O ovo da serpente: secularização e progresso

Broch, Hermann, Os Sonâmbulos, Edições 70, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura, Austríaca, Romance, Império Austro-Húngaro, Primeira Guerra Mundial, Valores, Crise, Fascismo, trad. de António Ferreira Marques, 167, [1] p. 2 v.:23 cm
Cota: C-4-4-259,260

Hermann Broch, de origem judaica, nasceu a 1 de Novembro de 1886 em Viena, à época capital do Império Austro-Húngaro. O consagrado escritor veio a falecer nos Estados Unidos da América em New Haven no estado de Connecticut no dia 30 de Maio de 1951. Teve como a maior parte dos judeus daquele tempo uma vida atribulada, tendo sido preso pelos alemães logo após a anexação da Áustria à Alemanha em 1938. Conseguiu contudo ser libertado, através da intervenção da comunidade intelectual, em particular de James Joyce, e depois acabou por emigrar primeiro para o Reino Unido e finalmente para a América. Durante anos dedicou-se a uma vida de aventura e boémia durante a qual se casou e separou várias vezes. Casou primeiro com Franziska von Rothermann e mais tarde com Milena Jesenská. Por causa de Eva Von Allesch, jornalista, ex-modelo nu e designada a Rainha do Café Central, Broch rompeu o casamento com Jesenská, que, ao que parece começou uma relação com o escritor Franz Kafka. Antes do seu primeiro casamento tinha-se convertido ao catolicismo. Pôs termo a esta fase da sua vida vendendo os seus bens e dedicando-se completamente aos estudos e à literatura. Estudou Matemática, Psicologia e filosofia na Universidade de Viena entre 1926 e 1930 e conviveu com insignes escritores, como Rainer Maria Rilke, Elias Canetti e Robert Musil. Da sua obra destaca-se justamente A Morte de Virgílio considerada a sua obra prima, mas também Os Sonâmbulos e Os Inocentes no domínio da ficção. No domínio do ensaio merece menção honrosa, o Geist Und Zeitgeist: Essays zur Kultur der Moderne, que reúne seis ensaios do autor. Em língua portuguesa apareceu com o título Espírito e Espírito de Época— Ensaios sobre a Cultura da Modernidade, onde se discute, em particular, a questão do kitsch na modernidade.

O romance Os Sonâmbulos consta de três volumes, a saber, Pasenow ou o Romantismo: 1888; Esch ou a Anarquia: 1903; e Huguenau ou a Objectividade: 1918.
O primeiro volume mergulha arqueologicamente no século XIX. Tudo leva a crer que foi aí que a crise começou. Terá sido aí que um certo mal estar civilizacional começou a fazer o seu caminho. E nesse primeiro volume o que interessa ressalvar é a brutal ascensão das massas, o Ovo da Serpente, associada à inevitabilidade da defesa dos valores da Modernidade, ou seja, progresso, felicidade para o maior número, ascensão social, democracia e direitos. Alguns intelectuais terão pensado levianamente que era possível promover tudo isto, que representava uma rotura imensa com a tradição e que ao mesmo tempo o sistema axiológico se mantivesse incólume e, ainda, que no fundo fosse possível adequar a nova ordem ao espartilho da ordem antiga, hierarquizada, disciplinada, diferenciada, portanto holista numa palavra, quando deveria ser óbvio que a revolução individualista e de massas exigia uma ordem nova, com valores de outra natureza, desde logo porque o equilíbrio e harmonia orgânica seriam abalados desde os seus alicerces e pressupostos e a primeira fase da fragmentação alucinante iria produzir como não podia deixar de ser e veio a acontecer, intranquilidade, desespero, insegurança e sobretudo vazio político mas também axiológico. Foi esse vazio que as modalidades endurecidas da modernidade exploraram sob várias formas, que aqui não vêm agora ao caso.
Esch simbolizará premonitoriamente o esforço de organização do caos e nesse sentido o esforço de reconfiguração dos valores desmoronados. Tenho para mim que Esch, quer dizer Broch, não assumiu tanto quanto devia uma crítica ao tempo ultrapassado e portanto persiste sempre neste tipo de exercícios uma vontade de regeneração pelo regresso que embaraça em vez de desembaraçar e portanto a superação inclui o removido mas não à maneira hegeliana enquanto aufbhung dialéctica mas enquanto nostalgia.
Como não há uma proposta de superação radical assente numa crítica e condenação das sociedades de antigo regime constitutivamente iníquas e moralmente decadentes abre-se a porta à reificação ideológica dos modelos que a história removeu, a formas de tirania agora sem a caução que a metafísica lhes conferia. O fascismo e o comunismo mais não são do que o holismo antigo imposto de forma autoritária.
O terceiro volume consagra o arrivista sem valores, niilista, ou seja o arauto de uma expansão vitalista de uma ideia de poder e de domínio. Trata-se do individualismo mal interpretado, levado às suas últimas consequências. Mas Broch nunca compreendeu o individualismo senão na sua versão deletéria de independência e egoísmo, na sua versão leibnitziana de mónadas sem portas nem janelas, de gerador portanto de fragmentação e caos e jamais na sua perspectiva emancipadora da autonomia assente na ética kantiana. Nunca se perceberam muito bem, ou não se quiseram perceber, os motivos pelos quais Kant foi tão coerentemente anti eudemonista e as razões pelas quais a sua deontologia ética e moral promove o imperativo categórico, à margem da mínima suspeita de sentido do interesse egoísta, ao mesmo tempo que remete todo esse universo para um avatar do individualismo na sua versão hedonista e utilitarista.
Herman Broch não percebeu ou percebeu, mas ao desafio complexo da Modernidade, com as suas inevitáveis crises de crescimento, prefere o retorno a um mundo mais estável, mais disciplinado, como se de resto isso fosse ainda possível. Coerentemente ao menos foi buscar as causas da sua ideia de decadência onde elas de facto, sejamos justos, se começaram a manifestar, ou seja naquela época da história em que o edifício da secularização, da autonomia, da liberdade e portanto do humanismo se começou a construir, quer dizer no Renascimento. Ele é corajoso no diagnóstico, ainda que esteja completamente errado:

