Notas Sobre o Método do Pincel «Bifa Ji»

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s erros em pintura são de dois géneros: os que dependem das formas e os que são independentes das formas. Flores e árvores que não estão conformes com a estação, figuras que são maiores que os edifícios, árvores que são maiores que as montanhas, pontes que não estão assentes nas margens, são mensuráveis erros de formas. Estes defeitos não alteram fundamentalmente uma pintura. Erros que são independentes das formas são causados pela ausência de espírito e harmonia (ressonância) o que torna as formas bastante estranhas. Nesse caso, apesar de todos os esforços com o pincel e a tinta, tudo na pintura está morto. Essas pinturas desajeitadas não podem ser corrigidas .
Quando quiseres pintar paisagens com as suas nuvens e árvores é necessário que entendas a origem de cada forma em particular. Cada árvore cresce de acordo com a sua disposição natural. Sem título(27)

de Jing Hao
Tradução de Paulo Maia e Carmo

9 Nov 2015

Elogio da Modernidade

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]sta obra de Jean Luc-Ferry e Alain Renaut é muito importante, uma vez que, embora centrada na análise política da obra de Heidegger, constitui também o princípio de uma crítica aos críticos da Modernidade.
A ruptura permanente e constante com a tradição após o advento da modernidade abriu feridas profundas no plano mental, social e político. Qualquer crítica radical e destrutiva da modernidade implicaria também uma crítica dos valores democráticos. Este é de todos os critérios, o critério. Convém não esquecer que a Modernidade tal como a conhecemos é indissociável, dos direitos humanos, das sociedades abertas e da democracia simplesmente; além de que é também indissociável da ideia de progresso e da ideia de felicidade secularizada. O que não é de somenos.
É contudo, um facto que o fim da tradição e os progressos do individualismo nos fizeram perder a possibilidade de nos referirmos a certezas estabelecidas. Isso originou um certo desconforto. Mas, em minha opinião, não temos como fugir a esse desafio. Mais grave, penso, é o carácter incompleto e por vezes titubeante da revolução que desencadeámos. O processo de secularização tem muitos inimigos. O humanismo também.
O essencial do humanismo, para os inimigos do humanismo, consiste na atribuição ao homem de uma essência e de uma natureza. Ora nada mais falso. O que caracteriza o humanismo moderno é justamente o facto de considerar que o homem é um nada do ponto de vista da sua eventual natureza ou essência. O homem moderno tem como essência o facto de não ter natureza, o facto de não ter essência.
Sabe-se que para lá de Heidegger ou Nietzsche, tidos como os alicerces da Pós-Modernidade, com quem os autores deste livro pretendem ajustar contas é com Foucault e com Derrida, entre outros.
Já Rousseau dizia que “o homem aparece como sendo o único ser para o qual nem a história nem a natureza podem constituir códigos”

Importantíssimo:

Se há uma propriedade própria do homem, uma autenticidade (eigentlichkeit), só pode consistir nesta capacidade (chame-se-lhe transcendência ou liberdade, vai dar no mesmo), de se subtrair a toda as amarras de uma essência. Se o existencialismo é um humanismo, então é verdade que o humanismo é sempre um existencialismo, através do qual a existência do homem (ek-sistence=transcendance, a capacidade de se separar dos códigos) está sempre além de qualquer redução a uma essência.
O homem visa o universal justamente enquanto nada, uma vez que não se deixa confundir jamais integralmente com nenhuma identidade particular. Ser capaz, ter o poder de se subtrair a todo e qualquer particularismo é nisso que consiste a possibilidade de visar a universalidade. É porque é nada que pode visar o universal. E é por isso que a inter subjectividade é determinante para a questão do humanismo.
A crítica heideggeriana da metafísica (a sua leitura) consiste nisto: A metafísica é o apagamento das diferenças e de toda a alteridade, em proveito de um projecto fantástico de domínio total, exercido sobre o mundo tornado perfeitamente transparente e manipulável para o sujeito. E esta metafísica da subjectividade é a modernidade em si mesmo. Heidegger procura mostrar, à saciedade, que do nascimento da subjectividade ao universo da técnica, a consequência é inevitável. O problema, e não é um problema menor, é que condenar essa realidade assim radicalmente implica a pura rejeição da subjectividade, e o problema é que sem ela não haveria democracia, uma vez que a democracia mobiliza as energias de maitrise e de vontade que Heidegger tanto condena.
É preferível condenar o homem ao estatuto de não poder ser o senhor e o autor da totalidade das suas acções e ideias. A verdade é que destruindo o sujeito se destrói a autonomia que construiu a vida social e política moderna, quer dizer democrática. Para mim o conceito de autonomia, no sentido kantiano do termo, e no sentido das filosofias contratualistas, é absolutamente vital. Sem subjectividade não há autonomia nem Crítica, e sem estas não há democracia e nem mesmo responsabilidade ética.
Para Heidegger, técnica é igual a metafísica acabada. Mas a metafísica da subjectividade é desde Descartes uma antropologia ou seja um pensamento do homem como fundamento. Do ponto de vista prático o étant (ente) é dado como objecto para a vontade e radica na transformação kantiana do eu penso em eu quero. Tudo vai desembocar na autonomia da vontade kantiana.
Mas para Heidegger o homem da modernidade não é mais do que o funcionário da técnica = Seigneur de l’étant (Senhor do mundo das coisas). Nesta perspectiva a metafísica moderna consiste em conceber o real como obedecendo aos princípios constitutivos do espírito humano, o que culmina na afirmação hegeliana da identidade do racional com o real ou à transferência ontológica leibniziana do princípio de razão para o próprio real, o que culmina na expressão de que nihil est sine ratione.

Modernos e anti modernos

O trágico da modernidade é inerente à própria dinâmica do individualismo democrático. E o individualismo democrático (eu diria já do sujeito) consiste na luta (eventualmente colectiva) dos indivíduos contra as hierarquias em nome da igualdade, e contra as tradições (heteronomia), em nome da liberdade (autonomia).
Um dos rostos que resultam da crítica da modernidade aponta claramente para um retorno ao universo pré moderno da tradição. Depois de terem identificado a democracia, como subjectivização do mundo, ao universo da técnica que inevitavelmente resulta da própria subjectivização, é lógico que encontrem uma escapatória através da nostalgia pelas sociedades hierarquizadas segundo as normas da tradição. Sociedades holistas não democráticas, estamentais e enraizadas.
O marxismo e o heidegerianismo fizeram um percurso comum centrado na crítica e na denúncia dos efeitos dominadores da razão instrumental. Na linha de Max Weber e Marx, Adorno e sobretudo Horkheimer empreendem uma verdadeira desconstrução desse mundo administrado (verwaltete welt), caracterizado essencialmente pela cultura de massa, à qual conduz inevitavelmente o império da razão técnica. Vamos de Max Weber e Heidegger até ao marxismo e à filosofia da Escola de Frankfurt com toda a naturalidade.
Para todos estes autores, o mundo administrado não é mais do que o tornar-se mundo da metafísica da subjectividade, cujo ponto culminante é atingido com a Lógica de Hegel. Simplesmente na filosofia crítica de Frankfurt é em nome de um futuro pensado como razão objectiva e não em termos nostálgicos de um recuo para o passado que a crítica se exerce. Aliás na filosofia crítica a cultura de massa é descrita como alienação e não como maitrise, em termos de pseudo racionalidade e não enquanto racionalismo totalmente realizado (A metafísica acabada). Mas com o tempo Horkheimer foi descobrindo a natureza intrinsecamente dominadora da racionalidade, o que leva também a uma desconstrução da modernidade. Enfim seja pela via da tradição ou da utopia o que se critica é a modernidade. E para Heidegger tudo é humanismo: A Aufklarung e o romantismo, o individualismo e o colectivismo, o capitalismo e o fascismo, o nazismo, o estalinismo e a democracia.

Os humanismos
Três grandes tradições
— A tematização da Aufklarung pela filosofia crítica de Rousseau, Kant e Fichte
— A desconstrução romântica da Aufklarung, cujos prolongamentos vão ainda até Hegel.
— A fenomenologia.

A crítica romântica do humanismo das Luzes

Sob muitos pontos de vista a crítica romântica da Aufklarung antecipa-se relativamente à desconstrução heideggeriana da metafísica da subjectividade. No fim de contas o que é denunciado, na ideologia das Luzes pelos românticos, é justamente a pretensão da subjectividade (do sujeito, do eu), entendida como consciência e vontade de reconstruir o mundo, fazendo tábua rasa da tradição (O seu artificialismo prometaico e radical, portanto). Uma das oposições maiores da filosofia das luzes é entre o direito natural (jusracionalista no caso das Luzes) e o direito positivo. [Entre o dever-ser e o ser, entre o sollen e o sein]. Estes direitos opõem-se tal como a transcendência à imanência. O universal ao particular. O direito das luzes pretende a universalidade face a um direito positivo e histórico que é sempre um direito particular.
Para se perceber bem a evolução que se dá das Luzes para o Romantismo é necessário perceber muito bem o conceito nuclear de Vida (vitalismo); e para isso é necessário percorrer antes o trajecto que vai desde a Crítica da faculdade de julgar de Kant até aos primeiros trabalhos sobre a natureza (Naturphilosophie) de Schelling.
Os românticos (Savigny) promovem uma ontologia vitalista.
— Para os românticos o indivíduo é a comunidade nacional.
— A rejeição do individualismo (do indivíduo, do sujeito, da liberdade enfim) e da transparência das normas, vão de par com o nacionalismo vitalista, daí que a crítica romântica tanto se adeqúe à crítica do pensamento contra revolucionário (De Maistre, De Bonald, etc.)
O romantismo ao rejeitar o humanismo abstracto (centrado numa artificialidade absoluta) oferece do homem uma imagem em que o identifica à comunidade nacional da qual ele não é mais do que membro, uma realidade secundária.
Ora é o contrário que é promovido pelas Luzes: A ideia essencial de Rousseau e de Kant segundo a qual o homem se caracteriza pelo contrário pela sua capacidade de transcender toda e qualquer definição particular, de ser capaz de se separar de todas as determinações históricas, biológicas, nacionais, para entrar em comunicação com outros homens, isso é que constitui o humanismo abstracto que é denunciado pelos contra revolucionários (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988: 162).

Crítica fenomenológica e crítica criticista do romantismo

Se por um lado a posição de Heidegger coincide com a crítica do humanismo abstracto a verdade é que o próprio romantismo aos olhos do filósofo alemão não é mais do que um momento da metafísica moderna. Heidegger percebeu bem através da fenomenologia de Husserl a crítica do psicologismo assim como de todo o vitalismo historicista.
A lição de Husserl é límpida: Se a psicologia, a história ou a vida são concebidas como códigos que determinam totalmente os comportamentos humanos, a distinção entre humanidade e animalidade, quer dizer entre humanidade e coisidade desaparece.
Volto a Insistir: É a partir da capacidade de se destacar das suas determinações (ou seja a partir da sua liberdade para usar a linguagem de Kant, ou da sua transcendência para seguir Husserl, ou ainda a partir da sua existência segundo Sartre ou finalmente da sua ek-sistência na expressão de Heidegger), dentro do nada entendido como a possibilidade de não ser definido através de um código em geral, que reside propriamente a humanitas do homem, o seu Eingentlichkeit.
É o que Heidegger desenvolve na sua Carta sobre o humanismo: O que o homem é ou na linguagem tradicional da metafísica ocidental, a sua essência, repousa na sua ek-sistência, ou seja a faculdade que o homem tem como ente particular, de se separar do mundo dos entes, de transcender esse mundo, para colocar a questão do pensamento, ou seja a questão do Ser.
O Da-sein é literalmente o aí do Ser, a abertura ao Ser, pelo que não são colados (agarrados) ao ente na procura maquinal e imperiosa (tirania do ciclo vegetativo, chamava-lhe Arendt) da satisfação das necessidades vitais.
O contrário disto é o estado decaído da reificação como nos regimes totalitários, anulada que está a possibilidade da acção, o ser aparece como simples jogo da natureza na versão da raça ou da história ou ainda na versão da classe (paradigma sociológico. O poder de codificação social, a socialização, adultera a relação do homem com a liberdade de agir que, contudo lhe é constitutiva).
Depois segue-se a bela digressão sobre a noção sartriana de que a existência precede a essência. Sendo essa a marca própria do homem. Contudo a narrativa criacionista introduz de novo a essência antes da existência. Deus é então o grande artesão e o homem a sua mais genial criação, mas ainda assim um objecto uma vez que a sua essência está de avanço determinada e nessa altura a existência é algo que se vem inscrever num molde já definido ainda que muito complexo, ou mesmo se.
A inautenticidade é o esquecimento da sua própria transcendência, esta negação da liberdade que consiste em fazer como se fosse um ser (uma essência), como se a natureza ou a história pudessem tornar-se os nossos códigos.
É Kant que traduz melhor e de modo coerente a visão da história que sustém este novo humanismo, segundo o qual o ideal de uma comunicação universal não é um modelo imposto, mas a consequência rigorosa da definição do homem como nada: “É ao arrancar-se à particularidade das identidades nacionais que o homem pode entrar em comunicação com outras culturas e atingir assim a universalidade”, (Conforme Alain Renaut e Jean-Luc Ferry, Heidegger e Les Modernes, 1988:170)

Fenomenologia e criticismo: O ponto de clivagem.
A crítica, a valorização e a desvalorização é já especificamente uma ideia moderna, na medida em que ela requer a instauração do sujeito como instância de avaliação.

5 Nov 2015

Violoncelo Stradivarius “Chevillard-Rei de Portugal” estrela em concerto solidário da Gulbenkian

Michel Reis

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] violoncelo Stradivarius Chevillard-Rei de Portugal, datado de 1725 e classificado como Tesouro Nacional, é uma das jóias da coroa do espólio do Museu Nacional da Música, em Portugal, tendo pertencido a S. M. o Rei Dom Luís I (1838-1889) e sendo o único instrumento de arco em Portugal com a assinatura do famoso construtor italiano de instrumentos musicais Antonio Stradivari (1644-1737).
Construído em 1725, quando Stradivari tinha 81 anos, foi primeiramente conhecido por Violoncelo Chevillard, por ter pertencido ao famoso violoncelista belga Pierre Chevillard (1811-1877) e foi posteriormente propriedade de um dos irmãos da família de luthiers franceses Vuillaume, que o vendeu ao Rei Dom Luís em 1878 por 20,000 francos. O Chevillard – Rei de Portugal tem a famosa forma “B”, a mais célebre entre as diferentes formas utilizadas por Antonio Stradivari na construção de instrumentos de arco, sendo o último construído segundo esta forma. Esta forma foi utilizada de 1707 a 1726, o período de ouro do construtor. Contudo, não estando o instrumento certificado, atribuem-no alguns a Jean-Baptiste Vuillaume (1798-1875), que imitava Stradivari com perfeição extrema. Restam hoje apenas 25 violoncelos deste tipo em todo o mundo, entre os quais o “Davidoff” (1712) , actualmente emprestado a Yo-Yo Ma, o “Duport” (1711), que pertenceu a Mstislav Rostropovich e é hoje propriedade dos seus herdeiros, o “Piatti” (1720), que pertence ao violoncelista mexicano Carlos Prieto, o “Mara” (1711), que pertence ao violoncelista austríaco Heinrich Schiff e o “Batta” (1714), que pertenceu ao violoncelista russo-americano Grigor Piatigorsky.
É conhecido o interesse que o Rei Dom Luís tinha pela música. Como compositor, deixou-nos algumas obras musicais: uma Barcarola, uma Missa (a parte de violoncelo), cinco valsas e uma Avé Maria, que o próprio Rossini elogia, pelo que não raras vezes comporá obras dedicadas a Dom Luís. Parte do seu acervo instrumental encontra-se hoje, no Museu Nacional da Música. São de realçar o violoncelo Stradivarius e um piano que pertenceu a Franz Liszt.
O valioso instrumento saiu há pouco tempo do Museu Nacional da Música para ser tocado pelo violoncelista russo Pavel Gomziakov num concerto de solidariedade para com a Plataforma de Apoio aos Refugiados, intitulado Música por uma Causa, realizado no passado dia 18 de Outubro, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no qual o violoncelista, juntamente com a Orquestra Gulbenkian, tocou a Suite Nº 2 em Ré menor de Johann Sebastian Bach e o Concerto para Violoncelo e Orquestra em Dó Maior de Joseph Haydn, sob a direcção de Michel Corboz. O concerto, que esgotou a lotação do auditório, obteve uma receita de 24 mil euros.
A saída do instrumento, avaliado em vários milhões de euros, do Museu Nacional da Música, esteve relacionada com a sua descoberta por Gomziakov, que esteve em Lisboa anteriormente para tocá-lo num concerto realizado no Museu da Música. Ficou tão emocionado com o som do instrumento, que pediu ao Museu para usá-lo numa gravação na Fundação Calouste Gulbenkian, com a orquestra da Fundação, do referido Concerto para Violoncelo de Haydn, que integra a sua próxima gravação discográfica dedicada a Haydn, da editora Onyx, a ser lançada no início de 2016.
Depois da primeira saída, Pavel Gomziakov pediu também ao Museu da Música para usar o violoncelo Stradivarius no concerto solidário da Gulbenkian, o que só foi possível com o apoio de mecenas do Museu Nacional da Música como a Lusitânia Seguros, visto que o valor do seguro é bastante elevado e a peça precisa de medidas de segurança muito especiais. Tratou-se da segunda saída, em poucos meses, de um instrumento que não foi tocado fora do museu desde que ingressou nas colecções que o viriam a constituir, em 1937, e que é um dos 11 tesouros nacionais que o museu tem à sua guarda.
Crê-se existirem ainda hoje em dia entre 630 a 650 violinos, violas e violoncelos construídos por Antonio Stradivarius, 512 dos quais são violinos.
Tivemos muito recentemente oportunidade de ter em Macau o agrupamento de origem suíça Stradivari Quartett, que realizou dois concertos integrados no XXIX Festival Internacional de Música de Macau, nos quais o público pôde ouvir os fabulosos Stradivarius “Aurea” (violino, 1715), “King George” (violino, 1710), que pertenceu ao Rei Jorge III de Inglaterra, “Gibson” (viola, 1734) e o “Bonamy Dobree – Suggia”, que pertenceu à famosa violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia (1885-1950).

