António Conceição Júnior Contos e histórias h | Artes, Letras e IdeiasSolidão [dropcap style’circle’]J[/dropcap]osé Plácido Meireles de Lima procurava afastar do pensamento as palavras que ouvia sobre o defunto, ali emoldurado por dezenas de flores. Pensava o quanto os vivos descobriam virtudes em todos quantos partiam, mesmo no pior dos safardanas. Estavam na Sé Catedral. A igreja estava cheia e o colarinho de José Plácido, vestido de preto, empapava-se de suor. Mal humorado, ouvia os elogios ao falecido e o roçagar dos leques que aliviavam as senhoras dos calores de Agosto. Ali estava porque era um hábito, mas tudo o irritava. Das poucas vezes que ia sozinho, aquando da homilia, o sacerdote subindo ao púlpito, ele e mais uns quantos saíam para fumar, ante o olhar reprovador de algumas consortes. Olhou o caixão aberto e o rosto de cera, questionando-se sobre o que era a morte e como transformava a matéria outrora habitada. Habitada? Deu-se conta do que pensara. Sentia-se confuso sempre que pensava nisso. Entretanto começara o Pai Nosso. Todos se curvaram, cabeça baixa, rezando alto “Pater noster, qui es in cælis… “. Plácido inspirou longamente, admitindo que não perdoava a quem o tinha ofendido. Olhou as “beatas” pelo canto do olho enquanto se alinhavam para a comunhão. “Está quase”, pensou, ansioso. José Plácido de Lima tinha nascido de uma relação entre a cozinheira chinesa e o dono de uma casa respeitável. A desgraçada vivia no rés-do-chão da casa, entre garrafeira, lenha, sacos de arroz e outros víveres. Foi despedida e ele levado para o Orfanato Salesiano, onde o esperava mão leve, que lhe assestava por tudo e nada. Era “filho natural” de um senhor que preferiu o anonimato, assegurado por uma generosa doação ao dito Orfanato. Ali entrou sem nome de baptismo. Cresceu entre abandonados ou verdadeiros órfãos. A infância tinha sido rotineira, entre confissões, oratório, missas, reguadas, estudos de português, tabuada, arroz regado com sutate e, às vezes, alguma carne. Deram-lhe o nome de José, assim mesmo, sem mais. E os dias foram passando iguais. Sentia ser ninguém, nada, um acidente apenas. Um dia, chamaram-no, juntamente com outros miúdos de oito e nove anos, para uma sala onde estava o padre director e um casal. Alinharam-nos contra a parede, cabeças baixas. Somente José apresentava alguns, poucos, sinais de mestiçagem. No orfanato chamavam-no fa-sang (amendoim) pelo formato do rosto. A senhora olhou, olhou, e foi adoptado. Levaram-no de imediato vestindo o seu bibe encardido. Despediu-se do padre director e ei-lo a entrar, pela primeira vez, num automóvel. Dona Cássia tratou de convencer o marido a perfilhá-lo. Arnaldo Figueiredo Meireles de Lima, causídico abastado, lá anuiu, e eis que a José lhe acrescentaram o nome de Plácido e o sobrenome Meireles de Lima. José cresceu num casarão para as bandas da Flora, com jardim e pavilhão de Verão, palmeiras, canteiros de flores, entre criadas chinesas, tutores e visitas de abastados clientes que demandavam o saber do Senhor Doutor. Aos doze anos foi para o Liceu, ali bem perto. Dona Cássia, porém, fazia questão que fosse de motorista, o que lhe valeu a galhofa dos colegas. O rapaz, no seu casaco azul escuro, calças brancas e sapatos a condizer, olhava para os outros de soslaio, os complexos engolidos. Ouvia remoques que ignorava. Aos quinze anos tinha crescido. Estava alto, o cabelo era negro, sempre bem cortado, ligeiramente ondulado. Os olhos eram muito amendoados como os de tantos outros. Aos dezasseis cresceu-lhe o buço, uma amostrazinha que lhe valeu um acréscimo à alcunha, camarang, por causa dos pelitos revirados em forma de camarão. Era o camarang fá-sang, que Macau sempre abundou em alcunhas. Crescido, logrou namoriscar uma colega mais adiantada. A paixão foi mais forte e, certa noite, num quintal próximo do liceu, Josefina entregou-se-lhe. Os encontros repetiram-se. Colegas viram-no saltar o muro da casa dos Lopes e a notícia correu como um rastilho, galgou ruas, travessas e, num sussurro, chegou aos ouvidos de Dona Cássia e do marido. As reacções foram diversas. “É má-língua de Macau”, disse Dona Cássia. Arnaldo Figueiredo Meireles de Lima, não lhe respondeu, mandou o chauffeur pegar o Zé e levá-lo ao escritório. Suaves pancadas soaram no gabinete de Arnaldo de Lima. Armantina, que trabalhava ali, anunciou a sua chegada pondo a cabeça dentro do gabinete. “Que entre”, rosnou Arnaldo de Lima debaixo da bigodaça encerada e de pontas reviradas. José Plácido introduziu-se no gabinete colado à parede, como uma sombra. O rosto estava lívido. “Dá licença, Pai?”. Arnaldo de Lima pousou o charuto e olhou-o por cima das lunetas. “Com que então anda a completar a sua educação física a saltar muros, não é assim?”. A voz não se tinha elevado mas o tom não era encorajador. Levantou-se e um enorme estalo quase atirou o rapaz para o chão. E mais outro e ainda outro, puseram a cara de José Camarang mais rubra do que o de uma donzela. “Você desapontou-me muito. Tinha planos para si, mas agora mudaram”, sibilou roucamente o causídico lisboeta, há muito radicado em Macau, sem deixar de fitar José com ar sério. ” Fica avisado que as saídas nocturnas acabaram, o Liceu acabou e virá todos os dias aqui para o escritório, aprender a ser útil. Começará amanhã. A D. Armantina dar-lhe-á que fazer! Em vez de bacharel irá para escriturário”. O destino de Camarang fá-sang estava outra vez traçado. Olhou novamente para o cadáver do Dr. Arnaldo Meireles de Lima. Um ódio ao morto nasceu inútil. Tinha-lhe dado oportunidade de aprender boas maneiras, torrá português, mas foi um desastre. Passara anos numa repartição. Dona Cássia, convencida pelo marido, afastara-se. Daquele melro não viria coisa boa. “Falta de berço…”, suspirara rendida. José Camarang, sem conhecer pai e mãe, lá foi roçando as mangas de alpaca junto de bacharéis e doutores a quem se procurou encostar para colher benefícios. Os anos passaram e José Camarang contava o tempo para se aposentar. Sem grande sorte nos avanços aos bacharéis e doutores, chegara-se à Rua da Felicidade em busca de algum ricaço chinês precisado de um bilingue. Fora de horas conhecera algumas p’ei pá chai e tinha-se mesmo aventurado no Pátio das Galinhas, para servir os apetites dos convivas. Camarang Fá-Sang ali estava. Perante o esquife, maldizia o destino, odiando tudo o que se virara contra ele. Olhava a sua vida, da qual era simultaneamente actor e vítima. Jamais conseguira resolver-se, conhecer-se, distinguir os seus sentimentos. Não sabia que fugia de se enfrentar. Faltara-lhe sempre lucidez para se compreender. No quarto modesto que ocupava enrolou outro cigarro, acendeu-o ficando a olhar o fumo em ascensão, linhas rectas, serenas, verticais. Estava só, nascera só, perdido das origens, dor que carregava consigo, sentimento complexo esse. Pela janela olhou os escassos passantes. O tempo esfriara. Vestiu o camisolão. Sentiu-se mais aconchegado e, nesse aconchego, percebeu finalmente que ele, como todos, eram sós, e morreriam tão sós como nasceram. Sentiu alívio nessa incontornável verdade. Levou décadas para, enfim, perceber a sua singularidade e a similaridade com todos os outros. Na sua mente, algo embotada pela carga do passado, a vida passou a fazer um sentido que nunca lhe ocorrera. Os outros eram os outros, gente que invejara até esse momento. Sorriu, despiu o camisolão, vestiu o casaco mais forte, pôs o chapéu e, aliviado, fechou a porta do quarto alugado. Saiu para a rua e, pela primeira vez, respirou o ar fresco apaziguadamente. Um sorriso aflorou-lhe enquanto os seus passos se perdiam, encontrados.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasCinema na China | “Palácio de Verão” 性爱与政治:重访电影《颐和园》 Julie O’Yang Palácio de Verão é o quarto filme do escritor-realizador Lou Ye. Embora seja um nome menos conhecido do cinema chinês, Lou é, sem dúvida, o realizador que melhor domina a narrativa do enredo, destacando-se também pela escolha de vários temas polémicos que versam a sexualidade, o género, as obsessões e a política. Palácio de Verão conta a história do encontro de um rapaz e de uma rapariga. A rapariga, Yu Hong, cresceu numa cidade do Nordeste, perto da fronteira com a Coreia. Admitida numa prestigiada universidade da capital chinesa, a jovem e independente heroína está determinada a viver intensamente e a realizar os seus sonhos. Numa festa disco no campus, Yu Hong encontra Zhou Lei e, não é preciso muito, para que os dois percebam que foram feitos um para o outro. Mas, deve-se saber de antemão, esta não é só uma história de amor. Após conturbadas e inebriantes sequências de sexo, o filme envereda por um registo mais tranquilo. Como pano de fundo temos o clamor da China dos anos 80. Num estilo um tanto ou quanto anárquico, este levantamento não deixou de ter sido corajoso e cheio de promessas. Um tempo de reformas, onde aspirantes a intelectuais desfrutaram de um curto período de liberdade de expressão. No entanto a idade de ouro da democracia chinesa estava prestes a sofrer um golpe trágico quando o Estado promoveu o terror no Verão de 1989. A 4 de Junho, o Massacre da Praça de Tiananmen marcou o ponto de viragem da história da China moderna. Neste argumento, quer o sexo quer a política são levados ao rubro, mas, no fim, das chamas restam apenas cinzas. Sobra uma nação privada de esperança às portas do advento de uma nova era, a do capitalismo “Made-in-China”. No entanto o filme não se resume só ao amor e à política. A segunda metade aborda questões da família, que por sua vez são colocadas num contexto histórico. Lou Ye capta um período de transformações, durante o qual as bicicletas que deambulavam pelas ruas de Pequim foram substituídas por corridas de Volkswagens e as cartas de amor por emails. A nostalgia dum mundo para sempre perdido insinua-se através de uma atmosfera por onde perpassa uma estética feminina e nos corta a respiração. Palácio de Verão tem momentos chocantes quando os civis são abatidos pelas Forças Armadas. À semelhança da heroína da história a China parece perdida num limbo, sem objectivo. Veja o trailer aqui: https://bit.ly/1ZwahkX Palácio de Verão 140 min Drama | Romance Falado em: Mandarin | Alemão
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? A empregada do bar Têm estado dias de nevoeiro. Dias nos quais não se vê o outro lado da ponte. Uma cerração que se estende e que entra nas nossas cabeças. Ofuscando a visão. Aglutinando a alma. Até não existir mais nada. Até só existir esta intensa camada que envolve os nossos corpos. Nada mais que este estar em surdina. Esta pressão que aperta o coração. Olho para ti. E és? Existes realmente? Ou subsistes apenas como reminiscência no espaço cinza claro? Desde que aqui vens que me parece poderes estar interessado em mim. Mas algo se passou na tua vida que te deixou com uma dor profunda. Vens aqui todas as noites. Vens beber até não poderes mais. Sou sempre eu que te sirvo. E sirvo-te o tempo todo. Primeiro vieste uma noite e não ficaste muito tempo. Depois as visitas tornaram-se cada vez mais frequentes. Já encontrei os teus olhos a passear pelas linhas do meu corpo. Por vezes demoras-te no decote do meu vestido e, a medo, nos meus seios. Sinto que imaginas coisas, mas ainda não percebi bem o quê. Não sei se te sentes tão atraído por mim como eu me comecei a sentir por ti. A verdade é que uma mulher sente sempre o olhar de um homem. Ao mesmo tempo parece que tens medo de ti. Do que pode acontecer. E até, de podermos acabar na cama. E, se calhar, tens razão. Não sei se tens medo de te ligar a mim. Se calhar tens medo de ti. Se calhar tens medo que eu seja sádica, abusiva ou dominadora. Se calhar tens medo de seres tu o sádico. Se calhar tens medo que, apesar de trabalhar num bar, eu seja uma pessoa dócil. Que seja quase como uma flor. Uma flor que tu poderás danificar. Mas eu digo que não poderás. E digo que não poderás, porque se eventualmente acontecer algo entre nós, eu tudo farei para ser, primeiro a tua princesa, e depois a tua rainha. Hoje é terça-feira, e tu, mais uma vez, estás sozinho. Estás sentado ao balcão, no mesmo lugar de sempre, não muito longe do aquário. As tuas mãos variam de posição frequentemente. As tuas mãos existem em alternância, entre o copo e a cabeça, que se percebe mais confusa que nunca. Num gesto repentino bates com o copo no balcão e bebes o que resta de uma vez só. Ainda não estás bêbado como já te vi. Algumas vezes por esta altura já estás preparado para subir ao teu quarto. Mas hoje a tua confusão tem uma determinação qualquer que não te deixa ficar bêbado. Vou agora passar à tua frente. Devagar. Com um leve agitar do corpo. Fazendo com que este rebolar me insinue. Esperando que este rebolar te acorde e te faça olhar para mim. Vou-o fazer sem aviso prévio, de modo a que sintas um arrepio na espinha. Daqueles arrepios que fazem tremer o sexo. Daqueles arrepios que ampliam a imaginação. E assim me perco no sonho, no desejo, a olhar para ti. A olhar para ti. Mas tu não me vês. E que vejo eu? Vejo um homem que já não é novo. Talvez um pouco rebelde. Um homem estranho, abatido, e, sempre à procura, sempre tão perdido. Tudo o que quero neste momento, é mostrar-te que o que quer que seja que te tenha acontecido, não merece esta forma dolorosa de suicídio em andamento lento. Mas sou tímida, e nunca seduzi ninguém nesta situação, a partir do lado de dentro do bar. Eu sei. Eu sinto. Eu sei que podes ser bastante convincente. Eu sinto que, com vontade, com a tua voz calma, com o teu olhar que sei pode ser quase sedutor, podes fazer qualquer mulher sucumbir em desejo. Eu sei. Eu sinto. Mas estas não são as melhores circunstâncias. Tu não és tu. És tu e dor. E eu sei que posso fazer com que te esqueças. Nem que seja por um momento. Se me deres oportunidade para isso. Deixa ver se me consigo surpreender e me lanço para ti. “Que fazes hoje à noite depois disto?” Uma onda de antecipação parece crescer no meu peito quando penso nessa possibilidade. De algum modo não quero admitir mas parece que tenho estado à espera de ti. Parece que tenho estado à espera que te sentes nesse banco e que olhes para mim. Parece que és tu que irás preencher o vazio que sinto. Olho-te nos olhos e sorrio. Os teus olhos permanecem perturbados. Os teus olhos frios que seguram tanta dor. Olha para mim. Obedece-me. Toco-te na mão. Tu pareces não sentir. As tuas mãos frias. Imagino a minha mão pequena dentro da tua. Ensaio mais um toque rápido e desajeitado. Quero que as minhas intenções sejam mais claras. Quero-te. Quero um homem misterioso como tu. “A polícia anunciou pela primeira vez a existência de um assassino em série relacionado com o caso das mulheres com abdómenes cortados. A polícia decidiu agora colocar vigilância em todas as ruas principais da Taipa.” José Drummond
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO Clube dos Poetas Mortos [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]este sem dúvida um belo filme, mas a particularidade é que ele gira em torno do poeta Walt Whitman, desde a sala de aula com a sua fotografia de fundo, imagem tutelar, bem como o que domina depois o espírito do filme, o poema magnífico de «Oh, Captain, my Captain» para nós, toda aquela insubordinação e camaradagem perante uma austera estrutura nos traz particularmente à memória outros Capitães. Aqueles de uma manhã que bem poderia ser um poema de Whitman. Tal como no filme, os capitães abandonam o palco onde nasceram punhados de coisas incríveis e, convidados a sair, existirão contudo alguns soldados que se levantarão prestando-lhes a homenagem merecida, os outros, nem tanto, entrando em silêncio no ritmo das coisas interrompidas, e o poema agora, começa a fazer real sentido, como de uma antevisão o poeta nos falasse. O meu Capitão não responde, os seus lábios estão pálidos e imóveis. O navio ancorou são e salvo a viagem terminou e está concluída. Mas eu com passo desolado caminho no convés onde jaz meu Capitão. Tombado, frio e morto. Este poema é quase um alegoria a todo um tecido social, é uma visão precisa, belíssima, e traz em si a morte do poeta, do capitão. Whitman fora jornalista e ensaísta também, em seu tempo, e considerado o pai do verso livre, a sua obra está centrada em «Leaves of Grass» havendo dela várias edições com acrescentos numa mesma colectânea. Fernando Pessoa teceu-lhe várias homenagens dizendo que a sua poesia influenciou toda a posterior, e sem dúvida a sua própria, referindo-se à sua verve como um profundo hino à vida. Portanto, Witman é também um pioneiro, um poeta que se destaca por uma liberdade que ajuda a libertar os seus pares. Nunca esteve parado numa vida alegadamente susceptível ou contemplativa, foi um guerreiro, trabalhando para o exército como voluntário em hospitais militares, mas toda a compilação de « Leaves of Grass» agora com novos poemas acerca da Guerra Civil e da sua experiência, valeram-lhe um despedimento por indecência da parte do Departamento do interior. A partir de aqui, segue a sua pobreza que alguns admiradores e amigos tentam colmatar. A vida deste “Capitão” é a de um poeta, acrescentando páginas a um livro, pois que um poema nunca está concluído , tendo sempre sínteses fantásticas de um mesmo nomear. Estamos numa trincheira, num vapor violeta que não sucumbe ao ultraje numa maré viva de bem conduzir a Barca, numa realização suprema. Sem estes acrescentos, sem esta caminhada de um percurso constante, não há comando possível, dado que as viagens, não raro distraem o viajante acerca do propósito inicial, e muitos vêm morrer à praia contemplando o horizonte por que nada tinham a dizer. Mesmo Ulisses na sua permanência pela Ilha Encantada, não se esquecera de Penélope, pois que há homens como sonhos e heróis como poetas. Salgueiro Maia, foi arquetipicamente este Capitão, e por isso, devemos alguma reflexão aos mitos de natureza poética, dado que eles representam os Homens e sagram vencedora aquilo a que apelidamos de Humanidade. Talvez as manhãs nubladas tragam o «Desejado» que depois de materializado é esquecido, como as próprias nuvens e os sonhos. Os Clubes, mantemo-los, para que nos oiçam para fora do tempo como uma invocação, um treino, uma vontade. Com mais tempo, ter-lhe-íamos dado uma forma mais precisa, mas, há tempos que não se interligam, nem andam pela mão nas coisas correntes. Nos socalcos que transpomos e nas vidas que habitamos, faltam-nos os Cânticos e o «Cântico de mim mesmo» um Juan de La Cruz, um Salomão…. Falta-nos de novo entrar neste segredo imenso onde só os Clubes se distinguem à revelia das escutas em surdina de uma forma gasta. E, por que os Capitães são jovens e o grupo um núcleo de um coração para todos, o próprio Witman nos diz: Oh, instante da juventude! Elasticidade infatigável! Oh, equilibrada virilidade, florida e plena. para depois: Velhice soberana que desponta! Bem-vinda sejas, inefável graça dos dias que morrem! A nossa seiva já não tem a mesma sede, a nossa guerra não tem já inimigos, o nosso tempo contempla a sorte de termos vivido o momento de um rito que um Clube de homens parecidos a Aquiles nos fizeram viver num poema em carne viva. Perante factos assim, não se deve julgar, há coisas que acontecem como dádivas, instantes de amor. Julgar, é não compreender. Depois, não somos juízes, e esta é de facto para muitos uma causa alheia. Comum, têm-se as ideias, as formas de vida, os ritmos quotidianos, alguns pequenos Clubes e uma língua que se esforça, de incomum, temos aqueles que são incomuns, que nos lembram algo que quando estamos tentados a esquecer, renasce, para nos relembrar: Um chamamento no meio da multidão É a minha própria voz, avassaladora e final. Temos medo, sim, de ter afugentado estas sedes, estas fomes, estas forças, que elas por descaso e tristeza se tenham afastado de nós, temos vazios tão duros como balas, e uma paz que se sustem só em conforto, temos medo, muito medo, pois que sabemos que ultrapassámos um limite onde podemos vir a não ser contemplados. Por isso, se os invocarmos, estamos a nomear os caminhos por onde eles retornarão. Ficar sem a sua presença é pior que tudo e o nosso esforço nunca será recompensado se não tivermos acesso a uma pequena fimbria dos seus “Clubes.” Eles também vêm para o Banquete. Um Banquete vivo de uma temporada que nos galvanizará para sempre. A ti, peito que apertas outro peito! A ti, emaranhada sebe de cabeça, barba e músculo! Gotejante seiva de ácer! Fibra de trigo viril, a vós! A vós, ventos que me roçais com vossos genitais! A vós, amplos campos musculares, ramos de azinheira vadiando amorosamente nos meandros dos meus caminhos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasSó Vento Umberto Eco escreveu: “Apenas nós, os monges da época, conhecemos a verdade, mas dizê-la, às vezes significa acabar na fogueira”. Homenagem a quem há pouco tempo nos deixou e pelo tributo deste incansável erudito trabalhador a des-cobrir-nos as imagens mentais que trazemos do momento que é a Vida [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje, 1 de Abril, dia dos enganos há três comemorações que gostaria de referir. Duas delas são sobre o aparecimento em Macau de dois jornais na primeira metade dos anos setenta do século XIX e a terceira, o início da ligação aérea da TAP com Macau. Esta última nos enviará para outros voos, em reflexão e fazendo o transporte entre Civilizações, nesse dual estar só um terceiro vector lhe dará a verticalidade. É como acrescentar à nossa actual memória visual, do observar-se de cima, (conceito de superioridade), a espalmada área horizontal de quem por esses olhos aceita por inferior idade tal Visão única. Criada apenas na base da estatutária autoridade, onde o que conta no estar é o individual Ser, feito no que tem pelo material, sendo o Outro, o que não pretendemos conhecer em (/para) nós. São esses erros de quem usa a Verdade pela sua perspectiva e nela subconscientemente se projecta, a crer-se assim a pensar (pela própria cabeça) a imagem (que traz) da Natureza. Aqui esses enganos, celebrados hoje neste artigo de 1 de Abril. Parece ser um engano a data de 1 de Abril de 1873 que Luís Gonzaga Gomes refere para o aparecimento do jornal O Imparcial. Registo actualmente sem prova física pois, segundo Daniel Pires, que há poucos dias lançou em Macau o Dicionário Cronológico, “nas bibliotecas e arquivos portugueses e macaenses não é conhecido qualquer exemplar deste semanário”. E por aí continuando: “O Jornal da Noite de 18 de Junho de 1873 desvenda o nome dos redactores de O Imparcial: António Alexandrino de Melo, barão do Cerdal (1837-1885), Vicente de Paulo Salatwichy Pitter (1813-1882), Francisco António da Silva e António Joaquim Bastos Júnior (1848-1912), que, de acordo com o Pe. Manuel Teixeira, assegurava igualmente a edição”. Para a data de início da publicação refere ser 5 de Abril de 1873, o que não corresponde à indicada por Luís Gonzaga Gomes e por isso, neste dia, onde ninguém leva a mal os enganos, estas linhas dedicadas a um semanário que cessou a sua publicação três meses mais tarde e que fora fundado por Francisco António da Silva e financiado por Nicolas Tanco Armero, informações do jornal Independente, dadas à actualidade por Daniel Pires. Sem pertencer a esta data, mas para ligar historicamente com o Jornal de Macau, este sim iniciado a 1 de Abril e da mesma facção política de o Imparcial, surgiu a 28 de Maio de 1873 pela segunda vez, O Independente, cujo director era o advogado José da Silva, que segundo Daniel Pires “editara e participara na apurada experiência do Ta-ssi-yang-kuo. (…) Desde a génese de O Independente, José da Silva, seu editor, revelou frontalidade e coragem, trazendo à colação irregularidades cometidas por uma facção dominante, capitaneada por Bernardino de Sena Fernandes, que tinha o beneplácito do governador e do juiz principal, João Ferreira Pinto”. O Independente saíra pela primeira vez em 1867 (Daniel Pires refere a data de 15 de Setembro de 1868) e em 8 de Julho de 1869 interrompera em Macau a publicação, por ordem do juiz que processou José da Silva e ordenou a supressão do jornal, tendo este rumado a Hong Kong, onde o continuou