho tivemos os nossos problemas mas tudo estava bem até ele vir a saber que a mulher que amava tinha morrido. Não me interpretes mal. Isto que te vai acontecer não é uma vingança pelo meu filho. Isto que te vai acontecer tem que acontecer porque alguém quer que aconteça.
Espero que neste momento já tenhas percebido. Isto vai beneficiar toda a gente incluindo tu. Claro que todos as cabeças das pessoas são diferentes até certo ponto. Qualquer coisa que não será contrário às leis da natureza. Estarás ciente de que apesar de tantas mudanças de rosto e de tantas formas diferentes na colocação das sobrancelhas houve coisas que não mudaram. As nossas cabeças não são produzidas numa fábrica, de acordo com normas estabelecidas, mas posso dizer-te que o cérebro ocupa uma zona específica. As diferenças, que foste alternando no teu rosto, foram muito além dos limites do senso comum. Mas não te preocupes. Esse desequilíbrio, óbvio para qualquer pessoa, não irá incomodar em nada naquilo que te irá acontecer.
Mas antes de passarmos à fase seguinte quero que prestes atenção ao que te vou mostrar. “Bem-vindo ao telejornal. Após o assassinato de um mulher grávida na zona da Areia Preta um caso semelhante veio à tona na Vila da Taipa. Uma mulher grávida de 32 anos foi morta e o seu feto foi lhe retirado do corpo. A polícia suspeita que os dois casos estão ligados. Na casa de banho da mesma casa, a polícia encontrou também um homem de 54 anos com queimaduras do quinto grau. O homem foi declarado morto à chegada ao hospital e ainda não se sabe se tinha alguma relação de parentesco com a mulher assassinada. Entretanto em relação à mulher encontrada ao redor da ponte não existem desenvolvimentos na investigação.”

2 Mar 2016

“Camarada Obamao, ou como os chineses vêem o Presidente americano!” 奥观海

* por Julie O’Yang

O Camarada ObaMao nasceu no Hawai a 4 de Agosto de1961. Tem como segundo nome GuanHai (a ver o mar), mas tem vivido com o pseudónimo de Barack Hussein Obama II

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]transcrição que acabámos de ler é uma das muitas versões que circulam em sites da República Popular da China sobre a vida de Barack Obama. A ideia geral pode ser resumida desta forma: “O Camarada Oba Mao está connosco! Descendentes do Dragão de todo o mundo, mantenham a calma!”
E o que é que isto quer dizer?
Para a maior parte do povo chinês o Presidente americano é uma figura longínqua que não faz parte do seu dia a dia. É um assunto que verdadeiramente não interessa, afinal de contas a América não é a China e a expressão “eleições presidenciais” é assim uma espécie de… conceito alienígena. Ou por outras palavras, conversa fiada.
Mas como já devem ter reparado, gostam de se meter com o Obama. Chamam-lhe “奥观海”, “Obama de Olhos Fixos no Mar”, insinuando ironicamente, que é um mandatário chinês disfarçado – o nosso Candidato Manchu. Existem muitas piadas deste género, algumas são ainda mais astutas e engraçadas.
Durante a primeira visita à China em 2009, Obama recebeu das mãos de um general do Exército Popular de Libertação um manuscrito onde estava inscrito “观海听涛”.
观海听涛 significa literalmente “Olhar o Oceano e Escutar as Ondas”, que ilustra uma forma muito calma e descontraída de gerir as situações. É um cumprimento convencional e muito antigo, mas é também algo correcto e simpático de se dizer. Mas alguns miúdos gostam de tirar as palavras do seu contexto e dizem que o Obama é “观海对面的家,听涛哥哥的话”: “De olhos fixos no lar do outro lado do mar, escutando tudo o que Hu Jintao tem a dizer” (o último caracter “tao” do nome de Hu quer dizer ondas).
Topam?
Às vezes pergunto-me como é que será estar na pele da filha do actual Presidente Xi Jinping?
Sabemos que se formou em Maio de 2014 em Harvard. A maior parte dos colegas não fazia ideia de quem ela era. É muito discreta, tem um pequeno grupo de amigos e não produziu grande impacto, nem na Faculdade, nem nos outros estudantes.
Passo a citar um excerto de um artigo do New Yorker, https://bit.ly/1c16hWC, que resume em poucas palavras a sua passagem por esta escola:
…Estudou Psicologia e Inglês sob um nome falso. A sua verdadeira identidade era apenas conhecida de alguns membros da Administração e dos poucos amigos chegados — menos de dez.” palavras de Kenji Minemura, correspondente do Asahi Shimbun, que acompanhou a estadia da filha do Presidente Xi na América desde o início.

Donde se conclui que não foi nem uma estudante brilhante, nem alguém de quem os outros se lembrem. Nasceu filha de um presidente “vermelho”, só isso.

Para a próxima vou escrever sobre as mangas “sagradas” adoradas na China nos anos 60 e as suas misteriosas relações com a Preciosa Consorte, a Senhora Yang, da época imperial. Antes de me ir embora, peço-vos que vejam este vídeo que descobri no Youtube:
https://bit.ly/1WKIMCj

2 Mar 2016

Os primeiros católicos na China

No artigo da semana passada, “Os primeiros cristãos na China”, deixamos a História quando os cristãos nestorianos, referenciados na estela do século VIII enterrada pouco depois do Decreto de proibição das religiões de 845, se viram forçados a fugir para as estepes do Norte. Aí se juntaram a algumas tribos nómadas mongóis e por volta do ano mil converteram os Merquites e Keraítas ao cristianismo nestoriano.
Temujin pretendia no Kuriltai (Grande Conselho mongol) de 1196 ser designado Khan, mas só em 1206, após as lutas pela unificação das tribos das estepes do Norte, ficou como senhor da Mongólia, Genghis Khan, dando assim início ao Império Mongol. Em 1211 começou a invasão da China e conseguindo dois anos mais tarde atravessar a muralha, ocupou Beijing em 1215. Até ao final da sua vida conquistou o Norte da China e as cidades do Leste do Irão, Afeganistão, Uzbequistão e Sibéria, contando com um exército de apenas 129 mil homens. Antes de morrer, em 1227, pelos seus quatro filhos dividiu em Khanatos o imenso território já conquistado em todas as direcções a partir da Mongólia. Nos cinquenta anos seguintes, os mongóis conquistaram toda a China e o Norte do Vietname, o Afeganistão e parte do Paquistão, o Cáucaso, a Rússia, a Ucrânia, o Irão, o Iraque, a Síria e a Hungria.
Estava Batu Khan e as suas tropas em 1241 às portas de Viena, quando morreu o segundo Khan do Império Mongol, Ogodai (Gedei, com nome de Templo Tai Zong, 1229-1241), que promovera ataques contra a China do Norte, conquistando-a até Kaifeng, onde chegou em 1234 e para Leste, submeteu a Coreia. O seu sobrinho Batu Khan (filho de Juli ou Jochi, primogénito de Genghis Khan mas que falecera antes dele) conquistara os Búlgaros do Volga em 1236/7 e Kiev em 1240, seguindo-se a Polónia, a Hungria e Roménia, e quando estava às portas de Viena, Batu Khan sabendo da morte de Ogodai regressou à Mongólia, onde se ia fazer a escolha de um novo Khan. Para aí também se dirigiram emissários de todo o mundo, representantes do Império Romano do Oriente, da Igreja de Roma e dos Ortodoxos Russos, tendo encontrado na capital do Império Mongol, Karokurum, os nestorianos com uma tenda como igreja, ao lado da tenda imperial. Tal, muito se devia a Sorkaktani (Sorghaghtani Beki, 1198-1252), princesa da tribo nestoriana dos Keraítas (uma das tribos pertencentes à Confederação Mongol) e que era desde 1203 casada com Tului Khan (1192-1232), o mais novo dos quatro filhos de Genghis Khan e da sua principal esposa Borte. A nestoriana Sorkaktani foi mãe de Mongke, Kublai, Hugalu (Hulagu) e Arik Boke, que haveriam de ser, os três primeiros, grandes chefes mongóis. Segundo Miguel Urbano Rodrigues “De acordo com a lei mongol, não era ao primogénito que cabia o quinhão principal da herança paternal, mas ao mais jovem”… “Essa tradição, mantida pelos descendentes de Gengis Khan nas primeiras gerações, pesou muito no rumo do Império.”
O Papa Inocêncio IV em 5 de Março de 1245 designou como embaixador ao Khan dos mongóis o franciscano Frei Lourenço de Portugal, que tinha sido ministro provincial da Província de Santiago de Compostela. Mas este não pode ir pois estava como Penitenciário Apostólico em S. João de Latrão, onde passou dois anos como Legado Apostólico no Oriente, durante o conflito que se instalou entre Roma e Bizâncio e só regressou à Santa Sé em 1248. Por isso, o mesmo Papa pediu ajuda aos franciscanos e em 1245 enviou o italiano Giovanni del Carpine, acompanhado pelo boémio Estêvão e o polaco Bento à corte mongol. Aí chegaram a 22 de Julho de 1246, não havendo ainda Khan.

Nestorianos na corte mongol

Com a Pax Mongolorum entre os meados dos séculos XII e XIV, a unidade territorial que os mongóis conseguiram manter desde o Pacífico à fronteira Leste da Europa abriu de novo os caminhos terrestres da seda à proliferação de ideias e conhecimentos provenientes da China. Muitos viajantes, mercadores e religiosos (peregrinos, missionários ou refugiados) chegavam à China.
Como pastores nómadas guerreiros, os mongóis eram tolerantes para quem aceitava a sua soberania, mas impiedosos e bárbaros para quem se lhes opunha. Como nada sabiam sobre administração, comércio, agricultura e cultura, necessitaram de quem lhes tratasse dessas questões e assim, “os nestorianos gozaram da confiança dos soberanos e chefes mongóis, fossem ou não cristãos. O principal lugar-tenente de Hugalu, na Síria, por exemplo, o general Kitbuka, era um cristão nestoriano, o que terá reforçado a crença, tanto do Ocidente como do Oriente, que a campanha mongol era uma espécie de guerra santa contra o Islão, em simetria com as expedições francas”, como escreve António Carmo. Os mongóis eram sobretudo Animistas e por isso, a sua relação às religiões era tolerante, o que permitiu às igrejas nestoriana e católica expandirem-se pela Ásia até meados do século XIV.
A 24 de Agosto de 1246 foi eleito o Khan Guyuk, cinco anos após a morte do anterior khan, seu pai Ogodai, terceiro filho de Genghis Khan com Borte. “Simon de Saint Quentin relata assim o início do Kuriltai que elegeu Guyuk Khan como sucessor de Ogodai: ” Miguel Urbano Rodrigues. E com ele seguindo, “Pian del Carpine conta o que viu: .” O franciscano Giovanni Da Pian del Carpine (c.1182/85-1252), autor do mais antigo relato europeu sobre a Ásia e um dos primeiros discípulos de Francisco de Assis, trazia uma carta para o “Rei e povo tártaro”, pois pensava-se que a campanha mongol era contra o Islão e por isso, vinha negociar com o novo Khan. Mas o emissário não conseguiu nada. Para além de não enviar presentes, também não prestou homenagem, não se tendo prostrado perante o khan, já que só se prostrava perante Deus. Assim falhou a conversão do Khan e um ano depois, os franciscanos reentravam na Europa.
Sete anos mais tarde, em 1252, foi o Rei de França Luís IX quem enviou o frade franciscano flamengo Guilherme de Ruysbroeck (Rubrouk), com mais quatro companheiros à corte dos Khan, devido a rumores que aí havia cristãos. Chegaram no final do ano seguinte e junto à corte ficaram durante dois anos, tendo apenas baptizado cinco pessoas e convertido um padre nestoriano. Em Karokorum encontraram uma grande tolerância, havendo nestorianos, budistas e islamitas e durante a sua permanência realizou-se um debate sobre as diferentes religiões, presidido pelo próprio Khan Mongke. Os resultados dessa missão foram iguais aos da primeira.
Para fazer comércio entraram ao reino dos mongóis os irmãos Polo, Maffeo e Nicoolò, o pai de Marco Polo e encontraram-se com os nestorianos, assim como foram recebidos pelo Imperador Shi Zu (Kubilai), o fundador da dinastia Yuan, na sua nova capital, Dadu (até então Khanbaliq, cidade dos khan), actualmente Beijing. Kubilai Khan em 1269 nomeou-os embaixadores e partiram para em nome do Imperador da China pedirem ao Papa o envio de cem sábios. Este mandou apenas dois dominicanos, que nunca lá chegaram.

Arcebispo de Pequim

Em 1286, o Khan da Pérsia, Argun enviou a Roma o nestoriano Bispo Rabban Sauma (Bar Sauma, 1225-1294, que mais tarde recebeu o título de Vigário-Geral da China, conferido pelo Patriarca nestoriano de Bagdad, segundo António Carmo) a dizer que o Imperador mongol Kublai Khan, estava disposto a receber os católicos. O primeiro Papa franciscano, Nicolau IV, como Giovanni Moncorvino se encontrava em Roma escolheu-o, “enviando-o como Legado e Núncio da Santa Sé e cheio de presentes e revestido de toda a autoridade para tratar com o grande Khan. Partiu para a sua viagem em 1291, munido de cartas para o Khan Argun, para o grande Imperador Kublai Khan, para Kaidu, príncipe dos Tártaros, para o Rei da Arménia e para o Patriarca dos Jacobitas. Os seus companheiros eram o dominicano Nicolau de Pistoia e o comerciante Pedro de Lucalongo”, segundo refere o P. Manuel Teixeira.
Giovanni da Montecorvino (1246/7-1328/30), o primeiro missionário católico na China, nasceu em Itália e tornou-se franciscano em 1272. Encarregue pela Santa Sé para missionar no Oriente, começou na Pérsia e daí, “por mar para a Índia onde pregou por treze meses e baptizou umas cem pessoas. Aqui lhe morreu também o seu companheiro Nicolau. Viajando de Meliapor por mar, alcançou a China em 1294, vindo a saber então que Kublai Khan tinha morrido e Timurleng (1294-1307) sucedera no trono. Este, (o Imperador Cheng Zong) não abraçou o Cristianismo, contudo não pôs obstáculos ao zelo missionário que ali se estabeleceu e pôde pregar livremente o Evangelho.
A despeito da oposição dos nestorianos, Montecorvino depressa ganhou a confiança do Imperador e em 1299, oito anos depois de ter partido da Europa e seis após ter entrado na China, pôde construir uma igreja em Dadu (Grande Capital, hoje Beijing), tendo já a esta data baptizado seis mil cristãos. Em 1305 levantou uma segunda igreja mesmo em frente do palácio do Imperador, juntamente com oficinas e habitações para duzentas pessoas. Aqui reuniu cerca de cento e cinquenta rapazes, de sete a onze anos de idade, ensinou-lhes latim e o grego e estabeleceu as horas canónicas cantadas, como nos seus conventos da Europa, com grande gosto do Imperador, que se deleitava a ouvir as vozes melodiosas das crianças. Eram também estas crianças que faziam o ofício de acólitos, ajudando à missa”, como refere o Padre Manuel Teixeira.
Giovanni da Montecorvino “familiarizou-se com a língua nativa, podendo assim pregar e traduzir para chinês o Novo Testamento e os Salmos. As maiores dificuldades e os maiores obstáculos que encontrou na árdua empresa da evangelização da China vieram-lhe da parte dos nestorianos que então abundavam na China. Devido às calúnias que lhe levantaram os sectários do Nestorianismo, ele teve de passar por muitas humilhações e ignomínias e de comparecer como criminoso ante os tribunais. Mas, por último, pela confissão dum mesmo nestoriano, o Imperador reconheceu a falsidade das acusações e desterrou os acusadores. Deu-lhe até assento e poisada na Corte Imperial como Legado do Sumo Pontífice, com maiores honras que os restantes prelados das demais religiões”, P. Manuel Teixeira. Nos onze primeiros anos em que trabalhou sozinho, converteu seis mil pessoas e só em 1304 apareceu, para o ajudar, o alemão Arnoldo de Colónia.
O Papa Clemento V, altamente satisfeito com os sucessos do missionário, em 1307 enviou-lhe sete bispos franciscanos, mas apenas três chegaram, tendo estes consagrado em 1308 Giovani Montecorvino como Arcebispo de Pequim e Patriarca de todo o Oriente, pela bula Summus Archiepiscopus.
Em 1312, o Primaz de Pequim e de todo o Extremo Oriente recebia mais três novos prelados franciscanos e instituía novas dioceses, para além das já existentes, como a de Quanzhou. Depois de trinta e oito anos de vida apostólica na China, Giovanni Montecorvino, com 81 anos, morreu na sua sede Arquiepiscopal de Pequim em 1328.
Dez anos após a sua morte, o último dos soberanos da dinastia mongol Yuan, Shun Di, enviou ao Papa uma embaixada, pedindo a sua bênção e solicitando o envio de mais missionários e um outro legado pontifício. Apelo correspondido. O Papa Bento XII nomeou João de Marignoli legado pontifício e com ele seguiram mais vinte e dois padres, que chegaram em 1342 a Dadu, após uma viagem de quatro anos. Marignolli apercebendo-se que os tempos eram de borrasca, já que os mongóis nunca conseguiram conquistar a estima das populações que ocupavam, regressou à Europa em 1345. Então, o Papa Inocêncio VI ordenou ao superior dos franciscanos o envio de missionários para a China, sendo três bispos para a Sé de Dadu nomeados, mas nenhum aí chegou.
O Khan da Pérsia, Timur (1336-1405) em 1362 começou a perseguir os cristãos, o que levou à dispersão destas comunidades para a Índia do Sul. Quando o católico quarto bispo de Quanzhou, Giacomo da Firenze foi martirizado em 1363, encerrou-se mais um ciclo da evangelização cristã na China. Com a queda da dinastia Yuan em 1368 e a chegada dos sedentários chineses Han, que formaram a dinastia Ming, os cristãos saíram do país e voltaram para as terras do Norte.
Durante oitenta e oito anos, os franciscanos converteram mais de trinta mil chineses, maioritariamente de etnia mongol e como os católicos foram seus protegidos, a dinastia Ming expulsou-os e destruiu todos os vestígios do Cristianismo nestas paragens. Só duzentos anos depois, em 1583, o jesuíta Matteu Ricci conseguiu reestruturar a missão Católica na China, esquecido que estava aquele período de terror e em que a população chinesa Han se encontrava no nível mais baixo do escalão social mongol.

26 Fev 2016

Quarta-feira de cinzas

Porque eu sei que o tempo É sempre o tempo
E o lugar É sempre e apenas o lugar
E o que É real É real apenas por uma vez
E apenas para um lugar
Regozijo-me que as coisas sejam como são e
Renuncio ao rosto abençoado
T S Eliot, in Quarta-feira de Cinzas

[dropcap]H[/dropcap]oje é um dia especial na liturgia católica mas não será exactamente isso que inspira este instante, ou seja, é isso, dez, como o decálogo dos mandamentos , mas sim o poema de T. S. Elliot, exactamente chamado «Quarta-feira de Cinzas», um poema tutelar que abarca a Cultura Ocidental, feito por um poeta que bem pode estar ao lado dos profetas, pois que é demasiado fascinante para ser abordado sem uma profunda experiência do mundo. Este poema, que faz parte das células do imaginário, tem, claro está, num dia assim mais sentido. Vive-se nele o dia todo e quase a primeira essência se dissipa sem contudo nos dissociarmos face ao que o poeta dele instituiu. Entra-se num momento que nos reporta ao número quarenta, a Quaresma, a quarentena, uma passagem de dias, de anos, como forma de abordar ciclos vitais, tanto pode ser um poema elegíaco como um metadiscurso entre leituras comparadas.

“Porque eu não espero voltar
Porque eu não espero
Porque eu não espero conhecer de novo a glória frágil da hora concreta.”

O Livro de Ezequiel – 37- dá-nos a tónica do poema em ossos, os ossos daqueles que retornam à vida e fazem parte do corpo de um povo naquela planície de ossos onde um sopro lhes dá a vida nova em corpo e forma. O profeta Elias, subjugado por tristezas várias, pede para morrer debaixo de um zimbro e a cena é marejada de sofrimento e dor, como uma implorante profecia na linguagem do poeta:

“Debaixo de um zimbro os ossos cantavam dispersos e brilhantes, regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros, debaixo de uma árvore à friagem do dia, com a bênção da areia esquecidos de si próprios e uns dos outros, unidos, na quietude do deserto. Esta é a terra que tu partilharás em lotes. Recebemos a nossa herança”

É toda a estranheza do verbo que com o sopro se faz carne e mora nos Homens que aqui se bem diz e elucida. Já não podendo mais, Elias fora arrebatado por um carro de fogo e não mais voltou àquele local. Ainda hoje é esperado com entusiasmo e fé por aqueles que crêem que o desaparecimento faz parte do plano dos que não aguentando são, por forças divinas, arrebatados da sua desdita: pois que “eu não espero voltar, porque eu não espero”. Mas nós esperamo-lo! – Elias… Elias… Ele fala com Elias. – Na fronteira, Elias fala ainda aos que estão na linhagem desta imensa história de não retorno.

O poema levanta contudo muitas perturbações, e até formas nunca reveladas pelo poeta, pois que Eliot era parco a fornecer explicações da sua obra, na medida em que nada de conclusivo se pode tirar de um texto que passa em muito o factor surpresa, de uma voragem feita por leopardos na friagem do dia que se alimentavam até à saciedade de pernas, de coração e de fígados, daí os ossos, daí aquela necrópole improvável. Se fôramos cera, arderíamos apenas, mas este comerem-nos até à saciedade levanta o problema de termos sido ultrapassados nas leis não naturais. «Este é o meu corpo, comei e bebei». Nós estaremos nesse alimento de que se alimenta o poema e da minha vida ficará o tributo a um bem que todos podem partilhar, por isso o roteiro de jejuns que o próprio dia fornece, para lembrar os que têm fome e da nossa mortalidade em cinzas.

Aparece uma Senhora no poema – senhora dos silêncios calma e perturbada dilacerada e ilesa preocupada em repousa a Rosa única que era agora o Jardim – jardim esse, onde todo o amor finda terminado o tormento do amor insaciado e ainda o tormento maior do amor saciado fim do infindável, jornada para parte alguma conclusão de tudo o que é inconcludente

… Graças à Mãe pelo jardim onde todo o amor finda. Quem finda nesta voragem e o quê? Oh, meu Povo, que fiz eu de Ti? O que é isto de tão arrepiante mente ilusório, de tão assombrosamente maternal? Esta abundância de estranheza não dá para definir nem um Reino nem um Povo nem um Poeta nem um Profeta, mas as datas continuam charneiras a este tecido.

Comecemos numa indigestão de coisas articuladas pois que ao princípio da divindade subjaz a grande fúria. Aqui, neste poema, a grande deidade não está em paz, nem morre de fastio, pois que usa a vida como alimento e nutre-se de si mesma. Não será afinal este efeito maior o que faz de Eliot o enigma desta quarta-feira?

Já em «Terra sem vida» ele fala com as pedras e o mesmo povo devorado e que se articula com carnes nos ossos, faz as pedras brotarem água pela vara de Moisés. Talvez isto explique que não há poeta sem esta imensa área de mergulho na sua história civilizacional e tudo o que se faz à revelia deste caminho acabe inexoravelmente morto e invertebrado. Aquelas pedras são gotas de água. Tudo neste poeta está sempre por dizer, pois ele disse aquilo que ninguém sabe da sua própria Cultura. Eles vêm dizer-nos que se não for por estes passos que nos dilaceram por vezes os sentidos os poetas não têm razão de se apelidar assim e que quando eles desaparecem o mundo estará tão perdido que as rotas se transformarão em vãos desígnios de vociferação indistinta.

Nascido no ano de Fernando Pessoa, ambos trilharam caminhos que nos colocam agora neste dia em face do seu mistério. Tudo aconteceu para que sejam eles a revisitar na sua ânsia de não perder o fio de prumo à espectacular forma da natureza humana.

Há quem não queira mais, sim, e implore sair, e quem queira tudo e nada implore. Há os pacíficos que transbordam de tédio e os enaltecidos que usurpam os lugares que habilmente a indigência preparou, conquanto, se houver ainda um roteiro que nos transcenda, as coisas e até os ossos terão no tempo o seu lugar.

Não mais voltar ao local de um crime, mas os criminosos voltam sempre. É por isso que os seus crimes não compensam, dado que a segurança dos predadores é também a sua derrota. Quem não quer voltar sabe que fez o melhor e se for arrebatado é porque não se extinguiu no asfalto onde todo o sonho morre e a lembrança de que um deus não é a palavra que o designa, mas algo mais que convém estar atento, não vá o manto do nada apanhar-nos neste lugar sem força para implorar uma saída.

São os quarenta anos, e os quarenta dias e as quarentenas dos que andam a somar dias aos seus inesgotáveis esforços, mas a força aplica-se só, e somente, onde houver uma pedra, um osso, uma estrutura. E sem os nossos colossos e palmares de sonho e colunas, nada deste dia restaria se não a cinza de uma lembrança que julgáramos morta pela vitória de uma razão que afinal, está muito aquém de fazer um poema como este.

26 Fev 2016

Nos idos anos 40

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]aiu para a rua Central respirando o ar húmido. Era já noite. O dia tinha sido cansativo no Comando, mas decidiu não ir directo para casa. Mudara-se no Gabinete e vestia agora um fato de linho cinzento que o mainato entregara ao ordenança. Dispensou o carro. Desceu o troço que o conduziu à Almeida Ribeiro, olhando de passagem para a rua que levava ao Tribunal.

Baixou a cabeça, num cumprimento seco, quando o polícia mouro lhe fez a continência. Àquela hora, ainda não tardia, já o silêncio pairava naquela zona, iluminada por candeeiros de mercúrio, de uma luz crua, algo azulada. As escadinhas, anexas ao edifício dos Correios, estavam vazias. Apenas se distinguiam, mais distantes, uns vultos junto ao casarão na esquina com a Travessa de S. Domingos. “Mais refugiados a morrer de fome” pensou, enquanto acendia um Lucky Strike, suprimento que uma sombra lhe fornecera e que no mercado negro custava quarenta patacas.

Pôs os pensamentos e os escrúpulos de lado. Voltou à esquerda e entrou na Almeida Ribeiro. Ao chegar ao Senado, olhou para o Largo e para os escassos automóveis estacionados. De uma janela próxima, um erhu(1) gemia histórias antigas, enquanto um carro preto virava à direita, vindo de S. Domingos. Ferreira mordeu os lábios, irritado por ter dispensado o motorista.