5 Nov 2015

A diáspora dos nossos dias

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ragmentam-se as sociedades, os tempos correm num equilíbrio de forças, a distribuição das riquezas é desmesuradamente instável, os impérios findam, outros nascem…. e sempre as populações do mundo andaram móveis nestes corredores da História. Fazer da Diáspora uma condição foi uma prática litúrgica do judaísmo que, várias vezes expulso da sua terra, andou pelo Mundo, e ainda mais atrás por questões de fome partiu para o Egipto. Não é apanágio de um Povo tal condição, mas que foi levada a uma imensa esteira de consequências culturais, isso, sem dúvida. Mesmo Jesus fala nela eufemisticamente e do seu Reino fora deste mundo. Dir-se-ia que o conceito é mito, mais para além do territorial e nos apela para outras “terras” onde esta é apenas Viagem.
Na bagagem levaram os Hebreus o seu Sião e nas noites Babilónicas ali o choraram como filhos sem mãe, nos longos séculos pelo mundo diziam: até para o ano em Jerusalém. Por isso, e pela escassez do território, aquilo não é apenas uma questão de sobrevivência, mas sim um amor atávico, feito por uma ordem aglomeradora que a memória não quis que se extinguisse. Um para lá das necessidades fala aos Povos das suas pátrias afundadas, uma força estranha que nos questiona: afinal o que são e para que servem os territórios? Ainda hoje os Gatos, oriundos de África se deleitam no calor torrencial como se fossem cobras ao sol… eles recordam-se do solo original depois de caídos os Impérios, refeitas as pragas, cruzando-se mais a Norte, eles, os dos telhados, ditos «Europeus» procuram como as árvores chegar ao céu onde os aguarda ainda aquele sol.
Como é que a máxima experiência da mente se conjuga com tais ditames ancestrais é um maravilhamento: Heidegger afirmou — O poeta quer dizer: onde deve medrar uma obra humana verdadeiramente alegre e salutar, o Homem tem de poder brotar das profundezas do solo natal, elevando-se em direcção ao Éter. Éter significa: o ar livre das alturas do céu, a esfera aberta do espírito. Sim! Nós as plantas carnívoras temos raízes que são tanto mais fundas quanto fundas são as vastas memórias. Esta infinita consciência deve estar em todos como preceito terreno. Não digo que sejamos daqui, todos de aqui, há seres mais terrenos que outros, para quem as leis se aplicam como compósitos de vida a qualquer custo e o mimetismo transmite o dom da sobrevivência, mas falo daqueles que não tendo “gérmen” terrestre querem da sua terra uma reposição cósmica mais alargada. Existe sempre e para além do mais, o pensamento que calcula e a reflexão.
Estamos em pleno século vinte e um, e o grupo das pessoas que se movem, é de facto quase uma experiência bíblica; assistimos a uma “transumância ” sem Pastor na deriva dos Continentes que nos deixa entreaberta a porta da delinquência e do desespero das debandadas. Talvez se fuja já a uma antiga consciência gasta… a um findar de códigos… a uma usurpação do melhor da memória. Foge-se para qualquer lado com a esperança de renascer num outro, leva-se de nós, ou eleva-se de nós um grito qualquer, a Terra é estreita, e a nossa, aquela que o outro nos tira, afinal não está em lado nenhum.
O território é a base da organização social, fez parte das Guerras, desse definir de fronteiras, do que pode e não o outro em território estrangeiro. As nossas casas são pequenos países onde quem entra passa a ter as nossas regras, mesmo como exilados, sem abrigos, e coisas desventuradas que vamos ajudando mas sem nunca perdermos o ordenamento do nosso próprio território. Os tempos ditam-nos essa consciência de que temos de ajudar! Que não podemos permitir que os seres caiam na rua, esse território de ninguém, onde habitam os espectros. Eles também nos ajudam em tarefas que até aí não fazíamos tão bem. Mas, este mas aqui é enfático, como viver-se na proximidade física, na intimidade permanente, na partilha de coisas que eram apenas nossas? Um outro ordenamento mental se tem de se estabelecer, ou então, entramos em ruptura, o mesmo que dizer, em guerra. Vasco de Lima Couto (acho que estamos num tempo que já nem sabe quem é) dizia: preciso de espaço para ser feliz, e outro para ser raiz.
Esta imensa noção poética do espaço é uma harmonia universal que não se coaduna com as homilias morais das Nações, estas andam a contramão daquilo que define as grandes Leis, são formas morais que estabelecemos para conseguirmos viver em grupo, mas, que activam a via de um demonismo que não faz brilhante o Homem. Se é certo que as trocas nos enriquecem, não é garantido que a prática de vida múltipla nos faça melhorados. Precisamos sempre de espaço para ver o outro, não como um adoptado, mas, enquanto um ente que nos olha e olhamos. Tudo junto é um processo acéfalo.
O desconhecimento profundo que os Povos parecem ter uns dos outros e a maneira como se integram faz prever o pior. É nestas “barafundas” que aparecem os grandes algozes, movidos de forças higienistas tão do agrado dos tempos modernos. Antídotos radicais que matam os que não têm a força de saberem o seu lugar nos organismos. Estamos a viver mais ou menos isto, de forma informe, tresloucada, de denominador comum.
A consciência procura o Homem, mas se não lhe damos ouvidos, ela se separa irremediavelmente ficando um charco perdido, nós, no meio das estrelas. E se a alimentação, a ginástica, as dietas e os “regimes” nos fazem viver mais anos, temos de começar a saber também para quê, para que estamos vivos. A vida é uma medida que não interessa só como hedonismo ou força de hábito, ela, serve sem dúvida um propósito que se não for maior a desprestigia como fim em si.
Alvoradas houve muitas e nenhuma combateu ainda esta ignóbil condição de nos machucarmos de forma impensável, se não for para sair da Roda, para que nos serve a Inteligência, a conquista e tudo o que nos ronda? Levemos a memória do Amor nestas grandes diásporas e já vamos com a bagagem cheia e fértil. Guarde cada um para si a sua” chama” porque, e rematando com os poetas «uma chama não chama a mesma chama há uma outra chama que se chama em cada chama que chama pela chama que a chama no chamar se incendeia».

5 Nov 2015

Notas Sobre o Método do Pincel «Bifa Ji»

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] pintor divino (ou inspirado) não faz nenhum esforço mas alcança as formas espontaneamente ao seguir as transformações da natureza. O pintor maravilhoso penetra com o seu pensamento a natureza de tudo no céu e na terra; e assim as coisas escorrem do seu pincel de acordo com a verdade do motivo. O pintor original (ou espantoso) desenha vastas linhas que não estão de acordo com a verdade do motivo; as coisas que ele faz são estranhas e fantásticas e bastante desajustadas. Este é o resultado de trabalhar com o pincel sem pensar. O pintor hábil esculpe e reúne pedaços de beleza que, cada um, parece estar de acordo com os grandes princípios. Ele força o desenho e trabalha de uma maneira extremamente exagerada. Deve ser dito que a realidade não é suficiente para ele, de tal modo faz alarde de tantos floreados. 20151023140418_001-cópia
Há quatro aspectos no trabalho do pincel, são os chamados; músculos, carne, ossos e espírito. As pinceladas curtas e cortadas são chamadas músculos; as pinceladas que sobem e descem e compõem a realidade são designadas de carne; as que são firmes e directas do princípio ao fim, são chamadas de ossos, enquanto as linhas que são invencíveis (nunca se partem) podem ser chamadas de espírito vital. Daqui pode deduzir-se que a tinta é um assunto fundamental; se se perde o corpo da tinta (i. e. se o tom é demasiado leve), o espírito é derrotado, os músculos morrem e não há carne. Quando as linhas são cortadas, não há músculos, apenas uma aparência descuidada e nada de ossos.

de Jing Hao

3 Nov 2015

O Fim da dinastia Song do Sul

[dropcap style =’circle’]N[/dropcap]a Batalha Naval de Yamen, na embocadura de um dos ramos do Rio Oeste, próximo de Macau, foi onde a dinastia Song do Sul teve o seu fim, corria o dia 19 de Março de 1279. Os duzentos e cinquenta sobreviventes partindo por terra, foram-se refugiando nas aldeias próximas e o que restou desse grupo chegou a Haojing, onde se estabeleceu.

Em 1206, surgiu Tai Zu no trono da tribo dos mongóis, que deu o nome ao povo. Tai Zu subordinou todas as outras tribos e através duma assembleia do povo, tornou-se Gengis-Khan. Começou em 1211 a invasão da China, conseguindo atravessar a muralha em 1213, conquistando Beijing dois anos mais tarde. Os mongóis usavam uma táctica de guerra revolucionária (estudada mais tarde por Napoleão) e que consistia em ataques aos flancos, centralização e fuga fingida, o que originava massacres. Após terminarem com a dinastia Jin em 1234, passam no ano seguinte a atacar os Song do Sul, que era uma dinastia virada para as artes e letras e que dava reduzida atenção e importância à parte militar.

A dinastia Song do Sul durou até à conquista dos mongóis em 1279, apesar da sua capital Lin’an ter caído em 1276. Lin’an, a actual cidade de Hangzhou, capital da província de Zhejiang foi durante 149 anos a capital da dinastia Song do Sul (1127-1279).

A fuga da corte Song do Sul

Em 1274, uma força mongol de duzentos mil homens, comandada por Bayan, entrou por terra e pelas águas do Grande Canal no território Song do Sul. No ano seguinte, após a Batalha de Wuhu, as forças Song do Sul comandadas por Jia Sidao foram vencidas. Em 1276, os mongóis marchavam sobre Lin’an, a capital dos Song do Sul e ocuparam-na. Zhao Xian, que em 1274 se tornara com cinco anos o Imperador Gong, foi em 1276 levado como prisioneiro para Norte, onde entrando num mosteiro se tornou monge.

O que restava da realeza Song do Sul, Duan Zong e o seu irmão mais novo Zhao Bing acompanhados pela Imperatriz Yang conseguiram escapar e acompanhados por pessoas da corte, militares, oficiais e civis fugiram para Sul, em direcção a Fujian, tendo como destino final a Ilha de Hainan. O inicial grupo ao longo do caminho foi engrossando com os familiares dos mandarins e com muitos dos que trabalhavam ao serviço dos Song do Sul, cujo território se estendia pelo Sudeste, pelas actuais províncias de Fujiam, Guangdong e Hainan. Também receando as represálias dos mongóis, na passagem por Fujian, muitos oficiais naturais desta província e suas famílias, se juntaram à corte fugitiva. Assim o grupo atingiu o meio milhão de pessoas.

Em Fuzhou, Duan Zong com sete anos tornou-se o Imperador Zhao Shi (1276-1278). Por aí devem ter passado mais de um ano já que as datas só nos falam desta corte fugitiva no ano de 1278.

Chegados a Quanzhou, tentaram alugar barcos para continuarem viagem, agora por mar até Leizhou, junto à Ilha de Hainan e onde se preparavam para estabelecer a corte. No entanto, o muçulmano árabe mercador Pu Shougeng, muito provavelmente nativo da China, que era também o oficial que administrava os barcos naquele porto, percebendo que cairia em desgraça perante os mongóis, que já se preparavam para ocupar os destinos da China, ou porque aqueles barcos lhe faziam falta para as suas marítimas viagens comerciais, não os cedeu. Por isso, os navios foram tomados pela força.

No mar, já em frente da província de Guangdong, foram apanhados por um tufão e apesar de muitos naufragarem, outros conseguiram chegar a porto seguro. O imperador que tinha sobrevivido, foi em terra acometido de uma doença súbita e morreu no Delta do Rio das Pérolas, em Lantou (hoje território da Região Administrativa Especial de Hong Kong e onde foi construído o novo aeroporto). Assim, com cinco anos Zhao Bing em 1278 subiu ao trono da dinastia nómada dos Song do Sul, tornando-se o nono e último imperador da dinastia Song do Sul, como Bing Di (1278-1279).

Com os barcos que sobraram, o novo imperador acompanhado pelos seus tutores e oficiais zarparam para um local mais seguro. De novo navegando pelo mar, chegavam ao Sul do actual concelho de Xinhui, no distrito de Jiangmen (porta do rio) província de Guangdong, quando viram a enorme armada mongol que vinha no seu encalço. Para se esconderem, entraram por um dos ramos do Rio Xi (Oeste) e encontravam-se na foz do afluente Rio Tan, em frente ao Forte de Yamen, quando foram alcançados pela armada mongol.

O Forte de Yamen está situado a Leste do Monte Ya e com o Monte Tangping a Oeste formam como que uma entrada e por isso o nome de Yamen (Entrada dos Penhascos). Foi o forte construído ao nível da água, entre os anos de 1131 e 1162, durante a dinastia Song e reconstruído em 1809, tendo na I Guerra do Ópio albergado as tropas de Lin Zexu.

Os barcos que transportavam o restante da corte nómada foram apanhados pela armada mongol na baía em frente ao Forte Yamen e aí se desenrolou a batalha naval, que durou vinte e dois dias e envolveu mil barcos.

A Batalha de Yamen

Após quase três anos passados e mais de metade dos que tinham fugido de Lin’an terem morrido, as forças navais mongóis partem em perseguição da nómada corte Song do Sul. O General Zhang Hongfan, um antigo oficial Song que se tinha colocado ao serviço dos mongóis, comandava um exército de vinte mil homens, enquanto o oficial Song Zhang Shijie se encontrava à frente de duzentas mil pessoas, sem alguma disciplina, nem treino militar ou marítimo.

Por não possuir grande experiência em combates navais, Zhang Shijie, o comandante da dinastia Song do Sul, saindo do mar entrou pelo Rio Tan e foi alcançado em frente à povoação de Yamen. Sem espaço de manobra, colocou a sua frota de maneira a que os barcos dos mongóis os cercaram e sem possibilidade de desembarcarem para terra, nem fugirem, estavam a ser rapidamente derrotados.

Zhang Shijie retirou-se com dez barcos, para os conseguir posicionar e manter o poder de combate, mas já era tarde. Vendo a derrota iminente, o oficial superior Lu Xiufu pegou no Imperador Zhao Bing e saltou para a água, fugindo assim de serem capturados pelos mongóis, preferindo a morte por afogamento, tal como fez a Imperatriz Yang.

Em 19 de Março de 1279 as forças dos Song do Sul estavam aniquiladas.

Zhang Shijie, ao regressar ao grupo dos seus barcos, já derrotados, encontrou o corpo da mãe do imperador a boiar na água, já sem vida. Mais tarde, Zhang foi apanhado por uma tempestade e morreu também afogado.

A área desta batalha situa-se entre a aldeia Guanchong e o Norte do Lago Yinzhou, a Sul do Monte Yamen. Aí, se encontra o túmulo da mãe do Imperador Bing e uma pedra, cuja lenda diz marcar o local onde Lu Xiufu e o imperador saltaram para a água. Visitámos o templo em 2005 e nessa altura encontrava-se em profundo restauro. O altar, com a estátua da imperatriz-mãe e o túmulo, estava coberto por um plástico para a tinta com que se decorava os tectos nele não pingasse. O recinto do templo, que até aí tinha sido de pequenas dimensões, estava a ser ampliado e arranjado para receber grande quantidade de turistas.

Visitado o templo, vamos à procura de um rochedo cuja lenda diz marcar o local onde Lu Xiufu e o imperador saltaram para a água e onde o comandante da armada mongol, o general Zhang Hongfan mandou gravar algumas palavras sobre a vitória das forças de Kublai-Khan.

Perguntando o local dessa pedra, que assinala o fim da dinastia Song do Sul, indicam-nos a uma distância de cinco quilómetros do forte e a dois do templo, mas como as estradas se bifurcam é difícil encontrar o local. Estamos perto, quando a estrada dá para um portão. Guardado por soldados, não nos deixaram entrar no recinto onde a rocha se encontra, por ser uma base naval da marinha chinesa, logo vedada ao público. Assim seguimos para a visita do Museu comemorativo desta batalha, situado na outra margem do rio.

Depois da Batalha de Yamen, que marcou o fim da dinastia Song do Sul, o que sobrou desse grupo, cerca de duzentas e cinquenta pessoas, daí fugiu e foi-se escondendo, criando aldeias, sendo uma delas Haojing, nome talvez proveniente de haver muitas vieiras (hao, 蠔) nas límpidas águas que refletiam como espelho (jin, 鏡), era como na altura se chamava Macau.

Assim, em 1279 esse grupo estabeleceu-se na parte Norte da península de Haojing e dedicou-se à agricultura, construindo as suas casas na encosta Sul da colina de Mong-Há (que significa olhar para baixo).

Conta-nos Ana Maria Amaro, que os fundadores de Mong-há-tchún deram ao lugar o nome de Monte Dourado, devido ao local ser de rochas graníticas. Os primeiros habitantes da zona foram indivíduos de apelido Kái, Lou, Pou, Tin, Hó e Sam, seguidos pelos Hói, Tcheong, Lam e Tchan, o que corresponde a serem provenientes de diferentes famílias e algumas da província de Fuquiam, o que poderá confirmar a história anterior.

A península era seguramente ponto de passagem e de encontro para pescadores e mareantes e aí existia, não se sabe desde quando, uma pequena povoação de pescadores e mareantes na parte Sul junto ao Templo da Barra e dedicado à deusa Mãe A-Má. Podia ser a família Kái, que vivia afastada do Monte Mong Há e se dedicava à pesca. As suas casas, situadas na parte Oeste da Colina da Penha, ficavam assim abrigadas das intempéries.

Assim, quando os portugueses chegaram à península de Haojing e colocaram as suas mercadorias a secar, encontraram na zona de Mong Há, um dos dois povoados existentes. Eram os descendentes da dinastia Song do Sul, que aproximadamente há 250 anos aqui viviam.

30 Out 2015

Litânia. Oásis de monotonia

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma palavra bonita, litania. Como ladainha. Gosto de ladainhas e nem seria preciso dizer. Já lengalenga, da vox populi, lembra-me coisas de uma dolência entediada, de cadências lenganhosas. Lesmas e outras imagens empasteladas. Encadeados de palavras entorpecentes, músicas repetitivas, mesmo as do minimalismo. Isso sim. Outras como chicote. Também. E os ritmos cardíacos. Os da respiração. Os mais secretos das células que reorganizam o seu destino e que pode ser pavoroso, prefiro ignorar. Isso ou a eternidade. Há que escolher. Ilusões.
Conduzia de janela aberta. Uma pena leve poisou-me no casaco. Muito pequena. Pensei, Lá está ele. A brincar. É que às vezes tenho a sensação de que o meu anjo anda por aí. Eu deitava-a pela janela, por nada, que não me fazia mal, e ela voltava leve e teimosa. Lembro sempre a expressão de desagrado da minha avó: “Penas”… Ela pensava, pesares. Mas era mais uma pequena penugem, daquelas por debaixo das outras penas, e que servem para manter a temperatura. Faz sentido porque já sopra aquela aragem fresca que arrasta as folhas e anuncia dias piores. Se fosse uma pena não distinguiria se era da asa ou do coração. O anjo mais sorumbático, ensimesmado, macambúzio. Sempre cabisbaixo e embezerrado. Acabrunhado. Mas ao seu modo, com o gosto de brincar. Não há nada mais irresistível do que um ser cuja alma brinca por detrás de um fácies soturno. Supondo que os anjos tenham alma. Isto dos anjos precisava de ser mais bem explicado. Mas é uma coisa de mais de trinta anos, também não o vai ser por agora. Lá atrás, professores de pintura entenderam a questão plástica, o vôo, a elevação das ogivas em flecha, os movimentos, os ritmos e pesos da questão. Plástica. Depois caíram. Os meus anjos. Vieram como tinha que ser. Já um filósofo, amigo do meu amor à época, heideggeriano daqueles sempre de mão na cabeça a suster reflexões demasiado pesadas, dizia reflectirem a minha necessidade de salvação, personificada nele – o meu amor à época – Que parvoíce medonha, foi o que pensei. Do amor uma pessoa não quer ser salva, quer a possibilidade de se perder e não menos de se encontrar. Ou é a mesma coisa. Mas isso ficou para pensar mais tarde e ainda não chegou a altura. Suponho.
Tenho vários anjos. O que ficou para sempre naquela idade logo a seguir à infância em que nunca o conheci, o que ficou para sempre naquela idade de idoso, que foi a idade de sempre, em que sempre o conheci. Curiosamente talvez a idade que tenho hoje ou menos ainda. E por isso me sinto estranha. Com o que em mim cresceu e com o que em mim não cresceu. Dois escuros e um luminoso. Nos olhos, quero dizer. Dois, escuridão e um, claridade, de um verde transparente e sonhador. O mais sóbrio deles, afinal. Estão ali quando consigo invoca-los. Ou o permitem. Mais nada. Aqueles cujo olhar gosto de imaginar que me acompanha. Por aí. De longe, acho. Vindo em continuidade do passado e passando por mim a mostrar não o caminho, mas que há caminho.
Construção minha. Que existam como tal e mesmo assim. Que quero deles, nada. Minto. Que me embalem. Porque das pessoas quereria sempre se calhar demais. Mas é um work in progress. E não quero deles nada para não os comparar com elas.

Gostar de litanias. Orações no culto cristão. Formas de rezar em que se responde com uma invocação breve e repetida, às preces que desfia quem dirige a oração. A repetição, a insistência, a súplica veemente. Na Liturgia das Horas, salmos e cânticos com esta forma na sua estrutura. Embaladora. A todas as horas do dia. Das Laudes às Completas. Para não desfocar. Ladainhas, com um poder hipnótico que induz ou agudiza a fé. Com palavras que não falam comigo. Mas o rogo e a súplica, assumidas em abstrato sem se as dirigir a ninguém, a nenhuma entidade, são talvez um desabafo de tonalidade possível. Como dizer Meu Deus, sem necessariamente invocar o possivelmente inexistente.
Ou sinónimos daquilo que é repetitivo e enfadonho. De ramerrame. Da vontade de cair em letargia. Do que embala em forma de música, do que embala e repetidamente se ouve em segredo por tão excessivo. Do embalo das palavras. De conduzir sempre pelos mesmos caminhos mesmo que mais longos. Só pelo hábito e pelo conforto. De resistir à mudança. Alvin Toffler refere-o na Terceira vaga. Demasiada aceleração. Demasiados dados em confronto. Demasiadas mudanças, demasiada necessidade de adaptação. A alma reage como pode. Aquele hábito estranho de pessoas que se embalam, balançando o tronco para a frente e para trás. Observado em alguns portadores de autismo. Li um dia o relato de alguém com uma dessas síndromas, que explicava lucidamente a razão de ser. Demasiada sobrecarga de informação, de dados sensoriais a processar. Demasiados dados criam uma perturbação inconsciente e a necessidade de produzir uma reacção. Uma espécie de drenagem do excesso.
E os outros que secretamente se embalam sentados em banquinhos baixos lendo pelas horas adiante como eu, à janela do quarto que tinha janela, porque o outro não tinha. Pelos anos fora. Quando liam, e a vida em si não era demasiada só por si, para lhe incorporar a vida de ficção. Personagens, lugares, sentimentos. Prisões alheias. Que depois deixaram de ter lugar. À janela. No banquinho azul da infância. Sem diagnóstico formado.
Ou patinar de costas. Talvez por não se sentir tanto a resistência do ar. Descrever elipses vezes sem conta, em torno do rectângulo de um ringue semi-vazio, ganhar velocidade – o mais perto de voar que experimentei – até ao momento em que um grão de areia se imiscuía nos rolamentos das rodas e a queda era brutal. Mas era tão bom. Lá atrás.
Melopeias, litanias, cantigas de embalar. Porque a vida me fez divergir e às vezes é demais. Gostar de ladainhas, de coisas que embalam porque existe por vezes a nostalgia do anterior à luz. Diria do útero materno se não fosse excessivo. Eventualmente a casa a que não se pode querer conscientemente voltar. O embalo da música que inconfessadamente repetimos até à intoxicação. Intoxicações várias, que podem ser de várias ordens sensitivas. Abanarmo-nos na infância como muitos continuam a fazer vida fora. Diagnosticados de autismos, síndromas várias que dificilmente entendemos porque em fuga dos padrões. Que padrões entendemos? E continuar a embalarmo-nos na juventude. Sentados em bancos pequenos que deixam o torso livre para tal, em horas de mergulho suicida na leitura. Alheamento completo do mundo. Pequena agenda, irrelevante como distúrbio. Outra espécie de retorno ao útero. Ou de mergulho para morrer temporariamente. E custar medonhamente o acordar. Coisas secretas.
Porque é que algumas pessoas custam a levantar-se da cama. Porque querem hibernar. Independentemente de amores e desamores. De objetivos a cumprir com paixão ou desafios a encarar com fervor. Dificuldades a ultrapassar ou o alívio final de chegar a algum lugar. Há pessoas que sentem tudo como demasiado difícil naquele momento de acordar, em que se pode reagir de imediato ou adiar até ao limite do possível a decisão de assumir o dia.