a publicar. De salientar ser de um outro estar essa luta, que não traz paralelo com a que hoje se trava pois, crendo-nos pelo pensamento de um universalismo internacional, mas usando os direitos individuais, apenas enfeudados estamos num jogo de multinacionais. Já para o início da publicação do Jornal de Macau, parece ser de comum acordo a data de 1 de Abril de 1875. O semanário “político, literário e noticioso” Jornal de Macau não durou um ano pois deixou de ser publicado a 8 de Março de 1876. Segundo Daniel Pires, apenas existe um número deste jornal, que “foi redigido inicialmente por Manuel Luís Rosa Pereira” e que o Independente, jornal opositor ao Jornal de Macau, refere serem os mesmos que colaboravam no Imparcial, “havendo desta vez alistados nesta cruzada especuladora mais alguns tartufos, além de dois militares, recentemente chegados a esta colónia, mas estes não militam na secção impolítica: botam apenas notícias, charadas e fados” (…) e “dizem por aí que é subsidiado pelo Sr. Bernardino de Sena Fernandes”. Para fechar este ciclo, ligado aos jornais, o director de O Independente, José da Silva tinha “vinte e mais processos pendentes em juízo”. As vestes com outras personagens! E dizem que o Tempo existe! Engano, pois é apenas um método, para em ciclos tomar-se consciência. Que Tempo. Os OLHOS e sua projecção Sonhos de um voo, que o Estar abarca, chegaram num momento com espelhos à História da Imagem. Visão que se tinha perdido há milénios do seu Todo. Para esta história foram os olhos que dominaram a realidade e é deles que fala, vistos por si mesmos. Olhos nos olhos, na ousadia do olhar constroem o mundo de onde chega ou parte a imagem. Observam-se ao olhar integrados no cérebro; estão na cabeça. Pelos limites se englobam e vêm-se olhando o corpo. Fascinadamente distanciados pela visão, ascenderam sobre os outros sentidos. Envolvência das sombras com que os olhos se turvam e não relatando, porque só para si olham, um dia apercebem que o inanimado tem capacidades de voar. É o vento a fugir-lhes! Quando o corpo pergunta à cabeça o que os olhos lhe dizem, estes, por serem quem faz os padrões da História, evitam contar para dentro o que fora não vêem. Mas há temor quando o corpo lhes pergunta o que tinha sido aquilo. Não existe imagem. Só vento. A terceira comemoração No dia 1 de Abril de 1996 foi inaugurada a ligação aérea entre Lisboa e Macau dos voos da TAP- Air Portugal, que terminaram no dia 31 de Outubro de 1998, com 536 voos efectuados, cerca de 120 mil passageiros transportados e 4650 toneladas de carga nos dois anos e meio de operações, no qual resultou um prejuízo de 200 milhões de patacas. Números frios, sem serem analisados à luz dos acontecimentos e da História, o que ficará para mais tarde. Se no início, os voos faziam escala em Bruxelas e Bancoque, já para os finais paravam também em Istambul. Invocam estas três cidades, a par de muitas outras como Bagdad, Madrid, Paris, Estocolmo e países como a Líbia, Síria, Afeganistão e de tantos outros locais onde explodem bombas (sempre condenável), a emoção de uma profunda tristeza e pesar perante o estado de extremos a que chegou o mundo. O explosivo estar em competição, no qual todos estamos investidos, leva a sermos vítimas da nossa própria violência com que enquadramos o Outro. Observando-o, ele só existe no que dele entendemos. Assim são também estas palavras escritas, que significam apenas o que delas compreendemos e não, a ideia de quem as redigiu. Sente-se que se encerrou um ciclo, onde a Europa, fruto de um colonialismo de quatro séculos, se auto recria como a Civilização Universal, pois considera-se o Centro do mundo. Mas como o globo terrestre é redondo, esse centro afinal não passa de uma imagem mental cultivada pelo ignorar, o que para além de si existe. E em 2015 na Europa, o caos ganha consciência popular num mundo fechado e reduzido a um ponto de interseção (∩), criado pelo nosso subconsciente, resumindo-se ao individual Ser, pelo que Eu tenho de material. E só querendo saber o que não nos contradiz, reduzimos ao ponto esse Espaço de entendimento. Assim fazemos a nossa vida, sem querer saber o que viemos ao Mundo fazer. Com as realidades padronizadas na propaganda e publicidade e fruto de uma educação cuja racionalidade lógica proveniente de mentais imagens trabalhadas há dois mil e quinhentos anos, nos dão a razão Absoluta. Com esse padrão, o Ser Humano é superior ao Animal e assim transpondo-nos para além do Reino Animal, somos pertença de um Reino Superior, o do Ser Humano, que apenas há sessenta mil anos tomava consciência da sua existência. Consciência que traduz um momento tão curto quanto a felicidade que trazemos dessa realidade de Paraíso, ou longo, na guerra entre os eles, pois, como refere Teixeira de Pascoais, o “futuro é a aurora do passado”. Deixando esse momento de Paraíso, pois a terra era pequena para tanta gente, partindo como nómada, sedentariza-se ao descobrir novos locais convenientes mas, quando as condições de sobrevivência começam a tornar-se aí também difíceis, de novo um grupo tem de partir. Assim de lugar em lugar, entrando em mundos cada vez mais hostis e locais inóspitos, encontramos a Terra toda habitada por seres vivos. Na intestinal luta de sobrevivência, primeiro contra os selvagens animais que reclamam os locais onde desde sempre os seus ancestrais viveram e já com o uso de utensílios como armas, os matamos para a nossa alimentação aliar a carne com os colhidos frutos, raízes e cereais selvagens, que começam a rarear. De uma táctica, para a caça de animais de pequeno porte, até à estratégia usada para conseguir abater os gigantes mamíferos se foi prolongando a instrução do reconhecer a Natureza. Devido a uma carestia de alimentos e um aumento das populações, em dedução realiza-se há dez mil anos a Revolução Agrícola, em terrenos cuja água o propicia. Esse novo método de produzir alimentos, que no início e devido a terem uma menor qualidade nutricional provocou a morte a muita gente, levou ao aparecimento da sedentarização permanente, com a domesticação de animais. Assim a origem de dois diferentes estares: o de sedentário e o de nómada, a viver pelas estepes no pastoreio dos rebanhos. Dividia-se o Céu entre os que pelo Calendário Solar viviam, presos aos ritmos ligados à Agricultura e os que sem tecto fixo usavam a Abóbada Celeste, com os cinco planetas e a Lua, tal como o Sol, para regular o estar. Fica o Universo com outra Unidade, que não a feita só nos doze meses, nos vinte e quatro termos chineses, com que se compõe o 1 feito no 6, onde a trindade é dual e individualmente só feita pelo conceito de ilha. Conjugando pelo espelho no 5, englobamos pela reflexão e o que em cima (Céu) se encontra, é o que se passa na Terra e daí uma nova Unidade se des-cobre, sendo o conjunto maior que as partes. Pensamento Continental, que encobre o Uno de todos os números no 1. O que fica de fora, apenas na interseção Se a sociedade foi progredindo nas duas diferentes vias, os sedentários e os nómadas, cada um radicalizou-se na visão que tem de si e do outro. Uns fecharam-se em si mesmos (no Eu) e pelos direitos individuais promovem uma cultura aberta, mas apenas ao que não contradiz essas Verdades e tal como S. Tomé está o ver para crer, só pela matéria em pensamento concreto as aceitam; – já sem a Gramática necessária para atingir o pensamento infinito e abstracto, que combina a matéria com o Todo e como energia, está para além dela, forma. É um Espaço e logo há, em retenção da fonte, quem condensando a energia em ligações iónicas, dela se apropria e reconhecendo-a só pela material idade, racionaliza na lógica científica de laboratório e retirando-a da unidade infinita, isolando, procura as causas para chegar ao efeito pretendido. É nessa ideia ainda hoje dada pela Instrução e Educação, ligando-nos pelos mundos físico (e com pouca química), dos desejos e de um pensamento concreto, para criar ilusórias imagens teatrais de cinema, com heróis e ídolos, que no fim são comuns mortais caídos em desgraça e no 4 quarto montam o filme sem conseguir enxergar o que a nível etéreo está, como reflexo dessa materialidade até aos 9 mundos que fazem o Universo. Nessa qualidade, a nossa sedentarização domesticou o animal e o que dele temos ainda como herança. E se antes havia Ginasium, onde se debatia em filosóficas questões a Existência, agora apenas resta a militarista e científica educação espartana, cujo modelo é já o da máquina e não só para o Desporto. Nesse modelo de competição, ciclo do Trato iniciado há cinco mil anos, o Deus Superior cujo Absoluto não vem da Autoridade Natural, mas da Estatutária de um pensamento racional, lógico, dedutivo, dá como resultado o de um animal que se deixou cair na rede e sem intuição, chega pela entropia agora ao fim. Sem regras, senão as leis que agrilhoam o Ser Vivo, vive perdido no caos.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasIdos de Março [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]inha razão César ao temer o ano 44, naquela tarde de 15 de Março sucumbia assassinado por Brutus. Também os Cátaros uns séculos após desceriam de Montségur, os últimos resistentes desta heresia tão especial que dera origem aos chamados «Homens Bons» e que no seu Maniqueísmo ajudara a uma civilização melhorada na região do Languedoc. Cá em baixo esperava-os a fogueira. Era a manhã de 16 de Março, de 1244. Pouco tempo depois, Jacques de Molay, o vigésimo terceiro Grão-Mestre da Ordem Templária, nascido exactamente no mesmo dia da extinção cátara, acabaria numa tarde de 18 de Março do ano de 1314, também ele na fogueira, depois dos anátemas que desferiu no Papa Clemente e no rei Filipe o Belo. Anátemas com carácter de maldição já que no espaço de um ano ambos morreriam e o malefício acompanhara os reis de França. Simão Botelho parte para o desterro nessa manhã de 17 de Março… A viagem para a morte em pleno mar e o amor estranho de Mariana… De facto, os Romanos sempre temeram os cinco últimos dias que antecediam a Primavera. Muitos se fechavam em casa para escapar a tão nefasto instante. Os últimos dias do Inverno têm presenças assombrosas como se uma janela desse para o sublime, a dor, e o terror, emblematicamente na cúspide de Peixes, a casa zodiacal da memória universal, parece sim, que se abrem as portas para o improvável habitado. Podemos viver este tempo como uma anunciação de nós em vidas múltiplas, um resgate de todas as vidas que trazemos vindas, uma memória intercalada de estímulos antigos ligados ao sacrifício e a uma liberdade inesperada. Todo o tecido deste tempo nos atira para uma saudade de antanho, mas também para algo que estava oculto em nós. A morte aparece-nos como a mais estranha das missões e não raro sentimos que ela é uma passagem grandiosa, e dizer adeus uma manifestação poética como jamais tínhamos imaginado. Os que ficam nem sempre têm a sensação da forma mudada, da grande alquimia, pois que nos vamos formando nas horas seguintes e nas formas activas dos dias, mas, a neblina de uma vaga sensação de um tempo diferente, nos habita. Não só Simão Botelho parte para o desterro como o próprio Camilo nasceu nesse dia, não sei até que ponto ele nos quer dizer de si na imagem de Simão. Sabemos da sua índole complexa, anticonvencional e algo belicosa, da sua imensa necessidade de afecto e de paixão, de uma vida passada nos limites do admitido e com toda a carga de desvio e penas. A sua natureza típica de um romântico não foi indiferente a este personagem trágico que se debatia com uma dualidade amorosa e uma imensa lealdade para com o seu grande amor, este tempo de absorção entre a partida e o nascer, entre a personagem e a sua própria, ocupa hoje o dia toda em reflexões, diria até, que extemporâneas. Mas neste dimensionar está a vida daqueles que viveram no limite, dos que porventura chegaram a um mundo onde a ideia fora mais de partida para um desterro do qual só as águas afogariam na sua imensidão de destino. Vemos como a febril herança de um escritor se nos alucina e perturba, como aquela vertigem foi grandiosa, também, como todos os resultados foram válidos e trabalhosos, como se chegou à cegueira e se contorceu a vida numa alma que não tinha mais razão de viver. Os seus olhos viram a tragédia que a própria vida não foi capaz de suster. Ninguém morre porque quer, morre-se por falência e desistência, morre-se por condição. E a de um homem a quem lhe é amputada a vida, esta poder-se-á revelar-se uma jaula de infortúnios. Essa decisão não é um pedido, ninguém pede a outro tal trabalho se ainda lhe for dado discernimento para o efectuar. Ninguém convoca outro para assassino, sobretudo um poeta, um escritor, um homem livre. Não vejo Antero, Camilo, Espanca, Sá-Carneiro, pedirem para os matarem. Eles, não pedem, eles exercem a força do destino. Esta diferença faz a distinção da tão discutida Eutanásia. Estes são os dias que nos informam da natureza trágica do Homem, e quando tocamos nessa fímbria não nos é dado discutir formas nem comandar outros para resoluções tamanhas, estamos face ao desconhecido, a um processo de transformação que desagua numa surpreendente vitória. Horderlin, o poeta dos poetas, nasceu a vinte de Março. O seu espectro, a sua natureza, eram a de um ser assaltado pela beleza, pela transparência das coisas sublimes, porém a sua vida foi metade passada nas sombras da loucura que não notara e que imprimiu com voz de arauto. Todas as coisas prodigiosas morrem e nascem neste ciclo dos Idos de Março e nós limpamos uma a uma as nossas quentes lágrimas porque o Sublime é triste e a Beleza também. Como se fosse uma ferida o tempo se desnuda e nos mostra o que não vimos em outros momentos, e a Graça é o « Dom das Lágrimas» as oblatas da antiga liturgia cristã o refúgio de uma salvação. «Vacilas por ternura Deus omnipotente da pedra fonte da água viva rompeste a um povo sedento retira da nossa dureza a compunção das lágrimas longo pranto por nossos pecados concede pois vendo-nos assim te compadeces e obtemos remissão» . É uma digna forma de estarmos preparados, este suor das nossas entranhas, por que os Idos de Março são de facto os que nos arrancam da flama da nossa carne o mais comovente de nós, esta passagem pelo lago prateado e pelas dores que param, porque passada a dor, todo o Universo é um canto grave de uma doce e funda tristeza. Estamos abertos para o imensurável mistério de Deus, e ao focar a existência de Jesus no signo dos Peixes, damos-lhe as qualidades deste momento cósmico, como se nestes dias fosse ele o nascituro. Lembro-me da cascata de poetas que em Março de 1993 morreram no espaço de uma semana nestes Idos, e nem por isso a memória se me torna tormentosa, eles partiram na sua fase de expressão superior, e todo o homem animado, que tem de facto uma alma, convoca os outros para a partida e juntos vão numa saga que a nós ainda não nos é dado compreender. Creio na santidade do propósito bem como no invulgar poder da invocação. Ninguém morre só, quando foi habitado por certos elementos : o Universo conspira na sua deidade e força o encontro entre pares. Assim nós, que deste lado do vitral fugimos aos sonhos e nos adensamos num real imposto, possamos um dia chegar a eles de forma transparente. Estes são os Idos de Março, os mais assombrosos e transcendentais, e ninguém que tem um destino escapa indelével que seja ao seu tão inigualável encontro. E terminam neste lago: Dignai-vos dar em abundância Luz da inteligência verdadeira a estes submissos servos Lágrimas aos olhos Contrição ao coração Até que purificados do actual luto e da tristeza espiritual Da morte eterna nos afastemos como de uma ruína.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasCondição Humana: A Artificialidade do Espírito Calvino, Ítalo, O Barão Trepador, Teorema, Lisboa, 1999 Descritores: Literatura Italiana, Realismo Fantástico, Antepassados, Tradução de José Manuel Calafate 310 p., ISBN: 972695-357-X Cota: 821.131.1-31 Cal [dropcap style=’circle’]Í[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de Outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de Setembro de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neo-realista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecida e mais genial é As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante. Condição Humana: A Artificialidade do Espírito Este livro como os que imediatamente o antecedem e depois se lhe seguem denunciam uma evolução estranha em Calvino, relativamente à sua estreia como romancista, que num espaço de tempo muito curto passa de uma espírito de aggiornamento de partisan para uma atitude misantrópica anti-histórica e até aparentemente anti-humanista; e nesse sentido pós moderna inequivocamente, no sentido em que a pós-modernidade se opõe às metanarrativas da modernidade para me exprimir como Lyotard nas suas obras sobre o tema, em particular a Condição Pós Moderna e a Pós Modernidade Explicada às Crianças, este no quadro de uma intensa polémica com Jurgen Habermas, o que quer dizer que pondo em causa as grandes metanarrativas da modernidade, o autor põe consequentemente em causa a questão do sujeito, do sentido e a questão do humanismo. Foi provavelmente a perda das convicções e crenças do resistente e do militante que empurrou Calvino para este distanciamento relativamente à realidade acompanhado pelo culto de um non sense disruptivo, desagregador, irónico, céptico ou mesmo niilista e portanto a substituição de um realismo tout court por uma forma hilariante de realismo fantástico e absurdo. Ítalo Calvino insere-se numa linha genealógica da evolução da Teoria do Romance que favorece uma ideia de personagem reflexiva e de narrador problemático. Os romances de Calvino são sempre ao mesmo tempo ensaios brilhantes que exploram de maneiras diversas a condição humana, histórica ou não. Algumas vezes sente-se a tensão diacrónica nos textos mas outras vezes o autor abandona-se a uma reflexão estrutural sem pudor de mergulhar nas águas límpidas da metafísica, da ontologia e da ética; embora os seus textos não percam nunca um sabor absolutamente ficcional e romanesco. É ele mesmo que, auto consciente de uma intencionalidade explicitamente heurística, nos diz, no prefácio aos Nossos Antepassados, que pretendeu com essa trilogia inventariar tipologicamente modos da aventura e experiência humana. Esta tipologia é conceptual e simbólica e não empírica. No Visconde Cortado ao Meio perpassa a consciência de que a vida humana é marcada por uma contingente incompletude disfarçada de estrutural, necessária ou constitutiva. Devem ter-se em atenção os mecanismos ideológicos de reificação e alienação travestidos de inevitáveis e dogmáticos. Aí se mostra portanto o caminho para a superação das mutilações impostas pelos condicionalismos sociais e, eu acrescentaria, e ideológicos. Em O Barão Trepador problematiza-se a sociabilidade e o conflito sempre latente entre o indivíduo e a sociedade e portanto os modos de procuração de uma completude que não aliene um dos elementos em jogo. E no Cavaleiro Inexistente evidencia-se a questão mais radical do Ser e os modos ao alcance do ser particular de poder alcançar uma plenitude existencial. Todas as questões modernas das hermenêuticas da suspeita se equacionam na sua obra, em particular nesta trilogia de que O Barão Trepador faz parte, algumas de uma forma genialmente pré monitória. Voltemos ao Barão Trepador. Sinopse: Cosimo, um jovem nobre italiano do século XVIII, revolta-se contra a autoridade paterna e resolve trepar a uma árvore, depois passa de árvore em árvore e aí permanece durante o resto da sua vida. É espantoso e hilariante ao mesmo tempo o modo como ele se adapta a uma existência aérea. Ele consegue fazer tudo em cima das árvores: caçar, semear e colher; namorar, divertir-se com os amigos que vivem no chão e mais ainda. Lá de cima do seu poleiro arbóreo o barão assiste a tudo no seu tempo. Em boa verdade o barão trepador não se revolta apenas contra o pai, ele revolta-se contra a humanidade do seu tempo, quer dizer contra os valores, as mentalidades e a cultura do seu tempo. Este romance de Calvino é para mim de uma importantíssima relevância ideológica. O homem é para mim, apesar do seu suporte biológico, um ser essencialmente artificial e artificioso, quer se queira, quer não. A sua capacidade de adaptação é notável, eu diria mesmo, absoluta. Nesse sentido o homem não tem natureza, ou seja, o próprio da sua natureza é não ter natureza, a essência própria do homem é a sua existência e a capacidade de adaptação a todas as situações que a existência lhe coloca. O barão que decide e consegue viver em cima das árvores é um bom exemplo. Não há limites à capacidade artificial da humanidade. O barão não aprendeu a voar, mas tê-lo-ia conseguido, mais tarde ou mais cedo, se precisasse, como veio a acontecer com os seus descendentes. Um dia a humanidade irá viver em outro lugar do Cosmos como Lyotard intui ao abordar o tema da sobrevivência da humanidade no quadro do desaparecimento do nosso Sistema Solar, no célebre livro, O Inumano. Mas isso ainda vem longe. Relativamente ao livro de Lyotard, como facilmente se percebe, eu só não estou de acordo com o título do livro que me parece absolutamente errado. Não há nada de inumano nessa possibilidade, bem pelo contrário. O barão desencadeia ainda outro processo tipicamente humano, o do distanciamento. É um sonho humano permanente, o da superação e da distância. O facto de ser para o alto não é desprezável e ainda menos desprezível. A procura de um corte com as amarras, de um soltar das tenazes que prendem à terra e que no caso visa a altura, tem os contornos de uma sublimação e de uma elevação em direcção ao céu, enquanto metáfora salvífica e paradisíaca. Se fosse possível todos os humanos viveriam um tempo, ou sempre, longe do chão. Só nas alturas em rotura com as formas de vida em que nos encontramos mergulhados no lugar em que vivemos enclausurados em horizontes limitados e estreitos, como numa cela, seríamos talvez melhores; procurando portanto uma descentração relativamente às amarras geocêntricas e geomórficas é que se pode ver o Mundo e adquirir uma perspectiva panorâmica e globalmente livre. No fim de contas é o que sempre fez o Espírito. Por outro lado o processo de auto individuação dinâmica pressupõe ir do local e familiar para o universal e estranho, ir do Mesmo para o Outro. Do Ego para o Mundo. Então provavelmente um dia ir da terra para o ar e a água. O Barão Trepador coloca de facto muitas questões e representa múltiplos desafios. Cosimo percebe que a sua ousadia terá um preço, ou pelo menos descobre-o, e que sair da convencionalidade de um mundo da necessidade e da segurança que ele oferece para entrar deliberadamente no domínio precário da contingência significa trocar a felicidade mesquinha, pela dúvida, pela improvisação, pela imprevisibilidade trágica do aventureiro, geradora quase sempre de incompreensão e mesmo de hostilidade. Com isso vem a solidão mas é assim a vida de todos os aventureiros e de todos os visionários e são eles que marcham à frente da humanidade, triunfantes. A solidão de Cosimo é a solidão de todos os que se afastam da banalidade, da vulgaridade, da domesticidade e assumem os desígnios próprios da sua humanidade. Esta fuga não é uma alienação da condição humana mas a procura da verdadeira condição humana, aquela que volta costas à natureza para entrar deliberadamente no universo abstracto e artificial do Espírito.