Estugou o passo por instinto, passou pelo “Soi Cheong” que ainda se encontrava aberto. À porta, um jovem de olhos protuberantes cumprimentou-o: “Mom noiti sinhó”. Ferreira saudou-o com um gesto. Ali, a dois passos, do outro lado da avenida, erguia-se imponente o mais alto edifício de Macau, o Hotel Central do Comendador Kou Ho Neng e Fu Tak Iam, concessionários do jogo através da sua Tai Heng & Co. O Hotel tinha sido construído a pouca distância da ponte-cais onde o “Tai Loi”, o “Takshing” e o “Fatshan” atracavam. Os passageiros, nas três horas de agradável viagem desde Hong Kong, jogavam nos salões principais o “pai kao”, espécie de dominó chinês, indiferentes ao histórico mar, às ilhas e alforrecas que se patenteavam a quem ficasse no convés.

O coronel parou defronte à entrada do Central. Respirou fundo e cruzou solene a Almeida Ribeiro para o feérico átrio Art Deco versão local, pintado a creme. Entrou no elevador e premiu o botão do primeiro andar. Subiu e o abrir da porta coincidiu com o intempestivo barulho de gente excitada, vozearia, risos e demais sonoridades de emoções diversas. Os homens das mesas de fan tan ou do tai siu e ku sêk usavam largas calças chinesas e confortáveis sapatos pretos de solas de feltro. Alguns deles atarefavam-se a retirar das cestinhas, que se suspendiam dos varandins do andar de cima, o dinheiro das apostas gritadas lá do alto. Deu uma volta, viu poucos conhecidos, tudo estava em ordem. Observou os seguranças nas suas túnicas, as pistolas cuidadosamente ocultas, abanando-se em largos leques de papel castanho e fumando cigarros enrolados à mão.

Aniceto Ferreira estava em pleno coração da vida nocturna de Macau que, apesar da guerra circundante, não parava.

Entre os diversos refugiados aqui aninhados, de Hong Kong, Xangai, Chung Shan e Foshan, entrados pelas Portas do Cerco antes do seu fecho pelos japoneses, havia também russos e russas brancas, fugidos desde há muito do distante Norte, em inenarráveis trajectórias de sobrevivência. O modo como toda esta gente vivia, era, na maioria dos casos, desconhecido. O Governo acolhia os que podia. As mulheres de guerra, para sobreviver, convergiam para os locais de diversão nocturna, fossem belezas de Xangai ou de Vladivostok. Outros dedicavam-se a tarefas de respeitáveis profissões. Os anónimos dos anónimos iam morrendo à fome pelos cantos, desistindo da luta, exaustos de tanto fugir.

vista de Macau

A cidade era um enxame silencioso de gente em sofrimento. A população local, compassiva mas impotente, procurava ajudar como podia, partilhando o dispensável.

Ferreira tornou ao elevador, esperou e, desta vez, premiu o botão do quinto andar. Saiu para outra atmosfera. Uma orquestra de metais tocava as canções em voga. Foi abordado por uma jovem que lhe ofereceu tickets, cartões que permitiam ao comprador fazer par com as dançarinas que se vislumbravam sentadas ou na pista. O resto era ajustado durante a dança.

Olhou do pequeno vestíbulo para o salão. Não era muito tarde, mas já lá se encontravam oficiais japoneses bebendo mao tai, acompanhados por damas que lhes enchiam os copos. Mais além, para a direita, vislumbrou duas mesas com chineses, alguns envergando fatos tradicionais, outros, com negros cabelos luzidios de brilhantina, vestiam à ocidental. Ferreira lamentou estar sozinho, sem nenhum dos seus agentes mais conhecedores do meio. Parecia que tinham convergido para ali todas as facções em conflito, no oásis de tréguas, mesmo assim frágil, que era Macau. Não sabia distinguir os do Kuomintang e os Comunistas. Os das seitas já sabia que andavam de cabaia curta e calça larga. Tudo isto lhe passou pela cabeça em escassos segundos. Agora não podia recuar, tinha de entrar.

Parou perto da mesa dos oficiais japoneses. Acendeu um cigarro, mas queimou-se com o fósforo e fez um esgar. Um dos oficiais japoneses sorriu, abriu a sua gunto(2) com a mão esquerda e, mostrando um pedaço da lâmina, passou o dedo, sorrindo sempre. Sem desviar o olhar de Ferreira, fez cair o sangue no mao tai e bebeu. Levantou o copo e, entre as gargalhadas dos outros, gritou kampai(3). O coronel sentiu o rubor subir-lhe ao rosto, desviou os olhos e afastou-se em direcção às mesas da direita, onde os ocupantes, se tinham tornado tensos a olhar os nipónicos. Ferreira engoliu a provocação, sabendo que qualquer resposta seria um rastilho curto para uma confrontação. Havia os colaboracionistas dos japoneses, havia as seitas, estava lá todo o mundo. Aquilo era um barril de pólvora embalado ao som de uma orquestra. Em 1941 os americanos entraram na guerra, em 1943 os japoneses tinham rompido a neutralidade de Macau, atravessando as Portas do Cerco, na tentativa de apreender um navio mercante britânico. A polícia enfrentara-os, mas estes causaram 20 baixas e Macau foi forçado a tornar-se protectorado nipónico, com oficiais destacados como conselheiros. Ferreira odiava-os entranhadamente.

Sentou-se numa mesa vazia. Bebeu de um trago o CRF que pedira e pensou ter sido sábio não extremar posições. A contenção custara caro ao seu ego, mas pelo menos não se viria a arrepender. Estava certo que os aliados venceriam. Pearl Harbour tinha sido em 1941 e já se estava em 1944.

A súbita aparição de Silva no salão interrompeu os pensamentos de Aniceto Ferreira. Parecia procurar alguém, mas tendo encontrado o chefe, encaminhou-se na sua direcção, sempre com a mesma expressão. O Silva nascera e crescera em Macau e, na polícia, era um dos homens da sua confiança. Conhecia todos os meandros, sabia distinguir as facções, reconhecia as hierarquias das seitas, entendia a noite onde tudo acontecia.

Silva, pedindo licença, sentou-se. Ali não eram obrigatórias demasiadas formalidades. Ferreira perguntou se havia novidades.

“Se dá licença, sugiro sairmos daqui já. Houve um pequeno incidente…” disse Silva, oferecendo um cigarro, cigarreira de prata aberta. “O que houve?” perguntou Ferreira, incomodado por não ter trazido o revólver. Por cima do ombro viu entrarem mais dois dos seus homens, que se sentaram numa mesa perto da entrada, um deles chamando o empregado. Este inclinou-se, ouviu, aquiesceu e foi-se com a bandeja vazia.

Silva respondeu que explicaria depois. Levantaram-se e saíram da sala sem incidentes. Aguardaram o elevador e a vendedora de tickets saudou Silva com um tradicional “Vai embora tão cedo, Si Sing Sáng?”

Os seus outros dois homens seguiram-no silenciosamente. Fechadas as portas, saudado o comandante, o Silva confidenciou: “Meu comandante, um homem caiu lá de cima e matou um condutor de triciclo. Não é bom estar aqui”. Ferreira ouviu, imaginando mais um desgraçado a atirar-se à rua depois de perder tudo ao jogo. Morte era coisa que não faltava. Todos os dias se encontravam cadáveres pelas ruas ou vielas, mortos de fome ou assassinados. As facções guerreavam-se surdamente nas sombras da frágil trégua.

À saída, um dos acompanhantes à frente e o Silva e colega a ladearem Aniceto, viraram à direita, dirigindo-se para a Rua dos Mercadores. Na outra rua que ladeava o Hotel, a rua Oeste do Mercado de S. Domingos, uma ambulância recolhia os restos da tragédia tornada quase banal.

Caminharam em silêncio até ao mercado. Àquela hora e com o racionamento, poucos vultos se viam. Chegados à esquina da Travessa do Soriano, o Silva disse aos outros: “Podem ir, eu acompanho o comandante”. Silva sabia que protegendo o comandante ganharia ascendente sobre este. A comunidade militar era pequena e o incidente poderia criar embaraços desnecessários. “Meu comandante, não se preocupe, nós tratamos disto. Vá descansar”. Tinha tudo preparado e, assim que desembocaram junto à entrada do mercado, um carro insuspeito acolheu Aniceto Ferreira. “Boa noite meu comandante” despediu-se Silva. Dentro reconheceu o seu motorista. Aquele Silva era competente como o diacho, porém tinha artes de o apanhar sempre em contrapé e ser-lhe útil. Como teria ele sabido do seu paradeiro, perguntou-se. Sentiu-se vigiado.

O carro seguia agora pela Praia Grande, em direcção à Av. da República. A-Leong, o motorista, conduzia sem uma palavra. Aniceto olhava o breu onde alguns tancares(4) e sampanas(5) aguardavam a maré vaza. Sentiu um vazio e questionou-se sobre o sentido do seu papel ali. Não dominava o chinês, as sombras não lhe eram familiares como eram aos seus subordinados, que conheciam as faces e as máscaras das diferentes facções. Sentiu-se enredado numa teia de guerra onde precisava, verdadeiramente, dos seus homens para agir.

Suspirou, cruzou os braços e deixou-se conduzir, disposto a não lutar contra o que o ultrapassava. Como militar, tinha informações do mundo e do modo como a Guerra do Pacífico se desenrolava. Soubera que as tropas nipónicas estavam a sofrer pesadas baixas e tinham começado os voos dos kamikaze(6) contra os navios americanos na região. Era o último recurso. Porém, isso não invalidava o seu sentimento de impotência e o modo como tinha de se forçar por ignorar o que via pela cidade. A noite engoliu-o no conforto da casa e, com a ajuda de uma garrafa, mergulhou no sono do esquecimento.

No centro da cidade, e porque não era só o comandante que tinha informações, a noite ficou marcada pela morte de colaboracionistas japoneses. Começava lentamente a raiar o dia do fim do conflito.


(1) Violino chinês
(2) Sabre militar japonês
(3) Brinde em japonês, significando “copo seco”.
(4) Tancar, bote muito ágil com remo na popa.
(5) Sampana vem do chinês sám pán, três tábuas, largura de três tábuas.
(6) Vento divino.

25 Fev 2016

A mancha humana

Roth, Philip, A Mancha Humana, Dom Quixote, Lisboa, 2005
Descritores: Literatura Americana, Ficção Psicológica, Afro-americanos, Judeus, Identidade, Racismo, Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, 377 p., ISBN: 972-20-2577-5.
Cota: 821.111(73) -31 Ro

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]hilip Milton Roth é um escritor norte-americano de origem judaica (mais um) que nasceu em Newark, Nova Jersey (Onde nasceram outros grandes escritores americanos), a 19 de Março de 1933. Actualmente diz que deixou de escrever e que Nèmesis é o seu último romance. Trabalha, ao que parece, na elaboração da sua biografia com Blake Bailey. Philip Roth publicou uma extensa quantidade de livros, dos quais destacaria Good Bye Columbus de 1959, por ser a primeira obra reconhecida pelo público e pela crítica; O Complexo de Portnoy de 1969, por ser a obra que lhe deu celebridade e a sua primeira obra-prima; O Teatro de Sabath que de algum modo é o clímax deste ciclo marcado pelo desejo sexual, embora em boa verdade todos os romances de Philip Roth apresentem esta marca a par dos temas que reflectem os problemas de assimilação e identidade dos judeus americanos. Destacaria ainda A Mancha Humana de 2000 pois culmina a trilogia americana, em que Roth desconstrói a ideologia americana (politicamente correcta e do politicamente correcto) e embora os outros dois, ou seja A Pastoral Americana e Casei com uma Comunista, de 1997 e 1998 respectivamente não sejam negligenciáveis, são a meu ver demasiado à maneira de Saul Below. Destacaria finalmente o ciclo mais recente onde se evidenciam, sob o signo do envelhecimento e da perda, os romances, O Animal Moribundo, Indignação, Humilhação e Nèmesis. Os temas deste ciclo final não apareceram de súbito na cabeça do autor pois, em boa verdade, ele já os tinha abordado em obras mais antigas como nos textos Homem Comum ou O Fantasma Sai de Cena onde já se enunciavam e exploravam os temas do fim da vida com todas as suas misérias físicas e espirituais. 25216P16T1

Politicamente Correcto: Inquisição e ditadura

Philip Roth é um autor fácil de ler, pelo menos para mim, mas muito menos fácil de analisar, aliás muito difícil mesmo. Vou contudo tentar fazer o inventário das linhas de orientação do programa de Philip Roth, qual a intencionalidade pragmática e problemática da sua narrativa e as coordenadas ideológicas diluídas na poética da comunicação, desde logo neste livro mas também no conjunto da sua obra, a partir dos textos que estão ao meu alcance na Biblioteca Central de Macau. Ainda que a sua obra se tenha vindo a estruturar por ciclos distintos tanto no plano temático como até no plano estilístico, não deixa de ser também verdade que persistem, em toda a sua obra literária, elementos comuns e estruturais.
A última fase da sua produção, por exemplo, através dos títulos emblemáticos, Humilhação, Indignação, Animal Moribundo e Nèmesis, constitui, em si mesmo, uma unidade, de preocupações, de significação e de horizonte de sentido claramente mais pessimista que o resto da sua obra, que nunca é contudo senão pessimista. Se numa primeira fase o escritor explorou a temática da sexualidade sobretudo explícita em livros como O Complexo de Portnoy e o Teatro de Sabbath, mais tarde acrescentou-lhe uma linha de orientação que visava a desconstrução sistemática da ideologia americana e toda essa evolução culmina justamente em A Mancha Humana, romance de articulação entre todas as fases e provavelmente a obra que define o autor por antonomásia.
Na fase final, quer dizer actual, os seus temas vão mais no sentido alargado de desconstrução do mal num plano mais universal, o da humanidade, entrevisto numa lógica de fim de ciclo vital. Philip Roth foi assim do particular para o geral, como convém. Nesta inteligente organização dos seus temas e preocupações o autor faz coincidir as suas reflexões finais com a universalidade da condição humana e objectivamente com o seu próprio ciclo de vida. De uma forma que não me parece acidental o autor justapõe o existencial ao biológico, desenvolvendo de uma forma orgânica a evolução da obra homologicamente com a evolução da sua vida numa perspectiva que não anda longe da evolução das próprias civilizações à maneira de Spencer.
Quando li A Mancha Humana, senti interiormente uma imediata satisfação: finalmente alguém escreve de uma forma inteligente sobre a deriva, aliás mais errância que deriva, da orientação da cultura do nosso tempo. Sob a capa da vigilância democrática que mais não é do que um desvio puritano ao sentido da liberdade começa a ganhar terreno uma nova forma de inquisição, muito mais sofisticada que a anterior, mais diluída e portanto não hard mas antes soft, cool mesmo, mais discreta mas no fundo muito mais eficaz e que pode pôr em perigo a democracia e a liberdade. É uma inquisição fria, exteriormente pouco repressiva mas condicionadora no plano íntimo da consciência. Para se tornar mais explícita a mensagem da sua obra Philip Roth convoca imediatamente o exemplo libidinoso de Clinton, num pano de fundo em que se percebem os movimentos fantasmáticos da sórdida intriga, moralista e ridícula. A verdade é que foram muito poucas as vozes que se levantaram contra a sordidez inquisitorial. Num conto das Histórias dos Mares do Sul de Somerset Maugham, já ficou provada a sordidez desses inquisidores, desses objectores de consciência agora entretanto transformados em inquisidores e paladinos da moral. Nesse mesmo ano, um intelectual sério e honrado, um judeu, que afinal não era, é condenado à expulsão de uma universidade por causa de uma expressão que numa acepção poderia ter uma conotação racista, mas que na sua versão mais denotativa e original era incólume.
Os inquisidores são atraídos sempre para onde cheira a sangue ou a esterco. Eles sentem a necessidade disso como uma espécie de alimento para as suas consciências esvaziadas, reduzidas a uma forma. Eles representam o mal radical no sentido kantiano e justamente porque radical, inapreensível pelo comum das pessoas. Eles pervertem a norma na raiz da norma conquanto a respeitem na sua formalidade exterior e visível. Assim fizeram a cama a Coleman Silk e só não a fizeram a Clinton por uma unha negra. Incomoda-me denominar este tipo de inquisição pela ditadura obscena do politicamente correcto, mas a verdade é que não se trata de outra coisa.
O politicamente correcto tem os contornos do preconceito, não é de resto outra coisa senão preconceito, mas pela primeira vez na história a classe esclarecida, a classe culta domina o universo dos preconceitos e faz com ele o que sempre se fez, só que desta vez o preconceito possui um inusitado poder condicionador pois é esgrimido pela mesma classe que historicamente encabeçou todos os combates e se bateu contra os preconceitos. Pela primeira vez na história o universo preconceituoso não aparece solto, fragmentado, esgrimido pela parte da sociedade ultrapassada pelo progresso e pela história, mas aparece sistematizado, como uma ideologia da classe culturalmente dominante e democrática, aquela que rasga os caminhos da modernidade. Essa classe guardiã da justiça, da liberalidade, da saúde colectiva, essa classe securista e protectora, vigilante de todos os dogmas do progresso, começa a exercer no nosso tempo a mais nefasta ditadura de que há memória. É ténue a fronteira entre a liberdade e a repressão.
Quando as forças de rotura real, as forças do progresso, do espírito de emancipação real se ausentam ou entram em crise, a estrutura ossificada da classe dominante traspõe essa fronteira, de modo silencioso e, o horizonte repressivo, aparece então de modo inapelável. Torna-se cada vez mais difícil definir um espaço de liberdade onde a procura da identidade não encontre o obstáculo da ossatura politicamente correcta. E volto a dizer, tudo isto em nome da liberdade, do progresso, das minorias, dos humilhados, dos desprotegidos, os marginalizados, seja de que natureza for.
As personagens de A Mancha Humana esbracejam neste casulo, neste espartilho claustrofóbico. É o caso de Silk entalado entre discursos identitários adversos, pois por puro acidente não é negro, sendo contudo filho de negros, acaba por fugir do ghetto em que sentia que se estava a aprisionar, assume uma identidade judaica, talvez para compensar o sentimento de traição e má consciência e por via desse travestimento acaba por ser julgado como racista anti negro, quando afinal ele mesmo o era geneticamente falando. Faunia que vive o mesmo problema mas no plano social e por isso se envolve com Silk, muito mais velho num plano estritamente sexual, Delphine Roux que abandona o país e os pais para ser autónoma e independente e assim por diante. Todos pagam claro por abandonar o rebanho. Sobretudo todos pagam por não pretenderem ser o que não querem ser no quadro desta irmandade puritana e hipócrita.

25 Fev 2016

O Macaco, A Sereia & Companhia 美猴与人鱼

*por Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]jornal que li hoje de manhã trazia em destaque a seguinte notícia: No quinto dia do novo Ano Lunar Chinês, Ano do Macaco, (12 Fevereiro de 2016), 500.000 pessoas reuniram-se no Templo Guiyuan, na baixa da cidade chinesa Wuhan, para oferecer incenso ao Deus da Prosperidade 财神爷. A fim de garantir a sua segurança, alguns milhares de polícias estiveram de serviço ao local.
Sendo chinesa, acredito que é fantástico estar dentro de uma nuvem de incenso, talvez porque o incenso representa o eterno sagrado. Em silêncio, a queimar pauzinhos aromáticos, sentimos a angústia desvanecer-se e os deuses descem dos céus para nos vir beijar. O fumo do incenso transmite boa energia aos seres humanos, seja qual for a sua raça e, desce sobre nós… em paz. Os chineses têm um ditado que diz: A vida é uma canção, o incenso é a música.

Para os chineses existe outro mito sagrado, o Ano Novo Lunar, que este ano se iniciou a 8 de Fevereiro. Agora quero convidar-vos a vir comigo dar uma volta ao Mundo para vermos juntos alguns eventos inesquecíveis, relacionados com o Ano Novo Chinês. Embora para mim seja uma viagem retrospectiva, mantenho o uso do Presente para prolongar um pouco as sensações.
O Museu Britânico, expõe os Manuscritos das Admoestações de Gu Kaizhi, 女史箴图, durante os festejos do Ano Novo Chinês. é da autoria do poeta Zhang Hua. O texto dirige-se às mulheres possuidoras de ambições políticas, ou de qualquer ambição em geral, admoestando-as e exortando a obediência ao homem, ou seja, ao Imperador, ao pai, ao marido e ao(s) filho(s). Por ordem hierárquica. Deve haver qualquer coisa muito errada neste mundo para que, nos dias que correm, Confúcio ainda seja considerado um sábio!
Mas voltemos a Hong Kong, onde o Ano Novo é celebrado com a intensidade sulista e a ostentação e excessos actuais. Eu, pela parte que me toca, continuo a preferir os costumes tradicionais. E não só para o Novo Ano Lunar Chinês, cujo zénite se situa no início de Março. Só para dar um exemplo, alguns naturais de Hong Kong pagam a certas mulheres para irem a Canal Road amaldiçoar quem espalhe rumores sobre as suas pessoas. Funciona da seguinte maneira, estas “profissionais” atam um pedaço de papel, previamente untado de gordura, a um sapato por estrear do cliente, onde está escrito o nome do caluniador. Aqui está um exemplo acabado de umas vilãs dos diabos!
Enquanto isto, em Victoria Harbour, Wilson Mao Wai-shing, o tipo mais fixe de Hong Kong, organizou o lançamento de quatro toneladas e meia de fogo de artificio, no valor de vários milhões de dólares, um espectáculo que durou 23 minutos.

Illu 3
Foto: Ilha de Hong Kong Island e Victoria Harbour, Escola Chinesa, séc. XIX .1858-1875 pintura a óleo
Wilson Mao: “Nasci nos anos 60 e o meu entretenimento preferido era ver o meu pai lançar fogo de artificio. Era vendedor e fazia demonstrações para os clientes. Eu tinha este luxo, podia brincar com fogo de artificio.”
Este ano, na China Continental, as pessoas tiveram o Hong Bao 红包 mais vermelho de sempre. Ao que parece, o Partido Comunista Chinês descobriu uma maneira de “encurralar” os cibernautas mais credenciados. Para terem hipóteses de receber os seus envelopes vermelhos com dinheiro, os utilizadores tinham de usar uma frase passe numa conta. A conta pertencia a uma poderosa organização ligada ao Partido, a agência on WeChat, dirigida pela oficial Xinhua, da Tencent, que fornece um serviço de mensagens instantâneas muito usado. Por exemplo, uma das frases passe usada era “Colherás o fruto do teu trabalho,” seguida de “Desde que perseveremos, os sonhos tornam-se realidade,” As duas frases faziam parte do discurso de Ano Novo (entrada em 2016) do Presidente Xi, e foram repetidamente transmitidas pelas Emissoras Nacionais ao longo do dia 31 de Dezembro.
Como os negócios online dispararam na China, os gigantes do sector, Tencent e Alibaba, passaram a permitir a utilização de dinheiro electrónico. O Partido Comunista viu aqui uma oportunidade e associou-se às duas empresas. Em apenas três dias, um total de 300.000 yuans (50.000 USD) circulou no Alipay, o serviço de pagamento online da Alibaba, fundada por Jack Ma, um dos homens mais ricos da China, que comprou o South China Morning Post em Dezembro. .
O IKEA de Taiwan criou um sistema muito engenhoso para impedir que as pessoas fiquem agarradas ao telemóvel durante as refeições. Uma mesa da qual se eleva uma chapa central, que aquece a comida a partir da energia dos telemóveis. Para que resulte é preciso pôr os telemóveis por baixo da chapa.

Neste período festivo, Huallywood bateu os recordes de bilheteira e deixou Hollywood para trás.
No primeiro dia do Ano do Macaco, as bilheteiras chinesas registaram uma entrada de 660 milhões de yuans (100,5 milhões de USD) – batendo o recorde de 425 milhões, obtido em 18 de Julho de 2015. As produções nacionais foram as mais vistas. A liderar as bilheteiras esteve A Sereia (de Stephen Chow周星馳que, na estreia, atingiu os 270 milhões de yuans, estabelecendo num só dia um novo recorde doméstico. Esta versão, criada em Hong Kong, apresenta uns pseudo cantonenses, que não poderão enganar os espectadores locais, mas é óbvio que Chow está a querer dirigir-se a mercados maiores. A Sereia conta a história de um grupo de sereias que lutam contra um empreiteiro. É uma mistura de romance, comédia e animação digital, com uma mensagem sobre a nossa relação com a Natureza. Um drama sólido, emotivo, que inclui imagens documentais sobre a poluição da água, a extinção de vida marítima e a destruição dos recursos naturais. Dizia-se que as comédias de Chow estavam mortas e que só os actores de Hong Kong as poderiam salvar, devido à sua mistura cultural, por um lado uma certa superioridade britânica e, por outro, os valores de humildade e condescendência chineses. O filme de Chow, Kung Fu Hustle, estreado em 2004, foi um sucesso monstro.
O Rei Macaco 2, protagonizado pelo actor de Hong Kong, Aaron Kwok Fu-shing, e pela actriz continental, Gong Li é a última produção dos Wuxi Studios – conhecidos por Huallywood, devido à aspiração de virem a rivalizar com a Meca do cinema mundial. Os promotores garantem que, ao nível nacional, o filme tem os melhores efeitos especiais de sempre e, como se sabe, os chineses adoram efeitos especiais.
Já que sou o vosso guia, assumo o papel “farol” do bom gosto. Por isso recomendo vivamente o meu preferido desta série, Rei Macaco: Caos nos Céus, de 1964. Inclui uma citação que pode ser considerada a mais profunda da novela do séc. XVI, Viagem ao Ocidente, de onde o Rei Macaco havido regressado: 皇帝轮流做,明天到我家。
Qualquer um pode ser Imperador, amanhã é a minha vez de me sentar no Trono do Dragão.
De repente lembrei-me de uma letra da Olivia Newton-John:
No lugar onde ninguém se aventurou,
Está o amor que procuramos
Chamam-lhe Xanadu

A animação em Inglês pode ser vista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Hu0XosgxCyU&feature=youtu.be

24 Fev 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? II

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]2[/dropcap]. Ele

Levantei o copo e deixei o whisky deslizar pela goela. Parei por um momento a olhar para os peixes dourados no aquário ao fundo do bar. Quero pensar que nada se perdeu. Que nada se perde nunca. Mas sinto o contrário. Parece-me que perdi tudo. Perdemos tudo. Eu estou só. Esgotámos as palavras. O silêncio. Aquele silêncio aterrador. Aquele tempo amputado. Eu tinha prometido que não iria sangrar mais. Nunca mais.