E rotinas. A única que tenho sagrada, é uma caneca de café com leite ao acordar e quatro cigarros. Cinco, seis. Ou ser milongueira. Sempre que a vida dá. Para sempre desde que se começou e por ser a sério. As rotinas são boas ou talvez sinal de afogamento à vista. Ou de que se começa a ter uma certa idade.
Dantes eu lia a tempo inteiro. Quase. O resto acontecia nos intervalos. Hoje não leio. Mas parece que escrevo a tempo inteiro. Quase. O resto arrasta-me contrafeita. Depois esqueço a contrariedade porque outros apelos se sobrepõem. E muitas vezes só por dentro. E por isso as frases dissolvem-se totalmente. Ou só uma parte. Ou misturam-se contorcidas umas nas outras no espaço limitado e labiríntico em que se movem. Umas por cima das outras. Às vezes transparentes deixando vislumbrar fragmentos das que ficaram por baixo. Para trás. E por vezes escrevo-as. Num semáforo. No caminho para apagar o fogão quando um cheiro a queimado me avisa de que me perdi por uns tempos. Sempre sabendo que não pode ser até me apetecer. Até me fartar. Eu gostava de me sentar a escrever para sempre. Nunca seria. Mas como se fosse.
Portanto, dantes eu lia. Depois foram as palavras, já não vindas de baixo, do papel dos livros com cheiro a açúcar mascavado, mas de cima a escorregar à procura de um papel com o mesmo aroma. Que já não há. A tomar esse lugar no banquinho que poisado por ali, e um tanto esquecido e abandonado, ou por estar há um tempo longe da janela, e do quarto dos pais onde abria essa janela, de cortinas branco leitoso com muitos furinhos por onde entrava quase tudo o que avançava do lado de fora. Pouco espaço para palavras alheias. Mais perturbação ainda a somar às que se desprendem ininterruptamente, maçadoras insistentes, esquecidas, recuperadas, coladas provisoriamente em papelinhos. Tantas palavras. E agora a terem que sair de novo. Não porque sejam especiais ou úteis as palavras, mas porque a vida em si é mais difícil. Dispersa, desarrumada. E elas precisam de escorrer por algum lado. Ocupam pouco espaço. Não necessitam de nada, não pedem nada. Só sair. Libertas. Finalmente silenciadas, a dar lugar a outras. Escrevê-las. Num lugar sossegado, sem horários e sem interrupções. Como se para sempre. Ou cristalizar. Se ao alcance de humanos, seria bom. E luminoso.

Ou desenhar, como naquele papel de cartucho cinza claro com risquinhas vermelhas ou não, em que desenhava ou, outras vezes, recortava roupas de boneca. Acho que só tive outro tipo de papel quando entrei para a escola. Aqueles cartuchos a cheirar, eles sim verdadeiramente a açúcar amarelo. E uns lápis pequeninos de bico grosso que ele me emprestava e que usava para traçar firmes e rigorosos traços na madeira. Saídos dos seus olhos transparentes e pensativos. O cheiro das raspas encaracoladas da madeira aplainada. Ofereceu-me a primeira plaina e um martelo pequeno, esguio, feitos por ele quando entrei em Belas Artes. O meu Kit de sobrevivência tomou rumos ecléticos.
Escrever. Um outro culto. O das coisas. Das coisas em si e das coisas pelo sentido. Das palavras pelo sabor e das palavras pelo sentido. Do lugar, espaço e tempo. Saber e não saber. Invasão de significados e a perturbação do excesso. Das ramificações divergentes. Exponenciais. Das demasiadas coisas em si. Dos excessivos sentidos nelas. Dos múltiplos lugares. Seres. Espaços e tempos passados e futuros. A perda de um e a perda do outro. Cada vez mais saber não saber. E querer fugir à invasão, à consternação perturbada da multiplicidade. Da complexidade revirada sobre si mesma numa confusão de interior e exterior, contínuos. Interior e logo já exterior sem transição. Interior, exterior. Uma coisa e uma outra coisa nela ou para além dela. Alternados só pelos pontos de vista dependentes do tempo que não os pode fazer coincidir. Como Escher.
A vontade de escrever as coisas todas. As pequeninas sobretudo. Contadinhas e esmiuçadas à medida que se sucedem. Na inteireza do tempo. Em tempo real.
Litanias. Melopeias monótonas. Às horas. Minutos. Segundos. Agora. Aqui. O abismo do infinitamente pequeno fragmento de instante, partido e repartido a tender para o nada. O inalcançável presente. Que passou. Porque saltamos do passado- futuro, para o futuro-passado. E não estamos num nem noutro mas de passagem. Fugaz.

30 Out 2015

Liberalismo e Darwinismo Social

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]obert Nozick nascido em Brooklyn, filho de um empresário judeu oriundo da Rússia, casado com a poetisa, Gjertrud Schnackenberg, Nozick morreu muito precocemente em 2002, após uma prolongada luta contra o cancro, e com menos de 40 anos. Os seus restos mortais estão enterrados no Cemitério Mount Auburn em Cambridge, Massachusetts. Robert Nozick pode ser considerado um filósofo, embora tenha confessado não ter encontrado grande prazer quando cursou filosofia no Columbia College. Contudo esta formação de base em filosofia permitiu-lhe continuar os estudos na Universidade de Princeton onde viria a doutorar-se com uma tese sobre a “Teoria Normativa da Escolha Individual”. E tudo isto lhe permitiu vir um dia a ser Professor na Universidade de Harvard. Se durante a época de Columbia se tinha tornado militante socialista, já em Princeton, na Pós-Graduação, teve contacto com as ideias neoliberais, o que modificou a sua posição política definitivamente: de socialista passou a ardoroso defensor do neoliberalismo. Veio a filiar-se, ideologicamente falando, no neoliberalismo libertário ou anarquista (corrente central do neoliberalismo), cujas raízes remontam a John Locke, Adam Smith, John Stuart Mill, David Ricardo, Paul A. Samuelson, Milton Friedman e Friedrich Hayek. No título do seu doutoramento estão delineadas as suas grandes paixões intelectuais assim como as suas preferências sociais e políticas. Nozick é hoje considerado um dos autores mais importantes do liberalismo contemporâneo para a defesa do qual procurou encontrar as fundamentações não apenas sociais e políticas mas também éticas e sobretudo morais. Robert Nozick desempenhou um papel fundamental na confrontação ideológica que colocou frente a frente, em particular na cultura anglo-americana, liberais e comunitaristas (comunitarians). Os liberais também são identificados nesta polémica como libertários (libertarians), no sentido de libertados da tutela asfixiante do estado, estou a referir-me a estes liberais, ultra individualistas, quase anarquistas (na linha de Murray Rothbard), uma vez que persiste outro tipo de liberais, os liberais igualitaristas (igualitarians) de tipo social-democrata.

Na aproximação à sua obra devem ter-se em conta, desde logo as suas convicções liberais, depois o radicalismo da sua oposição ao comunitarismo e finalmente na sua obra nuclear, Anarquia, Estado e Utopia, o facto de ela representar uma reacção ao não menos importante livro de John Rawls, Uma Teoria da Justiça.
O Respeito de Nozick por Rawls está acima de toda a suspeita. Ele leu com paixão o livro de Rawls e apesar da profunda admiração pela obra, não se sente identificado com os seus objectivos. Ele exprime-se nestes termos: “Uma Teoria da Justiça é uma obra de filosofia política e moral poderosa, profunda, subtil, de grande fôlego, sistemática, à qual nada se pode comparar desde os escritos de Stuart Mill, quando muito. É uma fonte de ideias luminosas, integradas num todo cativante. Os filósofos da política hoje têm ou de trabalhar no seio da teoria de Rawls ou de explicar por que não o fazem (NOZICK, Robert. 1991). A publicação de Anarquia, Estado e Utopia é justamente para Nozick explicar porque não pode nem quer trabalhar no seio da teoria distributiva de Rawls.
A publicação é dividida em três partes. A primeira – intitulada “Anarquia” – busca justificar o porquê da necessidade de um Estado Mínimo; a segunda – “Estado” – apresenta a alegação de que nenhum Estado mais amplo pode ser justificado; e a terceira – “Utopia” – defende o facto de que a teoria apresentada pelo autor não busca impor uma maneira de comportamento que deva ser acatada por todos, mas antes que a sua teoria permita com que todos vivam as suas vidas da forma como bem desejarem, sem terem os seus direitos fundamentais violados.
Neste livro, Nozick defende uma forma de liberalismo radical, na qual se promove, naturalmente, uma posição neutra do Estado, perante as escolhas voluntárias de adultos conscientes. O individualismo consequente e radical faz corpo com a concepção de um estado mínimo, como veremos. Para a coerência da sua posição liberal e individualista, Nozick parte, em primeiro lugar, de uma definição clara dos contornos do Estado, o que significa, das suas áreas de acção, definindo, portanto o papel (restrito) que deve ser desempenhado pelo Estado. Qualquer acção do estado, diversa daquela que está contida dentro dos seus contornos, pré determinados na sua definição, passará a ser considerada uma violação drástica dos direitos individuais dos cidadãos. E assim, esse estado mínimo terá como funções apenas: a protecção da liberdade contratual, a protecção do direito de propriedade e a segurança dos indivíduos. 291015P13T1
O direito de propriedade (O individualismo possessivo de que falava C. B. Macpherson, na linha de autores como Locke, Hobbes e Harrington, por exemplo), é inalienável e perante ele devem parar outras pretensões, mesmo a pretensão à felicidade, se for caso disso. Para opor o seu liberalismo ao utilitarismo, Nozick não hesita em argumentar à maneira kantiana, considerando que a protecção dos direitos individuais é da ordem do imperativo categórico, pois devem ser respeitados independentemente de todas as circunstâncias, ou seja, tal como em Kant, apelando à sua incondicionalidade transcendental. Ora o utilitarismo é um consequencialismo, eu diria mesmo um finalismo instrumental o que choca com o argumento de Nozick, que aponta para uma ideia de liberdade sem instrumentalização. Acima de tudo está a liberdade individual que não cede perante nada.
Voltemos à natureza da génese deste livro. Porque é que Nozick enfrenta o neo contratualismo explícito na obra de Rawls, assim como as teorias distributivas e o estado social nelas contidas pelo menos implicitamente. A resposta está no livro, mas a base de toda a argumentação reside na ideologia libertária liberal que Nozick partilha com a grande tradição do pensamento liberal e individualista.

Nota: Ter em conta o estado de Natureza de Locke, onde esse Estado de Natureza gerava extrema insegurança. E isso acontecia por que quando alguns direitos eram violados, os indivíduos não tinham nenhuma entidade à qual recorrer. A única maneira de fazer justiça seria pelas próprias mãos ou eles mesmos executando a lei que protegeria a propriedade individual.

29 Out 2015

O melhor bar do mundo

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s 412 membros da Academia votaram. O melhor bar do mundo é o Artesian (1C Portland Place, Regent Street, London, UK.).*
O leitor não deve, desta feita, temer aborrecidas listas de bares, estatísticas e números. A apreciação da competição que levou à escolha do Artesian serve apenas para perceber o que é que anima esta eleição.
No fundo, o mais importante é dito logo no início da longa relação que explica todo este processo: in the end a great bar is one people enjoy visiting. O meu bar preferido em Hong Kong é de uma banalidade atroz mas é um sítio onde me sinto muito bem e em cujo balcão descanso de longas viagens. Ter um bar preferido é uma grande vantagem de vida. Não haver em Macau um que esteja à altura é uma insuficiência tíbia que diz muito sobre as escolhas que no território se praticam.
Os votantes têm origens muito diversas, não apenas em cidades de bebida como Nova Iorque, Londres ou Sidney mas também Hong Kong, Dubai, Cidade do México ou países como o Camboja, o Líbano, a Malásia ou o Quénia.**
Os lugares constantes da lista são de muitos tipos: bares de hotel, bares tiki, bares de hostels – como o intrigante Broken Shaker, em Miami Beach – velhos bares de bairro, speakeasies, ou lounges. Muitos deles são relativamente recentes, o que interessa a um lugar, como Macau, em que tudo o que tem de ver com bares e hotéis é muito recente. Aqui não permanece, como já foi dito muitas vezes, nenhum antigo bar de hotel. Assim, esta lista não sofre de um mal global frequente neste tipo de classificações – a nostalgia.
Os factores mais importantes (e esta é a definição que mais interessa fazer) são fáceis de determinar. Supremo é a qualidade das bebidas misturadas, nuclear numa altura em que a regressada moda do cocktail mostra uma vitalidade que já teve no passado e uma propensão experimentalista que é nova. Muitos dos membros da Academia são bartenders e a maior parte dos elogios recai sobre a qualidade dos cocktails.
Uma parcela muito importante é dedicada à hospitalidade, o que não é a mesma coisa que serviço. É a capacidade de fazer o cliente ocasional ou regular sentir-se bem vindo e acarinhado, algo que, em Macau, se consegue no Whisky bar do Hotel Star World, no Macallan ou no pouco conhecido Rendez-vous, no Sofitel.
O Artesian alcançou a primeira posição, pela quarta ou quinta vez, por aliar a qualidade das misturas a uma generosa hospitalidade e à qualidade que de seguida se indica.
Esta, muito elogiada em bares desta classificação, é o constante apuramento ou reinvenção dos cardápios e a atenção dispensada aos pormenores: o gelo, a música, o serviço, a ambiência. No The Dead Rabbit (bar que preenche o segundo lugar, sito em Nova Iorque), também conhecido pelos seus cocktails, a ementa – que tem 64 entradas – muda todos os anos, um processo que leva cerca de 5 meses a apurar. Serve 3500 cocktails por semana.
A dedicação dá resultados: 9 horas por dia dedicadas à preparação de ingredientes por vezes comprados às 5 da manhã é o que acontece no bar Nightjar, em Londres (3º classificado da lista). Plâncton, tinta de chocos e pólen de abelha fazem parte de algumas das misturas. Não há, em Macau, nenhum bar que possa alcançar o luxo da constante renovação das misturas – nem há clientela que o justifique.
A distinção atinge-se ainda quando um bar exibe uma oferta generosa de uma bebida particular, whisky ou, por exemplo, gin ou rum. Em Macau distingue-se a oferta de mais de 400 whiskys e whiskeys do bar Macallan e pouco mais. O mesmo se passa no The Baxter Inn, sito em Sydney, o primeiro da Australásia e sexto em geral. ***
O The Baxter Inn tem aquilo que no artigo se chama uma alta staff retention rate (taxa de retenção do pessoal), a capacidade para manter o mesmo grupo de trabalhadores durante muito tempo, uma vantagem que encontramos, por exemplo, no Whisky bar do Hotel Star World, em Macau. Mas, ao contrário do que acontece localmente, sinal nuclear de uma verdadeira dedicação à bebida e ao convívio que distingue também Hong Kong, o bar de Sydney enche todos os dias da semana.
No que pertence à geografia que nos é mais próxima, os países ou regiões que figuram na lista são Hong Kong (com o Lobster e o Quinary, respectivamente em 18º e 39º lugar, o segundo dos quais conhecido deste cronista que nele apercebe só uma boa oferta de cocktails. Não apercebe sinais hospitaleiros. Abriu em 2012 e é conhecido pelo empenho na mixologia molecular), Singapura (o 28 Hongkong Street em 7º lugar e o Manhattan Bar em 35º) e Tóquio (High Five, 13º lugar****).
Desilusão: em nenhum destes 50 bares (como acontece em Macau) se nota um desejo de oferecer um desenho arrojado, verdadeiramente contemporâneo. Predomina a madeira. O Manhattan Bar, em Singapura, é o exemplo perfeito deste irritante anacronismo. Data de 2014 mas segue o desenho de um bar nova-iorquino do século XIX, altura em que os frenesins do consumo de cocktail começaram a impor-se. A persistência deste tipo de escolha prova que é isto que os seus patronos desejam e demonstra a tendência da Drinks International – que não parece dar muito peso à intrepidez do desenho. Já se afirmou isso à exaustão a propósito do que se passa em Macau.
Uma possível excepção é o Buck & Breck, em Berlim. O dono, Gonçalo de Sousa Monteiro, tende a valorizar a consistência e a não mudar muito a oferta pelo que esta tendência, muito generalizada, sendo definidora não é obrigatória. O desenho é íntimo mas mostra alguma audácia.

* veja-se a página da internet da Drinks International.
** além de votantes em 24 países europeus. 15% dos votos vêm da Ásia. Mas não há que esconder a verdade: a maior parte dos lugares escolhidos tem uma envolvência anglo-saxónica. Londres e Nova Iorque figuram em destaque. A Austrália, como se sabe, dedica um amor firme aos bares, neste árido continente se encontrando alguns dos bares mais interessantes do mundo, inclusivamente a nível do seu desenho.
*** em Macau existem bares agregados a hotéis que têm menus mais extensos (por exemplo de vinhos de mesa) mas que permanecem desconhecidos dos clientes menos habituais ou menos atentos.
**** o High Five, no entanto, fechou no passado mês de Setembro. A Drinks International informa que o bar, sempre cheio, não era suficiente ao número de bebentes que o procuravam. Abrirá outro, sempre sob a orientação de Hidetsugu Ueno, ligeiramente maior mas continuadamente íntimo.

27 Out 2015

Da Ordem do Templo à de Cristo

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara complementar os dois anteriores artigos, “O Lavrador do Mar Português” e “Por Cima do Hábito, a Armadura”, seguimos com o episódio da passagem dos Templários para a Ordem de Cristo durante o reinado de D. Dinis.
Para situar o período em que D. Dinis viveu, no ano do seu nascimento, 1261, os bizantinos reconquistaram Constantinopla aos Cruzados. A cidade fora saqueada e tomada em 1204 durante a IV Cruzada, desviada do Egipto pelo Doge de Veneza, tornando-se a capital do Império Latino. Os gregos, com a ajuda dos genoveses, em 1261 restauraram o Império Bizantino.
Em 1276, o português Pedro Hispano foi eleito Papa e tomou o nome de João XXI, mas a 20 de Maio do ano seguinte faleceu em Viterbo, devido aos ferimentos provocados pelo desabamento de uma parte do palácio pontifício. Castelo de Tomar
Já na China, em 1276 os mongóis marcharam sobre Hangzhou, a capital da dinastia Song do Sul e ocuparam-na, levando para Norte como prisioneiro Gong Di, que em 1274 com cinco anos se tornara o Imperador Zhao Xian. O restante da corte fugiu para Sul e durante essa viagem foram sagrados dois novos imperadores, os últimos da então nómada dinastia Song do Sul. Perseguida pelos mongóis, veio a dinastia terminar em 1279 na batalha naval de Yamen, embocadura do Rio Xi próximo de Macau. Assim, no primeiro ano do reinado de D. Dinis, 1279, na China subia ao trono o mongol Kublai Khan, que se tornou o primeiro imperador da dinastia Yuan com o nome Shi Zu (1279-1294). Passaram os mongóis a dominar e unificaram um vasto território, que ia do Pacífico à fronteira com a Europa. Andava o mercador veneziano Marco Polo pela China para em nome de Kublai Khan investigar e fazer-lhe relatórios do que via.
Já na Europa e ainda durante o reinado de D. Dinis, a 18 de Julho de 1290 Eduardo I promulgou o decreto que consagrou a expulsão dos judeus da Inglaterra e dezasseis anos depois, em 1306 foram eles expulsos de França.
Em 1291 era fundada a Confederação Helvética, com a união de Uri, comunidade livre do vale de Schwyz e Nidwalden.
Em Portugal, a Ordem de Avis foi por bula papal criada em 1319, mas a independência desta Ordem em relação a Calatrava só se deve ter consumado no reinado de D. João I.