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto Quando a viúva ficou em silêncio, ouviu-se claramente o chilrear de um pássaro através da vidraça. Um som que se prolongou durante algum tempo, até que se ouviu um bater de asas e o pássaro voou para um qualquer outro lugar. As pálpebras da viúva tremem de raiva quando fala. Por momentos está em silêncio. Mantém a calma. Pouco depois perde-a e os lábios mexem, e as pálpebras tremem de raiva. Tenta recordar-te. Quem poderá saber da nossa existência? Quem poderá ter encomendado este trabalho? Observa bem o espaço. O que poderá ser usado para nos libertar? Tem que existir alguma coisa. Tem que existir uma saída. A viúva não vai ficar o tempo todo nesta sala. Quieto nesta sala sombria. A viúva continua a remexer nos armários. Ali daquele lado existe uma pequena janela. Existe esperança. Uma esperança diferente daquela que vivi nos dias seguintes aos teus olhos se apagarem. Uma esperança que perdi na base da colina, atrás da casa. Atrás de um alto monte de terra. Uma casa com a entrada escondida por ervas daninhas. Uma casa modesta. Uma casa onde me escondi até esquecer que nome era o meu. Até esquecer que nome era o teu. Entre as ervas daninhas floresceu um grupo de flores de cor azul. Violetas. De um azul forte. Um azul brilhante. O que a viúva não sabe é que nessa casa, com a entrada escondida, uma estranha aparição surgiu uma vez à porta. Uma estranha mulher que parecia estar em baloiço. Para frente e para trás. Parecia que estava realmente em baloiço. Talvez fosse por causa da paisagem ao fundo. Uma paisagem com grossas folhas e sobrepostas camadas de gelo. Grossas folhas que antecipavam uma cadeia de montanhas nevadas. Nevadas como só as montanhas podem ser e com aquela sensação de imensidão que só as montanhas possuem. Essa estranha mulher parecia em baloiço mas podia ser o fundo. Lembro-me que eu próprio me senti em baloiço. Em baloiço com aquela cascata de montanhas nevadas que eram de um branco-neve fria. E eis que o frio da neve tornou-se cor quente soltando uma música inebriante. A mulher começou a soltar sons. Consonantes. As consonantes dos teus olhos que ao chocarem na neve não eram mais um uniforme branco. Estas consonantes não eram um uniforme branco mas sim muitas cores harmonizadas. Eram consonantes com muitas cores e muitas outras tonalidades dentro de cada cor. Com variações de vermelho, e verde, e azul, e roxo, e amarelo, e muitas outras cores, e muitos outros tons. Talvez fossem os pinheiros vermelhos. Os mesmos pinheiros que se erguiam para além do telhado de palha. Essa estranha aparição que parecia em baloiço, para frente e para trás, e que parecia desvanecer-se nesse movimento tinha os mesmos olhos consonantes. Essa estranha aparição tinha os teus olhos e eu levei esses olhos até uma sala ao fundo da casa. Uma sala onde comemos bagas de uvas e todas as pétalas das violetas de azul forte que floresceram por entre as ervas daninhas. Essa mulher não me mostrou logo todo o seu rosto. Não me mostrou logo tudo. Demoraram meses até que ela me mostrasse as marcas dos meus dedos no seu pescoço. No teu pescoço. O que a viúva não sabe é que tu voltaste para nunca mais me deixares. O que a viúva não sabe é que me acompanhas para todo o lado e que estás agora aqui sentada no sofá e que tudo vês, e que tudo ouves, e que tudo sentes. A viúva desloca-se a espaços, para observar a sopa que tem no fogão. Ali ao fundo existem umas portas de vidro deslizantes. Penso que dêem para a casa-de-banho. Levanta-te e vai até lá. Espera até que ela aqui volte e investiga se existe algo que possamos usar. Podes olhar-te ao espelho para te certificares de que não há problemas com a tua aparência. Enquanto isso investiga o espelho. Vê se é grande e se o poderemos de algum modo utilizar. Investiga se tem banheira. E depois segue até ao corredor e investiga o resto da casa. A viúva respirou fundo várias vezes antes de dizer. “Tu vais ser o meu último trabalho. Uma vez que faça isto desapareço”. Vai já. Vai agora que ela se inclina sobre mim. Estamos aqui agora, mas não amanhã. Eu amanhã nem vou saber quem sou, nem vou voltar a ter um nome diferente, nem uma cara diferente, nem sequer te vou conseguir ver. Vai agora. Por favor. Não consigo sacudir a consciência. Sinto a minha respiração a aumentar ao mesmo tempo que o meu bater de coração acelera. Sinto uma gota de suor. Um formigueiro na pele. Sinto a droga que ela me injectou começar a fazer efeito. Não quero ter nenhuma premonição. Mas sinto algo de mau. Como um aviso. Desta vez é diferente. Estou a ficar demasiado tenso. Não quero dar indícios de medo à viúva. Olha. Ela vai aumentar o som da televisão. Vai agora. “A polícia revelou que foi descoberta uma outra mulher grávida morta na Vila da Taipa. A mulher, também com 32 anos, foi igualmente encontrada com o abdómen aberto. O marido terá chamado a polícia depois de ter chegado a casa e ter encontrado a mulher na sala de jantar do apartamento. O feto, de 7 meses, foi encontrado deitado ao lado dela, dando ideia que o assassino não teve tempo para o levar como nos casos anteriores. A polícia está agora num impasse, procurando por novos indícios, depois de ter preso um suspeito de 23 anos que havia confessado ser o responsável dos anteriores casos. Em relação à rapariga da ponte não existem mais desenvolvimentos.” José Drummond
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasQuatro ou cinco filmes, dissemelhantes. [dropcap style=’circle’]N[/dropca]o seguimento da moda britânica do filme de acção com marginais, uma sub-espécie da longa e provinciana tradição realista das ilhas, recomenda-se, com um pequeno frisson mas com um entusiasmo comedido, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Uma história de uma noite apenas, passada no Yorkshire, começada pela fuga de Leila, uma adolescente ajudante de cabeleireiro de origem paquistanesa para junto do namorado Aaron que vive numa roulotte. A perseguição que lhe movem dois grupos, um por dinheiro e o outro por honra, a instâncias do pai, envergonhado perante o comportamento da filha, dura toda a noite e mostra um mundo cinzento e pleno de desajustes sociais. Outros dois filmes em que este complexo marginal (suburbia/cabeças rapadas/caras de mau) se exibe como pano de fundo, de maneira exemplar mas em modo francês, são Deephan, 2015, de Jacques Audiard e Bande de Filles, 2014, de Céline Sciamma, já aqui suficientemente elogiado noutra edição desta página. Existe já uma estética do filme chinês de actividade mineira. Exemplos são Mangjing/Blind Shaft, de Li Yang, 2003, ou a primeira parte do penúltimo filme de Jia Zhengke, 2013, Tian zu Ding/A Touch of Sin. Consiste num cortejo já familiar, a inexpressividade dos rostos, masculinos e femininos, dos mineiros, as doenças associadas a esta profissão, os imensos riscos de desabamento, a poluição, a desumanidade, a fealdade dos lugares de extracção e de tudo, a magnitude olímpica da intervenção sobre a terra, etc. Em Beixi Moshuo/Behemoth, de Zhao Liang, um documentário de 2015 (estreado no Festival de Veneza do mesmo ano e que consta do programa do HKIFF que decorre neste momento*), esta actividade enquadra-se em dois outros complexos: o do contraste que as feridas que a exploração mineira estabelece com a verdejante paisagem original que destrói e o da exploração de uma terra que é ocupada, a da Mongólia Interior – uma troca do verde pelo negro. Este segundo complexo torna muito mais dolorosa a ferida que expõe. As imagens mais dilacerantes são aquelas em que se sobrepõe às estepes do norte a destruição causada pela ganância do invasor. O estilo de Zhao Liang é económico, minimalista, documental e artístico. O impacto do filme é muito grande. Este é um filme sobre uma Marca, uma marca indelével sobre o corpo dos mineiros, sobre o corpo social e sobre a paisagem, seguindo um trajecto inspirado na tripartição de A Divina Comédia. O Paraíso, onde chegamos com o homem que carrega consigo um espelho, é uma cidade desumanizada e deserta (penso que a famosa cidade de Ordos), sinal de um futuro disfórico muito próximo. A mola de L’Enlèvement de Michel Houellebecq, um telefilme de Guillaume Nicloux de 2014, é a sua improbabilidade. A improbabilidade do rapto do divertido autor e dos acontecimentos que se sucedem durante a sua captura. É muito útil por nos dar a conhecer o escritor através de um procedimento inesperado (provavelmente inspirado por um desaparecimento do autor em 2011). Houellebecq come, fuma, bebe, resmunga, discute e fornica como se tivesse esquecido a sua condição de raptado. Pouco esperada a bonomia com que o escritor francês se deixa levar e o modo como se relaciona com os seus raptores. Inesperadamente leva-nos a lugares e a discussões para que não nos julgávamos convocados. Será que Michel foi raptado em 2011? Ter-se-á divertido? Uma das marcas mais persistentes do cinema alemão das últimas décadas é o interesse por obras de conteúdo abertamente político. O período da segunda grande guerra, a divisão da Alemanha e o terrorismo urbano fornecem vasto material. A análise política de filmes é um costume próprio à crítica alemã. Os nomes de Fassbinder, Kluge, Syberberg, Schlöndorff, Schroeter, von Trotta, Sanders-Brahms ou Uli Edel facilmente se associam a este interesse. Favoreço alguns filmes políticos dos anos 60 e 70 em que ao empenho social e político se junta uma marca densa do cinema e da literatura em língua alemã – uma extrema melancolia. Da mistura entre a agressividade e a melancolia dimana uma estética muito particular. Grande favorito é Das zweite Erwachen der Christa Klagers/The second Awakening of Christa Klagers, 1978, de Margarethe von Trotta, ou Nicht Versöhnt oder Es hilft nur Gewalt, wo Gewalt herrscht/Not Reconciled or Only Violence helps Where Violence Rules, 1965, de Straub. Deutschland im Herbst/Germany in Autumn, de 1978, é um filme colectivo icónico. Inspirado pelos acontecimentos que rodearam o rapto de Hanns-Martin Schleyer pelas R.A.F. (Rote Armee Fraktion), em 1977, é puro cinema político dos anos 70, agressivo e glacial, urgente e com cara de poucos amigos, carregado de um desejo bestial de culpar e de expor, guerrilhamente em cima do acontecimento. Se aqui me não alargo no seu elogio é porque em breve este poderá incluir-se num texto (outro) sobre Fassbinder (curiosidade: a parte de Rainer Werner, a mais longa e que inclui discussões acaloradas com a mãe e o namorado, foi filmada apenas num fim de semana **). Vivemos num tempo de reaparecimento de actos de terrorismo. Como tal, alguns filmes desta época têm uma actualidade inesperada. Na Áustria, que atravessa actualmente um período de vigor (Henckel von Donnersmerck, Haneke e Jessica Hausner, de quem eu gosto tanto), os interesses têm sido outros (nomeadamente, como há pouco aqui foi notado, a propensão para o cinema experimentalista com Peter Kubelka, Kurt Kren ou Peter Tscherkassky). VALIE EXPORT é um artista feminista austríaca de muitas faces – happening, body art, performance art – influenciada pelo movimento Actionismo de Viena. Algumas das suas atrevidas performances ganharam muitos inimigos. Mas ela está nesta página a propósito de um filme favorito – Die Praxis der Liebe/The Practice of Love, 1984. Judith Wiener é uma repórter que denuncia situações de melindre e em Die Praxis der Liebe há uma cor amarelada que é a cor ao mesmo tempo da sedução e da desilusão, uma insistência pastosa que é irresistível. É o apelo do Norte e da solidão mesmo quando, como é o caso de Judith, se tem dois homens, um dos quais traficante de armas. Mas, sobretudo, passados 30 anos, esta história de VALIE EXPORT ganhou o apelo de um tempo disfarçado, o tempo de uma temperatura aparentemente acolhedora mas, afinal, envolventemente fria, o tempo dos enigmáticos anos 80, da cor macia e ameaçadora, muito voluptuosa, do Betamax e do VHS e do visionamento doméstico em solidão. Entalado entre o desejo da revolução e a posterior apatia, hoje não nos resta senão retirar da década de 80 uma melancolia opressiva e sem contornos bem definidos e uma sensualidade de televisão. * este filme sincrético, de características documentais e de art-house, Tharlo, um filme tibetano de 2015, ou Jia/The Family, de Shumin Liu, também de 2015, seriam bem vindos, assim como muitos outros documentários que na China foram recentemente banidos, a um local que se está a revelar, como se suspeitava, uma verdadeira desilusão: a Cinemateca Paixão. ** ver o artigo de Dietrich Leder em The Cinema of Germany, 2012, ed. por Joseph Garncarz e Annemone Ligensa, um livro que inclui um conjunto de artigos sobre filmes alemães escolhidos segundo uma perspectiva muito pertinaz: a da sua popularidade à altura da exibição.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasAs pessoas e as coisas Saramago, José, Objecto Quase, Caminho, Lisboa, 1997 Descritores: Contos, Insólito, Maravilhoso, Reificação, Alienação, ISBN: 978-973-21-0524-8. José Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.[ As Pessoas e as Coisas Este conjunto de contos intitulado Objecto Quase, publicado em 1978, resulta de uma abordagem simbólica à realidade decadente e em crise da sociedade capitalista. A opção pelos objectos e pelas coisas denota uma perspectiva sarcástica, desde logo, acerca dos mitos heróicos, das sociedades burguesas: as mercadorias. A corruptibilidade homóloga das pessoas e das coisas arruína os alicerces do mito capitalista. Neste livro, as pessoas confundem-se com as coisas e as coisas possuem um halo que as humaniza e dignifica. O que acontece no mundo acontece nas pessoas e nas coisas, como se houvesse uma mão invisível a conduzir os factos. O Anobium, esse coleóptero que se insinuou na cadeira para se alimentar, acabaria por fragilizá-la a um ponto tal que provocaria o seu desabamento, o seu desmoronamento, ou a sua simples ruína, tal como acontece nas pessoas, que também caem e desabam e se desmoronam, … Há em tudo isto uma solidariedade compósita que não é alheia ao ‘processo sem sujeito’ que a história é em última instância. Para lá disso existirá mesmo uma vontade cega, da ordem quase dos instintos, que as coisas partilham com as pessoas. Não se anda muito longe também do conceito de alienação marxista, do tempo dos Manuscritos Económicos e Filosóficos, obra que sempre fez as delícias de todos os marxistas. Saramago leva muito longe aqui esse conceito de reificação, em várias destas narrativas curtas, mas em particular no Embargo, onde perdemos a noção de quem é a pessoa e quem é o objecto, ou seja, a coisa, mas também na Cadeira, providencial herói à falta de melhor.[ Em A cadeira, alusivamente o assento do ditador, o que deveria representar o seu lugar, a consistência de um apoio, representa afinal a traição, a falência do conforto. Paradigmático objecto que na sua falência conduz à falência do regime e abre um caminho misterioso para a história. Nestes contos, o mundo, na sua consistência ontológica, funde objectos e pessoas, irmanando o destino de ambos, eu diria, inexoravelmente. O trágico está sempre anunciado e previsto intelectual e moralmente. É só preciso ver e perceber. [ “A cadeira ainda não caiu. Condenada, é como um homem extenuado por enquanto aquém do grau supremo da exaustão: consegue aguentar seu próprio peso. Vendo-a de longe, não parece que o Anobium a transformou, ele, cow-boy e mineiro, ele no Arizona e em Jales, numa rede labiríntica de galerias, de se perder nela o siso”. Claro que o conto pode ler-se também na perspectiva de que a cadeira é metonimicamente o próprio ditador. Então, segundo esta possibilidade, a ditadura foi derrotada por um simples escaravelho, não da batata, como a lógica, mas antes da madeira, o que provoca o tombo e a subsequente ruína do regime, trazendo um benefício para as pessoas. Assim se urde a história das pessoas (as palavras) e das coisas. No Embargo, o automóvel adquire uma consciência radical da crise petrolífera e age à sua maneira, dotado de uma vontade própria. O caos só se instala nas narrativas quando o binómio pessoa / coisa se altera. Ora, simbolicamente, é o capitalismo que procede estruturalmente a essa mutação. Num mundo em que as pessoas perdem a autonomia é natural que os objectos possam adquiri-la. Porque é que um dos fenómenos há-de ser considerado mais extravagante que o outro. Preso dentro do carro, o homem sente que a sua dignidade se perde, sem autonomia o homem transforma-se num escravo, num fantoche na maior parte dos casos. O ser que não conduz a sua vida, acaba por ser conduzido. “ (…) de madrugada, por duas vezes, encostou o carro à berma e tentou sair devagarinho, como se entretanto ele e o carro tivessem chegado a um acordo de pazes e fosse a altura de tirar a prova da boa-fé de cada um. Por duas vezes falou baixinho quando o assento o segurou, por duas vezes tentou convencer o automóvel a deixá-lo sair a bem, por duas vezes num descampado nocturno e gelado, onde a chuva não parava, explodiu em gritos, em uivos, em lágrimas, em desespero cego. As feridas da cabeça e da mão voltaram a sangrar. E ele, soluçando, sufocado, gemendo como um animal aterrorizado, continuou a conduzir o carro. A deixar-se conduzir”. Pode também explorar-se o tema do conto Embargo, à luz, mais ténue, de uma dependência dos homens relativamente aos objectos, tema esse que será sobretudo desenvolvido no romance a Caverna. Seria porém empobrecedor, tal como pobre é a Caverna. A ambivalência dos textos de Objecto Quase remete antes para uma aliança em vias de se perder. Se de um lado temos o enquadramento capitalista da produção de mercadorias e a sua fase agónica, no capitalismo tardio das sociedades pós industriais, temos por outro lado uma possibilidade de leitura que embora não completamente divorciado desta remete mais para uma análise da Coisa segundo o enquadramento heideggeriano de uma metafísica dos objectos. É a meio caminho entre o conceito de alienação marxista e o conceito de metafísica da subjectividade, cara a Heidegger, que se situam estes contos, pois a lógica própria da ficção favorece esta eventual deriva na ortodoxia do autor. Se José Saramago tivesse usado a mesma ambiguidade e a mesma ambivalência na Caverna teria evitado aquilo em que esta obra se tornou, um panfleto vulgar sobre a sociedade de consumo. O melhor conto desta colecção, lida segundo o modo que explanei sumariamente é o texto designado Coisas. Deve deixar-se incólume à curiosidade do leitor. Deixo apenas aqui esboçado o modo como simbolicamente termina: “Agora é preciso reconquistar tudo. E uma mulher disse: Não tínhamos outro remédio, quando as coisas éramos nós. Não voltarão os homens a ser postos no lugar das coisas”.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? 5- Ele * por José Drummond [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or onde ficaste? Por onde andas? Por onde tenho eu saudades tuas? Consome-me este espaço em que me sinto a perder-te cada vez mais. Este espaço onde não reconheço a memória. Este espaço onde não reconheço a palpitação das coisas. Não sei o que te disse que tudo alterou. Onde estava que nada fiz? Nada mais que estar perto e longe, e amedrontar-me, e desaparecer sozinho na escuridão da noite. E desaparecer sozinho no nevoeiro da manhã. Sozinho. E agora? Onde estou que me preparo para um perigo muito maior? O perigo de me abandonar a este espaço. De me abandonar neste espaço. Este espaço onde o oxigénio carece. Onde tudo se transforma em limbo. Este espaço onde não reconheço a palpitação das coisas. Eu! Um eu qualquer que realmente não quero reconhecer. Um eu, em que, no qual, infelizmente, não posso pensar. Um eu qualquer. Um eu que não tem objectivo. Um eu que não se oferece. Que não tem corpo. Que não se indemniza. Que não é tangível. Atentamente eu. Atentamente eu. Desatentamente eu. Por onde ficaste? Por onde andas? Naquele café em Viena enquanto nos deliciámos com bolo de chocolate? Naquela banco de jardim em Budapeste onde nos perdemos e nos encontrámos? Naquela praça em Praga onde o relógio da igreja tocou nove badaladas e as minhas palavras fizeram correr uma lágrima no teu rosto? Naquela praça em Praga onde ao mesmo tempo me disseste que estavas triste? Por onde ficaste? Por onde andas? Porque te quero tanto? A ilusão é jovem e imortaliza-se. Não é errado iludirmo-nos. É assim como uma bomba. É assim como uma explosão. Aquela explosão que recordamos sempre com nome de romance. Aquele romance que tão bem ilustra a impossibilidade do amor. Aquele romance que me faz pensar em nós. É assim e aos trinta e quatro anos és linda. Na verdade. É assim e és linda qualquer que seja a tua idade. Espera. Deixa-me dizer-te agora. Calmamente. Amo-te. Amo-te como nunca pensei. Amo-te até ao ponto de ser incapaz de te tirar retratos. Amo-te até ao ponto de fazer auto-retratos. Eu? O que significa isso afinal? Eu isto e eu aquilo. Quantos eus tem um eu? O eu do café em Viena é diferente do eu naquela rua em Budapeste e diferente daquela praça em Praga. Um eu dissemelhante? Um eu mesmo? Que eu fiz eu? Eu sei que sou um eu melhor quando estou contigo. Contigo sou um eu como o eu naquela canção do Lou Reed. “Just a perfect day/You made me forget myself/I thought I was/Someone else, someone good. Mas deixa-me perguntar-te de novo por onde ficaste? Por onde andas? Deixa-me dizer-te de novo que fugi porque tenho medo de mim. Porque vejo em mim todos os tipos de fealdade. Porque quando tu visses o que eu vejo em mim irias ser tu a ir-te embora. E eu iria acabar a odiar-te se o fizesses. E as pessoas iriam pensar que eu era bom. E eu não sou bom. E eu não podia deixar que isso acontecesse. Porque eu só sou bom contigo. E isto não tem nada a ver com o amor. Ou tem tudo a ver com o amor. Talvez tenha medo de mim porque aquilo que vejo quando olho para mim incorpora todos os tipos de fealdade. E não importa se estou nu ou vestido. Porque os dias perfeitos só existem contigo. Porque me fazes esquecer de quem sou e penso que sou um outro e até penso que sou bom. Recordo-me daquele dia em que parecias imperturbável. Parecias imperturbável mas, na realidade, o teu coração batia apressado e disseste-me estas palavras. “Estou tão feliz!” Como elas ecoam agora em mim. “Estou tão feliz!” Palavras que se insinuam. Que misteriosamente se insinuam. Recordo-me da tua pele enquanto as disseste. Do teu corpo quase encostado ao meu. Em abstracto recordo-me dessa ondulação suave e perfumada. E de como cheiravas. Recordo-me do teu rosto que me deste a ver de tantas formas. Em formas que não deixas os outros ver. Um rosto tão perfeito que quando me lembro dele o meu coração inunda-se de uma vontade de te procurar e gritar com toda a força que tenho o que sinto por ti. Um rosto que não tem imperfeições mesmo que à força, muitas vezes, me quisesses mostrar irregularidades. Mas é aí que reside o problema. É que, apesar de me quereres mostrar o contrário, são exactamente essas irregularidades que fazem com que o teu rosto seja perfeito. Recordo-me dos desenhos dos teus olhos em sobreposição de luz e sombra quando em espelho de parque de diversões soltaste estas palavras mágicas. “Estou tão feliz!” E elas ecoam agora em mim e eu estou triste. E agora estas palavras são trágicas. E este eu não é o eu que tu conheces de mim. Mas porque te importarias tu que eu esteja agora triste. Que esteja triste nesta cama de hotel onde posso morrer. Nesta cama de hotel sem a tua presença. Nesta cama de hotel onde revisito todas as camas de hotel onde estivemos juntos. Nesta cama de hotel onde sinto este único tipo de desconforto cinza das inúmeras pequenas rugas que apresentam os meus olhos moídos. Nesta extensão de memória onde as minhas camisas brancas estão torcidas. Neste puro desconforto de ter de existir neste lugar. E tudo me parece um pouco errado de cada vez que olho ao redor deste quarto. A sensação impressionista do padrão do sofá. A inepta posição da torneira na bacia na casa de banho sempre que lavo as mãos. O emaranhado embriagado de cada peça de roupa que usei sem lavar. As meias compradas com desconto para preencher uma necessidade imediata. Por quanto mais tempo me irei dedicar a estudar o errado no quarto para não estudar o errado do eu? O eu mais triste que se solta e sente e parece ter sido um eu usado por outro homem. Mas se agora aqui estivesses eu até diria uma piada. Só para te ver sorrir. Por exemplo se tivesse que compilar uma lista das piores cómodas esta que suporta a televisão aqui neste quarto estaria no topo. Porque escolhe o eu um lugar deliberadamente profanado para padecer? E a televisão que solta grunhidos em cantonês. E as legendas que o eu imagina. “Como foi que isso aconteceu?” “Morreu na cama de um hotel há três dias atrás sem ninguém saber nada.” “Realmente triste!” “Realmente triste!”