Fugir. Só sei fugir. Eu estou só e tu só estás e não há mais nada. Vou beber até um pouco mais tarde deitar-me para dormir. E dormir sem que perceba. Quando eu acordar tudo será melhor. Espero, um dia, poder morrer desta forma. Com uma leve memória do teu corpo apertado ao meu. Com o teu perfume a envolver-me. Beber no final de uma tarde de verão, esticar-me na cama de um hotel qualquer, num sítio onde ninguém me conheça, cair no sono, e nunca mais acordar.

Este movimento de levantar o copo tem um ritmo próprio. O álcool esfaqueia as palavras. Solta víboras na língua. Eu quero dizer-te a verdade. A ti que me deste força. A ti que me mostraste a simplicidade. A ti que nada me pedias. Nada mais. Apenas felicidade. Apenas felicidade. A ti que com a dança dos teus olhos me inebriavas. A ti que transformaste as paisagens. Transformaste as noites. Transformaste os dias. Transformaste o mundo. Queria ter te dito que nunca te deixei de amar. Que nunca deixarei de te amar. Mas não consegui. Quero agora dizer-te que não tenho medo de morrer. Quero dizer-te que me assusto comigo. Que te deixei porque me assusto comigo.

Um qualquer momento que se guarda numa gaveta da memória. Antes gostava de espreitar o amor nos teus olhos escuros. Mas quando eu fugi tu foste água. Ninguém sabe o que nós fomos. Um golpe de perfeição? Como pude eu ignorar as feridas? Eu prometi que não te magoava. Disse-te naquela tarde perfeita que te iria amar para sempre. E era mesmo para sempre. Mas algo mudou. A espaços deixei de nos ver. Deixei de me ver tão perto de ti. A espaços procurei a minha voz e deixei de a sentir. E o que foi que mudou? O que deixou de existir entre nós? E o que significa “para sempre”? Eu estou só e tu só estás e não há nada que se possa fazer contra isso.

A empregada no bar solta um sorriso fugaz que parece reanimar-me. Olho para os seus lábios de cor vermelha. E é isto que me assusta em mim. Esta falsa ilusão de limpar uma ferida aberta com outros lábios. Imagino-a nua. As hipóteses de tentar limpar esta ferida aumentam a cada momento que ela devolve mais um sorriso. E nós? Eu estou só e tu só estás. As nossas hipóteses de resultar foram sempre poucas. Mas sabes que a perda resultante do meu desaparecimento será nenhuma. Não existe nenhuma razão concreta, para além de me assustar comigo, para te ter deixado sem voltarmos a falar. Não tenho qualquer intenção em responder aos teus telefonemas. A única coisa importante para mim é que te quero com todo o meu coração. Lembro-me dos teus olhos sempre em admiração permanente. Agora sei que não foi uma questão de escolha. Foi aquilo que tinha que acontecer. O silêncio que encheu o nosso palácio murchou todas as flores. Perderam-se todas as palavras. Perdemo-nos. Perdi-me.

Os peixes dourados continuam a nadar. Vejo o reflexo dos lábios da empregada no aquário. Não podemos definir as coisas que acontecem. Nada disto foi planeado. Não podemos deixar o amor crescer. É sempre mais difícil cortar os laços quando se ama. O que eu tenho medo é de que a realidade retire o melhor de mim. De que a realidade me deixe para trás. Estava tudo pronto. Eu estava emocionalmente bem preparado. Iria deixar o apartamento e não olhar mais para trás. Esquecer que existes. Esquecer que existimos. Embarcar numa viagem. Mas a viagem trouxe-me aqui e aqui a existência é uma espiral.

Há quantos dias estou neste hotel? Neste bar? Há quantos dias te deixei? Naquele dia todas as lojas estavam fechadas. As ruas tinham menos pessoas. Quase não havia carros. A única coisa que aumentou foi o silêncio. Andei e andei sem decidir para onde ia. Quis perder o controle. Quis perder-me numa cidade desconhecida. É este, na verdade, o mundo real? Se não é, então onde podemos encontrar a realidade? Não sei onde posso mais procurar. Eu não tenho medo de morrer. Podia morrer aqui neste bar ensombrecido. Lembro-me da primeira vez que as tuas mãos apertaram as minhas. Pareciam possuir uma força maior do que aquela que calculei possuíres. Apertaste-as com a alma. Uma energia escondida dentro de ti. Tu és forte. Mais forte que eu. Eu assusto-me mas tu tinhas a sabedoria de minimizar as feridas.

Na televisão a apresentadora do noticiário da noite fala sobre um estranho caso. A empregada aumenta o som. “Após dois dias de buscas intensivas e complicadas devido ao nevoeiro, foi encontrado, em muitos maus tratos, o corpo da jovem que terá eventualmente saltado da ponte. O seu abdómen aberto, o rosto desfigurado, a caixa torácica desfeita. Ao que tudo indica e após autópsia preliminar a jovem estaria grávida mas não lhe foi encontrado qualquer feto dentro se si. A polícia acredita que ela tenha morrido durante a queda. No entanto existem imensas contradições neste caso. O facto de ter o abdómen aberto levanta suspeitas de crime embora que não tenha sido encontrada qualquer arma. A polícia está ainda a tentar contactar com o namorado que terá desaparecido há cerca de duas semanas. Desconhece-se se este caso, está relacionado com o feto encontrado na Vila da Taipa.”

24 Fev 2016

Viena

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]exposição que se mostra no Museu de Arte de Macau, com pintura e desenho austríacos do século XIX e XX, vem chamar a atenção para uma cidade com características peculiares – Viena. Quase oriental, quase engolida pelo império otomano, cujos avanços teve de recusar várias vezes, capital de um país de um protagonismo envergonhado é, como poucas, o que se pode chamar uma cidade de cultura.
Tem mais de 100 museus, 70 teatros e 4 casas de ópera, um gigantesco orçamento dedicado às artes e uma tradição musical riquíssima a que se associa Mozart, Haydn e Beethoven, mais tarde Mahler, e os compositores da excitante Segunda Escola de Viena. Escuso-me ao elogio da frivolidade famosa do complexo da opereta e da valsa, mas convido o leitor a procurar o gigantesco programa da temporada de 2015/2016 da Wiener Staatsoper para se entender o que é uma verdadeira cidade – de dimensão média – de cultura.
Muitos outros nomes aparecem associados a Viena, como os de Klimt, Max Oppenheimer, Kokoschka, Hundertwasser ou Egon Schiele, assim como Sigmund Freud e Joseph Breuer, Wittgenstein, Kurt Gödel, Karl Krauss, Stefan Zweig ou Hermann Broch. Da música à literatura, da pintura e da arte performativa à matemática, da filosofia à psicanálise, não há campo do saber e das artes em que os seus habitantes se não tenham distinguido.
Mas é do hipnótico livro de Claude Magris, Danúbio, que extraio uma nostalgia erudita, utilíssima para o conhecimento da zona europeia interior que este rio atravessa, uma zona de contacto entre o mundo germânico e eslavo, sítio de impérios ocidentais e orientais e zona de intenso cruzamento de povos de proveniências muito diversas.
O livro de Magris, cujo original em italiano se publicou em 1986, apresenta-se da seguinte forma: uma viagem de 400 páginas ao longo do Rio Danúbio, desde a sua fonte (fonte de incertezas) até à foz no Mar Negro. Pelos sítios onde passa, Magris seduz-nos com histórias sobre figuras que por lá viveram e histórias que por lá se deram. Referir com justo pormenor a enorme diversidade de assuntos de que se trata no livro do erudito italiano seria fastidioso. Baste notar que das suas reflexões se extrai uma sensual e melancólica imagem do interior da Europa e uma exaltação da monotonia que encontramos em alguma literatura alemã (área de especialização de Magris) do século XIX, por exemplo em Fontane. Não é apenas a política, as guerras, os amores, a geografia, a poesia ou os cafés, mas também uma intensa nostalgia.
O Danúbio, por oposição à ligação que o Reno mantém com a figura germânica de Siegfried, símbolo solar da pureza e da virtude, é o símbolo do Reino de Átila, do reino europeu oriental e internacional, germânico, magiar, eslavo, judeu, mas também grego e otomano.
A data da sua primeira edição precede de 3 anos a da queda do muro de Berlim e as transformações que marcaram desde então a Europa de Leste. Se não contém essa actualização, o livro oferece uma útil última visão da vida na Eslováquia, Bulgária, Roménia ou Hungria durante o fim do período de influência Soviética directa.
Magris dedica muitas páginas a Viena, a primeira das quais a propósito do poeta sem casa que gostava de quartos de hotel e de postais – Peter Altenberg, frequentador das mesas do Café Central (o título do quarto dos nove capítulos do livro) que recebiam, por esta altura também a visita de Trostski, nos anos 80 certamente menos afligido pela insensibilidade do turismo de massas que vitima hoje a capital da Áustria, entre muitas outras cidades.
Nestes espaços barrocos o vienense cumpriria o destino de se saber figurante da grande representação que é a vida e lembrar que “as coisas acontecem do modo que acontecem em parte e principalmente por acaso, e que poderiam perfeitamente acontecer de modo diverso” (uma ideia repetida mais à frente a propósito do economista Schumpeter).
Uma das constantes do livro em questão é a visita a moradas famosas. 19 Kundmanngasse é a da casa construída por Paul Engelmann para Wittgenstein. Outro lugar de visita privilegiada são os cemitérios, como aquele em que está enterrado Schoenberg e onde o autor do livro acompanha, durante uma noite, Herr Baumgartner, uma das três pessoas cuja missão é a de abater, no cemitério, faisões, lebres e coelhos que perturbem a sua apresentação ao público.
Não faltam histórias de valor passional, como a que ligou amorosamente Maria Vetsera ao Príncipe Rudolfo da Áustria e que terminou tragicamente em Mayerling em 1889, uma história que continua a causar interesse e teve versões no cinema. Magris debruça-se especialmente sobre o livro que a mãe da infeliz apaixonada escreveu depois da sua morte, pleno de pormenores macabros e de um desejo férreo de manter o pundonor da família.
Uma história passional a que Magris também dedica umas páginas para o fim do capítulo em que se detém em Viena, é a de Elisabeth da Áustria, prima de Ludwig da Baviera, mais conhecida por Sissi ou Sisi (mãe do Príncipe Rudolfo a que se alude em cima). Mulher de Franz Joseph, morreu também violentamente em 1898, assassinada por um anarquista italiano, depois de uma existência ansiosa e avessa à sexualidade e às crueldades e inconveniências das obrigações de corte. Magris fala da sua poesia e da solidão, nostalgia e reacção contra a corte que desta se desprende.
A dada altura, refere-se que o poeta Wolfgang Schmeltzl compara Viena a Babel porque nela se ouve falar hebraico, grego, latim, alemão, francês, turco, espanhol, boémio, esloveno, italiano, húngaro, holandês, sírio, sérvio, polaco e caldeu.
Difícil seria escapar à menção da ameaça otomana. O autor italiano fá-lo a propósito de uma exposição comemorativa do cerco otomano e batalha de 1683, em sua opinião um dos grandes encontros frontais entre o Oeste e o Este, onde figura menção às tropas otomanas e ao seu gosto pelo fausto em geral mas também às tendas opulentas que albergavam as 1500 concubinas do Grão-Vizir, cuja cabeça, perdida em Belgrado mas posteriormente resgatada, permanece no Museu de História de Viena.
As histórias de Magris são muitas delas histórias de guerra, e a propósito da do cerco muçulmano o autor não deixa de chegar à situação dos gastarbeiter turcos e da sua condição na sociedade alemã dos anos 80, considerações que têm hoje, passados quase 30 anos, uma desconfortável actualidade. Fala de escolas em que praticamente só existem alunos turcos e nenhuns alemães e das fricções que esta situação cria. O parágrafo relevante termina assim: “Our future will depend in part on our ability to prevent the priming of this time-bomb of hatred, and the possibility that new Battles of Vienna will transform brothers into foreigners and enemies”.
O desejo turco por Viena é um desejo que incorpora a ideia de um império que una a componente romana e muçulmana, um desejo não de conquista mas de complementaridade, uma discussão que volta a ter pertinência nos dias correntes.
No Café Landtmann, um intelectual vienense intento em iluminar as relações entre o mundo ocidental e os países de leste chama a atenção para uma palestra que Lukács deu na cave do mesmo café por volta de 1952. Exilado em Viena, cidade por que não nutria particular estima, via-a como a cidade de uma Angst contemporânea, um lugar de falhanços.
Os judeus são uma presença constante na história da capital austríaca* e no livro de Magris, seja através da noção de um povo de extrema adaptabilidade a qualquer lugar, um povo da Lei e do Livro que renasce após a destruição; quer na visita que faz à 7 Gentzgasse onde o historiador, crítico e poeta Egon Friedel se suicidou, atirando-se da janela, antes da chegada da Gestapo; na visita que faz ao velho cemitério judaico, na 9 Seegasse; ou na que dedica à 35 Rembrandstrasse, a casa onde Joseph Roth viveu em 1913, e a propósito de quem aproveita para lembrar uma nota dominante que define Viena e a Mitteleuropa, assim como a obra novelística de Roth – a melancolia. Nas suas palavras a propósito da morada deste refere: “a tristeza dos internatos e dos quartéis, a tristeza da simetria, da efemeridade e do desencanto.”
Também manifestações artísticas contemporâneas de Magris o seduziram o suficiente para sobre elas se debruçar, como a actividade vanguardista do Wiener Gruppe a que, no entanto, não parece estender grande simpatia, ou a história de Anna Augustin, uma criadinha de 14 anos torturada durante um ano e morta pela sua patroa, Josefine Luner, cujos retratos se exibem no Museu do Crime.
19 Berggasse. Noto em Magris um fascínio por moradas. Esta é a de uma casa onde Sigmund Freud viveu e manteve consultório. Nela encontramos de novo a melancolia, a melancolia paternal da existência de um homem gentil assim como o seu amor pela ordem e pela simplicidade.
15 Schwarzpanierstrasse, o local onde até 1904 se erguia a casa onde morreu Beethoven, a mesma onde, na noite de 3 para 4 de Outubro de 1903, Weininger se suicidou com um tiro no coração, o mesmo Otto Weininger de que já aqui se falara nestas páginas a propósito de Geschlecht und Charakter (Sex and Character).

* Freud, Otto Weininger, Mahler, Schoenberg, Karl Krauss, Max Oppenheimer, Hundertwasser, Joseph Breuer, Joseph Roth, Stefan Zweig e Hermann Broch são de origem judaica. Wittgenstein tinha também um ramo judaico na família.

23 Fev 2016

Os primeiros cristãos na China

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo lenda, o Apóstolo S. Tomé teria visitado a China no século I, onde dessa data há pedras gravadas com desenhos em baixos-relevos de histórias bíblicas. Já certo é os cristãos nestorianos, após fugirem da Pérsia, terem chegado à China no ano 635, sendo a sua estadia aprovada pelo Imperador Tai Zong da dinastia Tang, onde ficaram conhecidos com o nome de Jing Qiao, Religião Luminosa.
É importante dizer que China é um país de Filosofia e não de religiões. Viviam os chineses no Dao, quando há cinco mil anos Fu Xi, o primeiro dos chefes ancestrais da China, explicou matematicamente essa Filosofia do Dao Jia, mas foi com Lao Zi e Kong Fu Zi que, ao sistematizarem as suas cosmovisões sobre a Natureza de Dao, dão a teoria filosófica ao quotidiano viver chinês no século VI a.n.E.. Lao Zi, sobre o espírito da vida e Kong Zi, na governação do país, fizeram-se escolas de pensar no Período dos Reinos Combatentes, durante a dinastia Zhou do Leste. Por altura da existência de Lao Zi e Kong Zi (Confúcio) encontrava-se Sidarta Gautama (conhecido na China por Shakyamuni) a filosofar o Ser Humano e percebendo pela meditação que o sofrimento advém do mundo dos desejos, pelas quatro nobres verdades tentou reorientar o Ser Humano para o estar integrado num todo e só pelo Outro se conseguiria ver, realizando-se assim pela não-forma. O Confucionismo filosofando pela ética e moral do Ser Humano, quando pensado em De (Virtude), tentou criar a ordem na sociedade, tal como mais tarde as religiões tiveram necessidade de o fazer.
Com o aparecimento neste país do Budismo no século I, a população chinesa aderiu massivamente a esta religião, já que, pela falta da imagem do Espírito na Filosofia de Dao, o povo nada tinha de concreto para acreditar. Por isso os filósofos chineses, ao perceberem que estavam a perder o suporte dos seus conterrâneos, tiveram que transfigurar a filosofia e reorientá-la em religião. Assim nasceu a única religião proveniente da China, o Dauismo (Dao Jiao), onde se conjugaram imagens budistas para criar um panteão de deuses, expressão das virtudes e seu contrário, de forças mágicas com que os Cinco Elementos lavram o Ser e sem distinção com o mundo, está nesse todo acausal.
Se o Budismo rapidamente se expandira no Oriente, para Ocidente não foi capaz pois, como movimento de solidariedade entre a população pobre, teve a enfrentá-lo o Judaísmo, uma Religião reformada (nessa altura) para a competição e guerra. Por isso, a Filosofia a que Jesus estava ligado, foi com Paulo transformada e no Concílio de Niceia, em 325, a mensagem do Cristianismo criada por S. Paulo ganhou ao Jesus histórico dos Alexandrinos.

Toppen p nestorianska stelen
Toppen p nestorianska stelen

O inquisidor judeu Paulo de Tarso reorientou a figura histórica de Jesus, sem nunca com ele ter privado. Paulo ao encontrar um imenso movimento ecuménico, que começava a pôr em causa as instituições tanto políticas, representadas no Império Romano, como religiosas, onde os sacerdotes com uma hierarquia hereditária se tinham afastado da procura do Verbo para apenas se representarem a si mesmos e vendo o seu poder a desaparecer, tiveram a ideia de, já que nada podiam contra esse movimento ecuménico, reorientá-lo para a religião do Livro e assim conseguir mais crentes, mas sem misturas. Paulo, que nunca conheceu Jesus, ficou encarregue dessa transfiguração. Assim, subvertendo os valores, criou o Cristianismo como meio de pela reencarnação poder criar uma segunda Religião, onde eram colocados os convertidos, já que os não nascidos judeus não poderiam entrar no Judaísmo. Como era preciso unir os infinitos deuses pagãos num Superior, nada melhor do que escrever a Bíblia, partindo da essência do Livro, aditando novos Testamentos para que houvesse referências próximas, na memória – História. (Esta versão do movimento da História das Religiões monoteístas, por não estar de acordo com o que é normalmente transmitido, poderá causar estranheza e mesmo uma certa reacção negativa a quem, como Cristão, nela não se revê, mas creia que a escrevo sem a mínima ponta de provocação, mas sim, como uma possível visão feita pelas leituras e conversas com outras doutrinas cristãs.)

Igreja de S. Tomé

Os Caminhos da Seda, que pela Ásia tinham levado a um contacto, a maior parte indirecto, entre as três Civilizações (Egípcia, Indiana e Chinesa), eram percorridos pelos povos que viviam entre a China e as fronteiras com o Império Romano. Nesses caminhos terrestres e pelas rotas marítimas, muitos viajantes se foram aventurando e enriquecendo através do comércio, assim como, muitos monges budistas aproveitaram e partindo da Índia foram espalhar para Oriente a Filosofia de Buda. Já o Cristianismo saiu do Médio Oriente e avançou sobre o Ocidente, sendo S. Tomé dos poucos missionários que partiu para o Oriente em missão ecuménica para evangelizar.
Nos anos 50 do primeiro século, coube ao Apóstolo S. Tomé pregar o Evangelho no Oriente e saindo de Jerusalém, navegou depois pelo Mar Vermelho em direcção à Índia. No Oceano Índico, veio ter à Ilha de Socotorá, onde uma tormenta o fez encalhar. Sem barco para prosseguir viagem, aqui ficou a converter e baptizar os moradores da ilha, situada à entrada do Mar Vermelho. Após ordenar ministros do culto para que estes cultivassem e sustentassem esta cristandade, embarcou para o estreito da Pérsia onde cristianizou os Partos, Persas e Medos. Descendo depois pelo Mar Arábico rumou para Kerala, naquele tempo Malabar, no Sudoeste da Índia. Luce Boulnois refere: “Segundo uma lenda registada em Edessa, contada por um embaixador indiano que por aí passou a caminho de Roma, S. Tomé, um irmão gémeo de Cristo, também ele carpinteiro, tinha sido comprado por Abbanes, um mercador indiano, por três libras em lingotes de prata. Levado para a Índia ficou ao serviço do rei indiano Gondopharès, a quem S. Tomé de forma miraculosa construiu um palácio, convertendo assim o rei. Pregava o celibato cristão e um príncipe ao sentir que S. Tomé desviava os seus súbditos dos deveres de procriação, mandou-o matar.” “Outra lenda, indiana de Kerala, de Travencore e de Cochin, onde uma comunidade cristã remonta à chegada deste apóstolo fala do desembarque que S. Tomé fez em Malankara, próximo de Cranganore. Aí pregou e baptizou os habitantes locais, onde se construiu sete igrejas e ordenou dois sacerdotes antes de ter partido para Meliapor (Mailapore, actualmente arredores de Madras, hoje chamada Chennai). Em Meliapor, na costa de Coromandel, converteu o rei e o povo e partiu para a China. Depois voltou a Meliapor onde a inveja de brâmanes o teriam apedrejado e trespassado com uma lança.” Morreu no ano de 72, segundo a lenda, em Meliapor, onde foi sepultado.
Se o apóstolo Tomé parece ter sido o primeiro a pregar na Índia, outra das hipóteses é a de o Cristianismo se ter espalhado só posteriormente pela Ásia no Oriente a partir da Pérsia e que o nome de cristãos de S. Tomé provenha do Mâr Tomé, que viveu no século VIII e não do Apóstolo.
O que parecia ter poucas hipóteses de ser uma realidade, a lenda sobre a chegada à China de S. Tomé ganhou uma nova actualidade quando Wang Weifan, mestre estudioso da História do Primitivo Cristianismo assim como de Arte e Cultura Chinesa, ao analisar as pedras em baixo-relevo de dois túmulos da dinastia Han do Leste (25-220) encontradas em Xuzhou, na província de Jiangsu, nelas descobriu representados episódios Bíblicos. Se os estudos provarem que Wang Weifan tem razão, então a chegada do Cristianismo à China recua para o final do século I, quinhentos anos antes do que até hoje se pensava.

Os nestorianos na China

Existiam comunidades cristãs espalhadas pelo Sul da Índia e evangelizadas por S. Tomé quando os nestorianos se espalharam pelas costas do Decão, Índia e pela Ásia Central até à Mongólia. Havia outros reinos cristãos (os monofisistas) situados na Geórgia e Arménia, que se tinham separado da Igreja de Roma no Concílio de Calcedónia em 451.
A primeira referência a nestorianos na China é do ano 552 quando, durante o reinado bizantino do Imperador Justiniano (527-565), dois monges nestorianos persas, que viveram longo tempo na China, daí conseguiram sair com os segredos da produção de seda.
Certo foi os nestorianos terem ficado a viver na China desde a aprovação do Imperador Tai Zong (626-649) no ano de 635, como consta numa estela encontrada perto de Chang’an (Xian) e que actualmente está no Museu da Floresta de Estelas. Foram os padres jesuítas portugueses Álvaro Semedo (1586-1657) e Manuel Dias Júnior (1574-1659) quem traduziram a estela, que se revelou nestoriana e que os precedia mil anos.
Na Memória da Diocese de Macau vem o seguinte: “O célebre monumento syro-sinico de Si-ngan- fú (西安府, Xian fu) descoberto em 1625, e interpretado em linguagem chinesa vulgar pelo missionário jesuíta português P. Manuel Dias, dá claro testemunho da existência do Cristianismo na China, apresentando uma narração sumária da propagação do Evangelho neste país desde o ano de 635 até 781 da nossa era. Efectivamente, em 1625, provavelmente em princípios de Março, foi desenterrada uma grande lápide de pedra, no arrabalde ocidental de Xian, no Shaanxi” que havia sido erigida pelo nestoriano Zazdbozed, do clero secular, natural da cidade de Balk no Turquestão, na reunião anual do Inverno de 780-781, como se vê do final da inscrição nela gravada: “Erigida no segundo ano do período Kien-Chung (781) da grande dinastia Tang, estando o ano em Tso-yo, no sétimo dia do primeiro mês, que foi Domingo”. No topo da lápide está uma cruz, sob a qual foram gravados nove caracteres em três colunas que dizem: “Monumento comemorativo da nobre lei de Ta-Tsin no Império do Meio”. Segundo o texto, Alopen chegou a Si-ngan-fu (Xian) em 635, vindo do país de Ta-Chin (大秦, Daqin era o nome que os chineses davam ao Império Romano) provavelmente a Pérsia; o Imperador Tai-Tsong (太宗, Tai Zong) enviou o seu ministro Fang Huang ling a recebê-lo e conduzi-lo ao palácio e, depois de se convencer da verdade da sua religião, favoreceu a sua propagação e por ordem do mesmo Imperador, foi construído, em 638, um mosteiro nestoriano; outros se construíram no reinado do seu sucessor Kao Tsong (高宗, Gao Zong) (650-683) e Alopen foi promovido a Grande Senhor Espiritual, Protector do Império. A placa de Si-ngan-fu tem gravada uma inscrição com 1780 caracteres”, segundo o Padre Manuel Teixeira.
A História dos Nestorianos teve a sua origem em Antioquia, cidade na actual Turquia. Na Escola de Antioquia formou-se Nestorius, que foi Patriarca de Constantinopla de 428 a 431. Esta Escola advogava a separação das duas Naturezas de Cristo, a humana e a divina, e por consequência consideravam que Maria, a Nossa Senhora, não era Mãe de Deus, mas do Homem, Jesus. Tal ia contra o que os Alexandrinos defendiam. A Igreja de Alexandria era de tradição neo-platónica e fazia a interpretação simbólica da Bíblia, contemplando mais o Verbo Divino do que a humanidade de Cristo. O pensamento grego fundiu-se com a herança da revelação cristã e Cirilo venceu os nestorianos, em 431 no terceiro Concílio em Éfeso, com a tese (monofisista) de que em Cristo há uma só pessoa numa dupla Natureza (humana e divina). Era a Natureza de Cristo que se debatia no Concílio de Éfeso, ao qual Nestório não compareceu, tendo prevalecido a doutrina da Natureza divina de Cristo, defendida pelo Patriarca de Alexandria, S. Cirilo.
Condenado pelo Concílio de Éfeso, o Patriarca de Constantinopla, Nestório foi excomungado em 431 e deposto pelo Imperador exilou-se no Egipto. A sua doutrina expandiu-se para Oriente, de Edessa, os nestorianos daí expulsos fugiram para a Pérsia. Ctesifonte (uma das quatro capitais persas) tornou-se o seu principal centro, que aceitou estes cristãos fugidos do Império Romano. Após Roma ter abraçado a Religião Cristã, na Pérsia os cristãos passaram a ser considerados inimigos e começaram a ser perseguidos. Muitos foram mortos, o que os levou a empreender nova viagem para mais longe, passando a Igreja do Oriente para a Índia e pelos países da Ásia Central, chegaram ao Extremo Oriente.
Vivia o Nestorianismo (Jing Qiao) na China há mais de dois séculos quando, a 30 de Setembro de 845, por decreto do Imperador Wu Zong da dinastia Tang foram proscritas no país as religiões estrangeiras. Tal se deveu sobretudo aos templos budistas serem detentores de imensas fortunas, quando os cofres do Estado estavam na penúria. Já os cristãos nestorianos, referenciados na estela do século VIII enterrada pouco depois do Decreto de proibição das religiões, viram-se forçados a fugir para as estepes do Norte, juntando-se a algumas tribos mongóis que, por volta do ano mil foram por eles convertidas. As tribos mongóis foram unificadas por Gengis Khan e mais tarde tomaram o poder na China, como dinastia Yuan. Os irmãos Polo encontraram-se com nestorianos quando chegaram em comércio ao reino dos mongóis. Uma pedra com o nome de quatro monges nestorianos, encontrada no templo budista Yunju, no distrito de Fangshan, subúrbios de Beijing comprova a sua estadia aí, assim como um documento árabe que fala de dois monges vindos de Beijing que chegaram à Pérsia em 1275.
As comunidades de nestorianos desapareciam rapidamente das costas indianas, substituídas pelas dos muçulmanos. Nos finais do século XIII, quando a paz foi restabelecida com Roma, já os nestorianos estavam a sucumbir, atacados pelo Islamismo, assim como as igrejas nestorianas na Síria e Pérsia. No entanto continuaram a existir comunidades na Índia e China até ao século XVI.