Para D. Dinis chegar ao poder

Em 1279 morreu o Rei Afonso III e o seu filho D. Dinis ficou com a coroa de Portugal, apesar das lutas que seu irmão D. Afonso lhe moveu e de todos os entraves colocados pelo clero. Seguimos agora narrando um pouco sobre os factores e acasos que levaram D. Dinis a ser rei. De salientar os muitos D. Afonsos que nesta história vão aparecendo e que justificam a razão da primeira dinastia de Portugal ser denominada Afonsina.
Após a morte em 1248 do Rei D. Sancho II e como não deixara filhos, o seu irmão D. Afonso de Bolonha (1210-1279), que desde 1245 era regente de Portugal, foi aclamado rei. Segundo filho de D. Afonso II, aos dezasseis anos a tia materna D. Branca de Castela, rainha de França, mandou-o chamar para viver na corte de Luís IX, onde foi armado cavaleiro. Em 1238 casou com a Condessa D. Matilde de Bolonha, tornando-se por isso conde e vassalo do rei de França, a quem acompanhou em 1243 na Batalha de Saintes contra Henrique III de Inglaterra, distinguindo-se como cavaleiro.
D. Afonso III, que reinaria de 1248 a 1279 com o cognome O Bolonhês, organizou o reino na parte económica, política, administrativa e social. Em 1253 casou-se com D. Beatriz de Gusmão, filha bastarda de Afonso X, apesar de D. Matilde ainda se encontrar viva. Esse casamento de oportunidade veio resolver o conflito sobre a posse do Algarve, que o Rei de Castela Afonso X considerava por direito pertencer-lhe. Tal casamento, só mais tarde veio a ser conhecido pela primeira esposa D. Matilde, que recorreu à cúria pontifícia para que fosse anulado, por bigamia do rei “e por existir um parentesco em quarto grau entre os cônjuges, o que também contrariava o estipulado pelo direito canónico”, segundo Bernardo Vasconcelos e Sousa. Por tal, desde 1254 encontrava-se D. Afonso III sobre forte pressão de ser excomungado por quem anteriormente lhe entregara a governação de Portugal, tendo o Papa Alexandre IV lançado o interdito sobre o reino.
D. Afonso, Conde de Bolonha, do primeiro casamento com a Condessa Matilde não tivera descendência e após repudiá-la, já como rei teve de D. Beatriz sete filhos, entre os quais D. Branca (1259), D. Fernando nascido em 1262, mas que morreu ainda nesse ano, D. Dinis (1261), D. Maria e D. Afonso (1263).
“Só após a morte de Matilde em 1258, os bispos portugueses solicitaram ao papa o levantamento da sanção, que viria a ter lugar e a permitir a legitimação do casamento de Afonso III com Beatriz de Castela, em 1263”, como esclarece Bernardo Vasconcelos e Sousa. Assim, desses filhos do segundo casamento, só os nascidos após 1263 eram legítimos. Por tal razão, D. Afonso considerava-se com direito ao trono de Portugal e não D. Dinis, que à nascença era ainda bastardo, logo sem grandes hipóteses de vir a ser rei. Sendo o Infante D. Afonso o primeiro filho legítimo deveria ser ele o herdeiro da coroa. No entanto, foi D. Dinis que ficou rei desde 1279, apesar das lutas que seu irmão D. Afonso lhe moveu e de todos os entraves colocados pelo clero.
“O reinado de D. Dinis, entre os anos de 1279 e 1325, representa o grande impulso para a formação da consciência nacional, que se complementa nos finais do século XIV. O chamado valorizou a agricultura, com a secagem de pântanos e a plantação de pinhais na Estremadura; a marinha, com a renovação da esquadra de guerra e medidas em prol do comércio externo; e a cultura, com a criação do Estudo Geral de Lisboa, nos anos de 1288-1290, que foi o primeiro tronco da Universidade Portuguesa” Portugal e o Mundo de Joaquim Veríssimo Serrão.

O fim da Ordem do Templo

Foi com D. Dinis que ocorreu a passagem dos bens dos Templários para a Ordem de Cristo, tal como este rei tentou “tornar independentes de províncias não portuguesas as ordens militares que existiam no nosso país, excepto a do Hospital (a de Avis já era propriamente portuguesa, apesar de seguir a regra de Calatrava)”, como refere José Matoso.
A Ordem militar do Templo fora fundada em Jerusalém no ano de 1119 com a finalidade de defender a Terra Santa e os peregrinos que visitavam o Santo Sepulcro. Em 1128, no Concílio de Troyes foi-lhes dado o manto branco, sendo acrescentada a cruz vermelha. Como na Península Ibérica também se realizava a reconquista cristã, esta Ordem, para além das outras referidas no artigo anterior, colaborava com os monarcas cristãos do extremo ocidental da Europa. Desde 1128, D. Teresa ofereceu-lhes o castelo de Soure e muitos outros bens mas, o empenho desta Ordem foi diminuto, tendo mesmo sido derrotada em 1144 próximo do seu castelo. Só após a conquista de Lisboa e Santarém se empenharam, talvez pela oferta dos direitos eclesiásticos desta última cidade. Tendo-lhes sido entregue “um vasto território em volta de Tomar, os Templários começaram a edificar vários castelos na fronteira do Tejo e a recrutar cavaleiros de origem portuguesa, que organizaram com maior cuidado as actividades militares, o que levou o rei a conceder-lhes novas terras e privilégios, no momento mais intenso da Reconquista” José Matoso. Devido a problemas com o Bispo de Lisboa, os Templários cederam os direitos eclesiásticos de Santarém “em troca de extenso território em torno do castelo de Cera, onde, em 1160, começaram a construir o castelo de Tomar”. Já em 1157 tinha sido nomeado como mestre procurador o português Gualdim Pais, que até 1195 governou a Ordem e além de mandar construir os castelos de Pombal, Tomar, Almourol, Castelo de Zêzere, Idanha e Monsanto, “deu foral a Redinha, e à maioria das povoações fundadas em torno dessas fortalezas, assegurando assim a exploração agrícola nos mesmos lugares e a fixação de povoações que podiam resistir eficazmente aos ataques muçulmanos” Matoso. Por tal, a Ordem do Templo tinha em Portugal inúmeros privilégios, assim como lhe foram doados para defender e consolidar amplos senhorios nas áreas conquistadas.
A história que pretendemos narrar, começou depois de 1291, após a queda de Acre, o último reduto cristão na Palestina, tendo por isso a Ordem do Templo abandonado o Próximo Oriente. A sua sede passou para o Chipre e o Rei Filipe IV de França convidou o Grão-Mestre da Ordem, Jacques de Molay, a instalar-se próximo de Paris, para onde foi levado o espólio templário.
Quando os Cavaleiros Templários, de alto valor militar, regressaram aos seus países de origem, tornaram-se uma fonte de preocupação para esses monarcas. Também a Ordem, para além de ter importantes fortalezas por toda a Europa, possuía muitas riquezas, fazendo empréstimos aos senhores de terra e aos monarcas europeus nas frequentes crises financeiras que sofriam. Por tudo isso, a Ordem do Templo estava em condições de vir a ser perigosa para a organização social da época. De salientar que o Rei Filipe IV (1285-1314), o Belo, era um dos muitos devedores insolventes da Ordem e pretendia, além disso, apoderar-se dos seus bens. Assim, num acordo secreto com Clemente, ainda este não era Papa, o rei planeou extinguir a Ordem do Templo, pois com as finanças reais muito em baixo, não conseguia pagar o grande empréstimo de dinheiro que os Templários lhe tinham feito, estando o prazo a terminar. Por interesses estratégicos, o Papa francês Clemente V foi coroado em Lyon a 5 de Junho de 1305, deixando-se ficar em França por não ter apoio em Roma e em 1309 instalou-se em Avignon, controlando assim Filipe IV a Cúria romana.
Decidido a suprimir a Ordem do Templo, o rei de França inventou e empolou uma série de crimes, como idolatria, blasfémia e sodomia, fazendo com eles uma acusação ao Papa. Assim, no dia 13 de Outubro de 1307, com um mandato da Inquisição apareceu à mesma hora a polícia real em todas as sedes da Ordem e em nome do Rei Filipe IV e do Papa Clemente V prenderam os Cavaleiros do Templo franceses. Perto de dois mil Templários foram sujeitos à tortura, tendo muitos morrido e outros terminado na fogueira.
Em 22 de Novembro de 1308, o Papa enviou por carta uma Bula a todos os reis e príncipes europeus, ordenando a prisão dos Templários e o confiscar dos seus bens, assim como estes fossem julgados por um tribunal provincial. Dessas inquirições, todas as comissões se manifestaram a favor da inocência e apenas a francesa os acusou. Mas no Concílio de Vienne (1312) em França, Filipe IV obrigou o Papa a abolir a Ordem.
Com a extinção da Ordem do Templo em 3 de Abril de 1312, muitos dos seus bens em toda a Europa foram para a Ordem dos Hospitalários e outro clero. Em Itália, em Nápoles e Piemonte foram perseguidos, na Sicília absolvidos. Na Alemanha fundaram a Ordem dos Cavaleiros Teutónicos, sendo os bens também distribuídos aos senhores feudais. Na Inglaterra foram absolvidos e os bens ficaram para a Coroa.
A 18 de Março de 1314, o Grão-Mestre dos Templários após a leitura pública que o acusava a ele e aos da Ordem de “blasfémia e heresia”, lançou, já envolto em chamas, ao Rei e ao Papa a sentença de comparecerem, com ele, dentro de um ano, perante o Tribunal divino. O Papa Clemente V morreu no mês seguinte e o Rei Filipe IV em Novembro desse mesmo ano.

A criação da Ordem de Cristo

Com uma sequência diferente José Matoso refere: “Em 1307, as acusações suscitadas por Filipe, o Belo, contra os seus membros levaram Clemente V a mandar celebrar na Hispânia um concílio que averiguasse as suas responsabilidades efectivas. Os padres reunidos em Salamanca (…) concluíram pela sua inocência. Apesar disso, o papa mandou sequestrar os seus bens na Península, e alguns eclesiásticos, como os Cónegos Regentes de Santa Cruz e o bispo da Guarda, quiseram apoderar-se deles. O rei não consentiu (1308), mas depois instaurou um processo judicial com o objectivo de os incorporar na coroa, obtendo sentença favorável em 1310. Neste mesmo ano reuniu-se novo concílio em Medina del Campo, e a seguir um outro em Salamanca, tendo este a presença de prelados portugueses”.
Assim, em Portugal no dia 27 de Novembro de 1309 todos os bens reverteram para a Coroa. O clero reclamava um dote para si e então, D. Dinis, aliando-se com Fernando IV de Castela, fez a Convenção de Salamanca, em Janeiro de 1310, na qual mais tarde o Reino de Aragão entrou, para conseguirem manter os bens da Ordem dos Templários na Coroa, ainda que o Papa ordenasse o contrário. Já no Concílio de Vienne (1312) o pontífice permitia que os domínios da Ordem na Hispânia não tivessem que ser entregues aos Hospitalários. Isabel Morgado Silva refere: D. Dinis, “mais preocupado com a aplicação dos bens templários existentes no seu território a favor de uma entidade não nacional, a Ordem do Hospital do que com o próprio processo desencadeado contra a Ordem de Templo, fundamenta a necessidade da criação de uma milícia – à qual seriam entregues os bens do Templo – na guerra santa e justa.” “Manobra de grande habilidade político-diplomática”.
Dante, na Divina Comédia, escrita entre 1302 e 1321, condenou os reis da Península Ibérica por estes se terem apoderado e tomado para si os bens da Ordem. Mas o que Dante desconheceu foi o trabalho de D. Dinis na transposição do legado dos Templários para a nova Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo formada em 1315 e institucionalizada a 14 de Março de 1319 pela bula Ad ea quibus do Papa João XXII, “atribuindo-lhe a regra de Calatrava, sujeitando-a à jurisdição espiritual do abade de Alcobaça e colocando a sua sede em Castro Marim. Em Novembro desse mesmo ano, foi eleito o primeiro mestre e em 1321 foram aprovados os primeiros estatutos. O rei seguia, assim, o exemplo do de Aragão, que, com o património dos templários valencianos, criou a Ordem de Montesa, embora entregasse o restante do património aragonês aos Hospitalários. O rei de Castela incorporou na coroa a maioria dos domínios dos extintos cavaleiros do Templo. Como se vê, D. Dinis seguiu em todos estes passos uma política de nacionalização extremamente coerente e de tal modo determinada que se pode considerar como precursora de processos de concentração das forças políticas nacionais usados depois pelas monarquias da segunda metade do século XV”, José Matoso.
Entre 1319 e Fevereiro de 1324 ocorreu em Portugal uma intermitente guerra civil, muito devido à revolta do Infante D. Afonso (o futuro Rei Afonso IV) contra o seu pai D. Dinis, pois considerava estar a ser preterido na sucessão do trono pelo irmão bastardo D. Afonso Sanches. Como D. Dinis durante todo o seu reinado tinha combatido o partido senhorial da alta nobreza, esta juntou-se a D. Afonso, acabando o rei por ceder a várias das suas exigências.
Com a morte de D. Dinis em 1325, sucedeu-lhe o filho como Rei D. Afonso IV (1291-1357), que reinou de 1325 a 1357 com o cognome O Bravo.

23 Out 2015

Fios de seda, linhas da mão

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]avia um roupão de seda preta. Cetim. Longo e fluido com um líquido suave e tépido. Que se colava ao corpo, escorrendo fresco e quente. Fresco quando estava quente. E cálido quando soprava uma aragem já fresca. Como a primeira pele sem outra. Seda antiga. De muitos anos.
Ele não podia ir-se embora zangado com o seu corpo, zangado com os seus lábios. Zangado com o seu amor. Tocado de uma zanga maior que o momento. Com algo que era outra coisa.
Ela viu-se subitamente descalça, envolta no roupão de seda negra, com os pés inadvertidos e imprevidentemente indiferentes, nas pedras escuras da rua. Escura, silenciosa, muda como ela. De corpo e alma. Porque ele não podia ir-se embora zangado. E ficar a ver da janela a fúria a apequenar-se rua fora. Por isso correu sem pensar em mais nada do que isso. Mas a rua estendia-se para ambos os lados, vazia. Mais vazia do que em qualquer noite em que ele não a tivesse percorrido. E agora, como se se tivesse evaporado à saída da porta. Mergulhando na inexistência impossível. Por haver ausência. E esta se opor àquela.
Tudo da seda para o interior era exposto em sangue, vísceras, carne e osso. O teatro anatómico que ninguém viu.
Ainda correu no sentido do trânsito. Talvez para lá da esquina o vulto escuro em fuga. Não voltou a vê-lo. Foi assim.
Ele virou-se com uma agitação adormecida e quase convulsiva, desarrumando mais os lençóis da cama. Uma mão pesada caiu-lhe sobre o peito. A sua, na reviravolta abrupta. Acordou alagado. Um curto pânico que logo se resumiu a uma angústia indefinida. A cama larga sem obstáculos para ambos os lados. Ninguém, como na rua ainda agora. Pensou em telefonar para ouvir simplesmente a voz que não estava lá. Talvez uma sonata de piano irreconhecível em fundo. Pelo menos. A voz de quem não sabia quem era. Ele. Não sabia. De quem era. A voz. Muda, com piano por trás. Nem o número para ligar de volta. A voz inaudível que lhe dizia: -Sabes quem eu sou. 25
Ela esperou que adormecesse e voltou. Instalou-se de novo a vê-lo partir no sono. Voltou a vê-lo doridamente partir no sonho dele. Sentada de lado. Virando-lhe as costas para sentir. Agora lentamente e de novo, desaparecer no ar. Inconsolável minuto sólido, gelado. Fim do tempo.
Ele acordou caído com estrondo de costas na cama. Uma espécie de explosão no interior do crânio, ou então o fim do mundo. E o impacto violento de todo o corpo como uma prancha vinda de cima e abalando fortemente a cama no impacto. Com cem vezes o seu peso, e cem vezes cem segundos passaram até a respiração voltar ao ritmo normal. Uma ténue figurinha, ou talvez só o resto de uma forma fluida a negro, ainda por uma fracção ínfima de segundo, deslizou-lhe dos olhos para o interior das paredes. Ou outra coisa qualquer. E de novo acordou nessa mesma sensação de ansiedade, nervosismo e desapontamento, embalado pelo motor do carro, noite fora, ainda longe de chegar. Ao lado ela olhava-o. “Olha para o caminho.” Disse. Ou talvez tenha sido: “Olha por onde vais…”. E ela tenha dito: “Sei para onde vou, sei de onde venho” Agora. Ou então: “Olho para ti e é como olhar para a frente e olhar para trás. Olhar para ti agora.” E vê-lo fechar irreprimivelmente os olhos de novo. Caído mansamente num sono de sonhos. Agitados aí. Virar-se na cama sem tréguas. Na cama vazia. Revolver a roupa até não restar mais nada a que se agarrar sobre o corpo. Um campo de batalha. Ela, que compõe os lençóis entre sonhos. Que mesmo aí pressente e verifica a ordem geométrica e rigorosa da dobra do lençol. Que arruma as roupas de cada vez que se vira.
Vira-se de lado, fecha os olhos e respira fundo. Espera que venha sonhá-la. Quando adormecer um sono de valeriana, um sono de camomila. Tília. Um sono de roseiras bravas. Pequeninas, de um branco rosado manchado e muitos espinhos quase invisíveis. Eram roseiras. E ele pensara que com as unhas lhe arranhara o peito. E ficou zangado para sempre. E acordou de novo alagado em suor e inquietação. Zangado. Mas o problema não eram os espinhos. Eram as rosas.
Ela percorre as ruelas que ladeiam os canais. Pequenos túneis que afastam os passos momentaneamente dos brilhos insalubres da laguna, e os voltam a aproximar inevitavelmente. O som cavo dos saltos nas pedras largas e incertas, por vezes a soar a oco. Uma porta estreita. Uma escada empinada. E o quarto. Ferver ervas num pequeno fogão ao canto. Acreditar, talvez, que lhe hão-de trazer algum entorpecimento. Suficiente se os pensamentos serenarem. Da janela olha fixamente as águas escuras e espessas àquela hora. Amanhã Tintoretto na Academia. Uma emoção rara por dia é mesmo assim quase demais. E uma noite de cada vez.
Cento e dezoito ilhas, cento e sessenta canais e mais de quatrocentas pontes são dados suficientes para desenhar uma carta, mas nunca o mapa dos sentidos. Menos ainda das emoções. Esse exige uma cartografia própria em cinzas e sonoridades cavas. Em ocres deslavados e rosas velhos aclarados pela poluição, e mesmo a do sentir tóxico. Uma cidade de uma beleza que rescende de reminiscências doentias de ausências e impossibilidades. Que pode até exalar aromas fétidos dependendo das marés. Porque de tão inebriante e onírica, só serve de cenário aos sonhos mais utópicos e paradigmáticos. Nada a menos do que isso. Ir a Veneza, mesmo que seja para chorar já é semear nas pedras antigas mais voragem de memórias. Cada canal percorrido ladeado a passos acariciantes, é como uma linha da mão. Um destino cumprido e traçado no desenho da laguna. Uma ideia que fica como uma camada ténue a somar a todas as que se pressente formarem a textura quase orgânica. Esta no mar ali ao lado e este no seu maior interior. Ser um mar interior a continentes deve ultrapassar em muito a beleza do azul que o define e atirar para um interior incorporal. Um mar interior também nela.
Sim. Voltar a Veneza sempre que se perdeu a vontade de sonhar. Como um reencontro em dois. Mesmo para ver partir alguém e muito mais para esperar. Dali do coração da europa. E o reencontro é caro de um preço semelhante ao que os antigos se dispunham a pagar pelo segredo da seda. Na sua rota desde muitos séculos atrás. A rota continental do norte, dos confins da Ásia, no mundo antigo. E, por onde entrou a magia da seda entra a magia do sonho. Feitos ambos de fios paradoxais. Finos, ténues, versáteis, luminosos, fortes e adaptáveis. Há qualquer coisa em comum, de líquido, nas cidades que se prestam ao sonho. Qualquer coisa de seminal, vivo. Que segrega como fluidos orgânicos, murmúrios e segredos quase palpáveis. Teias e padrões de séculos ou de instantes. O tempo em retrocesso, voluptuoso, luxurioso. Há tanto tempo que sonha ir sonhá-lo, a sonhá-la em Veneza. Isso nunca aconteceu. Fora do espaço que reserva a isso.
A seda é uma outra pele. Uma construção. Que aquece na sua exacta medida. Suficiente ou insuficiente. Com limites. Mas aquém deles é de um enorme poder sugestivo. Ao tacto. De um inefável conforto, quase consolo. Quase carícia.
Ele inclina-se com uma pequena guinada do volante e apanha o lenço que caiu. Seda de um amarelo saturado. E foi quando ela fez o gesto a pedi-lo que ele reparou nas estranhas linhas que lhe cruzavam a mão como um mapa. Como se o lenço fosse pretexto. Visão fugaz que não teve tempo de processar nem pediu para rever. Não ia entendê-las, de qualquer modo. Mas eram talvez o único chão possível. O mapa do chão. O tempo diria. Alguém disse: “Se chegares a onde vais não vais querer voltar aonde partiste. Se partires do sítio exacto chegas aonde vais sem erro e sem remição. Vai simplesmente, e retorna ao ponto de partida próprio todos os dias para voltares a partir de um lugar diferente. E chegas, se chegares com a coragem de quem não tem certezas. Chegas e partes. É o mesmo lugar. O tempo um círculo perfeito.” Leu nas entrelinhas da mão que se lhe expõe e foi suficiente. Mas era a mão dela. De linhas estranhas. Discretamente olhou a sua e caiu na sonolência boa que o embalo do rolar na estrada lhe insinuava nos olhos pesados, nos músculos cansados e na alma exausta de dilemas insolúveis. Mas de novo aquele roupão de cetim preto acusatório e sem permissão de tréguas.
Olha-o por detrás do espelho retrovisor. Do lado de cá do espelho. Reflectido no vidro. Na água. No copo onde bebe. E será sempre assim mesmo que o não diga. As pessoas não gostam de ser observadas.
Afasta-se da janela mas retorna irresoluta. De novo mergulha nas águas estreitas e misteriosas. Não sabe o que fazer ao tempo. A esta hora, o comboio em que viaja já chegou talvez a Trieste.