A origem da crise está n’ “Aquela época criminosa e rebelde que é chamada de Renascimento, aquela época que cindiu a estrutura de valores cristã em uma metade católica e outra metade protestante, aquela época em que, com o desmoronamento do órganon medieval, principiou o processo de dissolução dos valores que duraria quinhentos anos e no qual se deitou a semente da modernidade, (…)”

Notável a clareza do equívoco. E mais lucidamente ainda Broch não deixa de salientar que não obstante não se pode nem deve imputar a responsabilidade a nenhuma das partes do complexo sistema, seja o individualismo, seja o protestantismo, seja a revolução humanista e científica, seja lá o que for. A culpa para Broch reside, usando uma ideia de episteme à maneira de Foucault, no puzzle conceptual moderno, no modo como as mesmas categorias se organizaram de modo diverso e para ele calamitoso.
Eu penso modestamente que sei, mas penso que Herman Broch não sabia, provavelmente não o poderia saber: que a transformação nuclear que fez desmoronar o órganon medieval e no plano social esse organon é holista e corporativo, não foi o Renascimento, nem a Reforma, foi a revolução epistémica desencadeada no interior da própria Idade Média e protagonizada por Dun Scoto e Guilherme de Occam. É a posição do nominalismo na Questão dos Universais que promove a dissolução da harmonia social medieval. Provavelmente até o Renascimento é já um epifenómeno e uma consequência da revolução nominalista. Mas, e não pretendendo adequar-me excessivamente à cartilha ideológica marxista da teoria do reflexo entre o domínio económico-social da infraestrutura e o tecto da superestrutura, quem se atreverá a não reconhecer o papel determinante, na corrosão do holismo corporativo medieval, das transformações económicas e sociais que começam na baixa Idade Média com as sucessivas revoluções económicas, em torno das actividades agrícolas, artesanais, comerciais e demográficas que culminarão na revolução urbana que aos poucos vai modificar a configuração social da Europa e onde acabarão por se evidenciar dinamismos revolucionários deletérios relativamente à ordem tradicional e propiciadores de uma reconfiguração social de tipo novo e inédito, de algum modo. Afinal o individualismo emergente que o nominalismo consagra no plano intelectual possui os contornos de uma transformação sistemática dos modos de vida, das relações sociais e de poder, às quais não foi estranha a revolução das comunas ou dos concelhos. Para quê tapar o sol com a peneira da ignorância, quando qualquer estudo sistemático e integrador das múltiplas dimensões do processo histórico aponta para modificações estruturais e, parece-me, irreversíveis. A modernidade não foi uma opção, a Modernidade era o nosso destino.

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