19 Fev 2016

Nem em dia, nem em dia nenhum

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u pequenina e sempre com otites. Mais tarde amigdalites. Antes chorava muito, depois era tudo mais subtil e estóico, até aparecerem gânglios visíveis, febre. Assim. Numa dessas, entra-me a minha mãe abruptamente em casa de enfermeira amiga em punho, para as terríficas injecções de penicilina. Terror. Gritos. Eu, ínfima no canto mais oposto do quarto: puta, puta…Eu sabia que era uma ofensa terrível, já então. Mais tarde comecei a pensar que qualquer pessoa tem o direito de vender o que tiver e lhe pertencer. Mesmo a alma. Tudo limpo, visível. Quanto a palavrões, palavras grossas, sempre fui púdica e reservada. Mas só a partir daí. A percentagem dos que disse, mesmo para mim, situa-se claramente na segunda metade da última década. Quando a demência próxima me começou a impregnar de desespero e revolta acima de qualquer tempo ou medida. Ou quando dei a mim mesma o direito de desconstruir, desabafar, destruir o que me consome. Mas ali, era no fundo também o desespero inglório e impotente, face ao poder inevitável. De manusear a agulha. E para bem da infecção. Ainda hoje sou assim com tratamentos de choque. Eu queria mimos e que ela me dissesse, dança que vai passar. Que me desse um beijinho para passar. O beijinho para mim e a agulha para o resto. Talvez um sorriso de uma, da outra, ou de ambas. Mas a enfermeira era impenetrável e só queria apertar o êmbolo e ir à sua vida. Claro que essa enfermeira ficou para sempre uma personagem a evitar. Eu, muito pequenina, sem saber como contornar o orgulho e a vergonha. Os dois. E a ofensa. A dela e a minha. E depois a história do cão. Ou antes. Não sei.. Mas acho que foi depois. Nós tínhamos um cão, ela tinha um filho. Os dois cruzaram-se no azar de uma escada e do mau feitio do bichinho. Que de soslaio, fitou de cabeça baixa e pensamentos insondáveis, à passagem do que descia e dos que subiam, num encontro de acaso, em que só um degrau em comum e patas acima, pernas abaixo, se cruzaram dois indivíduos pequenos e de espécies diferentes. Acabou na contracção da mandíbula de um na canela de outro. Jesus… E porque a raiva, isto. E porque as vacinas contra a raiva, aquilo. E vacinas em dia não havia. Nem em dia, nem em dia nenhum. Nunca houvera. O cabo dos trabalhos e o currículo a avolumar. O meu, o da enfermeira, o do cão, o do miúdo abocanhado. Santo Deus. Não era raiva. Era só um mau feitio aleatório. E o desconforto a aumentar. É assim às vezes, com as pessoas.
Peugeot, foi o primeiro carro que tivemos, lindo de morrer, nos anos sessenta. Vindo dos cinquenta, finais de quarenta. 203. Em segunda mão e mesmo à época já um carro quase démodé. Primeiro negro e depois cinza azulado ou vice- versa. Estacionado à frente da casa de tios do lado paterno. Ou em frente, mas do outro lado da estrada, da casa de tios do lado materno. O que vai dar ao mesmo. E em fundo, Beatles. A minha música de infância. Ouvida na rádio. E a rádio em todos os lugares, em pano de fundo. A ninhada era de meia dúzia mas aquele mais peludo, ruivo e um pouco frisadinho, uma raposinha minúscula, foi connosco no carro e para casa. Vindo de casa dos tios paternos e baptizado com o nome do carro novo, que é como quem diz, pelos tios maternos. Como se sintetizam dois ramos de familiares, um cão, um carro, e os Beatles. E, assim de mansinho e de caminho, falar da tia Angélica. Essa tia que tinha uma cadela e uma ninhada de meia dúzia de rafeirinhos, entre os quais escolhi o mais peludo. E um marido violento, e três filhos, e casas pequeninas, e mais tarde vários netos. Lindos de vários tons. Uma sibila pequenina que falava com cães, gatos, passarinhos e anjos. Na verdade acho que falava com tudo o que existia e não existia. E nem era que falasse muito. Vida sofrida. Mas sempre um fundo de riso por detrás dos olhos. E nas comissuras da boca. Alguma ironia. Sibilina, lembro-me. Mas de uma enorme ternura. Só muitos anos depois me dei racionalmente conta de como era condizente com o nome que tinha. Na altura só sentia. Quando deixei de lhe ouvir o nome como tal, de sonoridade metálica, e lhe reparei na força da adjectivação. E o encantamento com que a lembro desde que partiu, fechou-se num círculo doce e perfeito.19216P16T1
E ficou Peugeot. Assim. Durante anos não sabia como lhe escrever o nome nas cartas para África, que na versão dita pelo tio, não soava ao que dizia. E mais tarde fincou o miúdo. E aterrorizava de morte o meu amigo Tó-Jó do andar de baixo. O que tornava a circulação difícil no prédio, com cenas emotivas e a porta fechar-se com força para descermos. Mais folclore que realidade. E o contacto físico nunca se deu, afinal. E havia pouco depois um gato da mesma cor e também com malhinhas brancas. E eram amigos de infância, e passavam ambos os dias a espreitar a rua em cima de um banco de marceneiro do avô que vivia na varanda. O banco. Ambos com as patinhas na balaustrada de mármore da varanda das traseiras, poucos centímetros acima do dito banco, e um dia caíram do terceiro andar. Um dia, um, outro dia qualquer, sem nada a ver, o outro. O gato não voltou. O cão, por entre gritos de transeuntes, este cão parece que caiu daí de cima…pois, não seria do céu, estarrecido do voo, encharcado como se saído do banho – os nervos – de cabeça baixa, queixo esfolado e aquele seu ar meio zangado meio infantil, deu a volta ao quarteirão a correr e veio para casa.
E o que haja de filosófico aqui, nada. Ou talvez só a queda dos bichos. Do terceiro andar. Não do céu. Não como revelação ou descida aos infernos. Mas queda no mundo, talvez não a do gato. Fuga ou distracção. Uma gata gira que passou em baixo, a natureza e o apelo. E a do cão, não sei foi queda também. Talvez se tenha atirado ou caído. De fúria. Que tinha mau feitio. Um caiu e não voltou. O outro caiu e voltou. Por razões que se prendem com as razões que os fizeram cair ou mergulhar e que nunca se saberão. Como do café com leite na caneca da manhã, nunca se saberá se quer ser bebido, e sabendo-se que a questão não se coloca porque não se trata de um ser mas de uma coisa sem atributos ontológicos, reflexo na sua existência material e só, da vontade que é minha, poupa-se grandes dilemas. Até aí. Daí para a frente no dia, é difícil não adoptar a posição do outro lado do espelho. E nessa altura, por isso paradigmática ainda não encetara esta obsessão por entender as coisas. Este enorme porquê que me invade a alma e me ocupa sem produto que valha a pena. Até àquele dia em que me caiu a ideia de morte em cima. Uma noite. De aniversário. E tudo se desfez num rumo de altos e baixos em função dessa noção implícita, umas vezes, explícita e avassaladora, de outras.
O que é esta realidade que procuro entender exaustivamente, para além dos factos? Factos, acontecimentos que sabem bem ou que fazem mal. Factos, como interruptores de sentimentos, mas que parecem estar ligados a circuitos errados. Os interruptores e os sentimentos, diferentes circuitos. Sempre. Não ligam e desligam senão a emoção certa, que é contrária aos sentimentos ou de sinal oposto. Por vezes. Ou ao querer. Começa a doer esta possibilidade de leitura por camadas, sentidos, interpretações e causas. Os porquês que atormentam para além da simples verificação dos factos objectivos, escorreitos e inequívocos.
Factos, deixei que ter vontade de passear o meu cão. Moí-me de remorsos pelos anos fora. Hoje, como gostaria de ter um cão que pelas suas necessidades básicas me arrastasse todos os dias naquelas longas caminhadas que me fazem bem à alma. Para despoluir de tantas ideias. De tantas palavras.
E depois, há a questão dos sonhos. Ao longo da vida sonhei deveras comovida que voltava. Ele. Perdido um dia mais do que outros nas ruas, e que não voltou. Mas voltou em sonhos muitas vezes. E é isso que os sonhos têm de diferente das fantasias. É que mesmo por dentro da ficção do sonho, sabe-se que um cão não volta passados vinte, trinta anos. Não volta passados quarenta anos. Um dia passou a colocar-se, em termos oníricos a sensação difusa de uma camada de realidade, se nos sonhos se pode chamar-lhe isso Sabe-se isso no sonho embora ele esteja ali, a voltar dos confins da memória, do remorso e das ruas. Porque um dia se deixou de ter paciência para o acompanhar à rua. E ele ia e vinha. Ia e vinha. Ia e vinha, e demorava numa volta cada vez mais larga, talvez a descobrir mundo. E ia e vinha e ia e vinha. E um dia não veio. Só voltou, bem mais tarde em sonhos.

19 Fev 2016

O fim de um mundo

Pires, José Cardoso, O Delfim, Moraes Editores, Lisboa, 1978.
Descritores: Literatura, Romance, Mudança, Contraste, 362, [1] p.:19 cm.

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

A 2 de Outubro de 1925, nasceu José Cardoso Pires em São João do Peso, no concelho de Vila de Rei, na parte beirã do Pinhal. Frequentou o Liceu Camões e a Faculdade de Ciências onde, porém, nunca se viria a formar em Matemáticas. Em 1945 alistou-se na Marinha Mercante, mas também não foi muito bem sucedido nesta actividade tendo acabado por se tornar jornalista. A dada altura tornou-se director das Edições Artísticas Fólio onde promoveu alguns escritores nacionais e estrangeiros que marcaram a literatura do século XX. O Delfim publicado e republicado em 1968 é geralmente considerado a sua obra-prima. Faleceu em 1998 e repousa no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Do conjunto da sua obra destaco a novela O Anjo Ancorado de 1958, o ensaio de 1960 intitulado A Cartilha do Marialva, O romance O Hóspede de Job de 1963, em homenagem ao irmão falecido em acidente de aviação militar, o livro de crónicas na antecâmara da morte De Profundis, Valsa Lenta e finalmente o aclamado romance A Balada da Praia dos Cães de1982.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s personagens do Delfim sendo personagens de ficção e podendo ser tidas em conta por arquétipos sociais de um mundo que desapareceu ou estaria à época em vias de desaparecer, a verdade é que existiam mesmo e continuaram a existir, num país que demorou a abandonar os valores de uma cultura pré capitalista e pré moderna. Possuíam uma existência anacrónica, se pensássemos nos estereótipos sociais da capital, mas não era necessário andar muito em qualquer direcção para encontrarmos os Palma Bravo deste (daquele) país à sombra de privilégios de Antigo Regime mas sobretudo gozando de estatutos completamente desajustados do seu tempo, no entanto em Portugal plenamente vigentes ainda. Eu diria que subsistiram muito para lá da industrialização e das alterações jurídicas e políticas contemporâneas. Fala-se, a propósito desta gente, de fidalgotes e marialvas, quando em boa verdade o que melhor lhes assenta é o estatuto de caciques. A província portuguesa que começava quase logo às portas de Lisboa, mas que se adensava à medida que nos afastávamos da capital mantinha uma rede de relações de poder e formas de mentalidade e cultura inerentes, típicas das sociedades de ordens e de potlach, como se o tempo não tivesse passado por elas. E não era necessário mergulhar no país profundo do interior e do norte. Ele mantinha-se resistente mesmo em cidades de escala média. Não havia em Portugal vila ou cidade que não possuísse famílias como sendo o equivalente dos Palma Bravo. Mesmo, e a título de exemplo, em cidades como Coimbra que contudo era uma das maiores cidades universitárias do país. De facto esta cidade, e não esquecer que a dou a título de exemplo, ainda na segunda metade do século XX se mantinha organizada no seu tecido urbano em castas, suportadas estas por formas de convivialidade que salvaguardavam formas de tratamento, estatuto social e protocolo, típicos de antigo regime. Portugal era ainda um país de coutadas com um peso significativo de esferas privadas em detrimento de uma vida pública cosmopolita, democrática e moderna. No entanto o caciquismo, o potlach, os privilégios, as desigualdades não constituíam uma tara, qualquer coisa como uma excrescência paradoxal numa realidade outra. Eles estavam, de facto, enquadrados por formas de vida, de cultura e de mentalidade absolutamente afins, e eram normais e dominantes na maior parte dos casos. No Delfim a figura do engenheiro ou infante simboliza muito bem e encarna na perfeição a sobrevivência de uma mentalidade de antigo regime: o orgulho, o complexo de superioridade relativamente ao povo que no entanto é olhado sempre através de uma sentimentalidade paternalista e magnânima. É assim a cultura do potlach, é assim o aristocratismo serôdio do caciquismo. O antigo regime persistente mantém os valores antigos, mas já lhes falta garbo e coragem.
E uma das explicações, talvez a mais consistente é a de que o regime que resultou do golpe de estado de 1926, cristalizado depois no Estado Novo e na constituição de 1933, regime impropriamente designado por fascista, apostou num conservadorismo arcaizante e na manutenção de uma ideia de estaticismo social, determinado em larga medida pelo medo das transformações sociais que no caso da vizinha Espanha iriam conduzir a uma terrível guerra civil. O regime salazarista foi essencialmente um regime atávico, medíocre, conservador e mesquinho, ao qual sempre faltou o sentido do risco e a grandeza do desafio e do perigo. Por isso o narrador não lamenta o colapso deste mundo, pois para ele esse mundo é já obsoleto e já insignificante. Todos os valores continuam como se nada tivesse acontecido, mas agora sob uma forma caricatural e quase obscena.
José Cardoso Pires instala-se nesta realidade em mutação, em estado final, segundo um modelo de transformação estrutural a que não será alheia a transformação conjuntural do regime, do salazarismo para o marcelismo, com as suas pequenas grandes reformas. O romance é contudo mais premonitório que realista e sobretudo através das suas micronarrativas ideológicas onde se confrontam dois mundos o que é mostrado através do olhar irónico, do escritor urbano, culto e progressista, é o mundo, baseado em preconceitos, da Gafeira. Muitos intelectuais progressistas e urbanos entretinham este tipo de relações com o mundo rural, através de laços familiares ou de relações de amizade e podiam portanto exercitar sentimentos críticos, contudo não radicais e almofadados sempre por um desencanto suave. E muitas vezes eram práticas como a caça que permitiam estas fugas de uma realidade, ela também pouco satisfatória, para estes guetos parados no tempo. O espectáculo de um mundo em declínio que procura agarrar-se a pedaços de retórica ideológica e axiológica, sobretudo moral, explorando em desespero as contradições inerentes ao progresso, é porém um dado da nossa cultura pós-moderna. “O Delfim é o romance de um mundo que terminou, e cujo anacronismo levou à desintegração de tudo, até do discurso do narrador, e isso é uma característica do pós-modernismo”. (Seleste Michels da Rosa).
Eu diria antes, de um mundo que estrebuchava, por não terminar e que no caso português durou ainda algum tempo até se desintegrar por completo. Só apenas a título de pista sociológica de trabalho, eu penso que mais do que a acção política e as transformações económicas, foi o complexo fenómeno da emigração em massa que, alterando de forma radical a estrutura social do mundo rural, apressou o fim desse caciquismo que sabia tão bem tirar partido do poder que resultava da pobreza e da miséria cristalizados em relações pessoais de dependência e subserviência.

18 Fev 2016

Heroínas e outras estórias

* Julie O’yang


[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a sequência do meu trabalho como romancista e argumentista, nestes últimos tempos tenho lido bastante sobre a temática das “heroínas”. Um estudo recente revela que de 1989 a 1999 – a década do “renascimento” da Disney – os filmes de princesas são estranhamente dominados pelas personagens masculinas. Para além da heroína, não existem praticamente mais personagens femininas poderosas, respeitadas, úteis, ou com sentido de humor. Passo a citar: “Na Pequena Sereia os homens falam durante 68% do filme; na Bela e o Monstro 71% ; no Aladino 90% ; na Pocahontas 76% e, finalmente, em Mulan, 77% do “tempo de antena” vai para as personagens masculinas. Na versão da Disney de Mulan, que conta a história de uma jovem chinesa, os homens dominam mais de três quartos dos diálogos, mesmo quando ela está disfarçada de homem. Por isso, todos os “tipos” passam a perna à heroína, o que não devia ser permitido. E será que estes filmes são mesmo recomendados para meninas?
A Balada de Mulan (木兰辞) circulou na China durante o período das dinastias do Norte e do Sul (420–589 AD). Nesta popular balada yuefu em14 cantos, , Mulan é descrita como uma rapariga comum que, em circunstâncias extraordinárias, se subleva para poupar o pai às agruras da guerra contra os bárbaros, que habitavam territórios para lá da Muralha da China. Qualquer rapariguinha chinesa conhece as famosas palavras de Mulan: “As patas da lebre macho levantam-se e saltam, O olhar da lebre fêmea é sombrio e esquivo. / Duas lebres saltam lado a lado, perto do chão, / Quem pode dizer qual é ela ou qual é ele?” Em Mulan existe, provavelmente, o primeiro registo conhecido de uma jovem travestida de rapaz a salvar toda uma nação. A China antiga deveria ser um local fantástico para se viver, com espaço para a diferença !
Não sei se Mulan foi ou não baseada em factos reais, mas pessoalmente acredito que a imaginação é a única arma capaz de proteger a liberdade. Já agora, gostava de vos convidar a subir para o dorso do cavalo de Mulan e, num galope, virem comigo a Taiwan, conhecer a tímida Tsai Ing-Wen que, recentemente, chamou a atenção do mundo ao tornar-se a primeira mulher Presidente de Taiwan. Passamos a dar a palavra a uma mulher que subiu a pulso na primeira democracia do universo cultural chinês. Dêem um passo atrás e observem!

Tsai Ing-Wen, 蔡英文nascida em 1956 é uma política de Taiwan e a primeira mulher a ser eleita Presidente da República da China < https://www.youtube.com/watch?v=BGKX9cVUUsA>. É também o primeiro Presidente de origem Hakka e Aborígene, o primeiro Presidente solteiro e o primeiro que nunca tinha sido anteriormente eleito para nenhum cargo político. Tornou-se a primeira Chefe de Estado de um país do Este asiático, sem qualquer ligação a antigos Presidentes.

O que é Taiwan?

A primeira coisa que é necessário fazer, quando se trata de realçar a importância de um país, é preservar a sua identidade, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista cultural. Uma visão correcta implica ser cuidadoso com os meios que temos ao nosso alcance – sem nunca nos separarmos deles. A identidade cultural de Taiwan não é folclore para turistas. Também não passa por embarcarmos em ideologias erradas. Quero ver Taiwan como um presente que ofereço ao meu povo e a mim própria!
Criámos uma democracia com o nosso próprio esforço – a primeira nesta região – o que quer dizer que não existem outros exemplos para nos guiar, o que pode ser simultaneamente libertador e limitativo. Significa que o povo de Taiwan vai construindo uma democracia internamente, e não para satisfazer exigências e pressões externas. Crescer em Taiwan fez-me acreditar que todas as coisas partem de dentro de nós!

Como vê o equilíbrio entre a RPC e Taiwan?
Taiwan é independente, mas a ligação ao passado não pode ser ignorada. O povo deu-me, enquanto Chefe de Estado, o poder de “desenhar” o futuro, baseado em novos valores. Quero assumir até ao limite a responsabilidade pelas nossas acções e afirmar a democracia que criámos como uma ideia única e coerente. Enquanto mulher e profissional, a independência é tudo o que me interessa. Como advogada e cidadã, assisti a muita injustiça e vi muita corrupção. A ficção é uma forma de endireitar o mundo, mas eu não quero que a democracia em Taiwan seja fictícia. Taiwan está confiante porque é real.

Como quer que os Taiwaneses se sintam quando falam de Taiwan ?
Para mim a simples sonoridade de “Taiwan” é a expressão de nós próprios. Sendo a Democracia um organismo vivo, iremos enfrentar inevitavelmente problemas complicados e dores de crescimento. Quero que as pessoas sintam e reflictam sobre quem são. Não podemos ser verdadeiramente livres se não pensarmos quem somos. Por vezes é necessário que nos sintamos desconfortáveis e estranhos. Torna-nos conscientes da nossa existência e reafirma o nosso relacionamento com a sociedade em que nos inserimos. A liberdade é assustadora, mas de facto trata-se de qualquer coisa mais profunda, um pavor solidamente enraizado na cultura chinesa e no seu povo.

E quanto ao tabu da mulher auto-suficiente no universo chinês ?
Na medida em que estou a fazer algo que nunca tinha sido feito, estou à vontade.

O que é a democracia?

Eu penso que, à semelhança da beleza, a democracia deve criar entusiasmo!

Termino a minha primeira “Ordem do Dia” com uma chamada de atenção para o trabalho da artista Fan Xiaoyan e as suas esculturas provocadoras. As esculturas representam humanóides femininos e estiveram em exposição num Festival de Arte na Coreia há alguns anos atrás, causando grande impacto.
Desta vez Fan Xiaoyan apresenta “Sou Yugong”, baseado numa antiga fábula chinesa sobre um velho louco chamado Yugong que removeu duas grandes montanhas da frente da sua porta de sua casa. É uma história sobre fé e força de vontade. Tenho orgulho em ti, Taiwan! Vamos fazer-lhe uma entrevista a sério em breve!

Fan Xiaoyan art photo
Em: Fan Xiaoyan, I’m Yugong

17 Fev 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa?

* José Drummond

[dropcap style=’circle’]1[/dropcap]. Ela

Não estás só. Mesmo que os dias cruéis nos separem. Mesmo que o aperto dos minutos nos tenha abreviado os encontros. Mesmo que nunca mais te tenha visto. Mesmo que as mãos trémulas se separem de nossos corpos. Não estás só. Mesmo que te não olhe, te não escute, te não aspire. Não estás só nem eu só estou. Apenas a memória resta. A memória amante. E os seus calabouços permanecem. Encarcerando tudo aquilo que não compreendo. Tudo aquilo que se quedou numa promessa. Não estás só e eu só não estou. Porque sei que todas os atalhos do pensamento nos unem. Apesar de tudo. Apesar de todas as minhas simuladas conquistas. Não estás só e eu nada percebo. Nada percebo deste mundo. Nem sequer uma coisa só. Não estás só e eu só não estou mas apesar disso todas as fontes desaguam em ti.

As cortinas de renda branca cobrem as janelas do apartamento com vista para o rio. O apartamento que escolhemos para viver. Mas a vista de pouco vale. O nevoeiro, denso, não permite perceber a hora da manhã. Talvez um outro nascer de dia. Talvez um sopro de verão. Talvez um outro amor possa florir no meu coração. Mas isso não parece possível com este nevoeiro. Eu só não estou mas o céu apresenta-se assim desde aquela manhã em que desapareceste. E eu nada vejo. Nada mais que uma luz viúva, cansada, estranhamente enferma.

Foste-te e contigo foram todos os espelhos. Contigo esta casa esvaziou-se. Contigo as imagens desapareceram. Existe apenas esta cama onde fomos felizes. Existe apenas aquela cadeira onde um dia me disseste que me irias amar para sempre. Mas nenhum espelho. O tempo passa e eu não sei se existe mundo lá fora. Nenhum espelho de nós. Nenhum espelho de mim. Deixo-me cair naquela cadeira. Uma vez por outra. E é uma cadeira grande. Imito-te. Descanso o queixo na mão e repito as tuas palavras. Mas já não sei as palavras correctas. De cada vez que te imito acrescento ou modifico algo.

Descanso o queixo na mão e repito as tuas palavras. Mas não as digo. Ouço-as. Ecoam em mim e fazem-me estremecer. Sinto os olhos encovados, como os teus. Sinto o pescoço mais enrugado, como o teu. Sinto os lábios sem cor, como os teus. Sinto as pontas das tuas sobrancelhas na minha cara. E, de cada vez que te imito, sinto desistir. De cada vez que te imito deixo de existir. De cada vez que te imito quero ser como tu. E penso se será possível desistir desta luta contra a gravidade da memória. E quero saber sobre quem está no caminho mais curto para o inferno.

Talvez a eficiência do meu sistema circulatório esteja a diminuir. Talvez o meu coração seja preguiçoso. Talvez. Mas não tenho espelhos para me ver. Contigo foram todos os espelhos. Agora recordo-me de como a tua pele mostrava bem a tua idade. Cheia de riscos e manchas. Naquela manhã em que desapareceste, na última vez que olhei para ti, vi um homem envelhecido. Agora, que perdi os dias em que te foste embora, isso já não parece incomodar-me. Agora a fadiga sou eu. Agora não tenho aparência para manter. Agora eu sou tu e o envelhecimento é meu. E pergunto se será este o dia do julgamento.