23 Out 2015

A propósito de alguns filmes africanos II

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stas linhas continuam umas que se dispensaram a semana passada sobre alguns filmes africanos francófonos. Falou-se de alguns filmes de Ousmane Sembene e de alguns filmes africanos dos anos 80 que recolheram, à altura, merecido favor internacional.
Filmes como Yeelen e Yaaba ajudaram a fixar uma imagem rural e tribal do cinema africano. Vários filmes senegaleses dos anos 60 e 70 ajudam-nos a perceber, através das suas sedutoras histórias urbanas, que, felizmente, nem sempre assim é.
Eu gosto particularmente de um filme senegalês de 1973, Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty. Nele encontramos, como em Xala (de Ousmane Sembene) o à-vontade de quem sabe, com impecável segurança, demonstrar uma forte crítica ao modo de funcionamento do país e a situações pessoais através de um tom sarcástico e superficialmente despreocupado.
Apenas um nível elevado de sofisticação satírica permite esta adequação de um tom humorístico e auto-crítico a este tipo de matérias. O distanciamento irónico de Touki Bouki não é muito diferente do que Ousmane usa com habilidade em Xala e Mandabi e afasta-se da imagem tribal e rural que se veio a associar ao cinema africano.
A trama é simples. Um casal tenta reunir dinheiro para poder emigrar para Paris. É impossível não estender a Mory e Anta, os arrogantes heróis desta história, todo o nosso apoio e simpatia. Assim como Xala, este é um filme urbano e gingão, excelente exemplo de como o cinema africano desta altura não merece o paternalismo e a condescendência com que foi tratado quando, nos anos 80, se tornou mais conhecido. Apetece pensar que quem viu este cinema não conhecia o que se passara nos anos 60 e 70.
Mais ousado narrativamente é o curto (56 min.) Badou Boy (bad boy), de 1970, também de Djibril Diop Mambéty. O genérico não engana, estamos perante um objecto do tempo, uma espécie de documentário/ficção nouvelle vague onde o protagonista é um rapaz de rua em fuga de um polícia obeso e bonacheirão. Estamos igualmente longe de uma história lamechas sobre um rapazinho pobre, o tom é agressivo, urbano e cool.
Outra metragem curta de Mambéty é a comovente La Petite Vendeuse de Soleil, de 1999, o seu último filme, pouco mais de 40 minutos de retrato de um cidade confusa e cheia de animação e sol. A mistura das linhas urbanas de cor e de som de La Petite Vendeuse de Soleil, agressiva, serve de lição a algum cinema de boas intenções mas murcho que hoje se pratica.
Sili, a rapariga que protagoniza a história, comove e causa afecto. É parecido, no seu programa, com Badou Boy, e excita no espectador não a pena mas uma admiração firme e combativa. Trata-se assim de uma história que rejeita a imobilização resultante da mera compaixão mas que promove, ao invés, um impulso criativo activo.
Sili é uma pequena pedinte, aleijada, de cerca de 10 anos, que é hostilizada por um grupo de rapazes que vendem jornais. Sili impõe-se dedicando-se corajosamente à mesma actividade que eles. La Petite Vendeuse de Soleil (Soleil é o nome do jornal) causa uma disposição activa e revolucionária.
O realizador maliano Abderrahmane Sissako realizou 2 filmes, respectivamente de 2006 e 2014, Bamako e Timbuktu, que interessam a estas linhas porque são exemplos de dois filmes africanos que alcançaram reconhecimento internacional recentemente. Pode-se dizer-se sem grande erro – continuando um propósito mais bondoso que académico – que ver os filmes dos dois realizadores senegaleses aqui admirados, Ousmane Sembene e Djibril Diop Mambéty, dos dois malianos Abderrahmane Sissako* e Souleymane Cissé e do burquinense Idrissa Ouedraogo, constitui uma introdução fértil ao pouco conhecido cinema africano.**
Bamako é uma engenhosa encenação. Um filme genial na construção que se atinge, de um discurso em que paralelamente se faz desfilar um conjunto de acções e magníficos rostos locais e um tribunal contra o sistema que perpetua no Mali, e em África em geral, a fome, a pobreza e a corrupção. Os culpados são o F.M.I., o Banco Mundial, a Dívida e George Bush, mas também a administração local. É uma queixa exemplar, cujo grito se compõe tanto dos argumentos apresentados em tribunal como de gestos do quotidiano. O engenho consiste na forma como se fundem.
Os medos ocidentais da emigração e do terrorismo e a morte e exploração de inocentes são também temas deste tribunal. Bamako causa uma disposição ousada e excitante.
Timbuktu está muito bem embrulhado, as paisagens são bonitas (na Mauritânea?) e a indignação que se pretende promover cresce sem grandes violências mas com firmeza. No entanto, não mostra uma construção surpreendente, como acontece com Bamako e é, assim, mais esquecível.
Elogie-se a recusa de cair na tentação de estender a apresentação do absurdo a um nível que entre em choque com o tom suave do filme.
Permanece em Timbuktu (penso em Bamako) uma sensibilidade aguda no retrato das emoções e das acções simples do quotidiano, mas confesse-se que, conhecendo Bamako, esperava um filme mais ousado e mais surpreendente e não um que se pode fundir num gosto internacional giro. Estou certo que são muito os defensores deste filme bondoso e de ousadias tonais. Timbuktu causa uma disposição contemplativa e amolecida, longe da combatividade que Bamako promove.

* Abderrahmane Sissako nasceu na Mauritânia e emigrou cedo para o Mali. Vive em França. O filme, Timbuktu, é considerado mauritâneo.

** O autor destas linhas não desconhece o fenómeno Nollywood mas sobre ele não sabe discorrer. A Nigéria é, depois da Índia, o segundo produtor mundial de filmes.

21 Out 2015

Por cima do hábito, a armadura

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]oi com a ajuda das Ordens religiosas e militares, tanto internacionais, como originárias da Península Ibérica, que os primeiros reis da primeira dinastia portuguesa, a Afonsina, conseguiram a conquista do seu território.
Com o sucesso da pregação de Maomé, que veiculava a ideia da conquista guerreira ao serviço da fé, após a morte do profeta em 632, rapidamente os exércitos do Islão se expandiram e em menos de um século os seus domínios iam da Península Ibérica à Índia. Jerusalém, a cidade santa para judeus e cristãos, foi tomada pelos árabes logo em 638 e os peregrinos cristãos, que desde o século II aí visitavam o Santo Sepulcro, vêem-se impedidos de lá chegar. Em Damasco, tomada aos bizantinos em 636, foi fundada a dinastia dos Omíadas em 661 e o seu exército varreu em guerra santa do Mediterrâneo Oriental à costa do Norte de África, entrando na Península Ibérica em 711, onde encontrou o reino visigótico em conflitos internos. Por isso, foi fácil ao chefe berbere Tariq avançar e em três anos conquistar quase toda a Península. Em 719 estavam já os muçulmanos instalados no território franco, em Narbona e só na Batalha de Poitiers, em 732, o avanço desse exército árabe e berbere foi interrompido por Carlos Martel. Recuaram então os árabes, ficando a ocupar quase toda a Península Ibérica, com excepção do pequeno reino cristão das Astúrias, na Cantábria.
Por essa altura, em Damasco desenrolava-se o conflito entre os Omíadas e os Abássidas e com o triunfo em 750 desta última dinastia, o príncipe omíada destronado, Abderraman (Abd al-Rahman) refugiou-se na parte mais Ocidental do seu antigo território. Nascia assim em 756, mas ainda dependente de Damasco, o emirado de al-Andalus na Península Ibérica, para onde o emir trouxe a organização política do califado sírio, fazendo a sua capital em Córdova. Foi uma época de paz na Península Ibérica, em que a maior parte dos seus habitantes se converteu ao Islão, possibilitando assim um esplendor cultural sem precedentes. No ano de 929 tornou-se o Califado de Córdova independente de Damasco e por volta do ano 1000 era já um poderoso Estado militar que se estendia até ao Magrebe, sendo Córdova o centro espiritual, económico e cultural da Península Ibérica. Mas nos trinta anos seguintes, o Califado entrou em guerra civil, até que em 1031 se desmembrou e as poderosas cidades de al-Andalus tornaram-se independentes, formando os pequenos reinos de taifas, sendo os mais poderosos os de Sevilha, Granada e Saragoça. Estes reinos muçulmanos não se importavam de se ligar com os cristãos para se guerrearem entre si e desunidos, perderem muito do poder, sendo importantes cidades tomadas pelos cristãos. O alerta chegou quando os castelhanos lhes reconquistaram Toledo em 1085. Os almorávidas (1056-1147), reformadores berberes provenientes de onde hoje é a Mauritânia, começaram por dominar o Norte de África e três anos depois, atravessavam o Estreito e conquistaram aos taifas, quase sem resistência, as cidades de Granada, Córdova, Sevilha, Badajoz, Valência e Saragoça. Ficava al-Andalus integrada de 1089 a 1145 no Império africano dos almorávidas, com a capital em Marraquexe. Daí partiam grandes e ferozes exércitos muçulmanos para em guerra santa combater os reinos cristãos da Península Ibérica, que passaram a contar com a ajuda das ordens militares criadas em Jerusalém. Entraram os almorávidas em decadência e foram substituídos pela dinastia dos Almóadas (1145-1230), também provenientes do Norte de África, que fortificaram as suas praças na al-Andalus, fazendo de Sevilha o seu centro. Não fosse o pequeno reino nasrides de Granada, Estado vassalo de Castela e que se perpetuou entre 1230 a 1492, teria a história dos muçulmanos da Península Ibérica terminado quase três séculos antes.

As Cruzadas

Na Europa do século XI, o Papa passou a ter um papel fundamental nas investiduras das lideranças temporais dos países e organizou as Cruzadas com o objectivo de reconquistar e defender a Terra Santa. A primeira Cruzada foi proclamada pelo Papa Urbano II no Concílio de Clermont em 1095, após o Império Bizantino ter sido repelido em 1071 para Ocidente da Ásia Menor e o imperador feito prisioneiro, ficando assim a Igreja do Oriente ameaçada pelos turcos Seldjúcidas. Nessa Cruzada foi Jerusalém reconquistada em 1099, sendo então fundado o reino latino de Jerusalém, aproveitando-se os confrontos na Síria entre os fatimitas e os Seljúcidas mas, com a fundação da dinastia Aiúbidas (1169-1260) por Saladino, este retomou em 1187 a Cidade Santa.
As duas primeiras ordens militares que chegaram a Portugal, os Templários e os Hospitalários, tinham sido criadas na Palestina para defenderem os peregrinos cristãos durante as suas visitas ao Santo Sepulcro em Jerusalém, na Terra Santa, a qual se encontrava nos domínios dos maometanos. Por essa altura a Península Ibérica albergava reinos governados por partidários de Maomé e por isso, era também necessária aí a ajuda para a Reconquista cristã.
“A difusão das ordens militares em Portugal contribuiu seriamente para a estruturação mais firme da nobreza. Porque lhe forneceram um modelo de vida militar profissionalizada e inspirada por um ideal, porque se tornaram uma das formas mais fáceis e mais directas de absorver os excedentes demográficos da nobreza, desde o momento em que esta começou a adoptar esquemas linhagísticos, porque foram rapidamente utilizadas pelo rei para a defesa eficaz da fronteira meridional e mantinham, portanto, uma relação com o poder político que se podia articular facilmente com aquela que a nobreza mantinha também com a corte. Apesar de penetrarem muito cedo no nosso país, o seu sucesso nos meios aristocráticos não foi rápido nem fácil. Em primeiro lugar, porque as próprias ordens de origem estrangeira, criadas em função da guerra santa na Palestina não estavam, nessa altura, muito interessadas na cruzada peninsular. Em segundo lugar, porque, ao entusiasmo de D. Teresa, dos magnates portugueses e do infante D. Afonso, para com os Templários e Hospitalários, não corresponderam da parte deles resultados visíveis, do ponto de vista militar”, como escreve José Matoso. Assim o recrutar combatentes para ir em auxílio dos cristãos de rito latino que se tinham conseguido fixar na Terra Santa, permitia “canalizar para fora da Cristandade a agressividade dos cavaleiros sem herança, excitando-lhe, ao mesmo tempo, os sentimentos da própria identidade religiosa, deviam ter propósitos mais acentuadamente políticos.”
Os Templários, ordem exclusivamente militar, foram constituídos em 1119 por Hugo de Payens, Godofredo de Saint-Omer e mais sete cavaleiros franceses, após fazerem os votos de pobreza, castidade, obediência e o de proteger os peregrinos que a Jerusalém se dirigiam. Obtiveram aprovação em 1128 no Concílio de Troyes, recebendo a regra de Cister e ficaram instalados no local do antigo Templo de Salomão, que o rei Balduíno II lhes cedeu e por tal, ficaram conhecidos por Cavaleiros do Templo.
Em Portugal, os Cavaleiros Templários apareceram talvez ainda antes da doação que a Condessa Dona Teresa lhes fez em Março de 1128 da vila de Soure e das terras entre Coimbra e Leiria. Mas mostraram-se pouco empenhados na defesa da fronteira como demonstra a derrota que sofreram em 1144 junto a Soure.
A Ordem dos Hospitalários foi criada em Jerusalém, anos depois de um hospital destinado aos peregrinos ter aí sido edificado em meados do século XI e onde mais tarde passou a existir a Congregação de São João Baptista, ou Ordem do Hospital, aprovada em 1113 pelo Papa Pascoal II. O fundador foi Gerard de Martigues e o seu sucessor, Raimundo de Puy, “alargou-lhe o âmbito com a imposição de serviços de carácter militar. Assim nasceu e se desenvolveu a Ordem dos Hospitalários, ou Cavaleiros de São João de Jerusalém, confirmada em 1184 pelo pontífice Lúcio III”, como refere João Amaral. Vindos de Castela, os primeiros Hospitalários, segundo José Matoso, “apesar da doação do rico mosteiro beneditino de Leça do Balio, provavelmente no ano de 1128, das aquisições que a mesma Ordem fez entre nós ainda antes de 1132, e até dos privilégios que Afonso Henriques lhes concedeu em 1140, não consta que os cavaleiros de S. João tivessem sequer tentado constituir uma milícia e colaborar eficazmente na Reconquista, antes de 1147.” D. Afonso Henriques foi ajudado pelos cruzados ingleses na conquista de Lisboa em 1147.

Ordens militares da Península Ibérica

Em 1170 apareceram em Portugal as Ordens de Calatrava e de Santiago, estas originárias da Península Ibérica. A Ordem de Santiago foi fundada em 1170 por Pedro Fernandez e recebeu a regra de Santo Agostinho. “Entrou logo em Portugal, datando de Junho de 1172 a primeira doação que Afonso Henriques lhe fez, da Arruda dos Vinhos, na Estremadura. Palmela, por cujo nome viria a ser conhecida, foi-lhe doada em 1186”, segundo Oliveira Marques.
O Rei D. Afonso II (1211-1223), cujo cognome é o Gordo, usou a estratégia de proteger as fronteiras entregando os domínios conquistados às ordens militares para assegurarem a sua defesa e como base para investidas. Com a linha do Tejo como fronteira segura, em 1211 o Rei D. Afonso II doou Avis no Alentejo aos frades de Évora da Ordem de Calatrava com o dever de construírem um castelo. Aí o mestre D. Fernando Enes começou a construção do mosteiro fortificado, que anos depois se tornou sede da Ordem de Avis, no tempo do mestre D. Fernão Rodrigues Monteiro. Devido aos avanços no Alentejo, os freires de Évora da Ordem de Calatrava ficaram com um domínio de grande importância, mudando por isso para a Ordem de Avis. No entanto, desconhecesse a data da criação da Ordem de Avis que, no reinado de D. Afonso Henriques, existia como associação conhecida pelo nome de Freire de Évora, e sabe-se que se integravam na Ordem da Calatrava, existente em Castela, que ficou com o direito de visitar a ordem portuguesa. A independência da Ordem de Avis em relação a Calatrava deve ter-se consumado só no reinado de D. João I.
A Ordem religiosa e militar espanhola de Calatrava surgira na Nova Castela, em 1158 para combater os mouros. Substituiu os Templários pois, devido à posição arriscada no final do ano de 1157, estes tinham abandonado o Castelo de Calatrava sobre o Rio Guadiana, que lhes fora confiado por volta de 1150 pelo Rei de Castela Afonso VII para o defenderem. Em 1164, o Papa confirmou a Ordem de Calatrava e por isso, muitos cavaleiros e monges rapidamente engrossaram o seu número. A posição de Badajoz superintendia militarmente em todo o território ocidental de al Andaluz e daí “partiam incursões que podiam penetrar no vale do Tejo e ameaçar as praças conquistadas por Afonso Henriques.” E continuando com José Matoso: “Os propósitos guerreiros dos Almóadas manifestaram-se também pelo facto de em 1175 terem resolvido restaurar Beja, ainda desmantelada depois das incursões de Geraldo, Sem Pavor. Consolidavam assim uma importante posição militar face a Évora. Foi talvez este acontecimento o que levou Afonso Henriques ou Sancho I a incentivarem a fundação em Évora de uma nova ordem militar portuguesa.” “A criação da ordem de Évora inclui-se entre as medidas defensivas que foi necessário tomar contra o recrudescimento da agressividade muçulmana. Foi seu fundador Gonçalo Viegas de Lanhoso…”.
A partir de 1170, os Templários foram reforçados para lá do Tejo pelos cavaleiros de Évora, como acima fizemos referência. Os freires de Évora, ainda não estavam filiados em Calatrava, cujos costumes viriam em breve a adoptar. Já D. Sancho I fez importantes concessões às ordens militares, beneficiando em 1187 os freires de Évora, que viram aumentar ainda mais os seus domínios no reinado de D. Afonso II. Com a entrega da zona de Avis, para onde passou a sede da Ordem dos freires de Évora da Ordem de Calatrava, esta passou a ter o nome de Ordem de Avis. Em 1216, por uma bula do Papa Inocêncio III, este “assegurou ao bispo de Évora a jurisdição sobre todo o território povoado por cristãos entre os limites da sua diocese e os infiéis, o que significa que a ocupação ia avançando em direcção ao Baixo Alentejo, talvez por iniciativa das ordens militares” como refere José Matoso.
As conquistas de Aljustrel em 1234, Mértola em 1238, Cacela em 1239, Tavira e Paderne em 1242, foram realizadas pela Ordem de Sant’Iago, sob a chefia de Paio Peres Correia.
Segundo refere Oliveira Marques, se as grandes doações territoriais começaram logo no tempo de D. Teresa e D. Afonso Henriques, só com D. Sancho II o património das várias ordens ficou definitivamente constituído e consolidado.
Foi no reinado de D. Afonso III (1248-1279) que terminou a conquista de Portugal com a tomada de Faro, Albufeira, Porches e Silves em 1249. Essa expedição ao Algarve, para conquistar as últimas cidades e castelos nas mãos dos mouros, realizou-se muito rapidamente, pois o poder muçulmano estava já muito debilitado.
Ficava assim a zona pré-destinada ao território português toda reconquistada, tendo as Ordens religiosas e militares sido fundamentais para que tal acontecesse. Podiam agora esses cavaleiros, normalmente os filhos que não tinham direito às heranças de família por não serem os primogénitos, despir as armaduras, ficando apenas com o hábito de monges.