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasDia Internacional da Mulher: retrospectiva da condição feminina 她 * por Julie O’yang [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início do séc. XX surgiram na China uma série de novos termos e conceitos, inventados ou reformulados, que representavam, de diversas formas, uma nova leitura de normas e princípios ancestrais relacionados com o género. Neologismos polémicos, como “nüjie女界 (universo feminino/mulher),” “nü yingxiong女英雄(heroína),” “guomin zhi mu国民之母 (mãe do cidadão),” “nü guomin 女国民” (cidadã) e “yingci英雌 (mulher heróica),” não só nomeavam, logo reconheciam, papeis que as mulheres ao tempo nunca tinham assumido nem sequer imaginado vir a assumir, mas eram também indicadores do complexo processo de mudanças sociais, políticas e culturais pelas quais passava a China moderna. A invenção e identificação de novos pronomes femininos representava a invenção e identificação de um novo universo, inexoravelmente determinado por alterações políticas e sócio-culturais. Mas recuemos a 1920, quando Liu Bannong 刘半农 (1891-1934), figura destacada do Novo Movimento Cultural, propôs em “Questões sobre o caracter 她ta”, a invenção de um novo caracter chinês representativo do pronome feminino na terceira pessoa. Em Abril de 1920, travaram-se no seio do referido Movimento também conhecido por Movimento do 4 de Maio, discussões acaloradas sobre a reformulação ou abolição do “ta”. Foi a partir deste período que o caracter “ta” ganhou um novo significado. A diferenciação entre “ele” e “ela” na China remontava ao início da década de 70 do séc. XIX, mas o imperativo de inventar o equivalente chinês do nosso pronome “ela” foi também facilitado pela intensificação das interacções culturais e linguísticas com o Ocidente, a partir dos finais do séc. XIX. Liu Bannong e os seus contemporâneos experimentaram criar uma série de neologismos de forma a traduzir correctamente “ela” para chinês. 她ta não era de forma alguma a única tradução possível, mas apenas uma do vasto leque de possibilidades. Enquanto em todo o mundo se celebrou o Dia da Mulher no passado dia 8, algumas estudantes fizeram questão de celebrar o “Dia da Mulher do Império do Meio” um dia antes, marcado por diversas actividades e por mensagens que eram tudo menos feministas. Na segunda-feira a rede social Weibo foi inundada por fotografias de cartazes exortando as mulheres a – imaginem – serem boas esposas! O hashtag introdutório do “Dia da Mulher” no Weibo chinês, apelava às mulheres para “encontrarem o amor e a compreensão junto do seu companheiro” e aos homens, para que as estragassem com mimos e as tratassem como deusas. Será que isto é feminismo à maneira chinesa? Fica-se tentado a duvidar… À tarde, enquanto passava os olhos por um jornal europeu, fui surpreendida pelo seguinte título: “Pornografia ou Morte”. O artigo era sobre um dos pioneiros da pornografia que conseguiu a sua legalização na Dinamarca. A passagem que se segue impressionou-me especialmente: “ Um dos critérios usados pela polícia para determinar se uma foto era ou não pornográfica era a distância entre as pernas da modelo. Mais de 20 cms era considerado violação do parágrafo 234. Menos de 20 cms já era arte.” Corria o ano de 1967.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasCervejas III, preços e modas [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]oje, dia 17 de Março, Dia de Saint Patrick, serve como desculpa para rodear a promessa de não compor mais um aborrecido artigo sobre cerveja. Anda a beber-se menos cerveja. As grandes marcas de bebidas, poderosíssimas, têm nestes últimos anos bombardeado os consumidores com a promoção de bebidas brancas até há bem pouco tempo consideradas proletárias. A recente promoção do gin, do vodka, do rum, da tequila e mesmo do whiskey norte-americano é um grande fenómeno de marketing. Esta poderosa onda publicitária faz esquecer que se trata, basicamente, de destilados simples. A esta tendência inventada pelo grande capital do álcool vem associada a dos craft spirits, bebidas brancas de pequenas marcas, que ilustra uma propensão contemporânea do primeiro mundo de rejeição das grandes marcas em favor de produtos locais e supostamente preparados com mais amor. Note-se que tal não acontece com bebidas mais complexas. Alguns destilados étnicos menos conhecidos, como o soju, a cachaça ou algumas aqua vitae, passaram igualmente por uma fase de promoção social e lançamento alargado. Esta moda alegre acompanha a do renascimento do cocktail, do clássico ao orgânico ou ao molecular. As bebidas mais sérias, como o whisky, o brandi ou o armagnac, menos permeáveis a modas porque precisam de tempo para crescer, tornaram-se um grande negócio quando os asiáticos começaram, finalmente, a beber a sério. No mundo da cerveja, em que permanece o monopólio das lager pertença de grandes marcas desinteressantes, como a Heineken (marca directamente responsável pelos milhões de litros de cerveja de baixa qualidade que se bebe por todo o mundo, uma tendência relativamente recente e que resulta de um titânico golpe publicitário) ou a Carlsberg, insinuou-se mais ou menos timidamente a tendênca da craft beer que tem vindo a ter uma expressão cada vez mais perigosa em alguns mercados. Nos E.U.A., o maior mercado do mundo de cerveja e o segundo maior a nível do consumo, a craft beer tem uma cota muito grande. Mas o dia do santo irlandês* não consegue esquecer que o consumo de Guinness, uma cerveja irlandesa exemplar e ligada às comemorações do dia do santo, tem, nos E.U.A. e na Grã-Bretanha, decaído significativamente nos últimos 6 anos. Não é apenas esta marca irlandesa. Desde cerca de 2010 que o consumo de cerveja tem vindo a diminuir na Grã-Bretanha, na Irlanda e em vários países da Europa, vítima da competição do vinho e de bebidas brancas simples promovidas a um estatuto respeitável. Não estou a brincar. Há menos procura, a competição por parte de outras bebidas é feroz, o consumidor está mais sofisticado e o acesso a certos mercados é cada vez mais difícil. O mercado norte-americano estagnou, o alemão, francês e o do Reino Unido retraiu-se. Na Ásia, que bebe cerca de 30 a 35% da cerveja de todo o mundo, os números têm também vindo a baixar. GoEuro é um sítio de planeamento de viagens que oferece índices de preços de produtos e serviços que interessam ao turista – transporte em geral, trânsito urbano, alojamento e alimentação. Exemplo: o índice dos hotéis mostra uma média de preços que inclui alojamento em 150 cidades – de hotéis de 5 estrelas a hostels. Os três lugares mais caros são Nova Iorque, St. Moritz e Macau (mesmo que se note que nesta última cidade o preço dos hotéis de 5 estrelas seja muito mais acessível que em muitas outras). As mais baratas são Sofia, Bulgária, Hammamet, na Tunísia e Tirana, na Albânia. Junta-se um índice minucioso de médias de preços em Airbnb (a Madeira é o segundo lugar mais barato); em estabelecimentos de 5 estrelas (Punta Cana o mais caro); de 1- 4 estrelas (Macau o quarto mais caro depois de N.Y., St. Moritz e Miami) e em hostels (Macau em décimo oitavo entre os mais caros). A parte dedicada aos transportes, comboio, avião e autocarro, é muito interessante. Em Portugal os transportes são mais caros do que em países em que estes são melhores, como a Alemanha, o Canadá, a Suécia, os E.U.A. ou a França. O índice da cerveja, que é o que verdadeiramente nos interessa, incide sobre 75 cidades. Mostra preços médios (1.) em supermercado, (2.) em bares e conclui (3.) com uma média. Acrescenta-se (4.) uma média anual de consumo per capita em litros e (5.) uma média anual de despesa per capita. 1. (em supermercado) Os sítios mais baratos são Sevilha (4.1 mop. Sempre preço médio por garrafa de 33cl. a partir daqui), Belgrado e Manila. Os mais caros são Oslo (27.5mop), Moscovo e Tóquio. 2. (em bar) Mais caro: Hong Kong (86.7 mop), Genebra e Tel Aviv. Mais barato: Bratislava (17.7 mop), Deli e Kiev. Todos a Bratislava este Verão, fica na Eslováquia. 3. (em média) As mais caras vendem-se em Genebra (50.4 mop), Hong Kong (49.2 mop) e Tel Aviv, e as mais baratas em Cracóvia (13.2 mop), Kiev e Bratislava. Outras cidades onde é caro beber cerveja são Oslo, N.Y., Singapura e Miami. 4. (média de litros anuais per capita) Onde se bebe mais é em antigas cidades comunistas, Bucareste (133 litros), Praga, Cracóvia e Varsóvia. Se pensarmos que a China e o Vietname mostram consumos muito elevados de cerveja pode estabelecer-se uma relação entre o comunismo e esta bebida. As cidades, entre este grupo de 75, onde o consumo per capita é mais baixo são o Cairo (4 litros), Deli e Abu Dabhi. Em Belgrado, Ho Chi Minh, Berlim, Frankfurt e Toronto também se bebe muito. 5. (média de despesa anual per capita) Onde se gasta mais dinheiro por ano é em Helsínquia (12.300 mop/ano), Sydney e N.Y.. Gasta-se menos no Cairo (199.6 mop/ano), Deli e Bali. Como já aqui foi dito em artigo de 2013, em Macau continua a não haver, com excepção do McSorley’s, que fica dentro de um centro comercial de péssimo gosto, um bar de hotel em que a selecção de cervejas não seja miserável. O único avanço nota-se no aparecimento, em alguns deles, de cerveja branca de marcas de ampla distribuição. Ao invés, abriram vários bares e lojas pela cidade em que a cerveja é a bebida nuclear. Já aqui se falou em alguns deles. Acrescente-se um na Rua da Erva chamado Agora, uma loja sita no Pátio de São Lázaro, junto de umas escadinhas por que se acede ao bairro de São Lázaro, que oferece espaço para sentar e beber, e o muito bem equipado bar Prem1er que fica no centro da Taipa. * Que se comemorou, pela primeira vez, em Macau, com vários eventos. Na parada alusiva, muito internacional, participaram grupos de diferentes matrizes culturais: um rancho português, uma grupo de jovens asiáticas em jeito de espanholas, um grupo local de dança irlandesa, um de rock e um de street dance, uma associação local de Dança do Dragão e do Leão, um coro e solistas de uma escola internacional e até um grupo de 4 pipers chineses da Polícia de Hong Kong, tudo agraciado pela presença da Lord Mayor de Dublin, Críona Ní Dhálaig. Quem quiser saber mais sobre a Irlanda pode começar por ler o estimulante livro de Bede, A History of the English Church and People, uma obra de referência, escrita no século VIII, que logo no Livro I, Capítulo I, em que se fala da ausência de cobras na ilha da Irlanda (mesmo que Bede não atribua este sinal de pureza à acção do santo, como a lenda que o tornou famoso). Toda a ilha é retratada em termos das suas qualidades paradisíacas, não muito agreste de clima e abundante em leite, mel, vinhas, peixe, pássaros, veados e cabras.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasLiaocheng e a cidade da Água Seguindo o Grande Canal, numa viagem que desde Hangzhou nos levará para Norte até Beijing, tentamos acompanhar o curso desta longa estrada de água, hoje com uma parte dos seus mil e setecentos quilómetros desactivada. Encontramo-nos já no Oeste da província de Shandong (Montanhas Leste) e somos levados à cidade antiga de Liaocheng, que se revela uma agradável surpresa pois, sem nunca a ver registada nos Guias de Viagem, apresentou-se como um lugar turístico escolhido por muitos chineses. Trazemos a curiosidade em perceber como a dinastia Yuan conseguiu resolver o atravessar por água as montanhas, para ligar os celeiros do país, maioritariamente em Zhejiang, até à capital dos mongóis na China, Dadu, a actual Beijing. É a secção mais alta do Grande Canal e por isso, viemos saber como foi resolvido um dos maiores trabalhos chineses de engenharia hidráulica, o conseguir elevar os barcos a atravessar montanhas. A tarefa era difícil pois o terreno levantava uma série de questões, resolvidas com a ajuda de reservatórios e comportas. A construção dessa secção terminou em 1327, sendo realizada por elevadores de água a diferentes níveis, encontrando-se o mais elevado a quarenta e dois metros de altitude. Outro problema mais tarde resolvido foi a turbulência criada nas águas do Grande Canal quando o Rio Amarelo (Huang He), com um nível mais alto, nele caía. Partindo de Jining, em direcção a Liaocheng, a trinta e quatro quilómetros de Dongping o autocarro sai da estrada principal e entra por um desvio de terra batida onde os agitados solavancos molestam os passageiros e a poeira envolve todo o cenário. Os montes estão a ser esgravatados por enormes máquinas, muitos ficando no cume com o espaço reduzido a uma casa, que ali insiste em permanecer. O autocarro parado, na fila de veículos para atravessar o Rio Amarelo, permite-nos vislumbrar aquela paisagem lunar de obras, fazendo os seus estaleiros lembrar o que terá sido a construção de muitas comportas e diques realizada na primeira metade do século XV, para que os sedimentos das águas do rio não atulhassem o Grande Canal, junto ao lago Dongping Hu. A solução foi dada por um cidadão, Bai Ying, durante o reinado do Imperador Chengzu (Yongle) da dinastia Ming, que propôs a escolha de um lugar onde o leito do canal fosse mais elevado. Nesse ponto, onde desaguava o Wen He, a água entrava no Grande Canal e dividia-se para o Sul e para o Norte. Ao longo do canal foram construídos alguns reservatórios, onde a topografia permitia assegurar um suplemento de água, sendo o seu fluxo equilibrado por trinta comportas. Os construtores fizeram o Grande Canal alimentar com as suas águas o Rio Amarelo, resolvendo assim o problema da turbulência e dos sedimentos que o rio transporta. Desde sempre o Rio Amarelo foi uma fonte de problemas e em 1855, no distrito de Lankao, província de Henan, de novo mudou a sua trajectória para Norte, o que levou o Grande Canal a deixar de ser navegável daí até à capital. Chegados ao Rio Amarelo, percebemos porque é que o autocarro percorre aquele desvio. Para o atravessar, uma ponte provisória feita de ferro, tipo ponte das barcas devido às quilhas dos flutuadores, contava com pilares de cimento para aguentar os inúmeros camiões que por ali transitavam. Meses depois aí voltamos a passar e já uma nova ponte está construída. A paisagem mudara completamente desde essa primeira passagem e a quantidade de montes que, apesar de muito surripiados de pedra ali se encontravam, agora desapareceram. Entrando de novo numa impecável estrada de asfalto, vamos passando por campos onde muitos fornos ainda servem para cozer tijolos. Em Donlong voltamos ao contacto com o Grande Canal; a princípio encontramo-lo seco e como vazadouro de lixo, mas, à medida que nos aproximamos de Liaocheng, aos poucos ganha largura e vai-se consolidando. A antiguidade da zona Chegamos a Liaocheng já a noite começa a tomar conta da cidade e por isso, escolhemos o hotel junto ao terminal de autocarros. Apenas necessitando de atravessar a rua, somos abordados por algumas pessoas que nos oferecem quartos por um baixo preço, angariando assim muitos clientes. Ficamos no oitavo andar do hotel e pela janela do quarto, a visão nocturna mostra não haver muitas luzes indicativas da extensão e altura da cidade. Há dois mil e quinhentos anos, no Período Primavera e Outono, para o local onde Liaocheng se encontra o Duque Huan do Estado de Qi marcou uma reunião com todos os duques dos estados afectos à dinastia Zhou do Leste. Aí, na Primavera de 679 a.n.E., o Duque Huan (685-643 a.n.E.) foi escolhido como chefe da Aliança Beixing, nome da localidade onde se realizou o encontro, hoje Juancheng, na municipalidade de Liaocheng e que deu a supremacia ao Estado Qi. Após a reunião, tropas Qi foram enviadas para aí erguerem uma guarnição militar, rodeando-a por árvores Jiao Liao, árvores cheias de espinhos. O local tornou-se estratégico e importante para os Qi, sendo esse bosque em Beixing mais tarde fortificado com muralhas e no seu interior um povoado começou a crescer. No século XIII passou a ser a cidade de Liao, aquando da construção de uma nova via para o Grande Canal. Acordamos e o nevoeiro acinzenta o dia. Desconhecendo a real dimensão de Liaocheng, apanhamos um táxi para nos levar a percorrer a secção Huitong do Grande Canal, que a atravessa. Transportados por uma larga avenida para Oeste, passamos depois por quarteirões, quais degraus numa escada horizontal, onde o VW-Santana vai circulando e sobre uma ponte, o taxista aponta para o lado direito. Vemos o curso de água interrompido por um monte de terra; mas sorridente, coloca-nos a olhar para o outro lado, onde uma marginal bem arranjada leva os nossos olhos até à ponte feita de vários arcos. Daí reparamos na circunvalação em quadrado, que concentricamente envolve por água o pólo originário da cidade. Encontramo-nos perante o Museu do Grande Canal e após visitado, seguimos pelo passeio junto à água, de ponte em ponte. Ornamentadas por estátuas de leões, umas grandes à entrada, outras mais pequenas no vão das pontes e a que nos parece a mais antiga, tem nos pilares junto à água representações do dragão Baxia. O Pagode de Ferro A secção Huitong do Grande Canal alimenta este lago, cujo centro é uma grande ilha, onde se encontra a parte antiga de Liaocheng e para lá chegarmos, atravessamos pontes que ligam pequenas ilhas. Na margem Oeste do Grande Canal, a Guilda Shanshan, conhecida também pelo Templo ao Sábio Guan, levou sessenta e cinco anos a ser construída. Começada em 1743, no tempo do Imperador Qian Long, só terminou em 1809, após muitas extensões para lhe dar os mais de três mil metros quadrados da área que ocupa. Ao longo do canal, pelo jardim onde habitualmente os mais idosos se juntam para jogar cartas, xadrez chinês e go, estão gaiolas com pássaros colocadas nos ramos das árvores para estes, quais filhos únicos, passarem a tarde em convívio. Acompanhando a água, atravessamos uma rua, onde ao fundo vemos a Torre do Tambor, edifício que normalmente marca o centro das cidades. Continuamos para um outro extremo da ilha e aí, as antigas casas foram deitadas abaixo e reconstrói-se a continuação do parque, que se pretende a envolver a zona Norte. Os lagos de água parada estão cheios de pescadores pelas suas margens, enquanto vão sendo rasgados canais para dar continuidade ao que se vai fazendo no centro da cidade, embelezando e criando espaços verdes para lazer. Por fim, após passar por uma ponte de pedra a ser construída com o suporte de terra a servir de apoio ao arco, chegamos junto ao Pagode de Ferro, que com dez metros de altura, é um dos quatro ainda existentes na China. Situa o local do antigo Templo de Long Xin, já inexistente, e na área todos os edifícios estão por terra, sobrando entulho. Nesta viagem temporal, mediada por cinco anos, voltamos ao núcleo da cidade antiga de Liaocheng. Na primeira estadia, a paisagem urbana da ilha central mostrava-se com um forte contraste em relação à cidade nova que a circunda. O quotidiano desenrolava-se sem grande trânsito e as pessoas viviam como em aldeia, sendo as casas térreas e antigas, muitas muralhadas e com pátio, onde o tempo parecia ter parado e muito se diferenciava da outra parte da cidade. Agora, dentro já de um urbanismo cuidado, os novos prédios avançam a cidade e entre eles, o canal Huitong, construído no século XIII, vai sendo dragado aos poucos. Por fim o lago, onde a cidade ganha espelho. Toda ela mostra aos nossos olhos o que estes não se tinham apercebido aquando da visita ao antiquíssimo local de Yang Cheng em Changzhou, província de Jiangsu. Aí faltava o balão para subir e ver de cima o que seria um povoado há três milénios. Essa visão foi-nos oferecida no Museu do Grande Canal, onde varandas em cada um dos três andares permitem ver por cima a planta de Liaocheng. A actualidade do antigo Sem perceber como, encontramo-nos na parte antiga da cidade, onde as ruas e passeios, que eram em terra, vão sendo revestidos com pedra e quanto mais nos aproximamos do centro, mais intenso o trabalho das obras. Entramos por estreitas ruas, cujos altos muros escondem os pátios das casas, sendo a nossa curiosidade satisfeita por portões abertos a mostrar de frente um mural de azulejos a receber quem entra. Já no centro da ilha, a Torre Guangyue foi construída por Chen Yong em 1374 e usou os materiais que sobraram da reconstrução da cidade, feita dois anos antes. Esta, transformada de terra para pedra, passou nessa altura a chamar-se Feng Huang Cheng, cidade Fénix. Da Torre Guangyue, partem quatro ruas e em torno dessa praça, alguns Bancos perceberam há muito, que aí virá a ser o lugar mais turístico da cidade e por isso colocaram agências nos edifícios para ela virados. Também uma casa com jardim bem arranjado parece ser um museu de alguém famoso, mas está fechado. Depois um outro edifício, este de madeira e de grandes dimensões, chama a atenção e ao tentar entrar, dizem-nos que o museu de pintura fica no outro lado do mesmo complexo. Continuando a explorar a cidade antiga dentro da ilha percebemos que esta não terá mais de três quilómetros de diâmetro. Ao passear por um dos seus cantos, encontramos um idoso vestindo roupas que já desapareceram do quotidiano chinês, o que nos chama a atenção e pedindo para o fotografar, aceita. Já nas despedidas diz-nos algo e pelo gesto parece pedir para lhe enviarmos a fotografia. Retiramos o bloco do bolso e passando-o para as suas mãos, começa a escrever, o que pensamos ser o endereço, mas este não pára e ocupa a folha toda. Tentamos saber em todos aqueles caracteres onde a se encontra a morada e então, com poucas palavras, convida-nos a ir a sua casa. Den Jin Lu nascera em 1925 em Liaocheng e aos dez anos servira como ajudante voluntário no exército. Já em 1936 juntou-se a Zhou Enlai durante dois meses e desde Julho desse ano passou a seguir Fan Zhu Xian, entrando em 1940 para o Exército e tornou-se membro do partido Comunista passado três anos. Estudou na universidade e combateu os japoneses, tendo o senhor Den em 2004 escrito sobre essa época e o seu superior Fan Zhu Xian. Ainda nessas deambulações damos com um artista que, pelas dimensões da folha de papel de arroz onde desenvolve a reprodução de uma pintura a tinta de água, necessita da rua para atelier. Olhando ao fundo os altos edifícios, saímos da cidade antiga pela longa e bonita ponte de mármore branco. Com vinte e um arcos, tem as pedras gravadas em relevo com imagens retiradas da novela do século XIV, Margem da Água (ShuihuZhuan), a representar histórias como a de Wu Song bateu num tigre até este morrer, ou Sun Er-Niang tornou-se dono de um restaurante, matando e comendo os seus comensais. Na segunda visita, em 2012, estranhamos o que os nossos olhos vêem. A cidade antiga está a ser muralhada, contando já com uma grande frente e uma porta. Chegados à parte nova da cidade, seguimos para apanhar o autocarro em direcção a Linqing e continuar a perseguir o Grande Canal. Liaocheng é uma cidade com vasto potencial para surpreender pela positiva os visitantes. Se para um estrangeiro, o que esta cidade tem para mostrar não parece significativo, comparado com os muitos locais de grande qualidade e antiguidade que existem pela China, já para o turismo interno mostra-se com grandes potencialidades, tanto culturais, como históricas e de lazer. Esconde ainda por baixo da terra muitos episódios do livro da História antiga da Civilização chinesa, que ficarão para outra história.