Tenho que sair deste labirinto. Tenho que sair desta casa esvaziada. Sei que saio mas nunca me lembro como. Sigo até à ponte. Talvez se atravessar o rio. Talvez se desaparecer como tu. Talvez se me esconder no denso nevoeiro que não deixa ver o outro lado. Uma lágrima. Como assassinar a louca com o diabo? Olho de soslaio para o rio. Imagino-lhe um tom arroxeado mas na realidade não se vê nada. Apenas este nevoeiro desde aquela manhã. Quantos dias passaram? O que aconteceria se agora, de repente, eu decidisse saltar a meio da ponte? Iria alguém encontrar esta bolsa que me deste no meu aniversário?

Desapareceste. Disseste que ias ter com amigos. Eu sabia que não era verdade. Que não ias ter com amigos. Mas tu não tens amigos. Tínhamo-nos aos dois e bastava. Senti a tua mentira. Foi a primeira vez que senti mentires-me. Agora não sei se me tinhas mentido antes. Disseste que tinhas que pensar. Eu quis acreditar. À noite telefonei-te e não respondeste. E liguei todos os dias e todas as noites depois. E não respondeste. Liguei ininterruptamente. E não respondeste.

O que valeria agora um salto da ponte? Imagino o piquete da polícia a parar o trânsito. Imagino os fotógrafos dos jornais. Imagino a notícia, “Jovem salta para a morte por razões desconhecidas”. Quantas mulheres saltam para a morte por razões desconhecidas? E quantas mulheres são assassinadas? E se fosse um homicídio? Iria a polícia isolar a área? Iria a polícia fazer um relatório? Serei eu digna de uma investigação? E se não me encontrarem identificação irão perceber que tenho trinta anos? Imagino a voz das notícias no noticiário da noite na televisão. “Ontem de manhã a polícia recebeu um telefonema de uma testemunha que viu uma jovem a actuar de modo estranho na ponte. Quando a polícia chegou ao lugar não foi possível encontrar o corpo. Apenas uma bolsa.”

16 Fev 2016

A culpa e o macaco

[dropcap]E[/dropcap] assim entrou o ano do Macaco, saltando de liana em liana, com o destempero que se lhe reconhece. Ano de macacadas, de simiescas caretas e roletas do azar a girar sem descanso, é isso que Macau deseja ou, sinceramente, espera. Que volte a excessiva fortuna, a do facilitismo, a mesma que vai sempre para os mesmos e nunca para os outros. A fortuna que caía desse céu a que chamam corrupção e que foi uma excelente casca de banana para ver escorregar os poderosos que nela depositaram as suas apostas.

Aqui temos pois o perigoso Macaco de Fogo, animal-rei na mitologia chinesa, capaz destas e demais magias, senhor das artes e dos mistérios. Nosso primo direitíssimo, desde Darwin; parte constitutiva do Homem, na “Peregrinação ao Oeste”, o macaco incomoda, chateia e assusta. Talvez pela sua proximidade na cadeia evolutiva e por nos lembrar a desagradável realidade de sermos mesmo animais. E, atendendo às últimas décadas, cada vez menos racionais, sobretudo enquanto espécie.

Certo é que aqui por Macau todos têm a certeza de que cada macaco continuará no seu galho, que isto de igualdades é muito bonito mas é lá no continente. Aqui na RAEM, mandam os que cá estão, espera o macaco folião do ramo dourado. Quanto à primalhada que por aí anda, que se amanhe e coma cascas que as bananas estão pela hora da sorte. Ou seja, é só de vez em quando. Já se viu, ainda agora quando do chumbo da Lei Sindical, que a RAEM é uma árvore muito complicada: os macacos de cima tudo fazem para não deixar trepar os macacos de baixo, sem perceberem que na selva agora prima outra lei. Enfim, os macacos de cima têm um legítimo medo de brincadeiras pois sabem que foi a brincar, a brincar, que o macaco tomou liberdades desajustadas ao normal fluir da vida em família e sociedade.

Quer essa macacada que para aí anda ter direitos?! Isso é que era bom: isto não é uma república das bananas! Aqui mandam os mandões e os outros são seres da margem, que andam à volta da mesa farta, em ânsia de migalhas. As macacas também não julguem põem a pata em ramo verde que a coisa não está para modernices. “Se os deixassem, acabávamos todos como os bonobos, numa rebaldaria daquelas que são tão antigas que já ninguém se lembra”, revelam os macacos de bem, em tom professoral. E o bando aquiesce, envergonhado da ousadia que vai contra a harmonia.

*

Rimemos pois ficarão as vacas, depois de se irem os bois:

Cuidado, contudo, cuidado, que o macaco não é de confiança. Por vezes diz que canta mas, afinal, dança. Doutras diz que é adulto, portando-se como criança. É assim a macacagem: confunde estupidez com coragem e casino com lavagem. Nada que nos afecte ou mesmo que nos inquiete. Que nos tire o caro pão ou cause aflição. Não. O macaco é boa gente, assim como nós, e também mente. Se o faz de boca cheia ou ainda por encher, tudo depende do ramo no qual o deixam viver. Que isto de trabalhar não é bem para o macaco: no fim, olha pró bolso e sobra… o cheiro a sovaco.

Pobre animal que tanto sofre nesta terra desleixada. Cada vez tem menos ruas para fugir da manada. E pensa com os seus botões, ao gente aos borbotões: “vou mas é ficar em casa, resta-me essa prenda”, esquecendo não ter chavo, nem para pagar a renda. Queres fiado, meu amigo?, pergunta-lhe o senhorio. Por aqui disso não há: vai dormir ao pé do rio.

Em Macau manda o mercado, quando isso é avisado: se é caso de milhões, vai tudo prós macacões; quando alguém trabalha bravo, paga-lhe com um avo. E não diga de onde vem ou p’ra onde se desloca, se quiser sobreviver, macaco faça de foca.

Mas deixemo-nos de macacadas, de caretas para a geral. Viva, senhor animal, subi presto estas escadas, entrai nesta pobre casa que é vossa por um ano, pois que não é desumano de andar com grão na asa. E se lá para as calendas, ao invés de mais prebendas, já se vir o fundo ao saco, não faz mal, caros doutores, guardai os vossos temores: a culpa foi do macaco.

12 Fev 2016

Previsões para os signos do ano do macaco

O simbolismo e as características psicológicas específicas de cada um destes animais representam o carácter e o comportamento correspondente às pessoas nascidas neste ano do Macaco. Este trabalho foi baseado nas previsões de Li Ju Ming (Lei Koi Man em cantonense) e do que delas entendi

Macaco

O Tai Sui (Deus de cada um dos 60 anos do ciclo) que rege o ano lunar de 2016 é o Capitão Guan Zhong, que traz muitas e grandes ondas, significando mudança e por isso, é ano para mudar de emprego, terminar com o antigo trabalho e começar um novo, emigrar ou trocar de casa. Todas estas mudanças são boas para serem realizadas neste ano do seu signo.
Carreira: Este ano não tem direcção e sem estrela da sorte para o ajudar, só poderá contar consigo mesmo, pois não terá apoio de ninguém. Com a sua normal grande inteligência e confiança, que ao seu modo tudo faz, vai-se sentir rodeado de inimigos, mas se mantiver a calma conseguirá resultados bem melhores do que poderia esperar.
Amor: Nada espere e não fique desapontado. Se não é casado/a, mas tem namorado/a, pode ocorrer uma grande discussão e haver a separação. Se é casado/a evite discussões, mesmo pequenas que sejam, pois irão culminar em divórcio.
Saúde: Este ano, o seu maior inimigo é você mesmo. Deve manter-se relaxado. Muito cuidado com os acidentes, mesmo quando caminha tenha atenção para não cair.
Dinheiro: É um ano para não pensar em realizar dinheiro, mas sim em viagens. Estude para adquirir novos conhecimentos. Num degrau inferior poderá conquistar o mundo, mas se colocar a fasquia elevada pode perder tudo.

Galo

Como no ano passado o único conselho para os nativos de Galo era trabalhar muito, este ano vem já cansado e não terá nenhuma estrela da sorte a ajudar.
Carreira: Os nativos de Galo vão estar este ano em confronto com mudanças, e este é o seu ponto fraco. Perderá o lugar de controlo. Encontra-se numa encruzilhada e não sabe se deve seguir em frente, ou recuar. Por isso, o nativo deste signo deverá criar uma nova ideia, ou produto, que lhe dê a solução para se desembaraçar dessa encruzilhada.
Amor:
Cuidado com as relações, pois é um ano de flor de pessegueiro não importa onde esteja, terá sempre à perna os/as amantes e por isso, para as pessoas casadas, quantas mais relações, mais trabalhos. A franqueza é o modo para manter o seu casamento e para as pessoas solteiras, mesmo tendo um grande número de amantes, nenhum é a pessoa correcta para si. Logo não é ano para se casar.
Saúde: Problemas depressivos espreitam, sobretudo para os nativos nascidos no Outono e no Inverno. Poderão aparecer problemas relacionados com sangue e ataque de coração. Em Maio e Agosto, cuidado para não fracturar nenhum osso.
Dinheiro: Ano para pesquisar e para manter o que tem. Procure uma nova ideia, pois só dela poderá fazer dinheiro. Divirta-se com a paixão, mas não se atire de cabeça.

Cão

Este ano os nativos deste signo perdem o grande suporte e terão que fazer tudo por si próprios. Terá que se defender no seu território e não poderá sair para fora desse seu espaço para atacar. Contará a estrela da sorte YiMa que representa mudança, emigrar, ou ir estudar para fora, trocar de casa ou viajar.
Carreira:
Como não terá suporte de ninguém, terá que se desenvencilhar sozinho, sentir-se-á cansado tanto fisicamente como na mente. Será inteligência ir estudar línguas e arte, improvisando o seu talento. Deverá aceitar tudo o que vem, sem reagir, interiorizando e acalmando os seus primeiros instintos. Absorvendo, conseguirá perceber as razões de eles existirem. Por causa da estrela TianGou, é fácil criar conflitos e não terá boas relações com as pessoas e no mais grave, poderá mesmo chegar a tribunal, ou ser roubado todo o recheio da sua casa. Ambos, Saúde e Riqueza, serão influenciados por esta estrela.
Amor:
Como estará sobre a influência da estrela Yi Ma, mudança, ao viajar, emigrar e estando no estrangeiro, encontrará aí um/a namorado/a, mas sem a estrela da flor do pessegueiro, este amor é de curta duração. Deverá controlar-se pois quanto mais forte for a paixão, mais profundo será o ódio quando terminar a relação e perder-se-á. Para os casados, é um ano propenso a se divorciar e de sofrimento. Não importa que tipo de amizade tem, familiar, entre amigos, ou amantes, a relação emotiva sofrerá.
Saúde:
Não apenas terá que tomar cuidado com a sua saúde física, mas também com o seu ânimo, já que se sentirá deprimido. Especialmente os nativos de Cão nascidos no Verão terão que ter muito cuidado com AVC’s. Abril será um mês perigoso para todos os nativos de Cão em questão de saúde.
Dinheiro:
Não é ano para ganhar dinheiro na sua forma normal, mas pode poupar pelo caminho do silêncio e revolucionar-se a si mesmo.

Porco

No ano passado ganhou a Força e este ano continuará a conquistá-la. No entanto, pequenas pontos negros ainda lhe vão ser apontadas pelo exterior, já que este ano, os nativos de porco são prejudicados pelo Hoi Tai Sui. Tal se deve ao porco não ser um animal que combine com o macaco e por isso, vai ter muita gente contra si. Amigos que o vão tentar prejudicar, fazendo-lhe mal e terá outro poder exterior como inimigo a combatê-lo. Mas estando sobre protecção de três estrelas da sorte, vai ter um ano muito bom, sendo o signo do Porco um dos quatro mais bafejados do ano.
Carreira:
Com três estrelas da sorte, duas delas, Tian De (天德) e Fu Xin福星, estrelas protectoras que lhe limparão o caminho e a estrela criativa Tian Yi Gui Ren, (天乙贵人), coloca-o com muita e boa energia, o que levará a ter confiança para encarar todos os seus interesses, desejos e vontades emocionais e de carreira. Tudo terá bom desenvolvimento, logo auspicioso ano para usar da sua imaginação e criatividade. Siga caminhando pois tal trará frutos. Mas lembre-se estar sobre influência também de três más estrelas, por isso deve ter muito cuidado com as relações de amizade e não se coloque por si mesmo em maus lençóis.
Amor:
Com a estrela da sorte Tian De, o nativo poderá casar e ter filhos, apesar do ano não ter Festa da Primavera e por tal levaria a não ter descendência. Para os casados, tenha cuidado com a outra parte de si, quando mais próximos menos vemos. Ponha mais coração na sua relação e assim conseguirá um ano harmonioso. Ano para cuidar da família.
Saúde:
Será um ano perigoso, pois haverá propensão a acidentes e cirurgias. Os nativos de Porco nascidos nos anos de 1935, 1971, 1995, têm propensão a que facas o cortem. Por isso, evite todas as operações perigosas e actividades radicais. Maio e Setembro são os meses perigosos, cuidado com as mãos, pés e acidentes de trânsito.
Dinheiro:
Um bom ano monetário devido a ser fácil consegui-lo e pode ser promovido devido à ajuda das estrelas da sorte. Ano para planear os próximos na questão monetária. Lembre-se que facilmente arranja discussões e por isso, deverá acalmar-se e conseguir manter a sua estabilidade emocional controlada. Discutir, rouba-lhe a sua energia da sorte. Evite euforias, que levarão ao seu extremo. Ser moderado é o mais inteligente, siga o caminho do meio e não leve a sua acção até ao extremo.

Rato

Os nativos do signo Rato combinam bem com os de Macaco, por isso a sua relação com as pessoas será melhor do que no ano transacto. Só terá uma estrela da sorte para o ajudar e tê-la, pouco poderá ajudar. Mesmo que tenha muitos planos, não terá ajuda dos outros e é como, um rato tentar mover uma tartaruga.
Carreira:
Como é um ano sem fortuna, a sua carreira não melhorará e sendo assim, trate de promover as suas relações sociais. Pelas boas relações com os nativos de Búfalo, Dragão e Macaco, deverá com eles conviver mais e deles encontrar boas ideias para investir no futuro. Mas este ano, terá uma das mais fortes más estrelas, a Tigre Branco, por isso facilmente sofre acidentes e problemas emocionais. Para os homens nativos de Rato, cuidado pois as mulheres poderão colocá-lo em graves situações, logo problemas.
Amor:
Ano de paixões para os nativos de Rato, mas só lhe trará problemas e mesmo para os solteiros, os/as amantes criam-lhe muitas ondas, discussões e problemas. Pode gostar, mas não colha, especialmente para os homens, não esqueça que este ano está sobre a influência do Tigre Branco.
Saúde:
Propiciado pela estrela da pouca sorte, facilmente se encontra envolvido numa grande discussão e mesmo numa luta física de confrontação. Se está grávida, cuidado com o bebé que transporta. Agosto é um mês perigoso. Nascidos no Outono e Inverno evitem todas as actividades aquáticas. Novembro, melhor fazer análises e um body check.
Dinheiro:
Este ano não há maneira de conseguir mais, por isso tente conseguir conservar o que tem. Melhor aproveitar as suas relações sociais para preparar o próximo ano. Paz é o ouro para os nativos.

Búfalo

No ano anterior tudo foi mau, mas para este ano a palavra é Ganhar. Com três súper estrelas da sorte a proteger, para este ano o melhor signo é Búfalo. A estrela da sorte Zi Wei Long De, que representa conquistar poder e ser promovido, é muito bom para a carreira. Outra súper estrela da sorte Tian Xi é propícia para o casamento e na boa relação com todas as pessoas.
Carreira:
Como ano de sorte, os nativos deverão mudar de comportamento e abrir o coração, colocando toda a energia para aceitar a boa mudança e com trabalho árduo consegue atingir um posto importante. A riqueza segue-o, por isso só necessita é colocar gasolina e siga em frente. Mas como tem também duas estrelas de pouca sorte, alguns desastres poderão ocorrer, sem haver forma de os evitar. Lembre-se quanto mais elevada for a sua posição, mais tensão encontrará; mas com a sua normal paciência consegue atingir a única palavra para este ano, Ganhar.
Amor:
Um grande ano de flores de pessegueiro, que serão de boa energia. Ano para se casar. Se estiver casado/a, faça uma segunda lua-de-mel. Para os não casados, este é o momento para encontrar a sua cara-metade pois, se não o fizer, só daqui a doze anos terá uma tão boa oportunidade, sendo os melhores meses para o fazer, Fevereiro, Junho, Agosto.
Saúde:
Cuidado com os acidentes de trânsito. Nascidos em 1985, 1973 e 1961 cuidado com problemas de sangue (cortar ou operações). Não pratique actividades perigosas. Como vai ter que trabalhar muito, intercambie com momentos de relaxamento.
Dinheiro:
Ano de mudança total. Se o fizer, o dinheiro segue-o. Terá várias maneiras de as realizar e em todas elas, com bons resultados. Por isso, este ano não é para ficar sentado à espera da boa sorte, mas coloque-se em movimento e entregue-se cem por cento em tudo o que faz.

Tigre

Macaco e Tigre são o oposto, logo não conciliáveis, por isso, o inevitável confronto, sendo para os nativos de Tigre este ano o de colidir Chong Tai Sui. Toda a sua vida se vai transformar, devendo os nativos a cada passo ter muito cuidado, mas como este ano tem várias estrelas da sorte a ajudar, significa que, após as vagas, tudo ficará melhor, mais tranquilo.
Carreira:
Com três estrelas da sorte a ajudar a carreira, poderá resolver um por um os problemas sem receio, pois continuará a controlar todas as coisas pelo seu poder. Ajudado pelas boas estrelas, consegue convencer os outros pelo falar e solucionar os problemas. Um bom ano para a sua carreira.
Amor:
Com toda a atenção virada para a carreira, não tem tempo para se dedicar às paixões que rapidamente aparecerem, mas também com a mesma velocidade desaparecem. Não vai encontrar este ano a pessoa indicada para casar.
Saúde:
Como é o ano Chong Tai Sui é fácil ter um acidente de trânsito e ser levado a Tribunal, sendo entre as três e cinco da tarde de cada dia o período mais perigoso. Assim no início do ano deve ir ao templo pedir protecção aos deuses, acção conhecida por Fa Tai Sui (Fa = solucionar o problema)
Dinheiro:
Estando a carreira em boa onda, o dinheiro vem, mas este ano terá a má estrela Tai Hou, que significa perder dinheiro, por isso se pensa fazer algum investimento esteja muito atento. É um ano que precisará de trabalhar muito para ganhar algum dinheiro mas, mesmo sem ganhar dinheiro, ganhará conhecimento e experiência.

Coelho

É nativo de um dos quatro melhores signos do ano. Tudo vai ser fácil e continuará com a sorte do ano anterior. Tem três boas estrelas a ajudar e proteger.
Carreira:
Não precisa de se preocupar com nada, é seguir o caminhar e viver a vida, que tudo está nos carris.
Amor:
Espera-se uma boa relação. Para os não casados poderá encontrar a pessoa indicada, qual peixe entrando dentro da água, sendo o mês de Dezembro o melhor período. As suas amizades poderão ajudá-lo a desenvolver outros projectos de carreira.
Saúde:
Tenha cuidado pois os antigos problemas de saúde querem regressar. Os nascidos no Outono e Inverno devem cuidar dos pés e mãos, rins e intestinos. Os nascidos em 1951 e 1975, haverá probabilidade de ter problemas de faca, cortes, de um dedo ou operações cirúrgicas. Maio é o pior mês para os nativos de Coelho.
Dinheiro:
Terá uma boa receita este ano, mas vai ter muitos encargos, por isso difícil em amealhar dinheiro. Assim, tal como rapidamente recebe, também o gasta e a saúde é um dos problemas que poderão surgir e levar a essas despesas. É melhor no início do ano fazer análises e um Body Check.

Dragão

É ano do Dragão Voador, por este signo combinar bem com o do Macaco. A palavra do ano é Cooperar. Terá a estrela da sorte San Tai e por isso o suporte para atingir elevadas notas nos exames, ou tornar-se famoso e com poder, atingindo um outro novo nível mais elevado e criar o seu próprio espaço.
Carreira:
Vai ter muitas hipóteses, mas sentir-se-á sem grande confiança. Por isso, só poderá aventurar-se a voar mais longe e mais alto, após planear muito bem para manter sobre controlo todas as coisas. Com esse trabalho de casa feito, nesse espaço finito pode criar o infinito. As mudanças como vagas, uma a seguir à outra, trazem inveja e sentirá setas espetadas nas costas. Para confrontar-se com tudo isto, os nativos de Dragão terão de usar talento.
Amor:
Não encontrará a sua cara-metade este ano, por isso não coloque grandes anseios nesse desígnio. Para os casados, há muitas hipóteses de aparecerem amantes, mas o melhor é evitar ter.
Saúde:
Como trabalhará muito e estará sobre grande pressão, deve balançar o tempo entre trabalho e recreio. Nascidos no Outono e Inverno deverão ter cuidado com os acidentes de trânsito.
Dinheiro:
Como este ano é para atingir uma nova plataforma na sua vida, e o que preparar agora, não importa o que está a ganhar, prosseguirá com frutos.

Serpente

Poderá encontrar um bom companheiro para negócios e no amor, mas a seguir vai entrar em conflito. Se ganha algo, perde também algo, por isso é um ano mediano. Importante para os nativos são as três estrelas da sorte: Tian Chu (a cozinha do Céu), que permite saborear boa comida e as outras duas são Lu Shen e Tian Guan.
Carreira:
Sem estrela de suporte, mas sendo os nativos de serpente inteligentes, não importa a situação, pois conseguem olhar de frente e resolver os problemas. Apenas ter cuidado para não discutir com os outros, pois pode perder os seus projectos e também trazer problemas, que serão apenas resolvidos no Tribunal. Entre as ondas vislumbrará novas esperanças.
Amor:
É um ano cujos nativos de Serpente ficarão mais encantadores aos olhos dos que neles reparam. É altura dos solteiros encontrarem a pessoa certa e para os casados, fazer uma segunda lua-de-mel, ou ter um filho.
Saúde:
Encontra-se sobre a influência de três estrelas de má sorte, por isso muito cuidado para não ter acidentes. Nativos nascidos no Outono e Inverno tenham atenção aos problemas de sangue, útero e bexiga. Para os nascidos em 1941, 1965, 1989 deverão ir ao templo pedir protecção aos deuses pois é um ano perigoso.
Dinheiro:
O ordenado é normal e está estável. Faça o que quiser.

Cavalo

O desenvolvimento que os nativos tiveram no ano transacto abranda este ano e falar muito traz problemas. Ano também de mudança pois, pela influência da Estrela YiMa, há hipótese de ter que sair, talvez emigrar, ou ir estudar para fora, ou mudar de casa. Assim pela mudança de vida, ou no trabalho, os nativos podem sentir-se cansados e não recompensados pelo trabalho que fazem.
Carreira:
Não coloque desejos como vontades; mantenha o que tem, que já não é mau. O melhor é entender o que lhe interessa e o que gostaria de aprender e meter-se ao estudo para se recompensar da falta de perspectivas no trabalho. Ou escolha fazer mais viagens e evite fortemente discussões. Se tiver uma decisão errada este ano, irá arrepender-se para o resto da sua vida.
Amor:
Tem a estrela GuChen que representa estar sozinho/a. Os solteiros vão sentir-se contentes quando sozinhos, mas para os casados esse ficar só pode criar no seu companheiro a designada guerra fria e de costas voltadas, as situações extremarem-se e haver a separação. Por isso, deverá ter muita paciência e agudeza de espírito para acalmar a situação.
Saúde:
Este ano, quando sair ou guiar carro, muito cuidado com os acidentes, ande sempre prevenido e coloque atenção ao que faz e aos outros. Os nativos de 1930, 1966 e 2002, são este ano os que mais propensos estão aos perigos. Os nascidos em 1966, pois irão atingir os 50 anos, não devem cair em depressão e para isso, deitem fora as más energias e realize uma grande festa de aniversário.
Dinheiro:
Faça o que tiver que fazer, não questione quanto vai receber. O dinheiro não lhe vai trazer alegria e saúde, sendo as boas relações familiares os seus melhores tesouros.

Cabra

Os nativos deste signo, como no ano passado trabalharam muito nos seus projectos, tal esforço este ano singra e desenvolve-se em boa direcção, tanto na Carreira, como no Amor e Riquezas. Um dos quatro bafejados signos deste ano. Uma boa estrela protege-o.
Carreira: O Sol (Tai Yang), como a grande estrela, ajudá-lo-á em todas as formas e relações com as pessoas, como se alguém maior estivesse a puxar para cima. Ano que poderá realizar os seus sonhos e criar uma carreira; é um verdadeiro vencedor.
Amor:
Bom ano para se casar. Os nativos singulares, em Fevereiro, Agosto e Dezembro, têm meses propícios para realizar os seus desejos em encontrar o parceiro, por isso, não perca essa grande oportunidade. Se já tem namorada/o, é um bom ano para casar. Se é casado não tente ir buscar paixões fora do casamento, o que lhe reduziria a boa sorte.
Saúde:
Não se coloque sob pressão no trabalho. Os nascidos em 1931, 1955, 1991, devem ter cuidado com os acidentes, por isso evite actividades perigosas.
Dinheiro:
Este ano ficará na sua memória para toda a vida como o mais importante na página do dinheiro. Já mencionado no início, é um dos quatro signos favorecidos do ano. É um Vencedor.

Um bom ano de 2016. Boa saúde.

Neste texto, as palavras quando são empregues para ambos os géneros vão pelo masculino, já que este representa esse todo que, para além de ignição é a inicial Luz Solar. É o Espaço versus formas, qual Homem a representar todos os Seres Humanos e não serem apenas homem e por isso a mulher também terá de ser mencionada. É como o dia, ele há o de 24 horas e o dia versus noite, que também está integrada no dia.