16 Out 2015

Anima-Mundi

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odos os meses existem teorias de fim do mundo, fim disto e daquilo, fim de sistemas, de certezas, de amores. Estamos rodeados de projectos finais, ora abruptos, ora subliminares, um metafinal discurso de doutrina milenar que nos desfaz as seguranças existentes e todas as formas convencionais de permanência. Abeirados que estamos de tal condição e numa inexorável marcha de imponderáveis, vamos por sucessivas vitórias da vontade continuando o impensável. Deixámos de chorar, estamos exangues, o presente aparece-nos como a grande eternidade provável, pois que o dia de hoje é sempre aquele que nos anunciam ser o último.
No dia 4 de Outubro assistimos ao fim de uma era, de um tempo, nesta escala pequena de um país, pois que a vaicuidade, a luxúria, a impunidade, a vitalícia governação dos “heróis” do sistema se foram para sempre, ficando, como os fins de mundos, em amanhãs que cantam… O expirar de uma hierarquia que teve fome e sede, não de infinito, mas de estatuto — que a memória da fome é algo que é mais forte que a razão — e fora preciso acelerar a “carroça” da história em bases nativas de cultos a bezerros de ouro.
Os que ganharam a nova alvorada, longe andam dos Messias e dos Sebastiões, temos guardas-livros amestrados para responder à natureza do embate, de tal ordem bem treinados, que só se espera que outro dia nasça e pouco mais, na medida em que o deposto é agora a secreta experiência da autofagia, comum a todos os outros fins; depois de comerem literalmente o espaço exterior preparam-se para a experiência alquímica maior. Quando saciados de tudo, entra-se no processo da – endura – devoramo-nos, cortando os fios com o exterior, alimentando-nos das próprias reservas. É um circuito interno de alta tensão, quando bem aceite, base subtil de clarividência, chama-se «Epoptia Iniciática», a alma enquanto centro da voragem.
Neste grau de “endurance” permanecem os devoradores de um sistema feito para ter sido, em princípio, de todos e mantido como autoabastecimento de um grupo que em vez de ter feito um Estado, exerceu ao longo de anos um “gangsterismo” também de Estado, muito longe das necessidades vitais dos cidadãos. Estamos no grau Luciferino que cortada a corrente de relação com a natureza exterior, agora que expirou, a força ígnea se devora a si própria, um mito de Narciso contemplando o abismo. O poder desagregador opera-se agora na alma, pois que a velocidade em que se pode perde-la, essa anima-mundi está agora bem patente no ciclo que finda.
Aquietamo-nos de uma mordaça, não estamos fortes para lutar, não nos querem mais resistentes que as afirmações permitidas, estamos talvez exangues das sucções dos vampiros moribundos, mas nós temos de continuar, mesmo que nos digam que o mundo acaba hoje e amanhã faço anos e depois morreremos: nós temos o dever de continuar.
Sem o pirótico fogo da voragem ainda há alma nas nossas bagagens e, aos poucos, refazer um mundo que acaba em bases novas, renováveis, vai ser um desafio. Nesta hora o mundo mudandis diz-me que nem nós seremos mais isto…. diz-me que um Homem amanhã será tão raro como uma outra espécie em extinção, e que olhar esse ser – o filho do Homem – será quase uma experiência comovedora. Outros vão ser, que já não somos nós, à nossa imagem e semelhança, melhorados, pois que a vida não anda para trás. O fim do mundo de hoje é mais acelerativo que no tempo de Joaquim de Fiora, temos uma urgência inscrita nas veias, um amor inaguentável, uma vontade cada vez mais amputada….
Portugal é parado, difícil, complexo, desorganizado. Viver num local assim é só para nós. Nós que perifericamente já não temos mar, a Europa se esvai, e o chão está seco… Nós, que não temos filhos e nos tiram os que temos e nos ameaçam ter de trabalhar até ao fim , ao fim dos tempos das nossas vidas. Nós temos de saber, apesar de tudo, continuar.
Sob a égide do términus que fazem os bárbaros às portas da cidade? “Ah! Eles eram a única solução”, dizia Kávafis: hoje, também já não são. Não há soluções, não há quem nos salve das agruras do Tempo mas, mesmo assim, os nossos passos e o nosso corpo pensam coisas novas, saídos da morte dos reinos inglórios. Abram alas, que a anima das coisas quer passar e até ao fim seremos os que encontram soluções.
“Vejo ao fundo um pássaro em fuga… vejo Deus e não sei que é… e penso que é número que me empurra”.
Os que vão nesta viagem, recomecem os ofícios de Sísifo, os voos de Ícaro, nós talvez não consigamos mais que este embate, mas o sonho permanece e, findos os tempos, a alma do mundo torna à casa, no coração das coisas que vivem: e podem ousar da nobreza esquecida olhar o sol mais uma vez, dizendo: Nós os que vamos morrer te saudamos!

16 Out 2015

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]mmanuel Levinas nasceu a 12 de Janeiro de 1906 em Kaunas, na actual Lituânia e faleceu em Paris no dia 25 de Dezembro de 1995. A sua biografia constitui um dos exemplos mais emblemáticos do tipo de intelectual desenraizado e cosmopolita. Sendo etnicamente de origem judaica e tendo nascido na Lituânia acabou a sua vida como cidadão francês de pleno direito, pela cidadania, pela língua e pela cultura. Entretanto na juventude foi um cidadão eslavo e até russo pela cultura, na qual desempenhou imensa importância a obra de Dostoievski, muito citado nas suas obras. Viveu largo período da sua vida na actual Ucrânia e a partir de 1923 fixou-se em Estrasburgo. A partir daí apesar de raides constantes a Friburgo e da profunda influência da filosofia alemã de Husserl e Heidegger, já o faz como intelectual judeu francês e de língua francesa. Coube-lhe a tarefa histórica de ter introduzido em França a Fenomenologia.  Durante a II Guerra Mundial (1939), é capturado e feito prisioneiro pelos alemães. Exilado por cinco anos, não poderá mais esquecer a marca do ódio do homem contra o outro homem deixada pela violência nazi. No cativeiro foi escrita grande parte da sua obra De l’Existence à l’Existant  publicada dois anos após o fim da guerra, em 1947. Durante alguns anos dirigiu a Escola Normal Israelita Oriental de Paris e é durante esse período que publica em 1961 a sua obra nuclear, Totalidade et Infinito. Da sua vasta obra, sendo difícil evidenciar, atrevo-me a fazê-lo: Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl, 1963; De l’évasion. Recherches philosophiques, Fata Morgana, 1982; De l’existence à l’existant, 1947; Le temps et l’autre. 1947; En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger, 1949; Totalité et infini. Essai sur l’extériorité, 1961; Humanisme de l’autre homme, 1972; Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, 1974; Ethique et infini. Dialogues avec Philippe Nemo, 1982; Transcendance et intelligibilité. Suivi d’un entretien, 1984; Altérité et transcendance. 1995. Uma boa parte da sua obra pode ser encontrada em língua portuguesa. levinas1

Transcendência e Exterioridade

Ninguém tem o seu lar/ aqui, além, o único espaço/ é o mundo, o interior do mundo/ que transportamos, passo a passo/ até às raízes silenciosas do céu (…) Helène Dorion (Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão )

“(…) É perverso e injusto o Eu que se fecha à interpelação do «outro-aí» e, pelo contrário, procura assimilá-lo; é violenta e alienante a Totalidade que recusa a priori a irrupção an-árquica do Infinito. Na raiz de tudo isto aparece o egocentrismo, esta propensão tão característica e natural do Eu que o conduz a englobar tudo na sua própria suficiência: << O Mesmo é essencialmente identificação dentro da diversidade ou história, ou sistema. Esta possibilidade que o pensamento tem de compreender tudo e tudo identificar conduziu-o a desejar a morte e a eliminação de tudo o que ameaça a sua auto-satisfação (...)". Guibal, … et combien de dieux nuveaux. Approches contemporaines II. Emmanuel Lévinas. Le visage d'atrui et la trace de Dieu, París, Aubier Montaigne, 1980, p. 85 Totalidade e Infinito de Emanuel Lévinas é um daqueles livros que aparecem de muitos em muitos anos. E constitui provavelmente a maior revolução filosófica da segunda metade do século XX. Com esta obra o filósofo francês de origem judaica e eslava, Emanuel Lévinas, constitui-se numa espécie de anti-Heidegger. Em larga medida Heidegger foi o último filósofo digno desse nome segundo os cânones da História da Filosofia e Lévinas já uma espécie de post-filósofo, no sentido em que pretende arruinar a tradição filosófica que vai de Platão a Heidegger através da desconstrução do conceito de totalidade. Antes dele outros a começar pelo próprio Heidegger visaram esse propósito, mas acabaram por não sair de dentro da gigantesca construção que a filosofia ocidental construiu. Dir-se-ia que a ontologia heideggeriana foi o último reduto dessa tradição, e a frustrada tentativa para lhe pôr termo. Era necessário sair para fora dela radicalmente. Heidegger centrou a sua análise e crítica naquilo que ele designou como a Metafísica do Sujeito, quando o problema não estava nem no conceito de metafísica, nem no conceito de sujeito, mas antes no conceito de autonomia. Se Heidegger criticou os poderes abusivos do Logos, não colocou contudo em causa a ideia de uma autonomia racional e jamais chegou a propor uma inversão radical das categorias do espírito, a razão e a sensibilidade. Ora Lévinas, através do conceito de alteridade, realizou essa inversão ontológica. O que se pretende dizer aqui é aquilo que Simon Plourde disse por outras palavras em 1996 na obra Emmanuel Lévinas. Altérité et responsabilité, Paris, Cerf, página 150: Lévinas conduziu ao seu termo uma saída do conceito e procurou no domínio do sensível o suporte da racionalidade. O problema da alteridade é, portanto, mais assunto do coração que do logos. O conceito central neste livro de Levinas, é o conceito de infinito, que o autor recupera da filosofia de Descartes, pois o pensamento do infinito serve de dois modos uma filosofia da alteridade e da transcendência: o facto da ideia de infinito conter mais do que ela pode conter, o facto de ser uma ideia de algo maior que a sua capacidade de conhecimento e nesse sentido resistente em absoluto ao esforço de redução da consciência no seu trabalho permanente de tematização e reconversão e por outro lado também porque sendo pensamento do absoluto que não pode ser atingido é a única ideia que não se prestando à finitude também não se presta à finalidade. Esta sua falta de finalidade faz dela uma ideia completamente des-inter-essada estabelecendo com a consciência uma relação sem influência sobre o ser e portanto sem subordinação ao jugo tirânico do conatus essendi (a perseveração do ser de que falava Espinosa, ou ao amor de si de que falava S. Tomás) no que é contrária à perspectiva pragmática (no sentido de instrumental, de ao serviço de) do saber e da percepção. O pensamento do infinito é então pela sua desmesura como salienta Lévinas um pensamento que não é mais nem visado, nem visão, nem vontade, nem intenção. É portanto na ideia de infinito e através dela que Lévinas concentra toda a sua defesa relativamente às pretensões totalitárias do pensamento ocidental. Se a razão que reduz o outro é uma apropriação e um poder, o que Nietzsche e Foucault dizem a seu modo, embora de modo diferente sobretudo no plano ético; se todo o pensamento ocidental é através da verdade e da liberdade esta odisseia de trazer ao domínio o que lhe aparece como estranho e diverso, era inevitável que Lévinas procurasse uma ideia absolutamente esquiva à conceptualização e à apropriação; uma ideia em que a liberdade do pensador sobre o qual não pesa nenhum constrangimento não possa agora exprimir-se através de um discurso de verdade. Enfim, um pensamento que pudesse resistir ao processo de imanentização, ou seja, muito simplesmente um pensamento da exterioridade absoluta e que desse modo resistente à imanência se pudesse tornar na ideia onde a transcendência se pudesse resguardar. Se, como se sabe, a filosofia se especializou nesse esforço de redução ao mesmo de tudo aquilo que pelo caminho lhe aparece como outro, então era absolutamente necessária ao pensamento de Lévinas uma ideia que pela sua natureza postergasse ad infinitum essa posse, e mantivesse a relação do mesmo com o outro sem que a transcendência da relação cortasse os laços e sem que ao mesmo tempo desaparecesse num todo. Era portanto necessário que uma ideia não transformasse o eu penso num eu posso. E é ainda com essa preocupação que Lévinas fará do infinito um instrumento fenomenológico mas sempre eminentemente fugidio. Se o infinito ficasse no plano em que o deixou Descartes, ele permaneceria no quadro de uma tradição abstracta da filosofia. Com Lévinas o conceito de infinito tornar-se-á concreto (carne-e-osso) e aparecerá representado no ‘próximo’, ou seja no outro-aí. Mas se no entanto se transformasse em categoria do espírito entraria mais tarde ou mais cedo no acervo de conceitos que pela tematização e pela narrativa destruiriam a transcendência. Daí a opção temerária de manter o infinito no âmbito de uma fenomenologia. E daí a opção pelo rosto. O infinito é rosto, ou melhor, o infinito é o que no rosto momentaneamente interrompe uma fenomenologia (ao tornar-se ausente). O infinito é assim a presença no rosto sempre a ausentar-se e desse modo único a fenomenologia a que se presta é uma fenomenologia da interrupção de uma outra fenomenologia. Esta outra fenomenologia é fácil de perceber, exporia o rosto do outro ao desgaste --- que é o que o dizer sofre, sempre que se converte, pela narrativa, em dito --- e expô-lo-ia ao crime que é no que a totalização se transforma quando deixa de ser um conceito dentro de uma aparentemente neutra ontologia para ocupar o lugar que estava subentendido e portanto lhe estava destinado num pensamento que dilui o indivíduo na totalidade.

15 Out 2015

A propósito de alguns filmes africanos I

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] meu conhecimento do cinema africano é muito escasso. São duas as razões por trás desta falha: o difícil acesso e a pouca informação que existe sobre ele. Confesso que a elas se junta um interesse médio. Tirando Yeelen, de Souleymane Cissé (Mali, 1987) e Yaaba/Avó, de Idrissa Ouedraogo (Burkina Faso, 1989), que passaram no circuito comercial ou em sessões de cinemateca em Portugal (ou terá sido na televisão?), pouco mais cinema africano (com a excepção de filmes egípcios) me lembro de ter visto durante os meus anos de formação. Assim, as considerações que aqui se tecem devem ser recebidas mais como produto de uma súbita curiosidade do que como produto de um conhecimento aturado.
Yaaba é a história da exclusão social de uma velha, Sana, que se torna amiga de um rapaz. É sobre superstição mas contém também apelos à tolerância e à compreensão. O rapaz, Bila, tem um pensamento excêntrico ao que é normal na aldeia – ele é quem tem razão nas questões que excitam o lugarejo e este torna-se um filme amigo, banhado de uma benevolência universal.
Yeelen é um filme do Mali que ganhou fama internacional nos anos 80. Também é uma aventura rural e também se debruça, como Yaaba, sobre feitiçaria. Estes dois filmes ajudaram a fixar uma ideia rural (e étnica gira) sobre o cinema africano – pouco conhecido internacionalmente até à altura – que se tem mantido.
Já aqui se falou longamente sobre o papel que os festivais de cinema têm tido na divulgação de cinematografias menos conhecidas a propósito da indiana e da japonesa. O mesmo se aplica às do Senegal, Burkina Faso e Mali.
La Noire de… (1966), de Ousmane Sembene, foi provavelmente o primeiro filme da África sub-saariana a alcançar alguma fama internacional e será um dos primeiros filmes feitos por um africano (ou o primeiro). É o primeiro filme de Sembene. A administração colonial francesa manteve até tarde uma interdição de fazer filmes a quem não fosse francês e só nos anos 60 se pode falar verdadeiramente de um cinema africano feito por africanos dos países de expressão francesa (por oposição a um cinema sobre África feito por autores ocidentais que mereceu muitas vezes a censura africana).
La Noire de… conta as desventuras de uma rapariga senegalesa enquanto empregada doméstica num país que imaginara belo e acolhedor, a França, mas que acaba por não conhecer por se ver mantida num estado de quase aprisionamento e total objectificação. O filme conta-nos a sua revolta, mostra-nos a sua frustração e interroga-se sobre a identidade de Diouana enquanto servidora.
É um filme seco e agreste, engolidor, filmado num preto e branco frio e rugoso e que deixa o espectador num estado de entorpecimento. Não existe aqui qualquer hesitação de primeira obra, esta é uma pequena (55 minutos) obra prima.
Não será o último filme de Sembene a dar uma importância central ao destino das mulheres – a par das inevitáveis referências à venalidade, ao colonialismo e ao neo-colonialismo (o Senegal tornara-se independente em 1960).
Em Mandabi (1968) Ousmane tece uma história de humor subtil em que a burocracia e a corrupção se exibem com uma calma morna. Ibrahima recebe um dinheiro de França, de um sobrinho, e antes de o poder levantar é assediado por um grupo crescente de ávidos interesseiros. Arranjar a documentação necessária para poder levantar o dinheiro do sobrinho é a grande tarefa do simples e bondoso Ibrahima.
Nesta pequena viagem encontramos a venalidade, a preguiça, o engano, a mendicidade e um sol inclemente. A cada esquina espreita um pequeno ardil para ludibriar o incauto analfabeto. Nem sempre esta técnica – a de estender a crítica a um país através de uma história pessoal quase banal – se alcança com a facilidade com que Ousmane Sembene no-la serve.
Xala (1974), outro filme do mesmo autor senegalense, também conhecido como escritor, conta a história de um casamento de um membro proeminente da Câmara de Comércio senegalesa com a terceira mulher. O tom é o tom seguro de quem sabe perfeitamente o que está a fazer. O humor resultante da sua falha sexual para com a terceira mulher acompanha a crítica da europeização da classe dirigente africana.
Um dos presentes na festa de casamento, um negro senegalês, afirma que já não passa férias em Espanha porque há muitos negros. O modo como as mulheres escolhem vestir-se, tradicionalmente ou à europeia, indica, como no cinema japonês e indiano foi marca muito útil, gostos pessoais que mostram a tensão entre o modelo europeu e o modelo local e entre o desejo de afirmação nacional (ou continental) pós-colonialista e a incontornável sedução da europeização.
Hadji, o noivo, recusa-se (como recusara outras pequenas sugestões de amigos) a vestir um kaftan e a praticar um ritual tradicional propiciatório de um bom desempenho sexual. As mulheres não deixam de o culpar por não ter aceite praticá-lo. “Vocês têm todos a mania que são europeus” – diz uma delas.
Na altura da consumação do terceiro casamento Hadji falha e não há como negar o problema: Hadji tem a xala – é necessário consultar um marabout.
Paralelamente à história de Hadji, uma em que as mulheres, muito menos submissas do que de início se poderia pensar, têm uma importância nuclear, mostra-se a corrupção e a prepotência da classe dirigente que – num caso particular, quase cómico – lava o seu Mercedes com Evian. A impotência de Hadji é a impotência do Senegal do pós-colonialismo em constituir-se como uma nação de progresso e transparência 14 anos depois da independência.
Como continuaremos a ver na próxima semana, ao falar de Djibril Diop Mambéty, estes são filmes urbanos e sofisticados, longe da impressão rural e paisagística séria que se criou posteriormente a propósito do cinema africano.

(continua)

13 Out 2015

Barca Bela

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Romantismo não foi entre nós o mais expressivo momento mas, sem dúvida, deixou alguns brilhantes testemunhos, tanto assim que sem ele teríamos perdido muita memória genética da tradição literária portuguesa. O confessionalismo não faz dele um instante “piegas” como muitos acharam, nem o reviver dos gostos medievais um obscurantismo enevoado. Ele foi bastante colorido, pleno de acção, intrépido e revolucionário. Vem da educação arcádica cuja linguagem escrita teve o mérito de se aproximar sempre da linguagem falada do seu tempo. Depois, o conto, as novelas, o romance histórico, conferem-lhe graça e o desligar dos enfadonhos tratados.
Falar desta corrente é, como bem se entende logo à partida, falar de Almeida Garrett, que o tempo do início do Outono faz de forma natural assemelhar-se logo às «Viagens na Minha Terra», num deslizar suave por entre os vales… O romantismo sem ultra, o maduro, o das alucinações visuais, das cores e dos sons, mas é nas «Folhas Caídas», agora de Outubro, que a representação do lirismo português abre portas ao entendimento: há tanto nos interstícios das palavras!
– Pescador da Barca Bela onde vais pescar com ela que é tão bela ó pescador? – Quanto pesa uma alma? Vinte e um gramas, dizem, vinte e um séculos para vinte e um gramas romando numa Barca bela! Ela.
Mas quem é afinal este “ela” que surge e fala com o poeta? A alma. O poeta dirige-se assim à sua alma na sua Barca, a Barca que tem a vela, a vela que tem a chama, o corpo que tem a alma. A Barca é também um transporte mortuário e relembro «A Barca da Morte» de D.H.Lawrence no poema de dez cânticos e que começa assim: «Agora é Outono, o cair dos frutos e a longa viagem para o esquecimento. É tempo de ir, do adeus ao próprio eu, de encontrar uma saída do eu caído. Já construíste a tua Barca da morte, a tua?».
Coisas que o tempo cala porque os tempos apostaram na morte da alma. Mas ela não se cala! E eis que Garrett, agora, na sua Barca, vem lembrar a grande maravilha com o mais requintado tratamento da linguagem falando com a sua própria alma: – «Não vês que a última estrela no céu nublado se Vela? Colhe a Vela, ó pescador!» Esta subtil passagem de velas que não são sinónimas mas que são a mesma essência….. este Velar, esta alma que faz andar a Barca e o nublado da estrela… pois que: «não se enrede a rede nela, que perdido é remo e Vela só de vê-la Ó pescador!» Há que fugir então do canto da sereia, essa ilusão que pode levá-la para o local escuro da sua essência ou fazê-la desaparecer, há que velar, velejando, a alma que vela, a vela que veleja… a anima encontra-se toda aqui! Só animados somos um propósito de viagem, mas animados com aquilo que a própria expressão à alma conduz. Ela é aquela energia que não deve andar “enredada”, que se deve acautelar face à sua natureza etérea, das ilusões do mundo, pois que essa mesma alma pode bem perder-se no assombro da viagem, afundar-se, e não mais animar o viadante. E, tal como Ulisses amarrado às cordas, aqui também surge a advertência: «Inda é tempo, foge dela, foge dela, ó Pescador».
Esta alma do poeta é uma amiga simples, ainda não é o espírito, é uma força que surge como conselheira. Esta é uma luta de um pescador com a sua deidade e não a «Rima do Velho Marinheiro», de Colleridge, que por sinal é a obra que muitos acham ser inaugural do Romantismo.
As Barcas, essas, levam os navegantes com a alma deles dentro e sempre ao longo da viagem lhes será mostrada a estrela d’Alva na forma de anjo interno como um espelho…
Esta é a vela de ti, a chama que terás que entregar. Escuta o seu conselho e caminha sobre as águas.
Talvez tivesse falado com a minha naquele dia… em que … «Vês que vejo a vela verde, vês que sou o tempo e a teia, e que importa se és e não sou uma estátua de areia?!»
A alma pode cair aos pedaços, ser pressionada a pesos que a atormentam, mas só ela existe para saber ver a bela frase de Rilke «Todo o Anjo é terrível». Ela põe-nos também à prova no limite de todas as coisas. Ela está em guarda. Todos os que foram encontrados depois do Naufrágio estavam numa Barca. Tudo mais tinha perecido.