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO ovo da serpente: secularização e progresso Broch, Hermann, Os Sonâmbulos, Edições 70, Lisboa, 1989 Descritores: Literatura, Austríaca, Romance, Império Austro-Húngaro, Primeira Guerra Mundial, Valores, Crise, Fascismo, trad. de António Ferreira Marques, 167, [1] p. 2 v.:23 cm Cota: C-4-4-259,260 Hermann Broch, de origem judaica, nasceu a 1 de Novembro de 1886 em Viena, à época capital do Império Austro-Húngaro. O consagrado escritor veio a falecer nos Estados Unidos da América em New Haven no estado de Connecticut no dia 30 de Maio de 1951. Teve como a maior parte dos judeus daquele tempo uma vida atribulada, tendo sido preso pelos alemães logo após a anexação da Áustria à Alemanha em 1938. Conseguiu contudo ser libertado, através da intervenção da comunidade intelectual, em particular de James Joyce, e depois acabou por emigrar primeiro para o Reino Unido e finalmente para a América. Durante anos dedicou-se a uma vida de aventura e boémia durante a qual se casou e separou várias vezes. Casou primeiro com Franziska von Rothermann e mais tarde com Milena Jesenská. Por causa de Eva Von Allesch, jornalista, ex-modelo nu e designada a Rainha do Café Central, Broch rompeu o casamento com Jesenská, que, ao que parece começou uma relação com o escritor Franz Kafka. Antes do seu primeiro casamento tinha-se convertido ao catolicismo. Pôs termo a esta fase da sua vida vendendo os seus bens e dedicando-se completamente aos estudos e à literatura. Estudou Matemática, Psicologia e filosofia na Universidade de Viena entre 1926 e 1930 e conviveu com insignes escritores, como Rainer Maria Rilke, Elias Canetti e Robert Musil. Da sua obra destaca-se justamente A Morte de Virgílio considerada a sua obra prima, mas também Os Sonâmbulos e Os Inocentes no domínio da ficção. No domínio do ensaio merece menção honrosa, o Geist Und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne, que reúne seis ensaios do autor. Em língua portuguesa apareceu com o título Espírito e Espírito de Época— Ensaios sobre a Cultura da Modernidade, onde se discute, em particular, a questão do kitsch na modernidade. O romance Os Sonâmbulos consta de três volumes, a saber, Pasenow ou o Romantismo: 1888; Esch ou a Anarquia: 1903; e Huguenau ou a Objectividade: 1918. O primeiro volume mergulha arqueologicamente no século XIX. Tudo leva a crer que foi aí que a crise começou. Terá sido aí que um certo mal estar civilizacional começou a fazer o seu caminho. E nesse primeiro volume o que interessa ressalvar é a brutal ascensão das massas, o Ovo da Serpente, associada à inevitabilidade da defesa dos valores da Modernidade, ou seja, progresso, felicidade para o maior número, ascensão social, democracia e direitos. Alguns intelectuais terão pensado levianamente que era possível promover tudo isto, que representava uma rotura imensa com a tradição e que ao mesmo tempo o sistema axiológico se mantivesse incólume e, ainda, que no fundo fosse possível adequar a nova ordem ao espartilho da ordem antiga, hierarquizada, disciplinada, diferenciada, portanto holista numa palavra, quando deveria ser óbvio que a revolução individualista e de massas exigia uma ordem nova, com valores de outra natureza, desde logo porque o equilíbrio e harmonia orgânica seriam abalados desde os seus alicerces e pressupostos e a primeira fase da fragmentação alucinante iria produzir como não podia deixar de ser e veio a acontecer, intranquilidade, desespero, insegurança e sobretudo vazio político mas também axiológico. Foi esse vazio que as modalidades endurecidas da modernidade exploraram sob várias formas, que aqui não vêm agora ao caso. Esch simbolizará premonitoriamente o esforço de organização do caos e nesse sentido o esforço de reconfiguração dos valores desmoronados. Tenho para mim que Esch, quer dizer Broch, não assumiu tanto quanto devia uma crítica ao tempo ultrapassado e portanto persiste sempre neste tipo de exercícios uma vontade de regeneração pelo regresso que embaraça em vez de desembaraçar e portanto a superação inclui o removido mas não à maneira hegeliana enquanto aufbhung dialéctica mas enquanto nostalgia. Como não há uma proposta de superação radical assente numa crítica e condenação das sociedades de antigo regime constitutivamente iníquas e moralmente decadentes abre-se a porta à reificação ideológica dos modelos que a história removeu, a formas de tirania agora sem a caução que a metafísica lhes conferia. O fascismo e o comunismo mais não são do que o holismo antigo imposto de forma autoritária. O terceiro volume consagra o arrivista sem valores, niilista, ou seja o arauto de uma expansão vitalista de uma ideia de poder e de domínio. Trata-se do individualismo mal interpretado, levado às suas últimas consequências. Mas Broch nunca compreendeu o individualismo senão na sua versão deletéria de independência e egoísmo, na sua versão leibnitziana de mónadas sem portas nem janelas, de gerador portanto de fragmentação e caos e jamais na sua perspectiva emancipadora da autonomia assente na ética kantiana. Nunca se perceberam muito bem, ou não se quiseram perceber, os motivos pelos quais Kant foi tão coerentemente anti eudemonista e as razões pelas quais a sua deontologia ética e moral promove o imperativo categórico, à margem da mínima suspeita de sentido do interesse egoísta, ao mesmo tempo que remete todo esse universo para um avatar do individualismo na sua versão hedonista e utilitarista. Herman Broch não percebeu ou percebeu, mas ao desafio complexo da Modernidade, com as suas inevitáveis crises de crescimento, prefere o retorno a um mundo mais estável, mais disciplinado, como se de resto isso fosse ainda possível. Coerentemente ao menos foi buscar as causas da sua ideia de decadência onde elas de facto, sejamos justos, se começaram a manifestar, ou seja naquela época da história em que o edifício da secularização, da autonomia, da liberdade e portanto do humanismo se começou a construir, quer dizer no Renascimento. Ele é corajoso no diagnóstico, ainda que esteja completamente errado: A origem da crise está n’ “Aquela época criminosa e rebelde que é chamada de Renascimento, aquela época que cindiu a estrutura de valores cristã em uma metade católica e outra metade protestante, aquela época em que, com o desmoronamento do órganon medieval, principiou o processo de dissolução dos valores que duraria quinhentos anos e no qual se deitou a semente da modernidade, (…)” Notável a clareza do equívoco. E mais lucidamente ainda Broch não deixa de salientar que não obstante não se pode nem deve imputar a responsabilidade a nenhuma das partes do complexo sistema, seja o individualismo, seja o protestantismo, seja a revolução humanista e científica, seja lá o que for. A culpa para Broch reside, usando uma ideia de episteme à maneira de Foucault, no puzzle conceptual moderno, no modo como as mesmas categorias se organizaram de modo diverso e para ele calamitoso. Eu penso modestamente que sei, mas penso que Herman Broch não sabia, provavelmente não o poderia saber: que a transformação nuclear que fez desmoronar o órganon medieval e no plano social esse organon é holista e corporativo, não foi o Renascimento, nem a Reforma, foi a revolução epistémica desencadeada no interior da própria Idade Média e protagonizada por Dun Scoto e Guilherme de Occam. É a posição do nominalismo na Questão dos Universais que promove a dissolução da harmonia social medieval. Provavelmente até o Renascimento é já um epifenómeno e uma consequência da revolução nominalista. Mas, e não pretendendo adequar-me excessivamente à cartilha ideológica marxista da teoria do reflexo entre o domínio económico-social da infraestrutura e o tecto da superestrutura, quem se atreverá a não reconhecer o papel determinante, na corrosão do holismo corporativo medieval, das transformações económicas e sociais que começam na baixa Idade Média com as sucessivas revoluções económicas, em torno das actividades agrícolas, artesanais, comerciais e demográficas que culminarão na revolução urbana que aos poucos vai modificar a configuração social da Europa e onde acabarão por se evidenciar dinamismos revolucionários deletérios relativamente à ordem tradicional e propiciadores de uma reconfiguração social de tipo novo e inédito, de algum modo. Afinal o individualismo emergente que o nominalismo consagra no plano intelectual possui os contornos de uma transformação sistemática dos modos de vida, das relações sociais e de poder, às quais não foi estranha a revolução das comunas ou dos concelhos. Para quê tapar o sol com a peneira da ignorância, quando qualquer estudo sistemático e integrador das múltiplas dimensões do processo histórico aponta para modificações estruturais e, parece-me, irreversíveis. A modernidade não foi uma opção, a Modernidade era o nosso destino.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA Comédia Trágica de Paixões e Virtudes Balzac, Honoré de, Eugenia Grandet, Livraria Chardon, Porto, [s.d.]. Descritores: Literatura Francesa, Romance, A Comédia Humana, Realismo literário e burguês, tradução por Joao Grave, 246 p.:16 cm. Cota: A PED/B158e.2 Honoré de Balzac nasceu em Tours no dia 20 de Maio de 1799 e faleceu em Paris, no dia 18 de Agosto de 1850. Foi educado durante sete anos no colégio oratoriano de Vendôme, onde imperava um modelo de educação muito rigoroso e severo. Nesse colégio acumulou experiências que ajudaram a fabricar o grande escritor em que se tornou. Desde logo a sua paixão literária, pois enviado inúmeras vezes para uma espécie de solitária, aproveitava para ler tudo o que podia. Mas acumulou também lições desagradáveis, a começar pelo sentimento de degredo e exclusão e a culminar no desprezo dos seus colegas. O balanço dessa fase é de inadaptação e indisciplina e quiçá de revolta íntima. Depois de um novo período de grande infelicidade, agora em Paris, em que chegou a tentar o suicídio, entrou na Sorbonne onde teve a sorte de ter sido aluno de Guizot e Victor Cousin. É mais ou menos assente que é na sua obra que se dá ruptura com o Romantismo e é por isso considerado o fundador do Realismo na literatura moderna, porém ficou célebre pelas sua profundas análises psicológicas timbradas de finas perspectivas históricas tanto sociais quanto económicas e finalmente políticas. Foi, nesse plano o verdadeiro cronista dos costumes da sua época. Estou a pensar no período histórico posterior à queda de Napoleão Bonaparte em 1815, época em que se assiste em França ao desenvolvimento da economia capitalista e ao florescimento da burguesia e às suas primeiras dissensões e clivagens. Foi provavelmente o mais prolífico escritor de todas as literaturas e de todos os tempos. A sua Comédia Humana consiste, pelo que se apurou, em 95 textos literários, romances, novelas e contos. Alguns tornaram-se clássicos da história da literatura universal e de leitura obrigatória, como são os casos de, por ordem de minha preferência: As Ilusões Perdidas de1839, Eugénia Grandet de 1883, que analisamos aqui, o Père Goriot de 1834 e a Mulher de Trinta Anos de 1832. Lamentavelmente a Biblioteca Central de Macau não tem o livro de Honoré de Balzac, As Ilusões Perdidas, do ciclo a Comédia Humana, e digo lamentavelmente pois era sobre essa obra que eu mais gostaria de escrever. Terei assim que providenciar no sentido de que esse magnífico romance venha a enriquecer o espólio da Biblioteca o mais depressa possível para depois poder escrever sobre ele. Não podendo escrever sobre a obra prima referida decidi-me a escrever sobre o romance Eugenia Grandet que é seguramente a par do Père Goriot, do Coronel Chabert, da Mulher de Trinta Anos e de Esplendores e Misérias das Cortesãs uma óptima alternativa. Passemos agora finalmente à Eugenia Grandet, essa jovem provinciana que aos vinte e três anos conhece de forma fulminante o fogo da paixão. Quando aparece assim, a paixão é sem recurso e de uma violência tal que pode consumir uma vida ou simplesmente redimi-la. Sendo filha de família abastada, enriquecida no negócio vinhateiro, à jovem estava destinado um dos muitos pretendentes da região de Saumour, nas margens do Loire, pois a sua fortuna e a sua beleza lhe davam o direito de poder escolher pelo nabal abaixo, tal era a fartura. Não obstante tudo se complicou com a chegada de um primo de ascendência aristocrática, de nome Charles Grandet, filho de um homem carregado de dívidas. A paixão pelo jovem —- distinto e educado pelos padrões urbanos da capital, que logo a seduziram, ela que era provinciana e imatura —- foi, como disse, fulminante, mas rápida e esclarecida também foi a oposição de seu pai, homem avisado e avaro por natureza. O romance é também sobre a avareza extrema deste ex tanoeiro enriquecido através do casamento. Tudo isto acontece no período da Restauração, época favorável às mais variadas formas de arrivismo. Eugénia, pelo contrário, é dotada de enorme candura e bondade e terminará a sua existência promovendo a caridade e a beneficência. É preciso dar um passo atrás e deixar por agora a questão do enredo e dos temas que daí relevam para nos fixarmos no plano ideológico do romance. Aproveito para dizer que essa estratégia passa em mim por um acrescentado respeito pelo potencial leitor, o que significa não abusar da sinopse. Uma sinopse deve ser o mais parcimoniosa possível e portanto ser capaz de estimular a leitura de um livro sem roubar o posterior prazer que no caso de um romance será sempre indissociável das vicissitudes da história. É por isso que em todas as minhas recensões eu evito ser demasiado exaustivo em relação ao enredo. Considera-se que na obra de Balzac, o romance que funciona como precursor do Realismo e desse modo como elemento nuclear da trama da transição do Romantismo para o Realismo, mas ainda no contexto epocal e eu diria sentimental do Romantismo, é justamente este Eugenia Grandet e sendo assim ele é um romance muito emblemático, tanto na obra de Balzac, como mais especificamente na História da Literatura. Nesta perspectiva a heroína do romance é uma personagem inaugural. Sabe-se que Balzac traz para os seus romances todos os grupos sociais, embora se tenha tornado exímio a caracterizar o modo de vida burguês, que é a classe que se começa a tornar dominante no seu tempo. Ora, tratar o tempo presente e trazer para os romances as contradições do seu tempo, assim como os sentimentos, as virtudes e os valores, é uma das características maiores do realismo literário. Além disso triunfa também o gosto e até a obsessão, pelo descritivismo de tudo o que habita o romance sob a forma de décor e cenário, ou seja de tudo aquilo que compõe a riqueza variada da realidade. Tudo isso se irá consumar em Flaubert mas já está anunciado em Balzac ou Dickens, por exemplo. É preciso perceber que a entrada pormenorizada e exaustiva da realidade se conjuga com as crenças positivistas e evolucionistas da época plasmadas nas obras quer de Augusto Comte quer de Darwin. O homem é um produto do seu meio. A relação complexa dos seres com o seu meio determina formas de adaptação dinâmicas e não nos esqueçamos que é neste contexto também que a historicidade faz a sua entrada fulgurante na cultura, na filosofia e nas mentalidades, embora à época ainda muito influenciada pelo historicismo romântico de um Thierry ou de um Guizot, que como sabemos foi mestre de Balzac na Sorbonne. Daqui decorreu também sob a influência do objectivismo positivista uma inusitada paixão pela análise objectiva da realidade social onde os seres humanos são entrevistos à luz dos seus complexos sistemas de adaptação e confronto um pouco como os demais seres vivos. Não andaremos longe de um certo organicismo social para cuja caracterização rigorosa importa não deixar escapar nada. Daí que tal como para os sentimentos, instrumentais no processo adaptativo, o que interessa é a sua análise preferencialmente objectiva e sobredeterminada pelas condições ambientais, assim também para a caracterização externa da personagem interessa valorizar o que a liga ao seu enquadramento social e histórico-epocal. E portanto tudo é trazido para a narrativa: os locais, os lugares, os interiores das casas, o vestuário, os adornos, etc. Enfim, estou a referir-me às questões de Tempo e Lugar, variáveis por excelência da estética realista. Para além disso, nos romances de Balzac, as personagens não representam estereótipos sublimados mas antes pessoas comuns, tais como o médico, o gráfico, o jornalista, o comerciante, o funcionário, o banqueiro, o libertino, o poeta, a cortesã, o advogado e sendo assim o que justamente os caracteriza é o seu modo de vida, a sua actividade social e os valores que daí decorrem. A arte do Realismo literário, torna-se naturalmente muito sociológica e historicizante como reflexo da contaminação naturalista das ciências sociais. Pode-se dizer que Balzac trouxe para a vida social burguesa e popular os temas reservados anteriormente às classes aristocráticas. Num certo sentido ele democratizou o drama e a tragédia. A expressão Comédia Humana é extremamente feliz. Anteriormente o trágico e o próprio drama estavam reservados às elites. Ao povo restava apenas a desacreditada comédia. Designar por Comédia Humana o que no fim de contas é o drama e o trágico, foi um golpe de génio, pois o termo ‘comédia’ aparece ironicamente e quase como expressão de uma crítica implícita mas através da cópula com o elemento ‘humana’ procede-se a um alargamento de campo revolucionário e ao mesmo tempo a uma desconstrução do significado do semantema ‘Comédia’ que de uma forma subtil passa a representar toda a dimensão da vida humana na sua natureza polimórfica e polissémica avessa à compartimentação. A concepção é burguesa e moderna. A obra de Balzac aparece no seu escopo mais fundamental com uma vocação universalista. Longo foi o caminho percorrido desde que a plebe grega dos hoplitas do Demos exigiu ter também acesso ao paraíso. E eu diria que neste plano simbólico culmina com esta democratização da tragédia levada a cabo pela cultura contemporânea. A igualdade reina agora finalmente na terra e no céu, e eu acrescentaria: e também no inferno.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? 4. O homem sem rosto * José Drummond [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]u tens dois olhos enormes. Duas consonantes que acompanham as vogais das lágrimas. As minhas mãos são, neste momento, as de um pianista. Um pó de morcego com voo inquieto. O teu coração faz tic-tac, tic-tac, tic-tac. Mas não é por amor. Não é por amor. O teu coração faz tic-tac porque as flores murcham. E o coração murcha. Porque os quartos são obscuros. Porque o coração é obscuro. Porque os fantasmas não são esperança. Porque o coração é um fantasma. Porque o amor não é esperança. Não é mais esperança. Tu tens dois olhos enormes e o teu coração faz tic-tac porque as minhas mãos procuram um piano. Em crescendo lamento tanto digo amor como digo morte. Tanto digo choro como digo que as flores murcham. Tanto digo que o teu pescoço é um piano como é um caminho que se destrói. Um caminho que se destrói porque te tornaste numa mulher de vertigem. Tornaste-te numa vertigem. Eu era indiferente. Fui indiferente. Fechei os olhos. Não quis saber. Mas não agora. Mas não aqui. Aqui… Aqui e agora as minhas mãos tocam piano. O som da tua voz inaudível, com o seu encanto próprio, roda misteriosamente pelo lamento crescente dos teus olhos. Consonantes esticadas que olham as vogais. Os teus olhos já foram vogais soltas e rebeldes. Agora são consonantes que acompanham a melodia que imponho no teu pescoço. Esse pescoço que tem teclas desenhadas. Os teus olhos apagam-se. Será a porta do inferno que oiço na melodia que imponho? Será a cor do mal? Será o teu rosto uma pluma ao vento? Uma pluma que se desintegra com o crescendo do martelar no piano a que eu obrigo. Foi assim. Disto não sabe a viúva. Esta velha que parece saber tanto sobre nós. Antes disto a última coisa que me lembro é de estar ao balcão de um bar. Não me consigo mexer e não faço ideia sobre o que irá ela fazer-me? Recordo-me dos teus olhos. Essas consonantes naquela tarde. Que consigo eu saber só de olhar para ela? Sinto a cabeça dormente. Retornar depois de vinte anos para isto. Retornei por ti. Ela não sabe que os teus olhos apagaram-se porque eram consonantes. Porque não eram mais vogais. Ela não sabe que depois de os teus olhos se apagarem foram os meus que se tornaram em consonantes. Que possibilidade haveria de me reconhecerem? Assim pensava eu. A plástica deu-me vários rostos. Mas agora sei que não. E que poderia eu fazer? Deixar-te ir sem fazer nada? Deixar-te fugir com ele? Poderia te ter dito algo. Poderia te ter dito antes de fazer aquilo que fiz qual a razão. Poderia te ter dito apenas uma palavra. Poderia. Apenas uma palavra. Desejo. Vingança. Ciúmes. Os teus olhos a apagarem-se. Os teus olhos enormes a apagarem-se todos os dias e todas as noites. Duas consonantes a apagarem-se. A transferirem-se dos teus olhos para os meus. Com vogais em cada lágrima. Já me resignei. Tive que o fazer. Mas se, por acaso, me tivesses dito, cara-a-cara, honestamente, que tudo não tinha passado de um devaneio. Se, por acaso, me tivesses dito que gostarias de deixar tudo no passado. E havia tantas coisas que eu te poderia ter dito. Mas nada. Nem uma palavra. Nada. Não me disseste nada. Nem uma palavra. Nada. As consonantes nos teus olhos e as vogais das tuas lágrimas não foram mais que sons. Ainda me lembro de me estares a apertar o braço naquela tarde de primavera enquanto as minhas mãos tocavam piano no teu pescoço. Os teus olhos aflitos. Ainda me lembro de me teres dito que querias ser minha amiga. Mas, na verdade, simplesmente não podia fazê-lo. Aquela tarde… Talvez seja melhor não desejar que alguma coisa fosse diferente. Aconteceu aquilo que tinha que acontecer. Se estivesses viva e se tivéssemos ficado juntos talvez continuasses desapontada. Talvez te tivesses transformado numa aborrecida trabalhadora de escritório com aparência cansada. Talvez te tivesses tornado numa mãe frustrada a gritar com os filhos. Talvez nem sequer tivéssemos algo em comum para falar. Esta é a possibilidade mais real. E eu, por outro lado, perderia algo precioso que guardei todos estes anos. A imagem dos teus olhos enormes em lamento. Duas consonantes que estenderam a ideia de que o amor é para sempre. Até que a morte nos separe. Se houvesse outra possibilidade teria que ser para sempre. Mas não, eu tinha certeza de que não seria assim. Intrépidos movimentos perdidos num desvario de temperamento. Uma determinação que o tempo poderia ter desgastado. Aquela viagem foi para me dizeres que era o fim. Lembro-me daquela palavra. Amantes. Uma palavra que não sei o que significa mais. Ambos insanamente apaixonados. Talvez isto seja agora apenas a minha imaginação. Talvez esta viúva seja um fantasma. Talvez seja um sonho mau. Aquela pintura com aquela árvore de ameixa. Reconheço-a. Uma pintura com pigmentos minerais, fortemente sobrepostos, com a árvore um pouco abaixo e à esquerda do centro da imagem. O estranho espaço luminoso dessa porção sobreposta. Essa pintura estava no nosso quarto. Como aparece ela aqui nesta sala? Sabes que sempre a detestei. Esta pintura quase sem ramos, nem tronco. Deixa-me olhar apenas para aquela última flor de ameixa. Uma flor com duas pétalas vermelhas e duas pétalas brancas. Cada uma das pétalas vermelhas foi pintada numa estranha combinação de tons claros e escuros de vermelho. “Notícia de Última Hora! A polícia prendeu um homem de 23 anos suspeito de estar ligado aos assassinatos das mulheres. O suspeito estava num bar a causar desordem quando terá confessado ser o responsável. A polícia foi chamada ao local e o homem foi levado para interrogações.”