12 Fev 2016

Sobriedade e nobreza

Bessa Luis, Agustina, A Sibila, Guimarães Editores, Lisboa, 1954
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Ruralismo, 285 p.:19 cm.
Cota: C-7-4-84 (IPOR)

Agustina Bessa-Luís, nasceu em Vila Meã no concelho de Amarante a 15 de Outubro de 1922. Estudou no Porto e em Coimbra e fixar-se-ia definitivamente no Porto no ano de 1950. Agustina Bessa-Luís estreou-se como romancista em 1948, ao publicar a novela Mundo Fechado, mas só com a publicação do romance A Sibila em 1954 é que se afirmou, ainda jovem no panorama da literatura portuguesa. A Sibila representa também a inauguração e afirmação do seu estilo, memorialístico, histórico e realisticamente fragmentado e lacunar. Desempenhou algumas funções sociais e política relacionadas com a literatura e a cultura das quais destaco  a direcção do Teatro Nacional de D. Maria II (Lisboa) e a participação como membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social. Vários dos seus filmes foram adaptados ao Cinema, entre os quais evidencio pela sua importância e sucesso: Francisca (Fanny Owen), 1981 e Vale Abraão. Do conjunto impressionante das suas obras refiro A Sibila (romance) de 1954, O Susto (romance) de 1958, A Brusca (contos) de 1971, Fanny Owen (romance histórico) de 1979, Um Bicho da Terra (romance histórico, biografia de Uriel da Costa) de 1984, Prazer e Glória (romance) de 1988, Vale Abraão (romance) de 1991, O Princípio da Incerteza: I — Jóia de Família (romance) de 2001, O Princípio da Incerteza: II — A Alma dos Ricos (romance) de 2002, O Princípio da Incerteza: III — Os Espaços em Branco (romance) de 2003 e A ronda da noite (romance) de 2006.

O romance a Sibila inaugura ao mesmo tempo um percurso literário, um estilo e um tipo de literatura de ficção entre nós. O romance decorre no ambiente rural do norte de Portugal em finais do século dezanove e tem por décor uma propriedade e uma família. A propriedade é uma quinta há mais de dois séculos aforada à Coroa e a família é uma das muitas famílias de lavradores de Entre Douro e Minho, “uma espécie de aristocracia ab imo” como ironiza a autora através da fala de Bernardo Sanches. Provavelmente o cenário não andará longe das imediações de Amarante. Quem conhece o norte de Portugal sabe que o Entre Douro e Minho interior confina com O Minho e com Trás-os-Montes, quer dizer confina geograficamente mas também no plano da cultura e das tradições e sobretudo no plano dos modos de vida, até porque Trás-os-Montes e o Minho só se distinguem com nitidez se tomarmos como referência concelhos distantes, pois os concelhos limítrofes das duas Províncias apresentam mais sinais de semelhança do que de contraste.
Mas regressemos ao diálogo que ocorre entre Germa (Germana) e o seu primo Bernardo, embora o que importa aqui é o facto de que o diálogo ao transformar-se em monólogo, uma vez que Germa passa a ignorar a presença do primo, serve para convocar pela primeira vez o nome de Quina, ou seja da Sibila, a personagem em torno da qual iremos assistir ao levantamento da Vessada, depois que durante a sua infância e sob os auspícios de seu pai Francisco Teixeira assistimos ao seu desmoronamento, tanto físico, como económico, como sobretudo moral.
A narradora da história é Germa, filha de Abel, um dos irmãos de Quina e que com verosimilhança se aparenta, pela biografia, a Agustina Bessa Luís. Este romance é, muito provavelmente, o mais autobiográfico da autora.
Quina foi uma adolescente buliçosa e iletrada, que desde sempre se ligou à quinta através do trabalho. Enjeitada pela mãe, Maria, procurava no trabalho do campo e no esforço constante uma compensação. Contrastava com os seus irmãos que conquanto muito mimados o que pretendiam era abandonar o meio rural, o que significava na prática romper com a casa e com a tradição familiar.
Na trama profética do romance são determinantes dois episódios: o fogo que arrasta a Vessada para a sua ruína e a doença de Quina que quase a vitima. O primeiro assinala o fim de um ciclo marcado por uma decadência que se anunciava já há muito, ao mesmo tempo que assinala também, e anuncia, mas apenas como possibilidade, um ciclo de regeneração. O segundo, o episódio da doença, articula-se com o primeiro pois desde há algum tempo sentimos que a obreira da regeneração só pode ser Quina. Se ela morresse a Vessada estaria inapelavelmente condenada, na medida em que não se vislumbra em mais ninguém a capacidade regeneradora necessária. Mas Quina não só não morre como se assiste, no quadro da sua recuperação, à revelação de qualidades, sibilinas de facto, com as quais Quina levará por diante o enorme trabalho de superação que irá transfigurar um destino que se julgava traçado. No âmbito de todas os dotes de Quina a autora fará evidência dos que irão conferir à personagem uma capacidade de domínio e poder sobre os demais e sobre as dificuldades.
Para mim, o aspecto estilístico mais interessante do romance prende-se com o facto de que nos encontramos sempre longe, quer de um panegírico, quer de uma diatribe condenatória. Percebe-se que a narradora possui uma língua viperina, mas nunca é gratuitamente que exercita as suas críticas truculentas e sobretudo fulminantes, porque inesperadas. Algumas personagens são melhores que outras mas são todas aceitáveis e condenáveis ao mesmo tempo.
Por outro lado, Agustina Bessa Luís consegue integrar elementos económicos e sociais sem contudo pretender submetê-los a uma análise sociológica comprometida, sem fazer demasiados juízos de valor ideológicos ou políticos; como se a autora se limitasse através de um memorialismo histórico e etnográfico a dar a conhecer a realidade e as suas contradições, numa perspectiva sobretudo documental sem denúncias ou críticas enformadas por qualquer tipo de moralismo ou pretensiosismo científico. Eu saliento o elemento etnográfico, pois o culto do detalhe e o descritivismo dispersivo fazem sobretudo apelo dos sentidos e não de uma faculdade analítica. Ora a análise ideológica e política à maneira do neorrealismo por exemplo é sempre moralista e muitas vezes mesmo retórica e lamecha. Nesse sentido a Sibila é um texto de grande sobriedade e nobreza, sem excessos retóricos ou eflúvios sentimentais.
É verdade que através de uma longa analepse Germana traz o passado ao presente, mas não me parece que seja para o condenar nem para o elogiar; parece-me que é essencialmente para que a realidade de um tempo seja mostrada, ainda que as formas de rememoração contenham sempre quer se queira quer não alguma nostalgia agarrada a elas. Contudo não se sente nunca mágoa pelo que se perdeu, nem também satisfação. Há grandeza e miséria em todas as épocas e as personagens no interior de uma época histórica elas próprias nunca simbolizam unilateralmente e de modo maniqueísta o bem umas e o mal, outras. Quina ou seja a Sibila, não foge à regra.

11 Fev 2016

A dez quilómetros da Via Láctea

Enquanto andamos entre escolhos e danças, terras e mares, culturas e ideias, paraísos e bonanças, a Terra tem sessenta e dois homens que acumulam mais riqueza que metade da Humanidade. É de facto exemplificativo do que é, e para que serve uma tal Sociedade Humana: ode aos Vencedores, ode aos Ogres, aos que arrebatam tudo aquilo que algures nos ensinaram ser devido a todos. É mais que provável que toda a moral esteja errada e toda a base que permitiu vir até aqui não tenha vencido a primeira condição. Pensando bem, é melhor poucos e bons, melhor rico que pobre, melhor ter que parecer e reduzir o número de eleitos porque os gáudios são de chumbo e os frutos pesados.
Face àquilo que conhecemos de tal espécie não se encontram motivos de deslumbre, nem uma razão explícita que nos faça amar-nos mais uns aos outros do que a qualquer outra coisa, até podemos acertar tal disfunção pelo Livro do Apocalipse: – se alguém aumentar alguma coisa, Deus lhe aumentará os flagelos, bem como se alguém retirar palavras deste livro profético, Deus lhe retirará a parte que tem na árvore da Vida – não vou mais tirar daqui o que quer que seja, na certeza porém que o aumento dos flagelos, mais a minha parte retirada mesmo agora da Árvore da Vida, contribuam para fazer o Universo mais harmónico. Olhado assim, o mundo remete-nos para os Contos de Fadas e os seus Ogres e até, psicanaliticamente, imagine-se a forma que esta tem nestes estudos, afirma isto: – sinto muito, mas os pobres são maus – aquando do menino da Floresta cujos pais o abandonam e ele espalhando migalhas de pão perde o rasto porque os pássaros o comem, o que faz dos desgraçados pessoas duplamente punidas.
É certo que dos felizes não reza a história, muito menos dos muitos pobres, então o que é preciso para se ser o sexagésimo terceiro? Um bom argumento para analisarmos e tentar, como com os Jogos da Santa Casa… Fixemo-nos nestas sessenta e duas deidades que armazenam o Festim de que é feito o Mundo com seus batalhões de matéria viva prestes a tudo devorar: Que comerão eles? Que presas? Como amam? (depois de Cardeal, já não se acredita em Deus) Terão contactos com extraterrestres?
Há mecanismos cuja complexidade nos remete para o Velho Urizen, aquele deus tão bem descrito por William Blake, afastado do mundo indiviso e que acabará por ver consumado o perpétuo isolamento do seu estado, dessa unidade original que fora a plenitude divina, pois que a matéria é já algo distante das origens o que faz da riqueza, vista por este prisma, um grau de distúrbio máximo que tende a colapsar nos seus próprios limites de sustentabilidade. Ouvimos isto tudo que nos dizem como informação, e nesta transmissão, se pode aferir da imensa irracionalidade vivente. Nem a Rússia Czarista, pré-bolchevique, criou tais fossos, nem mesmo as antigas sociedades feudais, o assalariado de hoje está em proporção no mesmo grau de pobreza.
«Para sermos felizes vivamos escondidos», sem dúvida, é um adágio. Para comanda há que ter perspectiva, olhar tudo como que à distância de um Campeonato de Jogos Florais, uma excessiva intimidade impede o lúdico, arma secreta para a angariação do sucesso e toda a ideia precisa de espaço para fazer de um grupo um resultado pretendido. Creio que já não ando longe de ver nascer o homem cibernético feito à imagem e semelhança do Homem porque nós, os que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, parecemos não ter resultado.
É por estas evidências que não se pode levar a sério, nem ter esperança na Economia enquanto emblema social de recurso a tudo. Se ela fosse uma actividade inteligente, ou quanto muito, organizativa, estávamos em outras estatísticas com resultados bem diferentes. É neste monstro, no entanto, que a Humanidade deposita toda a sua fé ou aquilo que dela restou, a sua inquietação, e faz dos seus dias realidades menores.
Neste século, já quase nos aproximamos da leitura visionária do real, por isso falei de Urizen, do uno para o múltiplo, do indiviso ao fragmentário, do sincrético ao analítico, da eternidade ao tempo, pois este rosto voraz, inicialmente infanticida, coloca um tampão de pedra e diz: – Agora sou eu o deus para toda a eternidade! – Este demiurgo vazio e raivoso selou pela impertinência a Terra, para nela formar o tempo e ser o Deus inexpugnável. É um mito cosmogónico. Ele vai isolar o que o Uno tinha unido numa mundividência romântica, ele isola e reina. Assim estamos hoje, agora, aqui, neste inabalável princípio sem que possamos ter a brecha de saída do circuito É um Laboratório de fazedores de espectros, que reproduz uma causa assustadora.
“… e ele viu a Fêmea e condoeu-se; estreitou-a; ela chorava, esquiva;
entregue a um prazer cruel, perverso, ela escapava ao abraço que teimava persegui-la.
tremeu a Eternidade, ao contemplar o Homem a procriar a sua imagem.
Na sua própria carne dividida. ”
A Civilização, ela, a Fêmea, está como que paralisada no fim do tempo cósmico, é o que quer dizer este número. Por vezes, os números das Bestas não são aqueles esperados, ao fazerem-nos olhar para um ponto esquecemos contar as várias perspectivas. O que poderá vir desta escalada ainda não sabemos, até porque se lhe acrescentarmos o dobro, teremos então cento e vinte e quatro homens mais ricos do que toda a população mundial. Sabemos que a lei da voragem subjaz a todo o elemento vivo, e, que a fragilidade do ter, só mesmo comparado ao efémero do viver, que mau grado a expectativa de tantos, somos menos melhorados do que supúnhamos, mas, que um grande momento, talvez mudança, tão necessária quanto urgente na equação da Terra se terá de demonstrar. Sabemos bem dentro de nós que passámos uma meta e não sabemos designá-la dado que é fluida… mas ela vive em nós como um barco naufragado. Queria poder pensar que tudo isto é roda e fim e começo… não sei, creio que nada vai ficar como prevíramos e que se tivermos ainda tempo há que avançar muito mais do que era esperado de seres tão rudimentares.
Esta nem notícia é, em última instância é uma constatação um aviso, um alarme, que soa como uma evidência, um clamor de guerra. Admitir tal realidade é uma prova irrevogável de que tudo falhou.
Só que estamos a dez quilómetros da Via Láctea e, a menos que não saibamos voar, só aqui ficamos se não houver da nossa parte vontade para que nos transplantem para um outro lado, onde se volte a repor uma certa harmonia, e cuja gravidade nos vote ao esquecimento desta época, deste ainda permanecer.

11 Fev 2016

Macaco subindo a montanha

Ontem, 4 de Fevereiro celebrou-se o Princípio da Primavera (Lichun) e pelo Calendário Chinês começou o ano de 4653, numa contagem do tempo cujo início é 2637 a.n.E., mas apenas criada em 2317 a.n.E., durante o reinado do Imperador Yao, quando o ano tinha 365,25 dias. Em 1100 a.n.E., mediante observações do Sol estabeleceu-se com exactidão a posição do Solstício de Inverno. Desta maneira, a invenção de um sistema de termos solares foi sendo elaborado através dos tempos, a partir de observações dos astrónomos. Os termos estão directamente ligados à eclíptica do Sol e são indicadores das estações do ano e entre estes 24 termos estão os dois solstícios, os primeiros a ser estabelecidos e depois, os dois equinócios. Estes termos solares foram gradualmente reconhecidos por volta do século III a.n.E., quando Lu Shi Chun Qiu os compilou. Mas foi no livro Huai Nan Zi, de 120 a.n.E., que todos os vinte e quatro termos ficaram mencionados e assim estabelecido o Calendário Solar do Agricultor. Nele as datas são fixas, sendo o início da Primavera a primeira grande festa que marca o ciclo de um novo ano agrícola e calha no dia 4 de Fevereiro, por vezes no dia 5, se houver ajustamentos no calendário.
A China oficialmente faz uso do calendário gregoriano desde 1911, apesar de ter o seu Calendário Solar Agrícola definido desde o século II. Mas é pela combinação do Calendário Solar com o Lunar que ao fim de 60 anos o ciclo se fecha. Segundo o que refere o Anuário da Administração de Macau do ano de 1927, no Calendário Lunar “o dia principia à meia-noite, a semana tem sete dias e os meses são de 29 ou 30 dias. Fazem os meses de 29 dias as luas pequenas e os de 30, as luas grandes. O ano consta ordinariamente de doze luas, seis pequenas e seis grandes, perfazendo todas 354 dias. A primeira Lua do ano é aquela durante a qual o Sol atinge o signo Pisces ou dos peixes; o Equinócio de Primavera cai durante a segunda Lua; o Solstício de Verão durante a quinta; o Equinócio de Outono durante a oitava e o Solstício de Inverno durante a undécima.”
É pela interacção entre os dois calendários, o lunar e o solar, que o calendário chinês foi criado e este move-se em ciclos, com duração de sessenta anos, tendo-se iniciado o actual ciclo em 1984 e finaliza em 2043. O nome do ano é proveniente da combinação dos dez Troncos Celestes (em mandarim Tian Gan, ou Tin Kon em cantonense) com os doze Ramos Terrestres (Di Zhi em mandarim, Tei Chi em cantonense). Assim a combinação entre os ciclos, um de dez anos (Tian Gan) e outro de doze anos (Di Zhi), leva sessenta anos para se completar, ao fim do qual se volta a repetir pela mesma ordem. Os dez Troncos Celestes (Cinco Elementos – Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água, duplicados) combinam-se com os doze Ramos Terrestres (tantos quantos os animais que responderam ao chamamento de Buda: Rato, Búfalo, Tigre, Coelho, Dragão, Serpente, Cavalo, Cabra, Macaco, Galo, Cão e Porco) e é assim que os anos luni-solares chineses se formam.
Cada um dos doze animais do zodíaco é regido por um dos cinco elementos e por uma qualidade, yin ou yang e é dessa combinação que se transforma num tipo especial de animal, havendo para cada um, cinco diferentes subtipos, conforme o elemento a que está associado.
Este ano tem o Tronco Celeste, Bing (Ping), Fogo, combinado com o Ramo Terrestre Shen, que representa Macaco subindo a Montanha. Logo é o ano do Macaco e do Elemento Fogo e no ciclo de 60 anos corresponde ao 33.º ano do 78.º ciclo chinês indicado pela expressão Bing Shen (丙申, em cantonense Ping Shan), que combinados criam Água Dourada.

As ondas do Macaco

A 8 de Fevereiro de 2016 realizam-se as Festividades ao Novo Ano (Chunjié em mandarim, Tchôn Tchit em cantonense), quando se dá as boas vindas ao Ano do Macaco.
Como o Princípio da Primavera (Lichun) aconteceu quatro dias antes do início do novo Ano Lunar e o ano do Macaco terminará a 27 de Janeiro de 2017, logo sem contar o dia 4 de Fevereiro, o dia do Princípio da Primavera, diz-se ser um ano cego. É bom para viver em conjunto, mas não para casar, já que para a maior parte das pessoas, não trará descendência. Por isso deixe essa acção para ser realizada em 2017, que terá dois Lichun e ainda mais um mês intercalar.
As características do Macaco, inteligente e astuto, regulam o ano. Compreender-se no Espaço que ocupa, lendo o que à sua volta se passa pelos pormenores e não pela forma geral que imediatamente alcança, leva essa perspicácia a avaliar o momento com grande agudeza. Assim está para este ano regulado o Céu pelo Todo, nós, que é o estar englobados e não ser individualmente globalizados.
O Tai Sui, (em cantonense Tai Soi, o Deus que superintende o ano, de um ciclo de sessenta anos) que rege este ano lunar de 2016 é o Capitão Guan Zhong, que traz muitas e grandes ondas e significa mudança.
Os signos dos quatro animais que este ano estão bafejados pela sorte, são Búfalo, Porco, Cabra e Coelho. Para as pessoas dos signos chineses do Macaco, Rato e Galo, o Tai Sui deste ano não as vai ajudar e por não terem a estrela da sorte a protegê-los, devem preparar-se para dificuldades, mas o ano não será muito mau. Para os nativos de Tigre, Cavalo e Cão é um ano de grandes mudanças e para os de Serpente e Dragão, não vai haver alterosas vagas, será um normal ano.
O ano é de Shen = Macaco e Hóu = Fogo e assim teremos um ano de Fogo amansado pela Água criada em Bing Shen.
Tendo passado os três anos de Fogo, este ano de 2016, com Bing Shen criando água, começam os dez dourados anos, início de uma nova Geração.
Água e Fogo são o necessário para a criação, sendo por isso um ano para iniciar algo para os próximos dez anos.
É necessário voltar a encontrar uma direcção e para isso, é importante mudar o sentido do coração. Já não será o desejo de dinheiro, pois os ricos irão perder a força para realizar mais e os pobres, que não o têm e não importa o quão trabalham nunca o terão. Sente-se agora o que é deveras importante, a necessidade de ter um espírito de solidariedade fora da visão materialista. Este é o problema para o qual todos os governantes dos países irão tentar encontrar a solução. Mas até hoje não apareceu ainda alguém que se apresentasse para liderar as energias do mundo nessa direcção e esse, é o verdadeiro desastre do mundo actual.

Ano de Mudança

O ano de 2016 é de mudança, por isso de viagens, mudar de emprego e de casa, ou talvez emigrar. Há dois temas importantes para ter em conta. Uma acção terrorista, que pode acontecer em qualquer lado e a segunda, tomar cuidado com os meios de transporte e os locais para onde viaja e perceber se são seguros, ou se é uma zona sensível.
Baseado no Livro Di Mu Jing, o que ocorrerá no ano Bing Shen:
– de certeza haverá problemas com a água, porque Bing e Shen criam água.
– A agricultura vai sofrer com desastres naturais, o que vai trazer problemas para a alimentação.
– Epidemias trarão a morte a humanos.
No entanto, baseando nos Caminhos para Oeste, teremos o Macaco a proteger o Mestre do Dharma e não esquecendo que este é o primeiro dos próximos dez anos dourados, não teremos que ficar preocupados.
A estrela Wu Huang (Cinco Amarelos), que traz obstáculos, problemas e conflitos, está este ano localizada na direcção Nordeste, o que poderá significar problemas na Coreia do Norte e EUA. Já os Er Hei (Dois Pretos) Bing Fu (que representa doença) encontra-se na direcção meio, estando por isso o perigo baseado no Médio Oriente.
Há probabilidade de alguns desastres aéreos. Três grupos em Fogo, Americanos, Japão e EI e as armas de fogo estarão na ordem do ano. Este e o próximo ano são de guerra.
Os aparelhos eléctricos aumentarão a intensidade do Fogo e desequilibrarão o fogo que envolve o mundo. Ano para se ter muito cuidado com os olhos, por isso, não passe muito tempo defronte das máquinas cuja luz atinja os seus olhos e vaguei-os com a Luz que deles irradiam pelo vivo da Natureza.
Em 2016, o feminino ganha grande poder e mais países passam a ser governados por mulheres. Na Europa, vai ser um ano de assaltos e violações e os anjos tornam-se demónios.
Quando ao entrar no ano do Macaco, significa que já passaram os três anos de forte Fogo e este ano de água, significa que as coisas irão melhorar, mas será necessário muito cuidado com as epidemias (doenças, vírus…), continuando os desastres naturais, mas sem a força do último ano. Prevê-se grandes cheias, em rios e oceanos.
Os anos de Macaco são de terríveis tremores de Terra, como os ocorridos em Gansu a 16 de Dezembro de 1920 com 208 mil mortos e em 26 de Dezembro de 2004, acompanhado por tsunami no Oceano Índico, com 200 mil mortos. Para este ano de 2016, Outubro é preocupante no campo dos atentados terroristas e em Dezembro, com algo parecido com o que ocorreu em 2004, talvez para pior no campo dos tremores de terra, que segundo Li Ju Ming (Lei Koi Man em cantonense), a quem nos socorremos para preparar estas previsões, se espera que não aconteça.

Para tomar resoluções

Pelo calendário solar, as pessoas que nasceram no período compreendido entre:
– 19 de Fevereiro e 4 de Maio, precisam do Elemento metal. Meio ano vai ser bom e o outro meio menos bom. A melhor direcção é Oeste. Na Primavera e Outono, precisam de ter cuidado com os pulmões e coração. Entre os períodos de 4 de Fevereiro a 4 de Abril e 6 de Junho até 6 de Agosto, metal está muito baixo, logo estas pessoas devem ter muito cuidado com os investimentos, finanças e importantes decisões. Por isso, não tome decisões e guarde-as para o período auspicioso entre 8 de Agosto a 8 de Setembro. Deve evite tomar decisões entre as onze horas e as três da tarde, sendo o melhor período das 15 às 19 horas. Para quem está carenciado do Elemento Metal, as melhores cores são o branco e o dourado, a pior é verde, por isso use roupas com essas cores. Quanto à comida, bife e galinha são os melhores pratos.
– 5 de Maio e 7 de Agosto, tem carência do Elemento Água, mas comparado com os dois últimos anos, este ano vai ser melhor. Na Primavera e Verão a água rareia e por isso, deve nesse período manter-se paciente quanto aos investimentos, finanças e importantes decisões, sendo para tal entre 8 de Novembro até 3 Fevereiro de 2017 o período mais auspicioso. Durante a manhã não é bom tomar decisões, sendo o melhor entre as 15 e 19 horas e depois da 21 horas, quando a cabeça está mais clara. Não se esqueça de beba muita água todos os dias e vá nadar. Se possível viaje para Oeste de barco, o que lhe poderá trazer uma grande ajuda. As melhores cores para usar são o azul, branco e preto, devendo evitar o vermelho. Todo o tipo de peixe é bom para a sua alimentação e evite grelhados e pimenta.
– 8 de Agosto e 7 de Novembro, precisam do Elemento Madeira. A Primavera será o melhor período, assim como entre 8 Novembro a 6 de Dezembro. Já entre 8 de Agosto a 6 de Novembro não arrisque a investir e cuidado com a saúde. A direcção auspiciosa é Leste e Sudeste, devendo evitar o Nordeste. As melhores horas são as da manhã até às três da tarde e daí até às 19 horas é um mau período para tomar decisões. O verde é a melhor cor. Deve comer porco e vegetais.
– 8 de Novembro e 18 de Fevereiro de 2017, precisam do Elemento Fogo. De 8 de Novembro até 3 de Fevereiro de 2017 é um período de grandes ondas e por isso deve ter cuidado com os investimentos, finanças, decisões importantes e viagens. O melhor momento para realizar tudo isso é entre 6 de Junho a 6 de Agosto e de 9 de Outubro a 6 de Novembro. As melhores horas são entre as 9 e as 15 da tarde. Cuidado com os olhos, coração, sangue entre 6 de Maio e 4 de Junho. A direcção auspiciosa é Sudoeste e Sudeste. Viajar de comboio é uma grande ajuda. A melhor cor para usar é o vermelho e evite o preto. Coma carneiro, café, chocolate e beba vinho tinto, mas evite bebidas e comidas frias.
Lembre-se que só deverá expressar cumprimentos de Bom Ano, quando já estiver no Ano do Macaco.