13 Out 2015

Ana Luísa Amaral, escritora e docente de Literatura

O ano de 2015 está a revelar-se um ano produtivo para a carreira de Ana Luísa Amaral como poetisa, mas sobretudo como escritora. A editora Oxbow Press vai publicar uma antologia dos seus poemas em Inglaterra, enquanto que a editora europeia Peter Lang está a preparar um livro de ensaios sobre a sua obra, a sair este ano ou em 2016. A autora de “Minha Senhora de Quê”, o seu primeiro livro, continua a não assumir nada na sua carreira literária e a considerar as palavras que escreve como um “destino”

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ublicou, aos 33 anos, o seu primeiro livro, “Minha Senhora de Quê”. Muitos livros e palavras depois, que senhora é hoje?
Uma pessoa diferente, claro, até porque 25 anos se passaram… Gosto mais de “pessoa” do que de “senhora” (aliás, esse “minha senhora” foi sempre irónico). Diria, até, que sou, sobretudo, uma mulher diferente. Sou uma mulher com uma linguagem que necessariamente mudou, com a passagem dos anos e o acréscimo de experiências, com a vida, com o mundo. Mas sou, todavia, estruturalmente, semelhante ao que era então, nesse ano de 1990, com semelhantes preocupações éticas e poéticas. Talvez a grande diferença é que hoje tenho menos medos.

Se tivesse de escrever o mesmo livro actualmente, como o faria?
Não sei, sinceramente. O tempo do livro foi aquele tempo, não este. Este é o tempo de livros como “Escuro”, ou “Ara”, ou “E Todavia”. Cada livro tem o seu tempo. Talvez por isso, quando reúno os livros em antologias (já foram duas, “Poesia Reunida – 1990-2010”, de 2010, e “Inversos – Poesia 1990-2015” e a próxima, que surgirá para o ano, pela Assírio & Alvim, irá chamar-se “Em Suma”), nunca mudo os poemas, nunca os reescrevo. Nunca escreveria novamente esse livro – nem nenhum dos outros que se seguiram.

[quote_box_left]“A minha relação com as palavras foi sempre de amor à mistura com o que sinto quase como uma espécie de necessidade, a ananké grega, ou seja, quase um destino”[/quote_box_left]

Foi em 2013 que escreveu “Ara”, o seu primeiro romance. Sentiu que tinha chegado a altura de escrever prosa? Como foi o processo de criação dessa história?
Os capítulos desse romance foram sendo escritos ao longo dos anos, durante bastante tempo. Não foi, portanto, um romance escrito de uma forma cronológica, nem com aquela dedicação de escrita de que geralmente falam os romancistas. Talvez essa seja uma explicação para o facto de o livro abrir assim: “Mas as coisas não giram ao nosso compasso. Eu não sou romancista. Se fosse romancista, dividia-me em nomes de ficção e disso não sou capaz.” Este não é, pois, um romance no sentido mais tradicional do termo e a sua escrita foi-me muito rente à escrita da poesia. Assim, mais do que sentir que tinha chegado a altura de escrever prosa, o que senti foi que tinha chegado a altura de dar forma àquele “romance” e de publicar aquele livro.

Numa entrevista que deu há alguns anos, disse que sentia falta de ter tempo, por sentir dificuldades em conciliar a vida pessoal com a escrita e as aulas na faculdade. Ainda sente isso?
Sim, sinto isso ainda hoje. Talvez menos, do ponto de vista familiar, porque quando dei essa entrevista, a minha filha era ainda pequena, e agora tem 30 anos. Mas continua a ser difícil conciliar a minha vida profissional (os projectos que coordeno, as teses que oriento, os contínuos pedidos que recebo para avaliações) com a escrita – que é sempre algo para mim muito mais “puro”.

Continua a sentir-se mais docente do que escritora, como disse numa entrevista? Porque é que não se assume ao contrário?
Penso que nunca disse exactamente isso, ou se disse, disse mal, e o que queria era dizer que a minha profissão é ser docente e investigadora. Quanto à escrita, sou “amadora”, no sentido de que fala Clarice Lispector, ou seja, aquela que ama a palavra e a escrita. E não assumo nada: escrevo porque preciso de escrever, como preciso de respirar. É-me tão essencial como a vida. Por vezes, é mais do que a vida…

A sua relação com as palavras tem vindo a mudar ao longo dos tempos? Como a descreve?
A minha relação com as palavras foi sempre de amor à mistura com o que sinto quase como uma espécie de necessidade, a ananké grega, ou seja, quase um destino. O que é algo estranho para alguém que, como eu, duvida do determinismo… O que é certo é que tenho um poema que começa assim “Desejava esquecer, mas elas não me deixam, / chegam com seu tear e sua mãe cruel, / e sobre mim ensaiam um cansaço que há séculos / lhes tem sido alimento”. O poema chama-se “Os teares de memória: Mnémosine e suas filhas” e fala da memória e do que sinto como a inevitabilidade da escrita. E devo dizer-lhe que sempre assim foi.

Como olha para o lançamento deste livro cheio de ensaios sobre a sua obra, que vai sair este ano? O que sente perante estas retrospectivas sobre as palavras já escritas? Uma ponta de nostalgia, ou sobretudo uma auto-reflexão?
Sinto alegria, sinto alguma nostalgia, claro, porque isto significa que eu escrevi bastante e que, portanto, o tempo passou. Mas sinto sobretudo uma grande alegria. E também gratidão por este livro estar a ser preparado e pelo reconhecimento. E ainda algum orgulho pelos nomes das pessoas que escreveram sobre a minha obra e que lá estão, nesse livro. Mais não sei dizer, acho que da minha obra falarão os ensaios. Além disso, acabo de saber que vai sair também, pela Oxbow Press, uma antologia da minha poesia, traduzida por Margaret Jull Costa. Essa é uma grande alegria. ana_luc3adsa_amaral_at_gc3b6teborg_book_fair_2013_02

Como surgiu esse projecto?
Esse projecto surgiu inicialmente pela mão de Teresa Louro, que esteve na Universidade de Londres a fazer pesquisa sobre a minha poesia, acabando por escrever um belo ensaio sobre o meu livro “A Génese do Amor”. Depois, a ela juntou-se Claire Williams, da Universidade de Oxford, a primeira pessoa a escrever um ensaio que explora a relação entre mãe e filha na minha poesia (algo que ninguém tinha feito e que é, portanto, profundamente original). O ensaio chama-se “Educating Rita” (o nome da minha filha…). São elas as organizadoras desse volume.

Todos os anos se celebra o Dia Internacional da Mulher. Os discursos e as necessidades continuam a ser as mesmas, em prol da igualdade salarial e de oportunidades. É preciso mudar algo a este nível? As vozes que pedem essas melhorias devem mudar de estratégia, para que exista, de facto, uma mudança?
Amartya Sen diz que para haver justiça não chega haver voto, é preciso haver voz. Muitas, muitas mulheres, mesmo tendo direito ao voto, não têm ainda voz. Quando deixar de se celebrar esse dia, chegaremos a um ponto de viragem muito importante, em que as diferenças passarão a ser a indiferença. Porque ninguém celebra O Dia Internacional do Homem (aliás, mesmo esta palavra, “Homem”, pareceria logo que tinha a ver com a espécie humana). Há muito a fazer ainda, sim.

Fazem falta mais mulheres na literatura portuguesa e mundial? Tanto na poesia, como na prosa?
Pois claro que sim. Mas cabe às mulheres publicarem mais e às editoras divulgá-las melhor.

Que autores contemporâneos costuma ler?
Maria Velho da Costa, Nuno Júdice, Lídia Jorge, Hélia Correia, Jane Smiley, Mário de Carvalho… E depois, os clássicos, que não me canso de reler: Camões, Pessoa, Sá-Carneiro, Emily Dickinson, William Blake, William Shakespeare, Dostoievsky…

Depois da morte de nomes como Manuel António Pina, Mário Cesariny ou António Ramos Rosa, sem esquecer Saramago, podemos falar de uma nova fase da literatura portuguesa, com novas formas de escrever? Sobretudo, de uma boa fase da literatura em Português?
A literatura portuguesa sempre foi riquíssima, em especial a poesia. Não creio que poetas como Sophia [de Mello Breyner], Fiama [Hasse de Pais Brandão], ou Jorge de Sena tivessem eclipsado os seus contemporâneos. Portanto, depois desses extraordinários poetas que morreram, houve outros poetas. E haverá sempre mais poetas…

Na qualidade de docente do curso de Literatura Inglesa e Americana na Universidade do Porto, que análise faz aos alunos que hoje em dia escolhem essa área? São alunos que escrevem, que debatem ideias?
Nem sempre, infelizmente. Os melhores alunos que tenho tido são os que escolhem Literatura Comparada. Fazem muito bem, na minha opinião: a literatura não conhece fronteiras, nem lealdades. A literatura é múltipla, sendo uma.

É necessário fazer alterações aos cursos de Literatura actualmente leccionados em Portugal?
Julgo que uma das coisas mais importantes (mas isso tem a ver com algo mais amplo do que os cursos de Literatura propriamente ditos) seria valorizar as Humanidades e a Literatura, em particular. Passar a mensagem de que a Economia, ou a Engenharia, ou a Tecnologia são mais importantes (e rentáveis) do que as palavras (neste caso, a palavra poética, no sentido lato do termo) é um enorme erro. Porque, sendo aparentemente menos útil, a literatura é o mais poderoso veículo humano que possuímos para simultaneamente comunicar, pensar e imaginar. E a imaginação é essencial, o simbólico é essencial: é aquilo que nos torna humanos. Enfraquecer a cultura é enfraquecer a memória e enfraquecer a memória é enfraquecer os povos.

A crise económica em Portugal afastou ainda mais as pessoas da leitura, sobretudo os jovens? Como mudar esse paradigma?
Esse afastamento é relativo. Porque há os blogues, todo o suporte informático a que os jovens cada vez recorrem mais. O livro, sim, como objecto, esse tem sofrido bastante, porque a capacidade de compra está cada vez mais reduzida e as pessoas fazem uma selecção entre o que consideram ser o essencial e o que pode ser visto como o supérfluo, ou o adicional. E o Estado, na forma de escola pública e de bibliotecas, embora tenhamos uma excelente rede de bibliotecas, também não fomenta a leitura. Mas nunca no meu país se assistiu a tantas leituras de poesia em cafés, pequenos bares, sítios mais alternativos. Como se a arte fosse uma tábua de salvação para estes tempos tão cruéis, em que os estados e os povos deixaram de ter importância, ficando à mercê das indústrias financeiras. A arte é impossível de conter, de controlar, como um rio: se encontrar obstáculos, correrá noutra direcção, procurará outros leitos.

Como escritora de contos infantis, como olha para a política da leitura nas escolas? É cada vez mais difícil pôr os miúdos a ler, com as novas tecnologias?
As tecnologias, ou tudo o que o ser humano inventou, podem sempre ser usadas de uma forma maravilhosa, tal como podem ser usadas de forma danosa. Mas, quando são usadas de uma maneira engenhosa e delicada, são maravilhosas. Dou um exemplo bem simples. Tenho um livro que se chama “Como Tu”, que tem um CD. Os poemas desse livro são lidos por dois actores (Pedro Lamares e Rute Pimenta), acompanhados ao piano por Álvaro Teixeira Lopes, tocando música de António Pinho Vargas. Quando vou a escolas, ponho muitas vezes esse CD e as crianças adoram. O mesmo se passa com um outro livro, “A história da Aranha Leopoldina”, que tem também um CD. Mas já me aconteceu falar para crianças surdas. Aí, a imagem e as palavras projectadas num ecrã gigante (porque, na maior parte das vezes, no início do encontro, eles não têm o livro) são fundamentais.

Sendo este um jornal de Língua Portuguesa em Macau, perguntava-lhe se já visitou o território, ou a China.
Já fui a Macau, sim. Em 2006, por ocasião dos I Jogos da Lusofonia.

Sobre a China, como vê o crescimento do país a presença crescente em Portugal? Sem esquecer a literatura chinesa: vai, cada vez mais, dominar o panorama mundial das letras?
Não sei, mas imagino que sim. Em primeiro lugar, sabemos hoje que a China tem um fortíssimo poder económico. Depois, no que se refere à poesia, estive agora em Setembro no 2º Festival de Poesia de Atenas e conheci um poeta chinês absolutamente extraordinário: Ouyang Jianghe. Fiquei fascinada com a poesia dele. E pensei em como realmente sabemos tão pouco sobre o “outro”. Em quão pouco eu sei…

8 Out 2015

Dinâmica das origens da nação

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]aime Zuzarte Cortesão (Ançã, Cantanhede, 29 de Abril de 1884 — Lisboa, 14 de Agosto de 1960[) foi um médico, político, escritor e historiador português. Filho do filólogo António Augusto Cortesão, foi irmão do historiador Armando Cortesão e pai da renomeada ecologista Maria Judith Zuzarte Cortesão. Estudou no Porto, em Coimbra e em Lisboa, vindo a formar-se em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1909. Leccionou no Porto de 1911 a 1915, quando foi eleito deputado por aquela cidade. Em plena Primeira Guerra Mundial defendeu a participação do país no conflito, tendo participado como voluntário do Corpo Expedicionário Português, no posto de capitão médico, tendo publicado as memórias dessa experiência. [ ]Fundou, com Leonardo Coimbra e outros intelectuais, em 1907 a revista Nova Silva: revista ilustrada. Em 1910, com Teixeira de Pascoaes, colaborou na fundação da revista A Águia, e, em 1912 iniciou Renascença Portuguesa, que publicava o boletim A Vida Portuguesa. Teve igualmente colaboração nas revistas Atlantida[4] (1915-1920), Ilustração (1926-), Illustração portugueza (1903-1924)) e na revista Serões (1901-1911). Em 1919 foi nomeado director da Biblioteca Nacional de Portugal e a 28 de Junho desse ano foi feito Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.[5] Em 1921, abandonando a Renascença Portuguesa, foi um dos fundadores da revista Seara Nova. Participou numa tentativa de derrube da ditadura militar portuguesa, presidindo a Junta Revolucionária estabelecida no Porto. Por esse motivo foi demitido de seu cargo na Biblioteca Nacional de Lisboa (1927), vindo a exilar-se em França, de onde saiu em 1940, quando da invasão daquele país pelas forças da Alemanha Nazi no contexto da Segunda Guerra Mundial. Dirigiu-se para o Brasil através de Portugal, onde veio a estar detido por um curto espaço de tempo.[ No Brasil, fixou-se no Rio de Janeiro, dedicando-se ao ensino universitário, especializando-se na história dos Descobrimentos Portugueses (de que resultou a publicação da obra homónima) e na formação territorial do Brasil. Em 1952, organizou a Exposição Histórica de São Paulo, para comemorar o 4.º centenário da fundação da cidade. Regressou a Portugal em 1957. Envolvendo-se na campanha de Humberto Delgado, foi preso por 4 dias com António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes em 1958, ano em que veio a ser eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Obras mais significativas: A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (Lisboa, 1922); A Expansão dos Portugueses na História da Civilização (Lisboa, 1983 (1ª ed., 1930); Os Factores Democráticos na Formação de Portugal (Lisboa, 1964 (1ª ed., 1930); História da expansão portuguesa (Lisboa, 1993), colaboração na História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1931-1934; Influência dos Descobrimentos Portugueses na História da Civilização (Lisboa, 1993), colaboração no vol. IV da História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1932; Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração (Lisboa, 1940); Os Descobrimentos pré colombinos dos Portugueses (Lisboa, 1997 (1ª ed., 1947); Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (Lisboa, 1950); O Sentido da Cultura em Portugal no século XIV (Lisboa, 1956); A Política de Sigilo nos Descobrimentos nos Tempos do Infante D. Henrique e de D. João II (Lisboa, 1960); Os Descobrimentos Portugueses, 2 vols., (Lisboa, 1960-1962); O Humanismo Universalista dos Portugueses (Lisboa, 1965).

Os “Factores Democráticos na Formação de Portugal” é uma obra de referência no que diz respeito à compreensão das origens de Portugal. O tema é controverso e tem merecido a reflexão de muitos intelectuais portugueses, desde o humanista da renascença André de Resende até a autores contemporâneos como José Matoso e Orlando Ribeiro, passando pelos grandes pensadores dos séculos XIX, Alexandre Herculano e Oliveira Martins e muitos cientistas sociais do princípio do século XX, que seria difícil enumerar.
A obra de Jaime Cortesão é uma das mais complexas e portanto uma das menos dogmáticas e unilateraiss, já que ao invés da maioria dos autores não centra a sua interpretação numa única perspectiva, seja ela histórica, geográfica ou antropológica, mas num complexo de elementos civilizacionais de vária procedência. É verdade que valoriza antes de mais a dinâmica própria da sociedade medieval portuguesa associando-a ao movimento democrático dos concelhos, contudo não despreza os aspectos mais arcaicos, como seja o caso da romanização e até elementos pré-históricos.
Os concelhos foram vivificados por uma população que abandonou a economia agrícola e doméstica e protagonizou o surto das cidades onde se desenvolveram o tráfico e as actividades artesanais fomentando o comércio marítimo, e sendo por ele estimuladas. Foram estas as tendências que se desenvolveram durante a Idade Média em Portugal que eclodiram e triunfaram definitivamente durante a revolução que levou o Mestre de Avis ao poder, o que determinou a formação do grupo social dominante, assim como a perspectiva histórica e o carácter da Nação.  CORTESAO0001
Relativamente à colonização romana, Jaime Cortesão salvaguarda a administração dos conventos romanos, associando o território nacional às fronteiras de influência dos mosteiros ocidentais: Bracarense, Scalabicense e Pacense, respectivamente, Braga ou seja Bracara Augustae, Santarém ou seja Scalabis e Beja ou seja Pax Julia. Porém relativamente à colonização romana, o autor salfaguarda também a construção de uma rede viária atlântica, que estruturalmente promoveu uma verdadeira atlantização do território que iria persistir até aos nossos dias.
Relativamente aos elementos arcaicos o autor evidencia a existência de uma civilização megalítica dolménica e atlântica, a civilização dos menhires, antas e dólmens, mas também a existência na fachada atlântica de uma língua forjada no tempo, com características próprias, o designado Rimance Românico do Ocidente.
Quando nos debruçamos seriamente sobre a conveniência ou inconveniência das fronteiras próprias destes fenómenos civilizacionais com as fronteiras actuais de Portugal, verificamos que não existe uma clara e inequívoca convergência com as fronteiras políticas da nação portuguesa e do território associado ao estado português, tanto medieval quanto moderno. As fronteiras interiores de Portugal não correspondem estritamente às fronteiras delimitadas pelos conventos ocidentais, assim como também não correspondem aos limites de influência tanto da civilização megalítica ocidental como da civilização linguística e literária evidenciada. E também não é menos evidente que a rede viária atlântica só muito aproximativamente estabelece uma linha de conexão entre o Norte e o Sul de Portugal, sendo que a Sul essa rede se interioriza em consonância com a situação geográfica da capital da Lusitânia, ou seja Mérida, na Estremadura espanhola.
Contudo, atrevo-me a considerar que a teoria de Jaime Cortesão funciona bem como pista de trabalho e abre perspectivas dinâmicas para a compreensão dos enlaces estruturais entre a História, a Geografia e a Civilização e nesse plano cumpre de modo notável o seu papael de estímulo à multímoda reflexão sobre a originalidade de Portugal.
Manuel Afonso Costa