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasDreams Visions Madness [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e o cinema fosse mais Maddin andávamos todos bem regalados e com uma vida prenhe de cores misteriosas. Prenhe é uma boa palavra porque carrega um sentido viscoso e cheio e os filmes de Maddin também. O primeiro filme que dele vi, My Winnipeg, 2007, passou num ciclo do Centro Cultural de Macau como sendo um documentário. Não sei se é. Um crítico do The Guardian, estupidamente, afirma que, lembrando um pun de Eliot que transmite que um livro como Finnegans Wake é suficiente, um filme como The Forbiddem Room chega, quando, na verdade, muitos filmes deveriam ser assim. Há poucas décadas, tomar um banho era um ritual semanal, o banho de sábado, o Grande Banho da Semana. Hoje em dia, inutilmente, toma-se banho todos os dias. Assim como os banhos, também os filmes se tornaram banais. How do I know this? People have told me, that’s how. Depois de se ver The Forbidden Room (de 2015, co-autorizado por Evan Johnson) nada parece improvável e temos de aceitar o que nos é dito. Como pode um capitão de um pequeno submarino desaparecer e, ao invés, ser substituído por um homem da floresta que subitamente aparece aos 4 marinheiros que a pequena cápsula náutica alberga? É difícil de acreditar mas está lá, bem patente, em cores antigas, para todos verem. Nem tudo se passa no interior do submarino. Intercala-se esta história com uma de lenhadores que se prestam a salvar uma mulher bonita do encarceramento a que a obrigaram os homens do grupo dos Lobos Vermelhos. Os filmes de Guy estão cheias de mulheres bonitas. As provas de admissão ao primitivo grupo são terríveis e incluem Bater numa Bexiga ou Empilhar Vísceras. Nem todos são admitidos. Outras sub-tramas preenchem o filme, episódios de amor; bastante sexo e um louco que escapa de um comboio que faz a ligação entre Berlim e Bogotá; uma história faustiana; numa lógica de histórias dentro de histórias, ao contrário de, por exemplo, Brand Upon the Brain!, 2006, que segue apenas uma trama autobiográfica (ver o doc. 97 Percent True). Não tendo visto Keyhole, de 2012, não sei bem que tipo de evolução poderá ter-se dado, para lá da escolha de um conjunto de episódios pouco relacionados uns com os outros. As histórias de The Forbidden Room aparecem envoltas num aspecto de filme mudo de cores saturadas, muitos truques e uma música sedutora, um aspecto dos seus filmes que não é secundário, a par do resto do tratamento do som, mas que Maddin molda de um modo muito subtil, por vezes quase inaudível (ver o curta metragem de Maddin Footsteps). Brand Upon the Brain!, que foi praticamente todo filmado com câmaras de Super 8 e se passa todo ele numa ilha que alberga um orfanato, mantém sempre uma intoxicante estética do mudo, com o uso frequente de intertítulos e de imagens coadas por um filtro redondo. Não é difícil de perceber que a estética do cinema mudo – uma época de liberdade, experimentação e surpresa – sirva, com a sua dimensão obsessiva e onírica, de subtexto a muitos filmes contemporâneos. Difícil de perceber é que alguém diga que não são precisos mais filmes destes, excessivos e belos. A propósito de The Forbidden Room recordo um autor que utiliza material já filmado para compor as suas peças, Peter Tscherkassky. Ambos exibem um trabalho aturado e saturado de manipulação de imagens. Outer Space, 1999, (9:58min.), é o melhor filme de terror/ficção científica que há, uma espécie de Benilde ou a Virgem Mãe com apenas uns minutos – a ameaça do que vem do espaço. No seu repetitivismo martelado e cubista espelha filmes normais que nos lembram que, quando menos esperamos, a nossa vida banal pode sofrer uma súbita transformação. Outer Space, assim como outros filmes seus, utiliza imagens do filme de 1981, The Entity, de Sidney J. Furie, em que uma mulher é violada por uma força misteriosa. Diferentemente do cinema estrutural de, a exemplo austríaco, Kurt Kren, os filmes de Tscherkassky mantém uma linha narrativa suficiente ao seguimento de uma pequena trama. Os seus filmes são muito curtos mas levam anos a fazer (não são muitos) porque são minuciosamente trabalhados, fotograma a fotograma, um labor de amor e de paciência. Há outros autores austríacos que usam footage de outros filmes, como Martin Arnold*. Estes não são os únicos austríacos vanguardistas. O cinema austríaco, não sendo um cinema poderoso, tem um conjunto firme de cineastas de vanguarda. A Tscherkassky juntam-se Peter Kubelka, Kurt Kren, Valie Export, Lisl Ponger (autora do delicioso Passagen) ou Martin Arnold, para além de autores mais recentes**. Dream Work, 2002, (11min.), tem semelhanças com a sua fantasia científica, um desconforto doméstico desta feita onírico (o de Outer Space é real) repetitivo e noisy, próprio ao prolongamento da agonia e do mistério, oferecido em apreciação à arte cinematográfica de Man Ray. Usa metragem do filme de S.J.Furie acima referido. Instructions for a Light and Sound Machine, 2005, (16:21min.), é um western. Mostra-nos minuciosamente o que se passa no íntimo deste género, de uma maneira que num western clássico não vemos, a minúcia do tiro e o momento entre a vida e a morte. De certo modo, o cinema é sempre a visão de um comboio a chegar a uma estação ou de um grupo de operários a sair de uma fábrica. Esta curta usa fita de The Good, the Bad and the Ugly, 1966, de Sergio Leone. Manufraktur, 1985, (2:54min.), é um outro filme fracturado ou fragmentário, com carros e textos publicitários. Porsches, um Peugeot 404, um Lancia Fulvia e acho que um Ford GT. Gosto muito, é muito ruidoso e quase irritante. Espero com indisfarçada ansiedade uma fantasia sexual, The Exquisite Corpus, último filme de Tscherkassky, estreado no passado Festival de Cannes. * ver A.L.Rees, A History of Experimental Film and Video. ** Tscherkassky é responsável por um livro, publicado em 2012, sobre esta matéria: Film Unframed: A History of Austrian Avant-Garde Cinema, e é o fundador da sixpackfilm, uma organização destinada à promoção da experimentalia austríaca (co-editora do livro acima referido). Existe também uma editora de DVD chamada Index cujo intento reside na divulgação de filmes e vídeos experimentais austríacos.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Infante D. Henrique, de Tânger a Sagres No artigo escrito em 4 de Março para comemorar os 622 anos do nascimento do Infante D. Henrique, deixámos o relato da sua vida quando em 1418, “logo após o regresso da expedição de socorro a Ceuta dois escudeiros de D. Henrique – João Gonçalves Zarco, (sobrinho do vedor da fazenda, João Afonso) e Tristão Vaz Teixeira – pediram autorização para praticar o corso. Os ventos conduziram-nos à ilha de Porto Santo, onde decidiram fixar-se, porventura decepcionados com uma guerra que não trazia honra nem proveito”, segundo Luís Filipe Thomaz. Desde 1416 D. Henrique estava encarregue da defesa e provimento de Ceuta, conquistada no ano anterior, mas tal praça mostrava-se um sorvedouro de gente e dinheiro. As necessidades financeiras, que precisava, obteve-as sobretudo pelo controlo da actividade corsária portuguesa na área do Estreito, onde, tal como o seu irmão D. Pedro, tinha ao serviço barcos corsários. Segundo Artur Teodoro de Matos, “o Infante D. Henrique vai construindo economicamente a sua casa com direitos, monopólios, , isenções, honras e privilégios. Depois de lhe ser concedida a alcaidaria-mor da cidade de Viseu, em 1416, recebe, em 1420, a administração da ordem de Cristo cedida pelo papa a rogo do rei, o que lhe permitirá investir os proventos desta na guerra contra os sarracenos e na , objectivos tão caros ao Infante e que se coadunavam com os seus interesses económicos. Depois, é autorizado a realizar feira franca anual em Tomar (1420). Recebe o monopólio da estacada no Ródão para reter o peixe (1421); do relego de Viseu (1421); o direito de conceder terras suas e da Ordem de Cristo em regime de sesmaria (1422); de doação de casas para saboaria em Santarém (1424); facilidades para a sua indústria de sabão em Lisboa (1428), etc.” Desta forma e pelo corso, D. Henrique tinha os fundos que precisava para enviar os seus barcos para o Atlântico Sul, onde cria poder encontrar apoio do tão afamado reino cristão do Preste João, assim como perceber a extensão do território muçulmano. Em 1422 “começou a mandar navios da sua frota corsária para o Sul, dando-lhes ordens para que tentassem dobrar o cabo Bojador” segundo Luís Filipe Thomaz, no entanto, “os planos henriquinos de exploração da costa ocidental africana não parecem constituir, na origem, um projecto expansionista distinto da conquista de Marrocos; muito pelo contrário, integram-se, com toda a verosimilhança, na mesma estratégia, visando simplesmente envolver o reino de Fez pelo Sul.” E prosseguindo, “Durante doze anos todas as tentativas fracassaram, sendo apenas em 1434 que Gil Eanes, finalmente, penetrou nas águas desconhecidas do Atlântico Sul. Tal sucessão de malogros explica-se por dois factores; por um lado, o temor dos baixios fronteiros ao cabo, o medo do desconhecido, porventura também a influência das velhas lendas sobre o que se estenderia para lá do Bojador; por outro lado, o atractivo económico do corso, que levava as tripulações a preferirem as costas de Marrocos e de Granada, onde podiam capturar presas, ao litoral arenoso e despovoado do Sara.” O desastre de Tânger Enquanto o príncipe D. Duarte se preparava para ser Rei, os seus irmãos na segunda metade dos anos vinte do século XV viajavam pela Europa. O Infante D. Pedro, entre 1425 a 1428 e no ano seguinte, foi a vez do Infante D. Fernando, o irmão mais novo, acompanhar a irmã, Isabel, à Flandres, onde se casou com Filipe, o Bom, tendo este aliciado o Infante D. Henrique para aí ir viver. Tal ocorreu após a malograda expedição de 1424/25, “sob o comando de D. Fernando de Castro para se apoderar da Grã Canária”, organizada pelo Infante D. Henrique, sem querer saber de Castela que, “desde 1403, tinha sob a sua suserania as ilhas de Lançarote, Forteventura e Ferro” e em 1421 “o Rei de Castela D. João II concedeu o que faltava conquistar das Canárias ao andaluz Alfonso de las Casas, tendo o Papa confirmado tal concessão”, como refere Luís Filipe Thomaz. A salientar ter já o Rei D. Afonso IV, da primeira dinastia portuguesa, enviado uma esquadra que encontrou as Ilhas Canárias em 1336. E continuando, “A intervenção do Rei (D. João I) no processo tinha visado desviar das Canárias D. Henrique e seus apaniguados, para evitar as tensões com Castela” e consciente de ter os filhos a ajudá-lo, D. João I começou a ponderar encontrar maneira de cativá-los. O estabelecimento português nos Açores, ilhas encontradas em 1427 por Diogo de Silves, foi segundo Filipe Thomaz, “provavelmente uma consequência do povoamento da Madeira e do desenvolvimento da navegação entre a ilha e o continente”. Em 1429 ocorreu um novo ataque dos marroquinos a Ceuta e perante a sua frequência, a coroa portuguesa debate em 1433 sobre a “viabilidade de prosseguir a política expansionista em Marrocos”, Veríssimo Serrão. E seguindo, “A situação de Ceuta, isolada no território do Magrebe, impunha a conquista de novas praças para a realização daquele projecto”. D. João I preparava uma empresa a Marrocos, que pensava comandar pessoalmente, quando em 1433 finou. D. Duarte sucedeu a seu pai, reinando de 1433 a 1438. “Na corte de D. Duarte fizeram-se, entretanto sentir as correntes favoráveis à conquista de Tânger”, segundo Veríssimo Serrão, “porto cobiçado pela sua posição estratégica face ao estreito de Gibraltar.” Em 1437, “graves carências no comando da expedição e uma táctica militar votada ao insucesso levaram o cerco do exército português que, a 12 de Outubro daquele ano, teve de se render na totalidade à pressão dos defensores de Tânger”, segundo Veríssimo Serrão e continuando, a 13 começaram as negociações, “a 17 assinou-se a paz”. “Por este tratado, D. Henrique obrigava-se a devolver Ceuta a Salah ben Salah, que a perdera em 1415 e que em 1437 governava Tânger. Como refém, os Muçulmanos retinham o infante D. Fernando. Os Portugueses embarcariam, sem armas e vitualhas, ficando como refém desse embarque um filho de Salah ben Salah e como refém deste quatro cavaleiros fidalgos portugueses.” O Infante D. Fernando, como mártir, aí ficou prisioneiro e só seria libertado em troca de Ceuta. Assim em Fez o deixaram sacrificado como Infante Santo, apodrecendo até a morte o levar em 1443, pois as Cortes não quiseram permitir que essa praça fosse restituída. Com a morte do Rei D. Duarte em 1439 e porque D. Afonso, o futuro Rei Afonso V, tinha apenas seis anos e o povo não aceitava D. Leonor para regente por esta estar nas mãos da nobreza, D. Pedro, irmão do falecido rei (D. Duarte), governou o país até 1449. Este, em 1443 concedeu ao Infante D. Henrique o monopólio da navegação, guerra e comércio nas terras além Bojador. “Com os dez anos de regência de D. Pedro II, regressava o entusiasmo pela navegação e atingiu-se o Cabo Branco e o Golfo de Arguim, região rica em ouro e escravos traficados pelos habitantes que iam ao interior fornecer-se de pessoas da sua raça e os capturavam, para depois trocar por panos, prata, tapetes e trigo com os portugueses, que aí tinham uma feitoria. Assim, ao explorar vastas zonas do Atlântico Central, um novo espaço geoeconómico se abre, levando a uma expansão da economia e em que o elemento monetário é cada vez mais importante”, Celina Veiga de Oliveira. Vitorino Magalhães Godinho sobre o carácter do Infante diz: “A atestar que não possuía excepcionais qualidades de organização prática, aí estão o desastre de Tânger, cuja responsabilidade lhe cabe inteira, e as dívidas que legou (e que não podem ter resultado das despesas com os descobrimentos, mas sim dos gastos da sua casa senhorial). Todavia, pensava também no acrescentamento material da ordem de Cristo, e o seu panegirista indica que esta adquiriu novas casas e herdades e pôde construir capelas. Nunca descurou o engrandecimento da sua casa e património, teve uma empresa de corso e vigiou atentamente para não ser defraudado do seu quinto de escravos. Sacrificou o seu irmão mais novo ao seu imperialismo marroquino, sacrificou o irmão mais velho em Alfarrobeira porque divergiam politicamente.” Já Luís de Albuquerque refere sobre a cultura do Infante: “D. Henrique personifica o tipo de homem de acção e não de reflexão erudita; no seu espólio há livros (mas pouquíssimos livros!) de cultura geral (assim escreveu Cortesão) e livros de devoção; estes sim, devia o infante estimá-los, como católico fiel que era, à maneira do seu tempo. Quanto ao resto, é quase certo que passou muito bem sem roteiros, cartas, planisférios e outras coisas que, a partir de determinado momento, terão interessado vivamente navegadores e pilotos.” Sagres, a vila do Infante D. Henrique fez de Lagos a sua cidade e mais tarde, Sagres o seu refúgio, talvez para expiar os remorsos sentidos por ter convencido o seu irmão D. Fernando a tomar o seu lugar como refém, após a malograda expedição de 1437 a Tânger, enquanto ele vinha a Portugal tratar da entrega de Ceuta ao rei de Marrocos. Mal foi libertado de Tânger, D. Henrique logo fez saber que tal entrega estava fora de questão e assim D. Fernando ficou cativo em Marrocos, onde veio a morrer em Fez após anos de tortuosa prisão. Sagres situada no extremo Sudoeste da Europa era um promontório Sacro desde tempos muito antigos, sendo uma zona sagrada e interdita ao comum dos mortais e onde S. Vicente estivera sepultado desde 760, até D. Afonso Henriques mandar transladar os ossos, ficando então a chamar-se Cabo de S. Vicente. Era na enseada onde as embarcações que navegavam entre o Mediterrâneo e o Atlântico Norte tinham por vezes de aguardar a chegada de ventos propícios. O promontório Sacro era uma zona árida e despovoada quando em 1443 o regente D. Pedro doou a região de Sagres ao seu irmão D. Henrique. Este aí mandou erguer a sua vila, usando para isso o trabalho de prisioneiros degradados. A construção foi realizada muito lentamente e assim o núcleo populacional ali feito, apenas em 1457 serviu como regular residência a D. Henrique. Já a existência aí de uma Escola de Navegação, conhecida por Escola de Sagres, é um mito. “Aos nove anos depois de Tânger, cinco passados sobre a queda de Bizâncio, D. Henrique levava o sobrinho (D. Afonso V) a Alcácer-Ceguer”, (segundo Oliveira Martins) e “no Outono de 1485, a 3 de Outubro, de manhãzinha, surgiu em frente a Sagres a armada em que o rei saíra de Lisboa três dias antes; e D. Henrique, hirto sobre sessenta e cinco anos de um pensamento fixo, embarcou, tomando a direcção da empresa, e conquistando Alcácer”. “Em 1460, à data da morte de D. Henrique, a navegação portuguesa percorria já, de uma forma rotineira, os caminhos marítimos da Madeira e dos Açores, de Arguim e da Guiné, do Cabo Verde e da Serra Leoa, e executava sem problemas a grande volta do largo, que, aproveitando o regime de ventos dominantes, trazia as nossas embarcações de regresso dos mares tropicais ao litoral português, longe da vista de terra” como refere Rui Loureiro. Após a morte do Infante D. Henrique, D. Afonso V em 1469 arrendou a Fernão Gomes, por um período de cinco anos a exploração da costa africana. Com 67 anos, o Infante D. Henrique faleceu a 13 de Novembro de 1460 na sua vila de Sagres. Nessa noite de quinta-feira levaram-no para a igreja de Santa Maria em Lagos, onde foi sepultado com todas as honras e em frente à qual os sacerdotes se ocupavam em contínuas vigílias. Por ordem do Rei D. Afonso V, foram no ano seguinte os ossos trasladar para o mosteiro de Santa Maria da Batalha. Duas semanas antes de finar, o Infante D. Henrique estando já doente ditou a 28 de Outubro o seu testamento que começa: “Eu, o Infante Dom Henrique, governador da ordem da cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, duque de Viseu e senhor da Covilhã”. Nesse testamento percebe-se a sua forte devoção a Deus a que encomenda a alma e o corpo e lhe dê a salvação na ressurreição, pedindo para tal a ajuda misericordiosa de Maria e de São Luís, a quem desde a sua nascença fora encomendado, que ele e todos os santos e santas e anjos da corte celestial intercedam a Deus pela sua salvação. Pede para ser sepultado no Mosteiro da Batalha e aí se realizem missas e orações por ele, para as quais deixa alguma da sua imensa fortuna, assim como no Convento de Tomar. Das suas rendas do seu assentamento e das saboarias, das ilhas da Madeira e Porto Santo e da Deserta e Guiné com suas ilhas e toda sua renda e o quinto das enxávegas e das corvinas e Lagos e Alvor, por três anos após a sua morte deviam servir para as seguintes despesas: para a sua sepultura, pagar as suas dívidas…” e continua numa extensa lista. Rui Loureiro refere: “O Navegador, talvez sem o querer, certamente sem o saber, lançara Portugal numa aventura marítima de consequências imprevisíveis, que, muito em breve, haveria de conduzir os nossos navios e os nossos homens à Índia, ao Brasil, à China, e a tantas outras terras e mares desconhecidos”. E terminamos com as palavras de Luís Filipe Thomaz: “Não houvessem os grandes descobrimentos marítimos tido lugar e Portugal teria, quiçá sido, como Aragão, absorvido por Castela.” Por isso a nossa homenagem ao Infante D. Henrique, o Navegador do Céu de Portugal.