10 Fev 2016

Insignificante. Como uma bomba

António. Acorda, homem. Acordo. Mas nem sei se dormia de facto. Olho estremunhado e honestamente sem entender. Logo num primeiro plano, onde estou. Num segundo instante, quem é, e quem sou. E numa terceira tentativa de manter o pé, porque haveria de acordar. E para quê. O que há aqui, num primeiro instante, sem saber onde estou e que lugar da consciência do mundo seria este, por exemplo. Num segundo momento, para cumprir que excentricidade do universo e de pessoas que me acordam aos gritos – as pessoas aos gritos, e são muitas, perturbam-me sempre para além da perplexidade – a quem faço falta no estado lastimoso em que sou. Essa uma questão de sempre. Num terceiro degrau do acordar abrupto, mais abaixo, e como tal a tocar de perto uma aproximação de um eu em alvoroço, vindo de dentro de um sono profundo, àquilo que começo a sentir nos ossos, nas pálpebras e no estômago, que de súbito se revoltou, como que dos gritos selváticos, num ronco borbulhante, talvez de fome, afinal. E, de repente, estou completamente acordado. De pé, de um salto e reposto nesta normalidade de mundo, que é o meu café dos dias ímpares. Dos dias pares. E dos outros, porque a limpeza no lar de velhinhos falhou. Faz-me ainda impressão chamar “lar” a um sítio estranho, em que se vive com gente estranha. Penso no meu velhote e penso que não lhe vou fazer isso. Enquanto puder. E lá, não hão-de ser os desgraçados a fazê-la. Mas sem dinheiro, salta o António e fica a gestão da despensa, que apesar de tudo é a prioridade. E vão continuar a acumular-se esparsos cabelos brancos no chão. Mais um botão ou outro que ninguém iria coser. Mais um brinco partido de tão gasto. Mais um lencinho de pano muito enroladinho e assoado, atrás duma cadeira. Mais metade de uma bolacha surripiada ao lanche para as horas mortas. Um rebuçado peganhento do calor de vários verões, que alguém ofereceu como a um cavalinho…
Não fosse a exaustão já anterior e continuava a varrer-lhes os cabelos do chão e a apanhar-lhes os óculos remendados com fita-cola, que não funciona mas os faz continuar a ter a ilusão de que têm óculos. E a fingir que não vejo como escondem nos cantos das cadeiras desconfortáveis aqueles saquinhos de plástico já muito enrugados e baços, onde parece resumir-se o historial de uma vida, simbolicamente ajuntada em meia dúzia de objectos que às vezes não passam de um botão caído não sabem de onde, uma moeda de dois euros deixada pela filha, um pente sujo, um postal daquela excursão à Ericeira, muito comido nos cantos e que era para mandar a alguém, mas que sabendo ou não, depois se esqueceu, e três papéis irrelevantes, dobrados e rasgados nas dobras, que ainda sonham dizer respeito a uma vida, de cujas burocracias ainda depende uma falsa noção de domínio, de pertença e de continuidade. De existência. Segredos, que talvez já nem saibam como e quanto insignificantes e ilusórios são. Símbolos de segredos, que já não têm uma carteira ou uma bolsa decente em que se façam valer.
Mas por agora, não há mais limpezas no lar dos velhinhos. Azar. O meu também, porque era um reforço ao orçamento.
Aprumo as costas não vá o patrão avançar a mão no meu pescoço, num ímpeto que ele até pode fingir achar de paternalismo e com a ternura possível à sua alma rude e violenta, mas que me sabe mal. E sempre. Cai-me como sempre todo o resíduo recente da memória em cima, atulhando-me a consciência que volta, de um laivo amargo de desilusão porque aqueles imprecisos temores de que a verdade é só uma, aquela e insinuada desde a raiz da vigília, lá bem do fundo, de forma a, no primeiro momento de confusão de acordar, ainda poder parecer fantasia, mas logo cai tudo de chofre e é mesmo a verdade que ela se foi. Há muito. Depois lembro-me que há qualquer coisa. Outra coisa que custa a voltar dos fundos do ânimo. Sim. Ela. Mas outra que não a que foi. Esta, ainda não é. Só aquele sonho que nem o de ser de algum modo a realidade possível, mas tão só de o ser, e me acompanha. Mas não tão enraizado como a memória de ela. Da outra que se foi para melhor. Pensou ela. E eu também, na minha insignificância, que sempre vê o mundo maior do que ele é. E nele, todos os outros, mais do que eu sou. Mas que raio. Ainda não vai ser hoje que digo ao patrão com todas as letras porque é que não me pergunta o nome. O meu nome. Que raio. Que António é que nunca foi nem sei de onde veio esta ideia. Apre. E recaio de novo naquela calma apática, a poupar energias para o resto do dia, que parece sempre ser demasiado. E grande. Se ela aparecesse agora, mas não é a hora dela, não era a melhor altura. Nunca é. Fica sempre aquém do que espero quando estou longe de isso acontecer. Pequena, modesta, impenetrável. Como a quereria. Não fosse este vacilo que sempre me dita um alheamento, uma inexistência em que a adivinho ver-me. E assim não há olhar possível. Quem não existe não olha.
Agora vem a parte melhor, que isto do acordar tem camadas. Como um fogo que se me propaga à alma, se espalha no rosto que sinto corar, e no pescoço que transpira abundantemente, bovinamente, digo, não fosse eu uma fraca figura de um metro e cinquenta e dois, já a contar com os saltos dos sapatos do casamento, enfim, quê…três centímetros a retirar ao registo legal, e lembro-me que hoje trouxe a carta. Porque dizer-lhe – entendi há muito – nunca vou dizer. Nem olhar, sequer. Mas a carta queima-me o bolso das calças ao ponto de olhar para baixo a ver se se vê. Sei lá. O fumo. Ou um buraco fumegante a alastrar. E nem seria bom de imaginar, porque são as que trago a uso para poupar as cinzentas escuras que são para o que der e vier. Festas, funerais e o mais que acontece a um homem. Mais os segundos dos que as primeiras. Mas já nem estes, que começam a escassear. Estranho. A questão é esta. Desatei a transpirar de nervos só de me lembrar a carta corrosiva dentro do bolso. Essa é que é essa. Já em casa, para me resolver a trazê-la, quase se diria que estava a entrega-la. O coração num alvoroço de enjoo. Não sei que fazer de mim que sempre fui assim. Entregá-la vai ser uma coisa linda de se assistir. Que é como quem diz. Porque o que queria era meter-me num buraco do chão, com uma mãozinha de fora quando ela passasse o tapete carcomido da entrada e estender-lha sem mais. Depois, estou sempre despenteado quando ela vem e é sempre sem esperar. A roupa, também não ajuda. Mas o pior sou eu. Só de me lembrar do que vejo ao espelho todas as manhãs. Nada a fazer. Não é que ela seja nada de especial. Já a outra que se foi, não era. É que é amor. Antes também era. Eu sou assim. Mas ficou bem escrita. Saiu-me bem. Para falar não me desembaraço mas a sós com a esferográfica, a cabeça fica limpa por um instante. Só vale por isso. Sempre gostei de cartas de amor. Saem-me das entranhas e com o melhor que tenho e não tenho. E elas. Mas o amor é assim.
Levo de novo a mão ao bolso das calças e retiro-a bem dobrada em oito partes, para lha poder por na mão discretamente e como coisa sem importância. Que é. Reparo então que de tanto a tirar para lhe sentir a existência real, para me interrogar de novo se seria capaz de lha entregar como uma flor, sempre a coloco muito ao alcance da mão. Fico em pânico de imaginar deixá-la cair, perdê-la ali pelo chão. E empurro-a bem para o fundo do bolso, como quem aconchega um animal pequeno para não ter frio na noite longa do sono. Mas é nos cuidados que por vezes nos perdemos. Aguentei uma hora, bem medida no relógio, até consentir a mim próprio voltar a senti-la na mão. Vitorioso, exigi de mim mais uma hora, e depois, já como uma enorme sensação de alívio, dei ao meu ego a arrogância de a fazer esperar mais meia. E depois, bem, depois já não estava lá. Levando a mão bem até ao fundo do bolso, só um enorme rasgão no forro. Ou talvez afinal uma queimadura irremediável. Nem sei descrever o que senti. Primeiro, pensar – curioso, escrevi penar, primeiro – que se afinal ela viesse, mais uma vez eu teria que me corroer por dentro sem maneira de chegar até ali. Sem pretexto. Sem existência. Por quanto tempo mais, só ela poderia dizer. Em parte. Depois, como poderia recomeçar aquela carta que já não poderia repetir, e que sendo sempre já outra, me levaria a alma, o suor e o sangue de muitos dias até encontrar as palavras. Fugidias. Os ângulos particulares. A emoção. O sentimento o mesmo, mas dias diferentes. E depois o terror de que alguém a encontrasse antes de mim se a encontrasse. E a ela. Também. Dia após dia. Dizer-lhe as palavras que não digo.
O pior de tudo, no lar, era quando me pediam, com aqueles olhinhos, por vezes um pouco ramelosos, muitas vezes cronicamente lacrimejantes, imersos em cataratas, como uma fronteira da memória com o presente, para ler de novo aquela carta. Quase desfeita, mas para eles nunca o sentido. Suja, ilegível em alguns pontos. Saída daquele saquinho de plástico repetidamente arrumado nos seus parcos conteúdos. O pior ou o melhor. Talvez. Para eles. Em mim sobra a sensação de pânico, pela importância abismal que é a existência de cada palavra. Ou a não existência. E a estatística probabilidade de quase aleatoriamente ela ter ou não sido desenhada, por uma decisão impensada, ou demasiado remoída. E o peso que uma ou outra opção exerce no devir. O que fica. Para além de sempre.
Foi aí que encarei o patrão, entretanto recorrente na modorra do costume, a ver se…e encontrei-o desperto. A fitar-me de lado com um olhar escarninho. Um sorriso escarninho e pensamentos sem dúvidas igualmente escarninhos. Mau. Péssimo. O pior. Não queria acreditar. E dispus-me a morrer – afinal, de vez em quando tem que ser. E ele, na mão um papel dobrado, pequeno, insignificante. Como uma bomba.

10 Fev 2016

Da notável arquitectura existencial

Faria, Almeida, Paixão, Lisboa: Caminho, 1991.
Descritores: Romance, Tetralogia Lusitana, Identidade, Memória, 972-21-0237-0, 199 p.:21 cm,

Almeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra

Em primeiro lugar dizer que Paixão é o primeiro da Tetralogia Lusitana. Enfim, no início era uma trilogia: Paixão, Cortes e Lusitânia; mas quando o Cavaleiro Andante chegou por fim e se juntou à tríade, achou-se e bem que ele por chegar atrasado, não deveria ficar excluído da família. Ele pertencia àquela saga, àquela família e ao seu destino sacro e profano. 4216P14T1
Tudo começa numa Sexta Feira Santa em plena Paixão. A Sexta-Feira Santa, ou ‘Sexta-Feira da Paixão’, é a Sexta-Feira antes do Domingo de Páscoa. É a data em que os cristãos “comemoram” a paixão, crucificação e morte de Jesus Cristo. Almeida Faria faz o que não sendo novo é revelador, estabelece uma homologia entre a vida de Cristo e a vida de qualquer cristão, pois a uma certa luz seremos todos cristos e em todos ocorre mais tarde ou mais cedo esta sequência paixão, sacrifício e morte. Evitei naturalmente a palavra crucificação, por modéstia. Contudo a Paixão de Cristo é exemplar, porque também os homens quiseram que assim fosse. Falar da Paixão de Almeida Faria é penoso, pois se há livros que leremos sempre são estes quatro livros da Tetralogia Lusitana, e é penoso falar ou escrever sobre livros que já lemos mas que ainda não lemos em definitivo, que ainda não colocámos de lado, com aquela satisfação de dizer, está lido.
Almeida Faria escolheu bem o registo da sequência de monólogos interiores das personagens, pois confere à narrativa uma espécie de pudor narrativo e mais do que isso uma sacralização dos trabalhos, dos afazeres, das tarefas, um pouco à semelhança dos Trabalhos e os Dias mas em registo acentuadamente mais ontológico-metafísico. Nesse sentido também as personagens são paradigmas de simples formas de ser.
Todos sabemos que o sagrado pré-existe às religiões, desconfiamos até que as religiões são formas históricas que há muito começaram a desgastar o universo do sagrado e nesse sentido acontece que é nos rituais profanos que de súbito podemos viver a epifania do sagrado na sua plenitude. Isso é o que a meu ver Almeida Faria pretende e julgo que muitas vezes o consegue.
Pedro Sepúlveda fala assim:
“Estes monólogos são interrompidos por breves diálogos e por intervenções de um narrador que se imiscui no universo da consciência das personagens. Descrito com recurso a uma imagética religiosa e mítica, neste universo perpassa o sentimento de um sofrimento sem redenção, repetido num ciclo temporal expresso na própria estrutura do livro: Manhã, Tarde e Noite desse dia que só sabemos ser de sexta-feira santa”.

E eu permito-me estar em acordo com quase tudo, menos com isto: A imagética é profana e não religiosa e portanto é sobretudo mítica. É profana, mas não desligada do sagrado. O sagrado como disse permanece na vida quotidiana e em muitos dos nosso gestos, as referências ao cristianismo são contudo inevitáveis, pois para nós a cultura cristã, através de uma referencialidade litúrgica, é aquela em que o sagrado se reconhece, ou melhor é onde as criaturas reconhecem as homologias com o sagrado. Uma ceia sempre fará pensar na Última Ceia, uma mesa, como o lugar em que nos damos aos outros como banquete e se sagram os alimentos. Os próprios alimentos significam mais do que são: o pão e o vinho serão sempre o sangue e o corpo de Cristo e o cordeiro será sempre pascal e exprimirá sempre também a inocência e o sacrifício. Não existe uma memória dos gestos anteriores ou dos vocábulos, ou dos rituais, quando o sagrado ainda não era nomeado através de uma imagética religiosa, positiva e empiricamente determinada. Por outro lado, não perpassa no texto uma ideia de um sentimento de sofrimento sem redenção, mas bem pelo contrário um sentimento de redenção através do sofrimento. Porém esta redenção não busca legitimar-se de uma forma gloriosa, mas na linha das correntes mais radicais assenta numa resignação à imagem e semelhança de Job. Pedro Sepúlveda remete para um texto de Óscar Lopes. Talvez que as coordenadas ideológicas onde seguramente persiste uma certa ansiedade escatológica preferissem através da secularização do sagrado o triunfo da utopia.
Almeida Faria contudo não professa um optimismo ontológico pois a sua posição, pelo contrário, é sobretudo pessimista. Na maior parte dos casos a narrativa prefere o neutro, aparentemente neutro deva dizer-se, pois o exercício reiterado do neutro deixa entrever justamente a necessidade do sagrado. O sagrado evidencia-se nas coisas mínimas, nas tarefas repetidas até à náusea, nas banalidades existenciais desprovidas de fulgor ou sucesso, onde tudo falta menos o mistério:

“de madrugada ainda levantar-se, descer para a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que ficou da véspera com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o inverno a água gela, corta os ossos da gente, faz doer às vezes até pelo braço acima — deve ser reumático — mesmo ao cotovelo) e só depois sair para o quintal em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo (de manhã as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) e também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou alpista ou uma folha de alface ou atão ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, (…)”.

É manhã e é Piedade, seguramente Piedade não por acaso:

“voltar depois ao quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele espera, pôr arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado de dez anos, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar a água ao lume já pegado, pegar na alcofa dentre cestos e cabanejos, bilhas, tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os tamanhos, vermelhos e vidrados, largos para a matança e para o sangue, tachos de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada e mais caiada, em seguida descer por vez segunda os degraus do quintal, abrir o pesado portão fechado à chave, soltar os cães esquentados da noite para a rua, ir pela rua velha e árida à derêtura caminho da praça do mercado, comprar o que de véspera a senhora, a cuja obediência ela está, com letra grossa na lista de papel pardo assentara: carne de vaca ou vitela para bifes, hortaliça, pescados o que houver, etc., o costume, comprar sem muito ou sequer nada refilar, porque não vale a pena, não lhe pagam palavras (trabalho tão-somente), meter dois dedos de paleio com esta e com aquela, mais apaniguadas, com o conversado se o tem pela altura (nos dois últimos anos teve vários, a frescura já foge) ou um outro algum pretendente que por acaso apareça a cheirá-la, cheira-lhe a carne forte, mamas fortes, voltar ao fim de meia hora, o máximo uma hora para casa, pousar as compras no portal de mármore, o peixe, as couves, latão, os alhos, ferver o leite e entrementes fazer torradas para os meninos (no tempo das laranjas espremer aí uma dúzia delas — os meninos são cinco), preparar caldo de maizena e vianda de leite, e os flocos de aveia, migar o pão prás sopas dos mais novos, esfregar chão de pedra da cozinha e a mesa da cozinha, antes de pôr a toalha aos quadrados azuis para o pequeno–almoço, tirar o grão e o bacalhau que ficaram de molho desde a véspera ou ir ao quintal uma vez mais, no qual agora o gato, estático, silencioso e muito atento, caça infrutiferamente borboletas, ir de faca em punho e debaixo do braço o alguidar (é preciso sempre ter cuidado, não bater com ele no corrimão da escada, assim partiu dois que teve de pagar e uma porrada de massa lhe custaram e este está rachado, talvez da água quente, com dois gatos grandes ali ao pé da borda), voltar com a galinha morta ou ferida de morte dentro do alguidar, a cabeça entre as asas como um sono, deitar-lhe água a ferver, tirar do lume leite, o caldo de maizena, guardar a louça que quase já secou, servir o dejejum aos meninos que gritam, depois de no quintal terem jogado um bocado ao botão ao berlinde, à pancada, ao pião, conforme a época do ano, ficando com feridas negras ou feridas de sangue nos joelhos, ou atão depois de serralha ao grilo cantarista terem dado, se em tempo deles é, que quer tanto dizer como na primavera, e quando finalmente eles se vão, meter mais louça suja na pia da lavagem, depenar a galinha, pô-la ao lume porque às vezes é dura, sentar-se enfim no banco de pedra ao canto da janela de guilhotina aberta, mastigando uma bucha de pão com queijo ou chouriço ou farinheira ou banha (o que houver) e entre os dedos húmidos um púcaro de lata com café de soja e com isto tudo hão-de ser dez horas e estômago a dar-lhe horas desde as seis, por isso anda largando o osso nesta bruta labuta todo o santo dia que inda vai no começo mas que um dia, espera, talvez quando casar, ou talvez não, há-de acabar; batem as sete; tem os olhos cerrados e, cansadamente, reconstitui os gestos gastos a fazer; o dia que se segue é-lhe memória negra; assim o percorreu: envolta em trevas, por semanas santas que duraram séculos e agora sabe apenas que no quarto existe alguma pouca claridade; entra pela fresta da janela o frio do sol nascendo; não há sombra de dúvida, isto tem de acabar; horas de pôr-se a pé; horas de início, horas de começar; são mais que horas”.

Procurei debalde cortar tão longa citação. Cortar onde? Não fui capaz. É neste fluxo tão quotidiano de tarefas que se ilumina a existência e lhe é conferida a espessura de Ser, a soberana consciência dela. Para lá de qualquer exercício de consciência social, de aquiescência ou revolta são estes trabalhos de Hércules e de Sísifo que nos permitem aceder ao essencial das personagens. Elas, as personagens, são as suas tarefas, os seus pequenos projectos, as suas pequenas intrigas. Quando a arte de um romance consegue isso, consegue o que lhe é próprio, como disse Milan Kundera, consegue fazer aceder a uma certa dimensão da existência que mais nenhuma forma de arte consegue. Eu diria que esta dimensão é o lugar onde o sagrado e o profano se encontram. Algumas artes são da ordem do sagrado, outras da ordem do profano, a arte do romance é da ordem desta união das duas dimensões existenciais, união à qual se acede por caminhos simples, quotidianos, banais mesmo segundo uma leitura sem retórica. Mas isto só está ao alcance do génio: Dar, sem porém explicitar o achado e o seu modo de achar, a dramaticidade senão o próprio trágico que se esconde nesta rotina assustadora. Dizer assustadora neste momento é uma traição, pois ela é simples e lógica, e simplesmente decorre no caudal em que tudo decorre, vai na corrente sempre imparável, só mesmo o génio para nos mostrar o quanto ela é assustadora, na sua fatalidade inelutável comum a todos.
Depois segue-se João Carlos e Arminda e Mãe e André e Tiago e Francisco e etc, todas as personagens com as suas cruzes, e as suas ilusões e mazelas e os seus sonhos e suas outras coisas e depois de novo Piedade e depois de novo, … até que a manhã chega ao fim. O autor consegue estruturar o enredo e dar a ilusão de continuidade narrativa usando por vezes diálogos acidentais e a erupção de um narrador que está sempre implícito nos solilóquios que só na aparência são monólogos.
É um trabalho literário notável de arquitectura existencial. Não é a primeira vez que em sede de romance se usa um expediente semelhante, também Faulkner o usou no texto intitulado Na Minha Morte, mas atrevo-me a considerar que Faulkner dispõe desde o início de um elemento que subjaz à narrativa, que é justamente a pressuposição da sua morte e, como se estivesse morto e ao mesmo tempo não, visse e ouvisse as várias personagens contudo animadas na sua movimentação por um facto motor, justamente a morte daquela personagem a todos os títulos central. O texto irradia desse centro. Neste exercício de estilo, Almeida Faria não conta com um centro emissor, de onde as parcelas da narrativa descolem. Não há nenhum ponto de ancoragem. Pelo contrário as parcelas reúnem-se mais tarde e só no fim todas fazem sentido.
Verdadeiramente só mesmo no fim do Cavaleiro Andante, quer dizer no fim da tetralogia. Notável!
Finalmente uma última questão. No prefácio à 1ª edição de 1965, escrito por Óscar Lopes, e que prefácio brilhante, este autor alude a uma proximidade com o método fenomenológico à maneira de Husserl, o que Sepúlveda nega categoricamente. Para tanto Sepúlveda esclarece que

“a fenomenologia está preocupada em revelar as estruturas essenciais da experiência humana, (enquanto) Almeida Faria descreve uma vivência, ou melhor, a consciência dessa mesma vivência. Essa descrição articula o singular e o universal de um modo que coloca o segundo ao serviço do primeiro. É por isso que o sentido simbólico de algumas descrições, assim como a imagética religiosa ou sociopolítica nelas contida, nunca as condiciona, porque essa descrição do humano que tanto tem de poético quanto de narrativo é o objecto primeiro e único do livro.

Sinceramente não me parece acertado, pois se Husserl procura de facto, e é esse é o maior problema da fenomenologia plenamente desenvolvida, as estruturas essenciais da experiência humana, antes disso eu diria que ele procura recuperar uma experiência perdida, a experiência de uma relação não mediatizada pelos arquétipos conceptuais, de modo a permitir o trabalho imediato da consciência. Há assim uma fase em que a fenomenologia ainda não é uma fenomenologia transcendental e é apenas uma fenomenologia psicológica descritiva; e portanto, nesta fase, a fenomenologia ainda não pretende ser a ciência da essência do conhecimento, ou doutrina universal das essências. É só segundo esta perspectiva que a posição de Sepúlveda não está correcta, ele não teve em conta a evolução histórica da fenomenologia. Mas, é verdade, que no seu processo evolutivo Husserl passou das Investigações Lógicas (1900-1901) em que predominava uma ideia de fenomenologia empírica ligada às vivências, segundo o seu conteúdo, ou seja às vivências do eu que vive, para uma fenomenologia transcendental. É relativamente a essa fase que Sepúlveda tem razão. Porque é verdade que, a partir de certa altura, Husserl falará cada vez mais de uma consciência constituinte e transcendental. Isso será sobretudo a partir dos trabalhos de 1907 e de uma forma plenamente sedimentada sobretudo nas Ideen de 1913.
Mas este foi a meu ver o passo fatal dado por Husserl, o que o afastou de uma fenomenologia para um idealismo transcendental.
O que me permite continuar a falar da presença de Husserl na obra de Almeida Faria reside no facto de que para mim o essencial de Husserl reside nas suas intuições iniciais, no regresso às coisas, na epoché fenomenológica, além de que a própria redução fenomenológica promove um retorno à consciência e desse modo se preocupa com a revelação das estruturas essenciais da experiência humana, contudo não na perspectiva da constituição de uma ciência mas de facto de uma experiência. Eu penso ainda que mesmo nos seus piores momentos a fenomenologia mantém sempre alguma coisa das suas intuições originais.

4 Fev 2016

Urbi et Orbi

Os povos cansaram-se das eleições um pouco por todo o lado na Europa numa massiva desconsideração pela forma de se fazerem representar. Isto quer dizer que os actuais sistemas estão disfuncionais face à sua razão de existir e que o facto de estarem a colapsar não vai assegurar, como é óbvio, a sua legitimidade: não sabemos para onde se dirige a marcha mas à medida que a farsa se contempla a si mesma, intuímos o fim dela, e esta sensação não é boa. Há uma manutenção de moribundo que culmina com a saúde do morto no dia das eleições.
O que falhou? Isso são abordagens mais amplas, como as sociológicas, históricas, filosóficas , mesmo, para as pessoas, neste estado ainda do seu desenvolvimento, elas apenas processam a auto-sustentação das suas vidas intranquilas que as impede de indagar o seu instante como um argumento urgente para a sua continuidade. Também não creio que estejamos em processo reformativo, tudo o que foi mudando, talvez seja tanto, que o que ficou não possa ser reformulado… Os fluxos migratórios parecem diques… inundações, toda esta geopolítica é muito fluída e não temos uma ideia clara do que venha a ser o futuro imediato. Os problemas ambientais só agora se sentem, os reflexos, as mutações… Estamos num Inverno quente e cinzento… o calor é tão estranho quanto a nossa impreparação orgânica.
Lidamos quotidianamente com uma dimensão pouco habitável, difícil, onde temos de adaptar os nossos organismos à imprevisibilidade reinante como jamais nos fora exigido no vasto programa das idiossincrasias cósmicas e naturais. Estamos naturalmente acossados dentro de um prisma que sentimos irrespirável, pondo a funcionar o sentido de uma “guelra” antiga pois não tarda a emagrecerem as costas e a subirem os mares numa conquista que tanto pode ser continuada como abrupta. O ciclo luarento que ditou a ganância, a usura, a fome contínua, essa febre do útero infernal, está como paralisado ou então a fome mudou. Nem tudo é já para “comer”; rodamos esta ampulheta e nada, quase, já se pode comer. Ou a fome é mesmo outra coisa que já não quer dizer nada acerca dos fundamentos do ciclo alimentício do passado ou tudo isto poderá, como disse, acabar de vez de forma abrupta ou descontinuada, como agora está tão em voga quando querem acabar com um produto, deixando-o existir até à sua falência.
Estas designações verbais, aliás, também não são inocentes, já que como todos sabemos não há signos assim e a linguagem é a sinalética menos inocente que temos. Olhar agora para o mundo com as prerrogativas artesanais do ciclo da grande voragem é, quanto a isso sim, um estado de inocência, é uma mansidão que já não se coordena com a radicalidade atmosférica. Estamos dessincronizados do “habitat” em cada vez maior escala, obviamente que isto dará toda a espécie de psicoses e até de más formações congénitas. Atravessamos um deserto imenso onde cada um tem de levar a sua lanterna, porque a visão do grupo não é condutora de nenhum caminho.
Encaminhados para o leve, falemos um pouco de «Massa e Poder», o livro de Elias Canetti, que dá bem a dimensão de um mundo a ir, sem uma plataforma de devir muito clara e cujo poder se chama outra coisa. Acerca desta obra se diz: – Canetti ensina-nos que a massa não se reduz a ser um simples aspecto característico das sociedades modernas, mas que foi e continua a ser muitas outras coisas; que pode matar e ao mesmo tempo atrair; e, sobretudo, que não existe sem o seu contrapeso: o poder. À proliferação da primeira corresponde a solidão e paranóia do segundo. Há um longo epílogo no livro que se chama muito exemplificativamente «A dissolução do sobrevivente».
Fronteiras que tecem territórios móveis são sempre inquietantes. Mas não duvido que tenhamos todos que pegar em duas ou três verdades tidas por conhecidas e avançar, dado que nada se resolve voltando para trás. Como vimos, há um sistema gasto, ou cansado de ser, uma caricatura da participação, dado que metade das populações dos países se demite da sua liberdade de a usar o que não tardará a criar desconforto e ilegitimidade aos próprios eleitos. É certo que cada vez mais os seres se agrupam tentando ser eles a criar as soluções dos seus destinos, que gerir bem o mais perto é a vantagem de se conhecer o terreno e que os tratados e códigos se acham atolados de inoperância fase à magnitude da necessidade humana. Que mesmo que queiramos ver intentos passadistas nas intenções, eles também já são feitos de outra maneira e com outros pressupostos, que começa a haver um hiato entre aquilo que os mais velhos estipularam e a surpresa de não conseguirem com as mesmas práticas os mesmos resultados. A noção da equidade talvez esteja a ser sobreposta pela da igualdade, que a contempla, num justo processo acelerativo, o que faz de cada um de nós, indivíduos despertos para sair da manada ou da alcateia, sem com isso ter de ser ostracizado pelo ritual da partilha que é ainda a forma primitiva de distribuição em série.
São as leis laborais que vão ordenar o nosso espaço ambiental e fazer que tenhamos uma noção individual não programática, mas com reparações em cada novo ano. Não sei que ruptura se dará perante o estado de coisas em voga, já tão generalista quanto impróprio para se fazer ouvir. Há momentos muito reveladores que parecem não serem apenas tristes acasos, mas sim , algo de muito mais profundo que vai ser preciso abordar.
Escuso-me a qualquer pergunta dado que esta é sempre uma intromissão, mas gostaria de indagar este estado de coisas a partir desta altura que me parece tão charneira. Como se fossemos todos encetar uma longa viagem por caminhos muito pouco programáticos e que nos dissessem que é neste estado de coisas que não nos podemos esquecemos de salvar o Homem mais como acto poético do que como resolução objectiva. Há dias duros na Terra e ela muda tão rapidamente… e toda a estrutura fixa da nossa dor não passa de um acaso não visitado pela nossa inteligência que só agora irrompe em buscas de outras Catedrais.
Ao nosso redor a mudança vária, mas uma estrutura que tende a parar para a sua própria compressão num imobilismo muito denso, tal se nos apresentam agora as sociedades que num labor insuficiente procuram desesperadamente auscultar o que se passa nos interstícios daquilo que afinal obedece também ao fascínio Humano: o não saber prever o ângulo de acção mais directa.