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasCinza, amarelo. E a seguir o azul Acendo o candeeiro como se abre a porta a um amigo. Luz doce. Quase espero que me acenda um cigarro para começar. Podia dizer assim porque das palavras e do que encobrem, por vezes pouco se sabe. Qualquer nudez. Todos os dias me sento ao lado dessa luz calorosa. Mas não agora. Mentia. É dia. E frio mas de céu azul. De vez em quando com um timbre quase lilás. E nuvens velozes. E esta luz ainda fina mas que, a adivinhar outra estação, começa a amarelar. Sigo o azul. Sigo o azul distante. O azul, que há-de ser sempre azul por mais que eu pinte a preto e branco. Sigo-o, mesmo à distância, para além de todas as nuvens e por detrás de todos os cinzentos possíveis e mesmo do plúmbeo da noite. Sem que os olhos me doam. O coração sim, às vezes. E afinal sempre acendo o candeeiro. Um cigarro. Pela companhia. Porque não sei quem está aí. Com que olhar. Com que desconforto ou interrogação. Quem vem sentar-se na minha frente. A pensar se é daqueles dias em que estagnei no imenso lamaçal de um mundo agreste e escorregadio. Que olho por entre franjas de inércia. Agitada. Em frente, daqueles dias em que há uma casa amarela, uma risca negra e depois o céu. Que dizer daquela risca negra e dos dias em que é exactamente ao contrário tudo. A começar no azul em baixo, comprimido por uma listra negra e uma casa amarela empilhada por cima. Pelo meio a memória de uma mancha enorme de uma oxidação estranha, ou corrosão, no capô de um carro. De um azul estranho também, obscurecido pelos reflexos e pela noite, aclarando no céu, e com matizes quase invisíveis. E ali também um candeeiro a rivalizar com uma lua reflectida. Bela só porque é uma luz. Ali, na curvatura em que me inclino, ambas as luzes idênticas. Luzes. Um feitiço só por si. Um farol. E por outro lado, outro dia já, a casa amarela, com a sua risca larga e escura a encimar umas janelas sonolentas e deitado logo a seguir um céu rosa. Sujo escuro e desmaiado, mas céu. Quanto muito. Daqueles dias em que sempre sabia que não sabia tanto, como não sabia agora e hoje. Em que os elementos não ajudam a clarear a mente nem o dia. Revolteando em redor, num redopio estonteante. Esvoaçantes os cabelos e os pedaços de pensamentos sempre quebrados num golpe de jeito dúbio do vento. Inimigo de caminhos pacíficos. De vez em quando mergulhar a pique nas águas profundas. Tentando ver o que assentou no fundo, o que se perdeu, o que flutua e o que é demasiado pesado para voltar à tona. De vez em quando dar uma volta pelo lado b das coisas. Na correria dos dias que fogem sempre com mais marés do que aquelas em que um barco consegue navegar. E outras só porque demasiado alterosas. E depois voltar e ser tudo igual mas subtilmente diferente. Ser igual mas delicadamente outra. Continuar tudo por entender, exepto o que houver exacto no momento que passa. Os sinais do imediato. Não no seu sentido profundo mas na superfície de um léxico quase reduzido ao binómio O-1. Nada mais cortante. Nada mais do que o vazio que não é novo mas por vezes se adensa. Ou cabos e tormentas em que se desmultiplicam as intempéries de todos os invernos, unidas de repente, no rodopio de ondas que enrolam a areia, a desarrumam e nela rolam pedras. Demasiadas ventanias, demasiadas ondas e nenhuma que traga o marujo amado. Como mulher de pescador a sondar madrugadas ao longo de uma vida, até ao dia em que ele não vem. O seu barco não volta e acordar do sonho num quarto citadino e não haver pescador para com ele sonhar. Depois é já esta hora crepuscular, que é talvez a mais bonita. Digo, em alguns dias. O tom de azul tão precário, é o da maior transparência. Soturna e triste. Dura pouco e de alguma forma ainda bem, porque é aquele momento do dia em que tudo em mim se escoa por aquele azul adentro sem retorno possível. A sensação de perda, de desnorteamento, como uma morte em que se separa o que houver de alma, do invólucro seguro. Momentos de transição não são bons. Passou o que passou sem redenção e o que se segue a parecer de momento triste. Depois aquele incendiar das cores como o acender de luzes a substituir o dia. Há que dar um passo para a noite escura, que depois por vezes é extensa e apaziguadora. Quando é. Algo regressa a este espaço ocupado e mesmo a tristeza volta ao sítio. E pode ser grande. Imensa e a subir de tom. Depois, há-de haver um momento num dia em que se acalma. E o tempo que nunca chega… Aquela sensação recorrente de que a vida me ultrapassa. Não a vida em geral, não teria essa pretensão, a minha vida. E, noutro dia, um frio maior. A névoa que, finalmente associada a este, traz o inverno em pleno. O inverno que já estava. Mas há uma beleza estranha nestes tons de formas aveludas não fora o cortante gume na pele. Pousada a bruma nas árvores, e a nelas encobrir mais ou menos de uma realidade bela ou não, não deixa de ser uma forma de acalmar a ansiedade. Que um excesso de recorte e nitidez deixaria sempre. Não quereria saber a totalidade do caminho em frente. A ilusão de nitidez do castelo sempre adiado para mais longe depois de uma curva. Eventualmente. E depois de uma curva outra curva, antes de se entrever aquele que se torna de novo distante. Eventualmente inalcançável no fim da história. É essa imagem focada que espero todos os dias e que, no entanto, traria mais ilusão. Continuo guiada como cega pelo desconhecido dos dias. De todos os dias e esperando que não se vá. O desconhecido que sou eu e tudo o resto de que sei parte e nunca todo. Excepto uma parte maior lá à frente mas que pela experiência dos dias passados será sempre parte do todo. Uma parte. Do mistério maior em que, mesmo querendo, se fica à porta. Ou então em sonhos. Dessa névoa, não há nunca a dúvida de como tapa as cores e formas desenhadas antes dela e apesar dela. Esqueço por momentos e depois volta o saber do sol e de todas as coisas possíveis, que a névoa não faz desaparecer mesmo quebrando os olhos e a alma. E volta o saber de não saber nada. Mas de que nada lá estará, é uma ideia destrutiva que não pode guiar. Seria menos do que uma parada de cegos. O império do olhar é coisa a deixar por vezes ao olvido. É desse desconhecido maior que espero a revelação dos dias. A pouco e pouco. Que me vá revelando a parte de desconhecido que me cabe. Essa que tento desesperadamente entender. E do dia de agora. Não mais. Talvez um pouco mais. Não quereria saber tudo de uma vez. Tudo o que ainda resta para viver. Não seria bom perder o sonho. Não seria bom não ter nada para que acordar. Do desconhecido que sou, tiro as medidas do desconhecido dos outros e bem maior. E do medo. Esse cão. Mas esse desconhecimento mútuo faz-se de pequenos clics que sentimos ou não no segundo certo de uma imagem, de uma mancha, de uma palavra, ou de um olhar. E nele não pode caber mais do que o que está à distância de um clic. Um arrepio. A sensação de queda. Um baque no peito. Um passo. A subir. Não se quer vogar para sempre, mesmo na matéria estética da profundidade de beleza de uma névoa. O céu azul de nuvens miudinhas. O céu de denso azul sobre o mar, ou o céu das estrelas têm outro sabor quando visíveis. O céu abismal onde vogam planetas, cometas, asteroides e meras poeiras cósmicas. Que somos. Armados de um ego que nos faz enormes e que devemos rebater em contraste com o todo, que como nós também está a morrer, mas a uma outra escala. Às vezes a vontade de acelerar o tempo. Que desperdício, esta lentidão. Não fora o facto irredutível de que esta retarda o fim. E o que importa não é o texto. É a caligrafia. Às vezes chove. Mesmo isso me parece um desabafo da alma. Em espelho. Mas numa casa antiga uma pessoa sabe sempre que a chuva pode entrar por vias esconsas e fazer eclodir o salitre das paredes. Como a realidade de que se quer fugir correndo para casa. Às vezes. Mas é como uma sonata melancólica, que embala por empatia. Não há maneira de se querer contrariar o que estiver a colorir a alma no momento. A violência não é bem-vinda. Mas os elementos não têm culpa, é da sua natureza. A culpa é da razão humana. Como a construção das casas. Imperfeita e vulnerável. Independentemente de planos e plantas. Adoro mapas. Cartas de marear. Esquemas de corte e costura. Um intrincado sistema de moldes sobrepostos pelos quais guiar a tesoura. Na realidade nunca o fiz. Corto sempre sem rede e por vezes estrago o tecido e isso obriga-me a mudar de planos. Mas as cartas, as mais antigas de grafismos mais imprecisos geograficamente mas de desenho mais bonito. E com mais margens de desconhecido. As cores, as manchas oxidadas como as da pele e o amarelado geral do papel. As linhas como um sistema venoso ou arterial. E as rotas conhecidas como a circulação de vida, a que uns mais do que outros são apegados como por uma questão de morte ou vida. E navegar pelas estrelas. Nunca gostei dos constructos abstratos do moderno conjunto de artérias. Uma autoestrada igual à outra e circuitos indirectos pela cidade. Gosto dos caminhos como se percorrem a pé. Virar sem sinais de trânsito. Mas por entre uma teia de opções, em que virar para um lado se faz virando para esse lado. Perco-me mesmo na minha cidade nas condicionantes do trânsito e perco o norte. Eu não sei ler as estrelas. Dos mapas de viajar também gosto mais em cima da mesa, do que para cumprir à risca como um esboço que se refaz a tinta. Gosto do risco directo sobre o papel. Dos minutos muitas vezes não sei portanto, quem vem de facto sentar-se aqui. Na minha frente. As construções da memória e da motivação são estranhas e indomináveis. Como em outros momentos, na verdade, me assalta a estranheza mesmo ao alcance dos sentidos. Sabia que mesmo as luzes coloridas de uma árvore de Natal conseguiam um efeito encantatório de escape a um lado mais negro. Mas no momento, as luzinhas mínimas e imensas eram estrelas e no céu. Numa aldeia cheia de portas e janelas fechadas sobre o silêncio, sobre o vazio e muitas ausências, em que o céu me fez lembrar que há muito não o via como se estivesse para baixo, cheio de estrelas e de imensidão…Deitada de costas no terreno áspero, incerto, um pouco húmido mesmo. Ou talvez simplesmente o frio. A tornar-se presente à medida que os minutos passavam. E a mão dada. Também. A tornar-se mais nítida. Até parecer uma entidade própria, solta, feita de duas e desligada dos dois corpos ali. Um animal pequeno adormecido e quente. Em silêncio que podia ser de tudo. Mas a pensar na enormidade do universo, naquela qualidade abismal do negro tão mais profundo quanto interrompido pelo cintilar de tantas estrelas como numa visão urbana raras vezes se vislumbra. E a sentir a vertigem de se abeirar desse imenso fundo negro, como se para baixo, para além de tudo. Como se habitar este ínfimo planeta, à escala de todo um universo, fosse estar na beira do precipício e não colada a um núcleo de força gravitacional que centra como se um bloco compacto. Uma mole de formigas em cima de um torrão de universo. Não por debaixo. À beira dele. Numa curiosa, estonteante e momentânea inversão do sentido de orientação. Abismal. Como um átomo de Hidrogénio que, de tão pouca densidade, facilmente escapa ao campo gravitacional. Uma enorme melancolia quando leio notas científicas sobre as possibilidades de colisão de asteroides com este planeta pequeno e solitário. Não sei porquê, quando muitas das possibilidades mais não encerrem do que a certeza de que num momento outro todos vamos. Mas há mais do que cada um em si. A nossa cadeia por vezes inestimável de seres com continuidade é uma coisa frágil mesmo se tivermos descendência. O fim é frio e sem distinção de sentido quer seja um atropelamento súbito, o impacto de um amor, de um asteroide ou simplesmente o fim de um universo complexo de expectativas de permanência para além da vida terrena. Sim tudo e rigorosamente tudo pode acabar. Acaba. No fundo quando se apaga a consciência de ser. Esta é aquela perspectiva que deveria presidir a valores maiores do que aqueles que circunstancialmente nos tolhem no dia a dia-. Que mesquinhas limitações as nossas. Orgulho, previdência, calculismos pontuais, estratégias. Como asteroides são na realidade pensamentos que me bombardeiam com impacto, sem esperar. Possíveis todos os dias, mas de cujas cores, nem sempre sei o que esperar. Porque há dias de espuma e dias de lava. E então, catapultada para baixo nessa imprevista alternância de sentir, de novo as costas no chão e o peso do universo pressentido além, agora em cima, penso: quem é esta pessoa ao meu lado e o que nos trouxe aqui. Os dois e não outra coisa. A doçura e a amargura não se podem anular. É talvez o agridoce doseado com mestria que harmoniza o paladar. E, na vastidão momentânea que a vista alcança, mergulhada para fora tanto como para dentro de mim – estranhas dinâmicas psíquicas a questionar talvez depois – sinto distância. O longe no perto. A distância confortável que só um fio ténue como aqueles que atam e prendem um balão, suportava. O fio da inércia de um lugar e um tempo fora daquele, e que aquele de algum modo questionava. Desconfortavelmente. A distância. De um momento. E na manhã de um outro momento ali, o ribeiro parado, um reflexo nítido e sombrio da ponte e aí, como se numa janela rasgada no negro do reflexo sombrio, o céu claro, como mergulhado num mundo ao contrário. Ou talvez não. Apenas um outro instante “em que (…) a ordem visível das esferas mais altas virá mirar-se na profundeza mais sombria da terra (…)” (M. Foucault). E noutro momento ainda, e num lugar já não a norte, um de todos aqueles outros dias, na verdade, que são mais a sul, à beira das águas rumorosas e de novo deitada de costas, e só – agora só – o sol escaldante mesmo nos intervalos da aragem fria, e a ferir, excessivo mesmo através das pálpebras cerradas. Já não uma mão em outra, que não era a que não está agora, de qualquer modo. Nem a distância. Tudo ali. Sem saber de onde vem esta sensação de perto no longe. Sentido com sentido. Mesmo sem que o do tacto e os outros, possam comprovar a não distância. O abismo, a retórica, o paradoxo. Em que a ausência é um lugar pleno. De traços fortes. A cheio. Porque não é um daqueles dias. De Hidrogénio. Hoje Ósmio, elemento do grupo da platina. Metal azul acinzentado, e o mais denso de todos os elementos. Hoje cinzas tocados de luz. O amarelo na parede em frente, pausa, e a seguir o azul até longe.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasQuando os Fins Justificam os Meios [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]riedrich Durrenmatt nasceu a 5 de Janeiro de 1921, em Konolfingen, Suíça e veio a falecer a 14 de Dezembro de 1990 na cidade de Neuchâtel, Suíça. É tradicionalmente identificado pela sua obra de dramaturgo como por exemplo A Visita da Velha Senhora de 1956, embora as suas novelas sejam de valor inestimável sobretudo pelo seu estilo entre o absurdo e o surrealista. Pressentem-se relações estilísticas com Dino Buzzati, por exemplo. Friedrich Durrenmatt, para além disto consegue reunir nos seus romances e em grande plano, astúcia narrativa, o poder fascinante da intriga e capacidade reflexiva, ao ponto de os seus romances serem de algum modo inclassificáveis o que só acontece com os grandes escritores. Das suas obras mais importantes assinalaria, Está Escrito e O Cego ambas de 1947, , A suspeita de 1953, A avaria de 1956, A promessa de 1958, Os físicos de 1962, a Justiça de 1985 e justamente O juiz e o Seu Carrasco de 1952. Nos romances policiais de Durrenmatt os representantes da justiça não são dados a grandes escrúpulos morais, como se os fins justificassem os meios. O comissário Barlach não foge à regra. Sendo um paladino de valores à moda antiga não deixará de usar meios ilícitos para levar a água ao seu moinho ou seja conseguir fazer justiça, mesmo se por ínvios caminhos. Numa pequena cidade suíça, a morte de um polícia respeitado pela comunidade de nome Schmiedt, coloca Barlach na resolução do caso. Barlach é já um homem em elevado estado de decadência e encontra-se numa situação que parece terminal em termos de saúde, mas mantém incólume a sua obstinação assim como os valores (contravalores por vezes) que o destacaram no meio policial. Ele tem uma ideia do Bem que não se alterou com o tempo e em vez de se submeter aos dados da investigação procede de tal modo que a investigação se adeqúe à sua sede de justiça, e sobretudo nos termos em que a entende. Aos poucos, os factos ajustar-se-ão à sua concepção da Verdade e conduzirão a um desenlace inesperado, ao mesmo tempo trágico e cruel. O Juiz e o seu Carrasco, primeiro romance policial do grande escritor suíço Friedrich Durrenmatt, é um exemplo acabado da sua mestria de narrador, capaz de transformar uma história anódina numa obra-prima de inteligência e de imaginação. Mais do que uma história policial o romance é uma dissertação sobre a comédia humana e as suas, por vezes, precárias fronteiras entre o Bem e o Mal, a verdade e a justiça. Não obstante, nada disto é ainda o que o romance mais profundamente significa, pois de facto o romance consiste, na sua essência, num ajuste de contas entre Barlach que de uma forma heterodoxa, mas autêntica, simboliza o Bem e Gastmann, que de uma forma real mas também simbólica representa o Mal. É a obstinação do ajuste de contas que legitima as práticas heterodoxas de Barlach. A proeminência subliminar do ajuste de contas, que contudo não é nunca uma vendetta, ou não pretende ser, mas a consagração da vitória do Bem sobre o Mal, ilude a própria natureza do romance policial, no sentido em que parece que o texto se situa nos dois planos clássicos do género, a saber, a história do crime e a história da investigação e no caso de O juiz e o Seu Carrasco, mais investigação do que crime. Esta era a dualidade clássica do chamado Romance de Enigma, para retomar aqui a conceptualização tipológica de Todorov. Durrenmatt respeita-a formalmente e aparentemente mais do que formalmente pois na economia da sua obra ela pesa e de que maneira. A verdade é que só pesa aparentemente e a aparência está paradoxalmente à superfície, porque em subterrânea profundidade desenha-se outra história e outra dimensão narrativa. Há desse modo duas ausências, uma que é conatural ao género, a ausência do crime porque ele é sempre antecedente e até aqui tudo bem, e outra que é a ausência do leitmotiv do romance que afinal percebemos que não é a resolução deste crime concreto e que resultaria desta investigação concreta, mas a resolução de uma pendência estrutural que remonta a mais de 40 anos e que está completamente ausente pois a anterioridade é esmagadora relativamente aos factos em consideração. Quando o autor de romances policiais funde na sua história, a história da investigação com a história do crime podendo fazer surgir novos crimes que estão sempre em potência, ou seja, na eminência de acontecer, passa-se para o domínio do Romance Negro ou de Suspense. Mas também não é isso que faz Durrenmatt, isso seria para ele uma cedência a um gosto demasiado popular. O romance de enigma é retrospectivo, essencialmente cerebral e portanto um puro exercício de inteligência, enquanto que o romance negro é prospectivo, daí o suspense, e portanto essencialmente emocional, daí a sua popularidade. Ora o romance de Durrenmatt, este em todo o caso, não é uma coisa nem outra. Ele põe em cena não apenas duas histórias mas três, as duas histórias clássicas mas ainda uma história subterrânea, sendo que afinal é essa história oculta, à qual o autor se furta durante a maior parte do texto, ou não fosse ela oculta, que justifica o romance. Esta história é a história do ajuste de contas entre o comissário e o criminoso. Esta história só tarde se percebe, durante quase todo o tempo nem sequer se pressente. Barlach vai, em precárias condições de saúde mover uma caça sem quartel ao seu inimigo de estimação, paradigma moderno do criminoso nas sociedades em que o mal aparece mediatizado pelo poder plutocrático, pelo poder político, pelo poder ambivalente dos Media, pelo poder enfim metaplásico das redes de interesses e influências. O recurso às isotopias da caça e da animalidade selvagem mostra o génio de Durrenmatt que rapidamente com poucas pinceladas transfigura o que era, aparentemente repito, um simples romance policial clássico, racionalista e transparente, num poderoso exercício sobre as metástases modernas do mal, e sobretudo sobre as mutações modernas do seu combate, aproximando-se de uma desconstrução da tardomodernidade, por um lado, mas promovendo ao mesmo tempo a ideia de uma luta sem quartel em que o justiceiro baixa ao patamar do criminoso. É esta metamorfose, assente no regresso de uma lógica antiga de olho por olho, dente por dente, de luta de vida ou de morte, sem lugar para regras entretanto engendradas pela civilização, que configura uma inequívoca crise da Modernidade. No combate ao mal, vale tudo até o próprio mal. Barlach, diminuído fisicamente consegue mobilizar astuciosamente Tschanz, o assassino de Schmiedt, contra Gastmann e será a fúria daquele que porá termo ao símbolo demoníaco do mal. Simplesmente ao conduzir o romance para este final, Durrenmatt enterra neste romance policial a lógica do romance policial clássico. Tudo se arruína quando o comissário de polícia não está interessado em descobrir o assassino de Schmiedt, ou, descobrindo-o, de o culpabilizar, mas antes de usar o criminoso para fazer justiça, assassinando um outro criminoso, desligado porém deste caso, mesmo tratando-se de uma personagem essencialmente maligna. Barlach não quer saber da justiça relativamente ao polícia exemplar Schmiedt que fora assassinado; a sua concepção de justiça é menos fáctica e mais simbólica. Ele quer a cabeça de Gastmann, que para ele é o rosto do crime e do mal em absoluto e para isso desculpabiliza o assassino do caso que foi chamado a resolver, Tschanz, levando-o, fera contra fera, animal criminoso contra animal criminoso a assassinar Gastmann. Ele comporta-se tal como Gastmann se comporta, ao usar do seu poder de influência e do seu poder policial para se desviar do caminho da justiça. Ou não? Questão de resposta muito difícil. Justiça, ou afinal vingança?