4 Fev 2016

A propósito de águas

Após semanas de angustiante espera saíram as listas da Drinks International dos melhores e mais trocados – nos melhores bares – espíritos, cervejas e águas do ano. Uísques, gins, vodkas, águas tónicas e não, até champagnes e cervejas merecem atenção.
Interessam-nos de sobremaneira as águas porque uma leitura das escolhas do ano revela vários nomes que se encontram com facilidade no território. Infelizmente o mesmo não se pode dizer das águas tónicas, uma vez que em supermercados e outras lojas do território se continua a encontrar apenas uma ou duas marcas aborrecidas.
O Relatório Anual oferece dois tipos de consideração por cada bebida: Best Selling Brands e Top Trending Brands, a primeira baseada no número de garrafas vendidas (repito, nos melhores bares de acordo com a D.I.) e a segunda baseada em nomes que estão na moda e que têm sido muito pedidos. Marcas da moda numa altura em que tudo está na moda.
A Fever-Tree é não só a mais vendida das águas tónicas como é a mais encomendada. Está na moda, não há nada a fazer. A Schweppes é a segunda mais vendida e a Fentiman’s a terceira (considerada por alguns como tendo um sabor intenso que interfere demasiado com os espíritos a que se adiciona). As mais in-fashion são a Fever-Tree, a Fentiman’s e a Schweppes. A Q Tonic, menos doce e menos calórica, (é uma questão de gosto) também está muito bem classificada.
Em Macau há Fever-Tree no bar do Ritz-Carlton, pelo menos. Na minha opinião, insisto em afirmar que o Gin Tónico é uma bebida muito simples e que se alcança domesticamente com facilidade. Basta o Gin de que se gosta, uma confecção correcta do gelo feito no dia com uma água pouco mineralizada, água tónica com bom gás, bom limão e uma disposição positiva.
A escolha das águas minerais espelha também (como aliás as escolhas de todas as bebidas) o poder das grandes marcas internacionais, a sua capacidade publicitária e de distribuição, um capitalismo aquífero. A marca mais vendida e mais in-trend é a San Pellegrino.
Nada tenho contra a San Pellegrino e o seu alto teor de sulfatos, uns brutais 549 mg por litro (por exemplo: Badoit 40; San Benedetto 5) ajudam a combater excessos alcoólicos ou gastronómicos, um auxílio de alto preço. Mas é pena que da Itália, onde existem, caso inultrapassável, mais de 600 marcas de água – para além de ser o país que mais a consome – não cheguem aos bares e mesas domésticas muito mais marcas para além desta vencedora, da Acqua Panna (a minha água lisa preferida) e a San Benedetto.
No Japão existem mais de 450 marcas de água mas não há nenhuma que se tenha imposto no mercado, possivelmente porque não é bebida que seja reconhecida no próprio país como importante.*
As mais vendidas nos melhores bares do mundo, segundo a Drinks International são: 1. San Pellegrino, 2. Acqua Panna, 3. Perrier, 4. Evian, 5. Vichy, 6. Fiji, 7. Mountain Valley, 8. Hildon, 9. Antipodes e 10. Strathmore. Destas apenas a 7 e a 10 tenho a certeza de nunca ter visto em Macau.
O mercado é muito flutuante. Há muito que não vejo à venda duas das minhas águas preferidas, ambas alemãs, a Gerolsteiner e a Apollinaris. A Antipodes existia no O.T.T. mas não sei se permanece.

Nota importante: Como já aqui foi dito em artigo exclusivamente dedicado a águas a propósito de livro de Mascha: “no território(…)vivemos abençoados, protegidos, pela presença de um número decente de excelentes águas portuguesas, da das Pedras à Vidago ou à Carvalhelhos”. Águas lisas há muitas.
As águas no topo da moda são: 1. San Pellegrino, 2. Perrier, 3. Acqua Panna, 4. Antipodes, 5. Fiji, 6. Mountain Valley, 7. Topo Chico 8. Vichy 9. Hildon e 10. Evian.

Outras notícias: 1. Dos Champagnes indicados como os mais vendidos e mais requisitados do ano praticamente todos se encontram com facilidade em Macau, marca da eficácia da distribuição e garantia de alegrias vastas. Esta categoria ilustra à perfeição a diferença entre marcas mais vendidas e marcas na moda, up-trending em bares do momento: A mais vendida, a Moët & Chandon, não figura sequer no grupo das 10 mais requisitadas nos bares mais na moda.
Na cerveja a Carlsberg é a terceira mais vendida mas nem aparece na segunda lista. A Peroni é a primeira das duas listas. As escolhas de cerveja espelham a predominância (ainda) das lagers, uma tendência com uma história relativamente curta, modelo perfeito de como 2 ou 3 marcas conseguiram impor a nível mundial uma preferência por um tipo de cerveja muitas vezes desinteressante. Como é que alguém pode beber Carlsberg ou Heineken é um profundo mistério. As japonesas estão bem representadas e aproveite-se para lembrar que não há cervejas japonesas más.
Os 3 Top-trending uísques são japoneses, um exemplo revelador de como uma boa distribuição, alta qualidade e paciência transformam o mercado.
Ketel One, Grey Goose, Absolut, Stolichnaya, Belvedere, Aylesbury Duck, Zubrowka, Beluga e Ciroc são os vodkas que figuram nas 2 listas. Apenas grandes marcas internacionais.
2. A D.I. apresenta igualmente a lista dos melhores cocktails clássicos do ano, o primeiro dos quais é um Old Fashioned, seguido do Negroni, Manhattan, Daiquiri, Dry Martini, etc., até ao número 50, um tiki com rum e cognac.
Os mais atentos terão reparado que se deslocaram a Macau, ao bar do Hotel Mandarin, num fim de tarde, 2 mixordeiros conhecidos do bar Please Don’t Tell de Nova Iorque, figurante da lista dos melhores bares da D.I., já aqui também apreciada. Apresentaram 6 cocktails clássicos que não desiludiram.
3. Abriu recentemente, para lá do bar do Hotel Ritz-Carlton e do bar do Hotel-Residências Ascott, ambos aqui descritos, um bar no Hotel St.Regis, não revisto ainda. As fotografias prometem um bom sítio.

* Michael Mascha, autor do atraente livro sobre águas Fine Waters, já aqui revisto, estima existirem umas três mil marcas de água, 50% das quais italianas, japonesas, alemãs ou francesas.

2 Fev 2016

Uma travessia do Delta Literário de Macau

Não deixando de referir e correlacionar textos tributários de códigos de género híbridos – memórias, diário, epistolografia, narrativa biográfica e autobiografia, relatos de viagens e testemunhos históricos, reconto etnográfico e, em especial, crónica –, nesta nossa cartografia de O Delta Literário de Macau, primeiro volante de um políptico a completar, consideramos a “literatura” no sentido específico de criação imaginativa em arte verbal.
Tomamos, assim, por “literatura de Macau em língua portuguesa” a criação estético-literária de autores que em Macau se descobrem ou afirmam escritores, que em Macau são editados e/ou criticados, reconhecidos e avaliados como escritores – acrescendo que, não em todos os casos mas em grande parte deles, não figuram no cânone da literatura portuguesa de acordo com os meios de reconhecimento, legitimação e valorização do seu funcionamento institucional (editores e críticos, professores e conferencistas, júris e associações, manuais e programas escolares, etc.).
Nesta literatura de Macau em língua portuguesa podemos ver confirmado e ilustrado que toda a escrita é, de algum modo, registo de certo momento de uma identidade em processo, num devir de estabilização ou de crise. Como ao longo dos séculos e em todas as latitudes, a escrita literária que agora estudamos revela-se em Macau um  modo especial de dizer esse momento; e revela-se também um fazer ou refazer da sua contingência em processo de comunicação (e de autocomunicação).
Quer nos géneros da “escrita do eu” (diário e memórias íntimas, epistolografia e narrativa autobiográfica, etc), quer no endosso ficcional a personagens romanescas ou dramáticas, a literatura desde sempre figurou e reconfigurou trajectos de formação de identidades – individuais e comunitárias, grupais e nacionais -, fazendo sentir que isso envolve muito de história das relações da subjectividade ou da entidade colectiva com o seu mundo próprio e com o universo espacial e temporal dos outros seres e das outras comunidades.
Todas as individualidades e todas as comunidades vivem aí a passagem da ordem da natureza para a ordem da cultura; todas vão modelando o real de acordo com suas línguas e demais sistemas de signos, com a historicidade das mundividências, dos horizontes de saber e de crença, dos sistemas de valores e de comportamento; e todas prosseguem  a redefinição das fronteiras do corpo ou território próprio e das interdependências existenciais, com um sentimento de continuidade temporal.
Este sentimento radica na memória singular e colectiva de um património de experiências e ideais, exige empenhamento nas tarefas do presente, gera expectativas e pede projectos para o futuro.
Embora o cuidado de definir conceitos de identidade e o interesse em explorá-los no jogo de forças dos indivíduos e das comunidades seja típica da modernidade, a vivência dessas identidades e o confronto com outras identidades atravessa toda a história do humano, sofrendo metamorfoses no processo de permanências e mudanças que lhe é inerente.
Talvez também se deva pensar o mesmo em relação a outro aspecto que, no entanto, se foi tornando mais forte e mais consciencializado na era contemporânea: deu-se a erosão dos modelos identitários tradicionais e do seu discurso monológico com suposta base numa essência, e, em contrapartida, vem prevalecendo a convicção da relatividade histórica e contextual das identidades, da sua natureza pluridimensional e da sua interdependência de outras identidades.
Assim, sendo inegável que continua a fazer-se sentir a necessidade de “reconhecimento” em que se joga uma função identitária, confirma-se hoje o que talvez já pudéssemos ter lido nas representações e figurações literárias do passado, isto é, que o humano individual e colectivo, interpessoal e inter-nacional, deriva sempre numa dialéctica de identidade e alteridade, de inclusão e exclusão, de estranhamento e acolhimento.
Mas a literatura, e em particular a literatura de autores ocidentais portugueses cujos caminhos e descaminhos da vida passaram pelo Oriente, mostra-nos mais: é nesse processo do confronto com o outro e com a sua diferença étnico-cultural e é no debate sobre a exclusão ou o acolhimento dessa alteridade que o sujeito da identidade em causa se pode conhecer melhor. Reconhece-se então com outros contornos e profundezas, sente o apelo de outra autenticidade, transforma enfim a sua identidade em função do confronto ou encontro com o outro.
Além disso, lendo sob nova luz essa literatura, daí ressalta que muitas vezes se trata da descoberta do “outro de si mesmo”: o abalo ou perturbação, que a aparente hiperidentidade do eu ou da comunidade sofre no encontro ou no confronto com o outro, gera condições propícias para aquela revelação do “outro de si mesmo”.  Convém lembrar agora que, pensando que a subjectividade se funda na distância da consciência de si, Levinas dizia: «o sujeito é hóspede e hospedeiro»; o sujeito há-de acolher o outro, porque desde logo tem de se acolher a si mesmo com um outro. Por isso, certa linha actual de renovação da leitura literária centra-se nessa relação de hospitalidade que abre a perspectiva da diferença e da sua compreensão vivencial.
Partindo dos próprios géneros tradicionais da “escrita do eu”, essa interpretação da escrita como hospitalidade e como auto-hospitalidade estende-se depois a todas as realizações da lírica, da narrativa e da dramática. Não tem dificuldade em se ilustrar na análise de diários e memórias íntimas, de obras de epistolografia e de autobiografia, etc; mas, ao mesmo tempo que vai evidenciando como todas essas modalidades de escrita do eu se tecem numa tensão entre o sonho impossível de plena fusão em si mesmo e de consciência das reservas de alteridade que em si se escondem,  também não tem dificuldade em descobrir a urgência de introspecção e auto-retrato em autores de memórias histórico-sociais (caso de Raul Brandão e tantos outros), de ensaios (afinal, desde a matriz em Montaigne…), de escritos aforísticos (caso de escrita hospitaleira dos pensamentos singulares), de biografias (a tal ponto era pressionante a emergência de traços idiossincráticos e existenciais do autor por detrás da história do biografado, que hoje entrou em voga o romance do biógrafo…), etc. 
Esta orientação de leitura traz assim nova valorização do alcance antropológico da literatura como auto-interpretação e imaginação simbólica do humano.
Essa valência da antropologia literária reforça-se ainda porque muitos textos comprovam que os gestos e movimentos de reconhecimento e de hospitalidade buscam e motivam gestos e movimentos de reciprocidade. E comprovam que, mesmo quando falta essa reciprocidade, os ganhos de autoconhecimento e auto-acolhimento podem proporcionar e acalentar processos de resiliência das identidades fragilizadas, feridas, prostradas. Podem motivar recuperações de autoconfiança e superar situações adversas à realização das potencialidades de cada homem ou de cada povo.
A refracção poliédrica que o humano encontrou na literatura de todos os tempos, e com especial acuidade na literatura moderna, traz-nos sem dúvida a contraface dessa hospitalidade na escrita e dessa resiliência pela escrita, isto é, não deixa de patentear tendências de repúdio da hospitalidade (e até da auto-hospitalidade, como se vê, por exemplo, em Rimbaud) e de exclusão violenta, com regressões do humano à cruel bestialidade (como se vê em Conrad, por exemplo).
Mas essa contraface não exclui a outra face da natureza humana nas contingências da historicidade – facto de que temos a contraprova irónica na retórica da alteridade que durante muito tempo estruturou, de forma mais ostensiva ou mais subtil, o discurso da novidade trazida pela viagem (como no caso português muito bem exemplifica a escrita da famosa Carta do Achamento do Brasil, por Pêro Vaz de Caminha).  
Ora, um tipo de literatura onde o entrechoque de tais tendências melhor se manifesta é precisamente o que incide na viagem – quer pensemos no sentido genológico  do que habitualmente se designa por “literatura de viagens” (e já aí deparamos com enorme variedade de motivações, de características temáticas e formais, de efeitos pragmáticos), quer alarguemos a nossa visão para todas as modalidades de figuração da vida e da morte como viagem (outra valência antropológica da literatura, na medida em que representa ou imagina a condição do ser como Homo viator, em religiosa peregrinação para a Transcendência celeste ou por deslocação agnóstica na imanência terrena), quer tentemos actualizar o tópico da obra ou da escrita como viagem –  viagem que é significado e metonímia, viagem que é significante e metáfora.
Depois, a modernidade literária trouxe uma melancólica auto-reflexão – uma melancolia que, no fundo, está relacionada com a incerteza que o sujeito passa a sentir acerca de si mesmo, tanto quanto passa a pensar-se não como um dado determinado e estabelecido a priori, mas sim como uma possibilidade que tem de ser constituída no texto… e que nunca lhe garantirá uma identidade definida e definitiva.
E tudo isto tem muito a ver com a obra de tantos escritores portugueses  que aportaram ao Oriente, alguns a Macau, e praticaram a arte literária “das lonjuras” (como diria Jean-Marc Moura) nem sempre hipotecada à construção do “orientalismo” como modo de discurso colaço da estratégia imperialista do Ocidente – desde Camões e Fernão Mendes Pinto até Ruy Cinatti e Maria Ondina Braga, passando por Bocage e Tomás Ribeiro, por Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, por Alberto Osório de Castro e António Patrício.
Quanto até aqui ponderámos sobre a experiência literária da problemática de identidade e alteridade e sobre as condições de uma escrita da hospitalidade, mormente num contexto de “viagem” a Oriente, ganha particular acuidade e, ao mesmo tempo, feição diversa na leitura dos autores da literatura de Macau em língua portuguesa – bom exemplo de valência da literatura como espaço de aprendizagem da alteridade.
Assim é desde logo pela condição alocêntrica que lhe reconhecemos, em relação quer à China quer ao Ocidente português, e pelo substrato genotextual que por isso pressupomos perante as suas criações estético-literárias, mas também pela condição peculiar do contexto macaense.
Com efeito, Macau distingue-se como espaço histórico de multiculturalismo, primeiro na coabitação desigual das comunidades portuguesa e chinesa e no alheamento ou desdém preconceituoso perante as respectivas culturas, mais tarde em progressiva diluição das fronteiras entre “cidade cristã” e “cidade china” e com avanços e recuos na atenção mútua aos traços peculiares das ancestrais tradições socioculturais, aliás refractárias a movimentos de hibridização.
Com raras quebras dessa ausência de interacção de culturas ao longo dos séculos, é recente o pendor de práticas verdadeiramente interculturais, peculiares da contemporaneidade – sem rasurar as incompreensões, patentes ou veladas, que são afinal inerentes aos fenómenos de contacto entre culturas e povos (como oportunamente alegoriza Ana Maria Amaro na última narrativa, «Aves de arribação», das Aguarelas de Macau).
Gradativamente caldeada no crisol da “estética do diverso” (na acepção poetológica do poliglotismo cultural, trabalhada pelo com conhecimento de causa pelo escritor e pensador antilhano Édouard Glissant), a literatura de Macau foi despertando primeiro para o pitoresco de usos e costumes chineses ou a “cor local” do espaço macaense de multiculturalismo, sobretudo através do etnografismo lírico e romanesco. Só hodiernamente vem reflectindo (e desse modo reforçando) a interculturalidade, com o jogo de relações intertextuais, de traduções e recriações, de citações e empréstimos linguísticos, de apropriação de símbolos e mitos, etc.
Se Macau se distingue por esse processo faseado de estádios de multiculturalismo e diferentes estádios de interculturalidade, a literatura de Macau em língua portuguesa também se distingue pela comparticipação faseada nesse processo, ao mesmo tempo reflectindo e promovendo a componente intercultural da identidade plural e aberta de Macau.

*

Não escasseiam oportunidades e razões para evidenciarmos como no delta literário de Macau é recorrente a exploração ficcional e lírica da geografia física e humana do território, não já como mera manifestação epigonal de intuitos naturalistas ou realistas, mas sim segundo uma geopoética que – como sabemos melhor desde Bachelard até à Escola de Limoges – modeliza relações criativas entre as figurações formais e semânticas dos espaços macaenses, mas subentendendo que esses espaços geofísicos são indissociáveis dos processos históricos e das dinâmicas sociais e culturais que neles ocorrem e do imaginário que neles se projecta e se sedimenta. Eis aí mais uma vertente do delta literário de Macau, às vezes polarizada pelo apelo mitográfico em torno do que Luís Sá Cunha chamou o topos sagrado de Macau, e cuja exploração deixamos in progress, no âmbito aliás de implicações mais problemáticas de outra questão que a literatura como conhecimento nos chama a dilucidar – a dos traços identitários da literatura de Macau.
Não se justifica que nos continuemos a enredar excessivamente na reconsideração do problema do exotismo e do orientalismo. Todavia, não merecem ser descurados os elementos exóticos de uma literatura situada a Oriente, mas criada em óptica variável por escritores de origem ou de formação ocidental, deslocados e radicados em Macau ou filhos da terra com padrões axiológicos e culturais da portugalidade em diáspora (imperial ou pós-imperial).
A literatura estudada n’O Delta Literário de Macau confirma que os intelectuais macaenses se mantiveram apegados (com orgulho patente, ou com vinculação velada, ou até à contre coeur) às marcas históricas e culturais de identidade lusíada, como meio aliás de preservação da sua identidade comunitária (sino-lusa, não chinesa), sobretudo enquanto a própria aspiração de autonomia podia ser paradoxalmente sentida como interdependente da associação política com Portugal. Mas, mesmo enquanto tal, a mais genuína literatura de Macau em língua portuguesa deve também ser encarada como processo de legitimação da auto-imagem de uma “periferia” lusíada, mais do que como profissão do olhar imperial de um “centro” remoto (como diria a Mary Louise Pratt de Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation).
Importa, porém, chamar a atenção para a emergência de um orientalismo literário mais profundo do que os estereótipos que é costume patentear. Em nosso entender, Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, Maria Anna Accaioli Tamagnini e Fernando Sales Lopes, mais alguns outros aparentados, vieram descobrir e assediar no Oriente, via Macau, um magistério esotérico, sempre com indefinido horizonte de sentido e com alcance prometido mas diferido, que vinha ao encontro de uma das mais subtis e sortílegas tendências da literatura ocidental: aquele sentido divinatório da vida analógica dos seres e das coisas, movida pela energia empática remanescente da unidade e da harmonia primigénias, e em que o poeta anseia iniciar-se para superar a cisão monádica dos entes e a dor da impossibilidade de comunicação plena e de plena comunhão no conhecimento e no amor.

*
O trajecto que conduzimos através d’O Delta Literário de Macau permite uma percepção mais forte e mais esclarecida do devir dos centros de interesse e das motivações que de época para época foram movendo os seus escritores, das características temático-formais que subsequentemente adquiriram os seus textos, dos padrões por que se regeram, da cultura estética que a tudo isso foi subjazendo.
A esse propósito, achamos pertinente evocar certo passo, de reacção satírica e de auto-ironização local, em conto de Senna Fernandes («Ódio velho não dorme», texto notável de ilustração memorial ou ficcional do lema contido no título). Aí – já após a charneira do século XX, mas em paralelo com o que ocorrera em períodos precedentes – torna-se ficcionadamente notória a desactualização da cultura literária em Macau e a relação tardia ou frouxa com os estilos epocais euro-americanos e sua presença sincrónica na literatura portuguesa.
Tal como surge apresentado, em ambíguo radical de comunicação, só o protocolo de leitura que se estabelecer com o texto poderá determinar o seu estatuto discursivo. De qualquer modo, esse texto explora abundantes dados sobre vida em Macau durante décadas e abundantes coincidências com trajectória biográfica do autor (infância e juventude nas escolas de Macau, ida para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, exercício da advocacia em Macau, idas a férias a Portugal, etc.); e depõe sobre a cartografia das correntes contemporâneas da literatura portuguesa, entre sátira (ao que de bluff e moda ideológico-cultural representa neste lance o pretensiosismo de Heitor, antigo amigo do liceu macaense agora lisboetamente distanciado) e auto-ironia (ao que de efectivamente retardatário, pouco informado ou pouco actualizado, terá tido a cultura literária do autor ou dos meios intelectuais de Macau): «Entre duas cervejas e debicando tremoços, estalando de superioridade intelectual, os dedos a aparar o bigodinho irritante, perguntou-me de chofre, sempre com o odioso “você” para trás e para diante, que opinião tinha eu do movimento neo-realista português. Volvi modestamente que não sabia de nada, só lera uma ligeiríssima referência num jornal de Macau. Teve claramente pena de mim e teimou no assunto. // E, na poesia, que opinião fazia de José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Torga e Fernando Pessoa? Redargui esmagado que eram apenas nomes e não os estudara. E o movimento da Presença, o Orfeu? Nada, foi a triste resposta. Abanou a cabeça com dureza de quem está a perder tempo com um analfabeto.»
O nosso trabalho sobre o delta literário de Macau permite dar conta dos fluxos de curto, médio ou longo curso, em que se traduz esse fenómeno de cultura literária e os efeitos de arrastamentos temático e formal a que ele dá origem ou cobertura de boa consciência estética. Mas permite também descobrir, nuns casos, e corroborar, noutros casos, que o estado de coisas na república das letras macaenses se alterou sensivelmente nas décadas mais recentes; e que aquele retardamento e seus nefastos efeitos foram em grande parte fecundamente erradicados pela nova literatura de Macau em língua portuguesa.
A literatura de Macau, em especial no domínio da poesia, soube ir ultrapassando os estádios de simples concepção vivencial e de dicção elementar, caracterizado por uma ausência de construção e de densidade irónica, um derrame de cândido expressivismo com escassa “capacidade de inibição”, uma previsibilidade de temas e um gosto de estilemas estereotipados, sem rasgos de estranhamento perceptivo e expressivo – enfim, um versejar e um rimar que parecia alheado ou discordante das transformações trazidas pelo(s) Modernismo(s) de Orfeu e de Presença e pelos contrapontos do Neo-Realismo e do Neo-Modernismo nos meados do século XX, mais se mostrando temeroso dos riscos de inovação temática e de experimentação estilística. De época para época foram-se afirmando sinais iniludíveis de inconformismo com os padrões saturados e novos intuitos de expressão estética em equação com tendências literárias da Modernidade tardia.

José Carlos Seabra Pereira

2 Fev 2016