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasA manga, as líchias e o marido ideal 毛佬佬与习大大 * por Julie O’Yang [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]os tempos que vivemos torna-se cada mais pertinente fazer uma reflexão sobre o culto de personalidade do Grande Líder Chinês. Vamos começar pelo episódio das mangas. Há cinquenta anos atrás, a China viveu a década mais turbulenta e traumática da sua história recente – a Revolução Cultural. Durante 10 anos, a nação mergulhou numa espécie de adoração histérica: uma obsessão, não por Mao, mas por… mangas! Corria o ano de 1966 quando Mao convocou os Guardas Vermelhos para se rebelarem contra os “reaccionários” que integravam o Governo central. Pretendia “reestruturar a sociedade purgando os elementos “burgueses” e as formas de pensar tradicionais”. Na realidade tratava-se de uma forma eficaz, mas também cruel, de se ver livre dos seus rivais políticos e das vozes discordantes. Durante o Verão de 1968 o País estava mergulhado num clima de hostilidades e cada uma das facções políticas em confronto agitava mais alto o Livrinho Vermelho, para demonstrar a sua lealdade ao Secretário-geral. Antecipando a eminência de uma carnificina, Mao decidiu enviar 30.000 trabalhadores à Universidade de Qinghua, em Pequim. Os estudantes atacaram-nos com setas e ácido sulfúrico. Os trabalhadores venceram a contenda. Para lhes agradecer, Mao enviou cerca de 40 mangas como presente, que tinha recebido no dia anterior do Ministro dos Negócios Estrangeiros paquistanês. O gesto de Mao teve um impacto enorme. No norte da China ninguém sabia o que eram mangas. Por isso os trabalhadores passaram a noite acordados a olhá-las e a acariciá-las, maravilhados com o poderoso odor e a forma exótica. Foi então que estes trabalhadores receberam a ‘mensagem sagrada’ de Mao: o proletariado deverá liderar em todas as frentes! Foi este o ponto de viragem do poder, que se transferiu dos estudantes para os operários e camponeses, unidos pelo mágico poder das mangas! As mangas de Mao provocaram intensos debates nos locais de trabalho. Um representante militar chegou a uma fábrica segurando uma manga nas mãos e deu inicio à discussão: o que fazer com ela, comê-la ou conservá-la? Acabaram por levar a fruta a um hospital e pô-la em formol! Neste ponto, os responsáveis da fábrica decidiram passar a produzir mangas de cera, cobertas com uma campânula de vidro. Cada uma destas réplicas seria oferecida aos trabalhadores revolucionários, que deveriam transportar o fruto “sagrado” solene e reverentemente e que seriam admoestados se falhassem a missão. A manga tornou-se um fruto destinado a altos voos! Conta-se também que quando uma manga apodrecia, os trabalhadores pelavam-na, ferviam-na em água, e cada um deles sorvia um golo do “santo” xarope. Uma das mangas de cera foi transportada por um representante dos trabalhadores em procissão acompanhada pelo rufar dos tambores, desde a fábrica até ao aeroporto, de onde partiria para uma fábrica de Xangai, enquanto as pessoas nas ruas se inclinavam à sua passagem! As mangas percorreram o País de lés a lés e foram “passeadas” solenemente em muitas procissões. A fruta tornou-se objecto de intensa devoção, com rituais inspirados nas tradições Budista e Taoista, chegando a ser colocada em altares nas fábricas para que os operários lhe pudessem vir prestar homenagem. “Ver as mangas douradas / É o mesmo que ver o Grande Líder Mao!” era parte de um poema que circulava na altura. A China tem uma longa história de simbolismos associados a alimentos que representam noções culturais importantes, tais como “profunda bondade” (pêssego), “longevidade” (cogumelos), estando o amor romântico inevitavelmente associado às líchias e a Yang Guifei. Yang Gui Fei, 杨贵妃. A Consorte Imperial Yang foi uma das quatro beldades da antiga China. Nasceu em 719 CE e recebeu o nome de Yang Yu Huan 杨玉环. Na corte foi baptizada “Guifei” 贵妃, uma consorte de grande categoria, e passou a ser conhecida como Yang Guifei ou a Dama Yang. As pinturas da Dinastia Tang mostram que, à semelhança de outras beldades da época, Yang Guifei era uma mulher corpulenta. Para lhe agradar, o Imperador mandou fazer grandes obras no Palácio das Termas de Huaqing onde, lânguida, ela passava muitas horas banhando-se para conservar a frescura da pele. As líchias, o seu fruto preferido, eram todas as semanas trazidas de pónei desde Guangzhou, cobrindo uma distância de cerca de 2000 Kms. Estou convencida que Yang Guifei foi uma espécie de cruzamento entre Eva e Helena de Tróia. Os historiadores afirmaram muitas vezes que o Imperador Tang, Xuanzong, se deixava levar pelos prazeres da carne em detrimento das suas responsabilidades na corte. Yang foi a causa directa da queda da Dinastia Tang e o Imperador acabou por lhe ordenar que se enforcasse. Desde essa altura que o amor romântico ganhou má fama na China. Compreende-se muito bem porquê! Mas as líchias são bem melhores que as maçãs, digo-vos eu, carnudas e sumarentas, macias como a pele dum bebé. Da próxima vez que as comerem, peço-vos que se lembrem dos lascivos lábios húmidos da Dama Yang. Ganham muito se forem comidas numa noite escura de Inverno. A minha nota final vai para uma canção que se tornou viral a semana passada, sobre o actual Presidente chinês, Xi Jinping. O Imperador Tang, o Secretário-geral Mao e o Presidente Xi Jinping foram considerados maridos chineses ideais. Então porque é que prefere brutos? “Se quiseres casar, escolhe alguém como o Xi Dada (Tio Xi), um homem heróico com amor para te dar; não importam as mudanças, nem os escolhos no caminho, ele não deixa de avançar.” https://bit.ly/1X6PO RV
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasGorgani [dropcap style=’circle’]R[/dropcap]egresso ao romance de Gorgani seduzido pelo gosto das romãs e pelo contraste entre o vermelho e o branco, símbolo de uma beleza que foi depois renascentista e de uma técnica poética de abuso do contraste. Mas tudo isto é muito anterior, o romance em si, do século XI, e o tempo pré-islâmico em que se passa esta saborosa e misteriosa história de amor persa. Vis é a mulher que causa toda esta perturbação e não é de admirar pois seria difícil de imaginar mulher mais bela que esta princesa persa, alvo de um amor que ainda pode haver mas que já não se pode escrever. A focalização nesta figura feminina, que é a mais importante e a mais interessante da história, não se repete em outros romances que a este tradicionalmente se associam. Numa altura em que transformações no relacionamento entre o Irão e o resto do mundo parecem ganhar um fôlego imprevisto há pouco tempo, contribui-se com esta chamada de atenção para um dos livros mais importantes da medievalidade médio-oriental (escrito entre 1050 e 1055), certamente conhecido na Europa desde muito cedo. Assim se dispensa um pequeno acrescento ao que do Irão cada vez mais nos chega em expressão plástica, musical e, principalmente, cinematográfica. O cinema iraniano é hoje um dos mais importantes dos oriundos de países com capacidade de produção não muito alargada, um que tem, através do concurso dos grandes festivais internacionais, chegado a um público vasto. Aqueles que à história deste país têm dedicado alguma atenção não deixam de admirar a continuidade do seu poderio cultural, espelhada na importância do persa como língua de cultura durante o império otomano, falada pelas classes educadas – assim como o árabe se utilizava como língua própria ao serviço religioso – e na influência que a sua arquitectura, música, poesia e arte da iluminura lançaram sobre o império. Mas o famoso romance de Gorgani precede tudo isto e esta antiguidade será, hoje, uma das suas delícias, a que se acrescenta saber que a história inicial, coligida por 6 eruditos, é mais antiga ainda. Pouco se sabe sobre a vida de Fakhraddin Gorgani, apenas que terá escrito este longo poema de amor sob o patrocínio de Amid Abul’l Fath Mozaffar, comandante de cidade de Isfahan no período entre 1050 e 1055, e que proviria da cidade ou da área de Gorgan, a este do Mar Cáspio. No poema, Ramin, Vis e Mobad, as figuras principais deste mito de alternância que se desenha através de um triângulo amoroso, deslocam-se frequentemente entre locais que ficam perto da cidade de Gorgan. Este é também um poema de constantes deslocações e de indefinição dos resultados do amor, com muitas reviravoltas e situações inesperadas. Mas nada é tão intenso como a beleza de Vis, o seu corpo de cipreste. O interesse por histórias passadas no período pré-islâmico é um interesse alargado no Irão no século XI, uma nostalgia que não impede que, no entanto, haja várias referências e figuras que sejam já islâmicas. Shahnameh (Livro dos Reis, que conta a história do Irão e do Zoroastrianismo – ou Zoroastrismo – até à islamização), de Ferdowsi, é um poema épico composto quarenta anos antes de Vis e Ramin em que a nostalgia pelo mundo pré-islâmico (anterior ao século VII), em que o Irão atravessara uma época de inigualável esplendor, é um dos seus brilhos próprios. O mundo de Vis e Ramin remonta ao século III a.c.*, e a estranheza de alguns dos costumes que se exibem na história – como o do casamento inicial de Vis com o irmão – que remontam às dinastias iranianas antigas em que o incesto era prática comum, é uma estranheza que contribui para a riqueza do romance. Que Gorgani se não tenha deixado impressionar negativamente por este costume – numa altura em que já não se praticava – é um bom indicador de como através dele acedemos a um mundo perdido. A mais voluptuária sobrevivência zoroastroanista do poema consiste (esta uma das suas grandes seduções) na importância dada ao prazer. É constante a descrição de tempo destinado à caça, ao pólo e a festas onde o álcool é presença abundante – associado não só aos guerreiros mas também aos amantes. O vinho é uma das peças fundamentais da descrição do prazer de que os amantes usufruem e aparece associado às partes em que os festejantes atravessam um período de felicidade. O poema, muito longo, alterna momentos de fortuna e de miséria mas o vinho aparece como elemento da expressão do prazer sentido nos momentos de euforia. Quando os dois amantes se conhecem, Vis e Ramin, e depois do primeiro encontro sexual, seguem-se dois meses de luxo e de prazer. O prazer do sexo não é também um prazer escondido. A ama de Vis, uma figura fundamental para a urdidura de alguns dos nós mais densos do romance, a par das 3 centrais de Vis, Ramin e Mobad, não lhe esconde que este é um prazer de que se não pode fugir depois de experimentado: And you don’t know how vehemently sweet/The pleasure is when men and women meet;/If you can make love just once, I know that then/You won’t hold back from doing so again (trad. de Davis, p.121). Os deleites do amor, do vinho, da caça, do pólo e da faustosa vida de corte vêm envolvidos por um estilo sumptuoso e florido que é comum ao estilo de peças gregas e latinas contemporâneas, e se esta consideração aqui se faz é como complemento da ideia de que Vis e Ramin poderá ter influenciado directamente uma das obras fundamentais da medievalidade europeia – a história de Tristão e Isolda. Foi, aliás, através da teoria que defende esta possível influência que cheguei ao poema persa. Esta inscrever-se-ia num conjunto de outros possíveis pontos de contacto entre manifestações da literatura islâmica medieval e da literatura medieval (e de transição para o renascimento) europeia não-islâmica como, por exemplo, em Dante ou na lírica trovadoresca. A literatura que sugere a ligação de Tristão e Isolda a Vis e Ramin é vasta e tem origem em estudos de finais do século XIX, mas trazer aqui uma discussão das suas minudências seria fastidioso e desapropriado. Baste notar-se que as inúmeras semelhanças convidam a que se estabeleça esse paralelo.** A propensão que no poema se encontra, de elogio do prazer, longe de qualquer crítica ao comportamento adúltero desta extraordinária figura romanesca que é Vis, não tem, no entanto, paralelo na subsequente literatura persa. Segundo Dick Davis, as personagens femininas do romance persa tornam-se cada vez menos carnais para se tornarem cada vez mais moralistas e, por fim, místicas. O estilo florido parece por vezes comprazer-se numa longa languidez e quem procurar no romance um desenvolvimento narrativo fluido encontra, ao invés, quadros que valem por si só, quadros que têm um valor episódico. A sucessão de quadros líricos que atrasam a narrativa é uma das suas características fundamentais, que não agradará a todos e que promove uma disposição contemplativa. Nesses episódios descobre-se a sua sedução principal – a extrema riqueza das imagens associadas ao amor, à guerra (mas há poucas cenas guerreiras), à tristeza, ao ódio, à música, à descrição da natureza ou à beleza feminina, muitas das quais certamente bem codificadas e de reconhecimento fácil para os leitores da altura***. Descobre-se também a extrema importância dada aos poderes quase mágicos da oratória, o poder do discurso que consegue transformar o sentimento e os intentos das personagens, como é o caso da ama de leite de Vis e Ramin (que é a mesma), cujos poderes oratórios mágicos (que acompanha outras magias) ajudam a modificar o comportamento de algumas personagens, ou o caso do discurso de Ramin que, de outra feita, move a própria Ama: (…) “Who knew,/My lord, that you had such a tongue in you? (trad. de Davis, p.90). Tão importante como o poder do Amor: When love has chosen you, your only plan/Is to accept its rule as best you can (trad. de Davis, p.100), é a consciência da fugacidade da vida: But joy is mixed with grief, as we draw breath/Life leads us all, inexorably, to death (trad. de Davis, p.37). Ou: Life lasts two days, and then, Vis, we depart-/Man’s life is like a roadside inn, and we/Soon leave this lodging for eternity; (trad. de Davis, p.93). Também importante é a descrença no livre arbítrio que desculpa o comportamento de Vis e de Ramin: De leur mères toux deux n’étaient pas encor nés (…) que déjà le destin avait réglé leur sort et fixé par écrit leurs actes successifs (trad. de Massé p.35) * estas informações retiram-se da introdução que acompanha a tradução para inglês de Dick Davis, de 2008, Vis and Ramin, e da tradução para francês de Henri Massé de 1959, Traductions de Textes Persans publiées sous le patronage de l’Association Guillaume Budé, Le Roman de Wîs et Râmîn. ** tanto no que respeita à versão de Béroul como a Cligès, de Chrétien de Troyes. A edição francesa a que em cima se alude inclui uma introdução que começa precisamente por lembrar como a após a divulgação de Le Roman de Wîs et Râmîn, no século XIX, se notaram de imediato as semelhanças com Tristan et Iseut. São várias as páginas que se dedicam a estas correspondências. *** no fim do volume da tradução de Dick Davis oferece-se um apêndice onde se mostram algumas das comparações que se fazem a partir do corpo humano: coral, lábios; cacho de uvas, cabelo ondulado; mel, a doçura dos lábios; uma chave e um cadeado, os órgãos sexuais masculino e feminino; lua cheia ou o sol, rosto; entre muitas outras. Ramin vive no espaço ocupado pelo Velho.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAniversário do Infante D. Henrique, o navegador Filho do Rei D. João I e da inglesa Dona Filipa de Lencastre, o Infante D. Henrique nasceu no Porto a 4 de Março de 1394, Quarta-Feira de Cinzas e logo no Domingo seguinte foi baptizado na catedral do Porto, tendo como padrinho D. João Homem, Bispo de Viseu. Segundo Artur Teodoro de Matos, “A sua ama-de-leite foi Mécia de Lemos, casada com um cavaleiro da Ordem de Cristo, Vasco Gonçalves. Aliás, um bom começo para uma profunda ligação à Ordem de que viria a ser governador e que tinha então por mestre D. Diogo de Sousa, companheiro de armas de D. João I.” Conjuntamente com os seus irmãos, filhos do casamento entre D. João I e Filipa de Lencastre, foram cantados por Camões como a Ínclita Geração. Marcante descendência, atenta ao que se passava pelo mundo e com novos horizontes, deu início ao Renascimento português e à expansão marítima. Ao Infante D. Henrique (1394-1460) está atribuído o início dos Descobrimentos Portugueses e apesar de as suas façanhas marítimas se limitarem, como refere Rui Manuel Loureiro, “a algumas, poucas, viagens à costa marroquina, no decorrer de expedições militares lançadas pela jovem dinastia de Aviz contra o Norte de África”, o Infante D. Henrique ficou depois para a História conhecido pelo cognome O Navegador, pois deu um novo impulso às viagens pelo Atlântico, levando os seus homens a dobrar o Cabo Bojador, fazendo com isso terminar o antiquíssimo mito de ali ser onde o mundo terminava. E voltando a Rui Loureiro, “de facto, desempenhou um papel de primeiro plano na primeira fase da expansão portuguesa para além-mar.” Através dele abriu-se um novo rumo que levou a Europa ao Renascimento, apesar de, segundo o professor Veiga Simões, “enquanto o Infante D. Henrique representava o espírito medieval em consonância com os interesses da nobreza, o seu irmão D. Pedro era o representante do ‘regalismo nacional’ apostado na existência de um estado forte e centralizado.” “D. Henrique, após ter tentado em vão fazer de medianeiro ou mesmo fiel de balança, como fizera bastas vezes no passado, acabou por se inclinar decididamente para o campo do sobrinho (D. Afonso V), deixando o irmão (D. Pedro) entregue à triste sorte que escolhera ou não soubera evitar. Não é inverosímil que, ao encomendar a seu cronista (Gomes Eanes de Zurara) a tarefa de ajuntar em crónica os feitos do seu tio (em 1452 encontrava-se ainda vivo D. Henrique), D. Afonso V tenha tido exactamente em mira recompensá-lo pelo exemplo de fidelidade, sem falar já no apoio militar que lhe dispensara na transe de Alfarrobeira. Assim se teria iniciado a utilização pelo poder político da figura histórica de D. Henrique como exemplar”, palavras de Luís Filipe Thomaz. Segundo Maria Isabel João: “O Infante D. Henrique é um dos vultos do panteão da história nacional mais mitificado e celebrado ao longo dos tempos, mas não deixa de ser também dos mais controversos. A chamada lenda infantista e a utilização da sua figura pelo poder político começa logo quando D. Afonso V ordena a Gomes Eanes de Zurara (1410/20-1473/74) que escreva a crónica dos seus feitos e virtudes, certamente como prova de gratidão pela fidelidade e o apoio militar que lhe tinha prestado no transe de Alfarrobeira. A Crónica de Guiné, iniciada possivelmente poucos anos após a batalha que custaria a vida ao regente D. Pedro, onde se insere um grandiloquente panegírico do Infante D. Henrique, o príncipe pouco menos que divinal nas palavras do cronista…” contrasta com o que “o cronista oficial de D. João II, Rui Pina (1440?-1522), transmite(;) uma visão bem menos lisonjeira da actuação de D. Henrique, em particular na expedição de Tânger, que redundou num fracasso de penosas consequências para o país, e do desenlace fatal de Alfarrobeira. Zurara e Rui Pina são cronistas coevos do Infante D. Henrique…” Já Vitorino Magalhães Godinho desenlaça: “Afigura-se-nos que a autêntica grandeza do Infante dispensa bem que se insista em mantê-lo envolto nos ouropéis de uma mitologia. É apoucá-lo, afinal, recear vê-lo na realidade da sua vida entre seu pai e irmãos, entre ministros, os cavaleiros, os mercadores, os marujos, preso nas contradições de seu tempo mas velejando para novos tempos. E persistimos em crer que a mais grata e duradoura homenagem será a nossa contribuição de hoje rumo ao porvir, se soubermos ser de novo pioneiros da aventura humana como ele o foi nessa era também de ocaso e alvorada.” A figura de D. Henrique Quando o Infante D. Henrique nasceu, faz hoje 622 anos, “À crise geral que assolava o Ocidente (na Europa vivia-se a Guerra dos Cem Anos) juntavam-se as debilidades próprias do reino, parco em recursos naturais e agrícolas, devastado por sucessivas guerras com Castela desde o governo fernandino, com tudo o que isso implicava de empenho militar directo, mas também de esforço financeiro, de destruição de culturas, de perda de vidas. Quando a paz com o reino vizinho foi definitivamente estabelecida, em 1411, abriu-se a possibilidade de novos rumos para Portugal.” E continuando com Bernardo Vasconcelos e Sousa: “Confinado ao extremo ocidental da Península, como que acantonado nessa finisterra onde não havia mais território para conquistar, o reino vivia no seu impasse hispânico. A relação contraditória de atracção e de rivalidade face a Castela não iria por certo, sofrer modificações num futuro próximo. A haver alguma alteração no relativo equilíbrio então estabelecido, ela só poderia ser favorável ao lado castelhano.” Joaquim Veríssimo Serrão adita: “A afirmação política da dinastia de Avis, junta o ideal da Cruzada, foi determinante no objectivo da empresa. Mas outras causas, sociais, económicas e marítimas, têm sido apontadas na génese da Expansão: a posse de Ceuta como zona cerealífera, para ocorrer aos défices frumentários da Metrópole; a conquista de uma base naval para impedir os ataques da pirataria mourisca ao Algarve; a aproximação, por meio de Ceuta, Argel e Tunes, das fontes auríferas do Sudão; e a necessidade de obter um campo de luta em Marrocos, para ocupar a nobreza ociosa desde a paz com Castela.” Segundo Artur Teodoro de Matos: “São escassas as informações sobre a juventude de D. Henrique. Fernão Lopes, na Crónica de D. João I, traça um quadro da harmonia familiar na corte, onde os filhos foram educados dentro dos princípios do respeito aos pais, do temor a Deus, evitando , mas também o e onde eram exemplos de virtude o rei e a .” Já sobre a educação refere Vitorino Nemésio, “A par com o estilo litúrgico inglês (observância na Corte do rito Salisbury), outras modas trazidas por D. Filipa influiriam no ambiente cortesão.” E continuando: “Como seus irmãos, o Infante D. Henrique se iria criando à moda castiça, então já muito influída pelos usos de fora parte, sobretudo em matéria de práticas cavaleirescas, num país cuja nobreza não conhecera o grande estilo feudal”. “A concórdia entre os irmãos é não só referida por Fernão Lopes na Crónica de D. João I, mas dela dá testemunho o rei D. Duarte no seu Leal Conselheiro: , acrescentando ainda que “, segundo Artur Teodoro de Matos. E com ele seguindo: “o seu biógrafo, Gomes Eanes de Zurara na Crónica dos Feitos da Guiné dele fez um esboço de retrato físico: com e , tendo a ; da mãe herdara certamente a tez branca e corada, mas que o . Mais pormenorizado é o retrato psicológico onde o cronista é pródigo na exaltação das virtudes do seu : , que nunca acolheu , passando toda a sua vida em recebendo-o a terra . Da sua casa, e segundo o biógrafo, fez lugar de acolhimento dos e sobretudo dos . É que às qualidades de inteligência e acresciam as de e de prudência, , além de enorme tolerância, pois que nunca lhe haviam . Zurara apresenta-o assim como protótipo da sabedoria e da virtude e, para que não restassem dúvidas sobre algum prazer do seu herói, mesmo que da mesa, adverte que apenas bebeu vinho, dele depois privado . Este perfil de homem de excepção ou de autêntico herói e de primeiro e principal autor dos descobrimentos seria estimulado na era de quinhentos, sobretudo por D. Manuel (seu neto adoptivo) e materializado no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira e, mais tarde, por João de Barros nas Décadas da Ásia”, este longo retrato é-nos dado por Artur Teodoro de Matos. Conquista do divino Nas palavras de Luís Filipe Thomaz: “Não admira, portanto, que um dos homens lígios de D. Manuel e teórico da sua ideia imperial, Duarte Pacheco Pereira, atribua no seu Esmeraldo de Situ Orbis a iniciativa dos descobrimentos henriquinos não já a considerandos de ordem ideológica, económica e política, como meio século atrás fazia Azurara, mas pura e simplesmente, a inspiração divina.” O primeiro rei da segunda dinastia, D. João I, numa afirmação de prestígio dinástico da sua casa real, a de Avis, em 1410 pretendeu, numa grande festa, armar cavaleiros três dos seus filhos, D. Duarte com 19 anos, o Infante D. Pedro de 18 e D. Henrique com 16 anos, onde a realeza da Europa vinha participar nos torneios medievais. Mas estes recusaram pois, como Joaquim Veríssimo Serrão refere: “não queriam aceitar o grau da cavalaria numa cerimónia festiva, mas em luta contra os Mouros em África.” E assim se fez. Com a conquista de Ceuta em 1415, o Infante D. Henrique, já armado cavaleiro, dava início à empresa de tomar o lugar dos muçulmanos no Norte de África, em território marroquino, ficando “desde 1416 encarregue da defesa e provimentos de Ceuta, o que implicava o controlo da actividade corsária portuguesa na área do Estreito. Sabe-se que tanto ele como D. Pedro tinham ao seu serviço navios corsários, visto D. Duarte ao subir ao trono (1433) os isentou do pagamento do quinto das presas devido à Coroa (numa adaptação do princípio do direito muçulmano que reserva ao califa o quinto de todo o saque).” E continuando com Luís Filipe Thomaz: “De 1415 a 1422 D. Henrique interessa-se já pelo mar” … “a armada tem por base Ceuta e actua (provavelmente com galés) na zona nevrálgica do Estreito, fazendo guerra do corso à navegação muçulmana e provavelmente periódicos ataques às costas de Granada e da Barbaria.” “A situação de Ceuta, isolada no território do Magrebe, impunha a conquista de novas praças para a realização daquele projecto” Veríssimo Serrão. Em 1418 ocorre o grande cerco a Ceuta, “que obriga o infante a ir em seu socorro e lhe dá, provavelmente, a noção da dificuldade do ataque frontal a Marrocos” como refere Luís Filipe Thomaz. Abria-se a necessidade de procurar o além e dar um novo impulso na arte de navegar. O Infante D. Henrique tomou essa tarefa a peito e procurou que os seus barcos navegassem por águas desconhecidas. Gonçalves Zarco em 1418 chegou a Porto Santo e Tristão Vaz, no ano seguinte à Ilha da Madeira. Os Açores foram hipoteticamente descobertos em 1427 por Diogo de Silves, pois segundo consta já por lá tinham passado outros navegadores. Com a colonização destas duas ilhas introduziram-se-lhes cereais, açúcar e plantas tintureiras. Segundo João Silva de Sousa: Em 1420, quando se dava início ao povoamento da Ilha da Madeira, “D. Henrique foi nomeado, por Martinho V, através da bula In apostolice dignitatis specula, Administrador-Geral da Milícia de Jesus Cristo nos Reinos de Portugal e Algarve, ou seu Grão-Mestre.” D. Henrique também incentivou os marinheiros a seguir pela costa africana para Sul, mas essas empresas “falham devido a certos medos e lendas, mas também por razão económica: à aventura na costa ao sul do Bojador que sabem deserta, os homens preferem a actividade tradicional do corso e teimam em ir fazer presas na costa do reino de Granada”, Luís Filipe Thomaz. Em 1429 ocorreu um novo ataque dos marroquinos a Ceuta e perante a sua frequência, a coroa portuguesa debate em 1433 sobre a “viabilidade de prosseguir a política expansionista em Marrocos” Veríssimo Serrão. O Rei D. João I faleceu em 1433, ano em que na Índia o Almirante chinês Zheng He morreu no seu barco, o baochuan, em frente a Calecute. Em 1434, Gil Eanes dobrava o Cabo Bojador e dois anos depois dava-se o aparecimento da caravela, um barquinho comparado com o baochuan, de cento e vinte metros de comprimento e cinquenta de largura.