8 Out 2015

Mais listas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]gora é a Suíça. O país mais feliz do mundo. Promessas quebradas. Prometera não me deixar seduzir mais pela tentação de comentar listas de cidades e países, uma moda irritante e inútil que, no entanto, encerra atracções classificatórias indesejadas mas irresistíveis.
Contudo, estas linhas diferem das que aqui se escreveram sobre as listas da Monocle, da Mercer e da EIU, Economist Intelligence Unit, pois utiliza considerações que se tecem, num artigo do FT, em torno de um hábito classificatório percebido como demasiado economicista ou cujos critérios excluem vantagens menos materialistas. O artigo em questão chama-se Why “happy” is boring.
A Monocle não deixa de, em todas as edições da sua lista, chamar a atenção para cidades excluídas (por razões que se prendem com a criminalidade ou o sistema de transportes ou poluição) mas que mantêm atracções suficientes para uma vida largamente agradável. Pense-se em Londres, Istambul, Beirute, Nápoles, Naha ou Buenos Aires.
Quem diz que a Suíça é o país mais feliz é um relatório da O.N.U. (World Happiness Report 2015)*. É um país rico, seguro, bonito, não faz guerra e, acrescenta o articulista, os comboios andam a horas. Países como a Islândia, Noruega, Dinamarca e Canadá andam perto. O Togo não se recomenda.**
Esta não é apenas uma lista anual de uma revista, mas um relatório de 170 páginas que inclui artigos como How Does Subjective Well-being Vary Around the World by Gender and Age, How to Make Policy When Happiness is the Goal (um dos mais interessantes, numa altura em que vários governos, a nível mundial, tentam perceber mais especificamente do que é que as pessoas precisam para lá de bons hospitais e comboios a horas) ou Neuroscience of Happiness (que se prende com a mecânica da satisfação).
Mas John Kay, autor do artigo em questão, mostra-se desde o início incomodado com todas estas escolhas. A lista de cidades da EIU centra-se demasiado em cidades que têm o inglês como primeira língua ou em que o inglês é falado correntemente, como Helsínquia, e a lista da Mercer inclina-se para cidades de língua alemã, como Zurique, Viena ou Dusseldorf.
Dusseldorf ? Deve ter sido aqui que John Kay se sentiu verdadeiramente incomodado, o suficiente para equacionar algumas destas escolhas com uma qualidade que nem todas as pessoas apreciarão – o aborrecimento. Não há maneira de disfarçar o aborrecimento que se desprende de lugares como Toronto, Adelaide ou Zurique.
Se o artigo em questão se desvia da classificação de países para a de cidades é porque na sua base está a ideia de que a uma cidade, ou país, não bastam infra-estruturas e serviços de alta qualidade para a tornar atraente.
Cidades artificiais, como Chandigarh (desenhada por Le Corbusier) ou Brasília (Niemeyer) são bons exemplos de como o gosto de viver não se prefabrica. Foi só a partir dos anos 60 que se começou a perceber de modo sistemático e actuante que a aplicação de modelos demasiado racionalistas (e não testados) e de larga escala ao planeamento urbano não é suficiente para criar qualidade de vida. A importância da intimidade é um fenómeno relativamente recente. Pense-se igualmente em Naypyidaw, um esplendor do vazio.
Na região temos o exemplo de dois lugares que se vêm permanentemente como competidores, Singapura e Hong Kong. Singapura é inegavelmente mais igualitária, mais limpa, mais organizada, mais verde e mais bem equipada a muitos níveis, mas Hong Kong é inegavelmente mais excitante, mais imprevisível e mais atraente a muitos níveis. Na edição de 2010 da lista da Monocle coloca-se na capa a seguinte questão: Where would you rather live: A cosy capital or a chaotic cosmopolis? Ou seja, com algum exagero, Rio de Janeiro ou Camberra?
Não há fórmulas que sirvam a todas as cidades, como não há fórmulas que sirvam a todos os países. Se alguns critérios são desejáveis por todas, segurança, qualidade dos serviços de saúde e de educação, transportes, ar e água, abundância de espaços verdes, oferta artística e gastronómica e um modo de vida tolerante e inclusivo da diferença, exemplos apenas, cada lugar adequará estas necessidades à sua realidade e, sobretudo, deverá promover um ambiente criativo e internacional que experimente soluções próprias a cada caso.
O aborrecimento, contudo, pode ser o resultado de um conjunto de circunstâncias que os habitantes de muitos países ou cidades gostariam de atingir. Como se aponta no artigo do FT, a vida em Myanmar, no Zimbabué ou na Síria não é aborrecida mas os seus habitantes provavelmente gostariam que fosse.
O exemplo de Hong Kong é, de novo, útil. Se a nível de infra-estruturas e serviços esta é uma cidade de primeiro mundo, parte do seu encanto vem daquilo que nesta cidade é caótico e confuso (ao contrário de Singapura). Nela encontramos um pouco de tudo, inclusivamente um grito que por vezes não entendemos, profundamente local e não domesticado.
Tudo isto explica um pouco o enigma de Macau, um lugar onde se vive relativamente bem porque é uma cidade pequenina e tem uma face histórica difícil de reproduzir, mesmo que os sectores dos transportes e tráfego, saúde, educação, cultura, ambiente e espaços verdes, telecomunicações e habitação social sejam um desastre total.

* Está disponível na internet, assim como as duas edições anteriores, de 2012 e 2013, e nele o leitor poderá encontrar, com minúcia, todos os critérios e considerações que informam o relatório.
** O primeiro país da Ásia Extrema é Singapura (24º lugar), Taiwan aparece em 38º lugar e Hong Kong apenas em 72º (is boring better?). Entre os 10 países mais felizes contam-se o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia e 7 países europeus ricos de tamanho médio: Suíça, Islândia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Países Baixos e Suécia (Excitante?).

6 Out 2015

Albert e David Maysles

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a verdade as únicas coisas que são necessárias são uma câmara e um bom microfone. Albert e David Mayles provam-no em vários dos seus documentários. Só conheço três. Um tema atraente é uma ajuda inestimável.
Grey Gardens (realizado com Ellen Hovde e Muffie Meyer) não agradará a todos. Duas mulheres de idade, mãe e filha, aparentadas à família Kennedy, vivem numa casa delapidada em condições de higiene atrozes. Agradará contudo, a todos os que encontram nele matéria para se congratular com a sua própria situação. Ou agradará a quem sentir uma propensão – ou não consiga resistir – para uma lenta queda aguda.
É muito atraente ver os resultados da queda social e mental de duas mulheres de boa família. O contraste cruel que a exibição das suas fotografias de juventude cria sublinha as nossas próprias crueldades finas. O cinema e a fotografia, mais do que a pintura, a arquitectura ou a música, são artes que exploram a fraqueza.
À exibição deste contraste junta-se o discurso de mãe e filha, um discurso ensaiado ao longo de décadas, cheio daquilo que nós pensamos que é uma tristeza e uma solidão imensas, décadas de um insistente discurso recriminatório praticado num mundo fechado, cercado por uma vegetação cerrada, espinhosa e labiríntica. É uma grande incompreensão, onde residirá também a incompreensão por um afecto e por uma dependência que pode também ser a nossa.
Esse o transporte que em Grey Gardens e em The Beales of Grey Gardens (feito posteriormente com material que sobrara do primeiro filme) se opera – a transferência para nós de um conjunto de situações que de início nos parecem inteiramente excêntricas. E, repita-se, pouco mais é preciso que dedicação, um pouco de amor, uma câmara e um bom microfone.
Salesman (1969, com realização também de Charlotte Zwerin) apresenta uma imagem pouco usual da América. Faz pensar em Wise Blood, de John Huston, que retrata uma América provinciana cuja persistência hoje não é já uma surpresa mas a confirmação de que a história não tem necessariamente de caminhar para um futuro de tolerância e modernismo,
Pouco interessam algumas críticas que se apontam aos irmãos Maysles por não serem por vezes tão verdadeiros quanto a ideia de cinema verdade – ou cinema directo – com a qual aparecem frequentemente associados, impõe. Os filmes que ficaram são testemunhos bem directos de aspectos menos conhecidos da América.
Salesman segue um grupo de vendedores de bíblias de luxo em Nova Inglaterra e na Florida. Para além de ser sobre religião é mais particularmente sobre um pobre diabo, o Senhor Brennan, que tem de vender o Livro para sobreviver. Tão atraente como a tristeza que o envolve é penetrar nas casas de classe média baixa das famílias a quem tenta vender o seu produto.
Este é um filme que explora, com compaixão, uma estética do falhanço. Um grupo de homens solitários e cinzentos cuja identificação – ou sequer afecto – para com o produto que vendem nunca vem ao de cima. O semblante carregado, a pressão de vender, o cabelo molhado, os cigarros constantes, uma linguagem corporal pesada e a persistência da referência às origens, irlandesas ou escocesas, são as parcelas visíveis desta imagem.
O espectador, cruel como um estudante liceal, delicia-se na queda lenta do pobre Brennan (diferente da queda de Grey Gardens, a que não assistimos mas que é uma queda consumada, acabada, compreendida, vivida com compulsão, e em que as duas figuras principais, mãe e filha, se acabam por constituir como verdadeiras personagens cujo comportamento excêntrico as torna quase ficcionais), no espectáculo dos motéis, das camisas de manga curta com gravata e canetas no bolso e das conversas pouco interessantes.
Assim como Grey Gardens, Salesman é sobre entrar na casa dos outros, e como ele um produto sedutor mas de um sabor amargo que questiona a justeza da nossa propensão para a coscuvilhice. Nos dois se demonstra uma domesticidade que vem acompanhada de odores e ruídos próprios e reforça a ideia de que o tom documental não é necessariamente diverso do ficcional.
A nível da intenção, a ficcional e a documental, não existem diferenças que vão para lá de uma fachada, e estes filmes ilustram com brilho a ideia que já aqui nesta página se expôs várias vezes sobre a indefinição da fronteira entre o documentário e a ficção e a ganga classificativa que tem acompanhado, inutilmente, a historização e a classificação do cinema. O cinema é a arte de que menos se devia falar.
Tal como acontece com Grey Gardens, o aparente desprendimento da equipa de filmagem vai aos poucos demonstrando afecto pelas figuras filmadas e o modo como se fixa, intensamente, nos rostos dos retratados, revela um inocente desejo de compreender e de penetrar fundo no seu sistema de desejos e desilusões.
Gimme Shelter, 1970, co-realizado com Charlotte Zwerin, é um pouco diferente. É sobre um concerto da banda Rolling Stones, o Altamont Free Concert (1969), integrado numa tournée pelos Estados Unidos – houve 4 nascimentos e 4 mortes. A inocência do Flower Power esgotara-se, a densidade que se desenvolveu neste espectáculo é violenta e natural.
É conhecido porque se centra num concerto onde se deram vários acontecimentos, não musicais, que o marcaram. Trata-se, ao contrário dos outros dois filmes, de um filme sobre um grupo de pessoas conhecidas e sobre um acontecimento famoso. Não retrata de modo nenhum uma existência doméstica.
Não nos deixemos arrastar por grandes entusiasmos. Não são grandes filmes. Cinematograficamente pouco há que os distinga para lá de um à-vontade de ir filmando, sem planos, deixando correr a filmagem, o que ficou conhecido como cinema de reacção – o seu encanto vem desta inocência. Libertam a ideia de que qualquer um, com uma câmara e um microfone poderia fazer filmes semelhantes (de certo modo é o que acontece hoje em dia, especialmente porque filmar é uma actividade muito acessível em termos de custos e em termos técnicos).
O que os distingue é o interesse que a vida dos retratados podem suscitar junto do público. O mesmo se pode dizer dos filmes de um outro autor americano que já foi alvo de atenção nestas linhas: Errol Morris. Neles se exibe uma América demente e sanguinária e uma obsessão pela morte, mas também um comprazimento (em alguns) pela descrição do interior doméstico e pela excentricidade de figuras banais. Aceder aos filmes dos irmãos Maysles e de Errol Morris permite aceder, pelo menos, a uma colorida encenação da América.

29 Set 2015

“A revolução de 1383” de António Borges Coelho

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntónio Borges Coelho é natural de Murça, distrito de Vila Real em Trás-os-Montes onde nasceu em 1928. Tendo-se dedicado a várias actividades literárias tais como a poesia e o teatro é porém como historiador que produziu as suas obras mais significativas. Dessa obra variada e multifacetada destaco, A Revolução de 1383, uma das primeiras obras do autor datada de 1965, As Raízes da Expansão Portuguesa de 1964, Portugal na Espanha Árabe publicada entre 1972 e 1975, Comunas ou Concelhos de 1973, obra de referência para a compreensão social do fenómeno das cartas de foral atribuídas em Portugal ao logo da Idade Média, A Inquisição em Évora de 1987, que constituiu o tema da sua dissertação de doutoramento, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Dedica-se actualmente à elaboração e publicação de uma História de Portugal da qual saíram já alguns volumes. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e recebeu o Prémio da Fundação Internacional Racionalista.

A revolução paradigmática

Para Borges Coelho, tal como para António Sérgio e Álvaro Cunhal, a revolução de 1383 foi sobretudo orientada pela burguesia comercial e marítima e em certa medida instrumentalizada por esta classe social. Apesar de nenhum destes autores utilizar o conceito de sobredeterminação ou de causa em última instância, é esse o tipo de compreensão que resulta. Para Joel Serrão, que se opõe às teses dominantes, a revolução foi essencialmente popular e a verdade é que houve momentos em que o povo foi mesmo o único braço a abraçar a causa da revolução sem ambiguidades, mas a verdade também é que o plano foi gizado por Álvaro Pais e que o apoio da burguesia foi determinante. Quer dizer, apesar do papel importantíssimo do povo, a revolução foi, às claras algumas vezes e na sombra outras, desencadeada e alimentada pela estratégia e pelos interesses da classe média, o que quer dizer que foi em última instância liderada pela burguesia e sobredeterminada pelos seus interesses.

É justamente isso que nos mostra a obra de António Borges Coelho.

Nota adicional: Borges Coelho seguiu de perto a crónica de Fernão Lopes. Porquê? Desde logo porque é o grande documento da época e provavelmente o mais fiável. António Borges Coelho defende Fernão Lopes dos seus «detractores». E porque é que são «detractores»? Porque «o que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional». Porquê esta defesa tão apaixonada de Fernão Lopes? Possivelmente porque, como Álvaro Cunhal tinha afirmado, «o testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução». Ou provavelmente apenas porque Fernão Lopes é um cronista em vias de o não ser e a sua modernidade teria que ser tida em conta. Borges Coelho não foi o primeiro a incensar Fernão Lopes e seguramente que também não foi o último. A verdade é que o processo complexo que agita a sociedade portuguesa na antecâmara da Idade Moderna possui os contornos inequívocos de um processo revolucionário e é isso que incomoda algumas consciências. E a revolução de 1383 foi até uma revolução muito paradigmática pois não excluiu o plano do afrontamento social e o plano do confronto não apenas ideológico mas com recurso a uma violência que não deixa margem para dúvidas relativamente ao seu carácter revolucionário e radical. O assassinato do Bispo da Sé de Lisboa assim como a coacção sobre muitos alcaides que hesitavam em tomar partido pelo Mestre de Aviz, e alguns deles foram identicamente assassinados, são a par da fuga para Castela de figuras gradas da nobreza da época, sinais claros de que a revolução de 1383 apresentou todas as características de um processo revolucionário de classe. Pelo que me parece portanto que a análise de Borges Coelho é acertada, tanto na ênfase revolucionária, como na sua característica subordinada à luta de classes.

Quanto ao valor da crónica de D. João I e do próprio Fernão Lopes Borges Coelho não foge à questão e no prólogo à segunda edição da obra diz:

“Em que base se apoia «A Revolução de 1383»? No poço sem fundo em que mergulharam e beberam todos os comentadores: a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. E não se envergonha do facto. Não tem complexos por isso. Quem desdenha da Crónica ou é tolo ou tem medo das cargas explosivas que transporta no seu ventre”.

Mas diz ainda referindo-se a outras fontes da sua obra:

“Mas o livro não enjeitou outras informações nem fugiu, muito menos, à contraprova documental. Embora não tivesse hibernado nos arquivos, utilizou os cinco livros da Chancelaria de D. João I conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; analisou numerosos documentos laboriosamente recolhidos por Silva Marques nos Descobrimentos Portugueses; por Gama Barros na História da Administração Pública em Portugal, por José Soares da Silva nas Memórias para a História…; por Caetano de Sousa na História Genealógica da Casa Real Portuguesa – Provas… E não só.

Bebeu ainda, contestando, nos diferentes autores que abordaram o que alguns ainda hoje designam, pudicamente e por hábito, como «crise». Cito, em especial, as Crónicas de Pedro Lopes de Ayala e Jean Froissart, A História da Sociedade em Portugal no século XV de Costa Lobo, As Lutas Sociais em Portugal na Idade Média de Álvaro Cunhal, a História da Cultura em Portugal de António José Saraiva, o prefácio à Crónica de D. João I de António Sérgio, O Carácter Social da Revolução de 1383 de Joel Serrão, etc”.

Com estas considerações o autor abre-se a uma ampla bibliografia sobre o estudo do tema e desse modo situa o seu livro no duplo papel de interpretação original a partir das fontes mas também o seu papel de síntese centrada nas múltiplas abordagens levadas a cabo pela historiografia e pelo ensaísmo nacional ao longo do século XX.

29 Set 2015

Notícia da explosão antes dela ocorrer

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início de Outubro de 1850, o Tenente Luís Maria Bordalo em Macau acabava de receber uma carta do irmão, escrita em Lisboa entre finais de Agosto e princípios de Setembro. Francisco Maria Bordalo mostrava-se preocupado pois na capital corria o rumor sobre uma explosão na fragata D. Maria II estacionada em Macau. Perguntava-lhe pela saúde, como desejo de resposta ao acontecimento que escutara. Estranha história a que leu sobre tais rumores e logo na fragata D. Maria II em que andava embarcado.
Os territórios portugueses do ultramar eram desde há muito cobiçados por holandeses, ingleses e franceses e como elemento dissuasor, em meados do século XIX foram “estabelecidas as estações navais, isto é, agrupamentos de um ou mais navios cujas missões eram coordenadas pelo comandante do navio mais antigo e que permaneciam na área durante um período prolongado”, como explica Rodrigues da Costa. Já Luís Gonzaga Gomes referia que a 10 de Setembro de 1850, a estação naval compunha-se da fragata D. Maria II e das corvetas à vela Iris e D. João I, tendo os três navios 559 praças de guarnição.
Esta imponente fragata, construída por volta de 1810 em madeira teca, fora comprada à Inglaterra em 1831 pelo Rei D. Pedro IV. Tinha então o nome de Ásia, sendo também na mesma altura adquirido o navio Congress. Mudaram ambos o nome, ficando a fragata a chamar-se D. Maria II, nome da filha de D. Pedro e que seria coroada a 15 de Setembro de 1834, passando o Congress a ter o nome de Rainha de Portugal.
Estes dois navios eram os principais da esquadra liberal e a fragata D. Maria II estivera nos momentos decisivos da restauração do regime liberal, em 1832. Primeiro, na Ilha Terceira nos Açores, depois no desembarque das tropas liberais de D. Pedro na Praia do Mindelo para irem ocupar a cidade do Porto e por fim, nos bloqueios do Tejo. Após terminada esta guerra entre D. Pedro e D. Miguel, ambos filhos de D. João VI e com a nova Constituição Setembrista de 1838, que representou a primeira tentativa de reconciliação entre as duas posições constitucionais antagónicas (a democrática de 1822 e a realista de 1826), a fragata fez três viagens até à Índia. Entre 1846 e 1847 participara nos combates contra a Junta Revolucionária de tendência miguelista.
Voltou a fragata à Índia em 1849 sendo então comandada pelo Capitão-tenente Francisco de Assis e Silva. Estando em Goa, foi requisitada para Macau onde a 22 de Agosto de 1849 o Governador Ferreira do Amaral tinha sido assassinado. Aqui chegada a 3 de Junho de 1850, a fragata D. Maria II com os seus quarenta e dois canhões integrou a Estação Naval de Macau, conjuntamente com as corvetas à vela Iris e D. João I.

Explosão na Fragata

Francisco Maria Bordalo, no seu livro ‘Um passeio de sete mil léguas’ descreve que: “Em mais de metade do seu curso ia o dia 29 de Outubro de 1850. Um formoso sol alumiava a enseada da Taipa, onde se baloiçavam dois vasos de guerra, vistosamente adornados de flâmulas e galhardetes, trajando suas melhores galas, e saudando com o ribombo do canhão o aniversário de um rei filósofo e artista. Acabavam de soar duas horas e meia nos sinos das embarcações, quando uma delas se ergueu com todo o seu peso sobre o dorso das águas, despedaçou-se com um estampido medonho, e de entre colunas de fumo e fogo arrojou para longe de si madeiros, canhões, ferragem e cordoalha…”
Ocorreu essa violenta explosão na fragata portuguesa D. Maria II, fundeada na Taipa, em frente de Macau, onde se encontrava ancorada no dia do aniversário do Rei D. Fernando (segundo marido da Rainha D. Maria II), quando estava em vésperas de largar para a Índia. Explosão Fragata D Maria II
“Da corveta americana Marion, que ali se encontrava também ancorada, correndo grande risco, acudiram com destemida coragem os seus oficiais e marinheiros, porém, apenas puderam recolher os restos mortais de algumas das vítimas” Luís Gonzaga Gomes. A corveta Marion escapou com muita sorte ao iminente perigo pois, estava fundeada a pouca distância da fragata e viu passar a artilharia desta entre os seus mastros, ficando apenas com cabos cortados e um ferido. Os marinheiros da corveta, ainda havia pequenas explosões e já arriscando as suas vidas, prestavam socorro, conseguindo retirar dez homens do que restava da fragata, encontrando-se todos muito feridos.
Carlos José Caldeira, no seu livro ‘Apontamentos de uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa’, refere encontrar-se no palácio episcopal quando escutou um grande estrondo e detonação que abalou a cidade quebrando vidraças, “indo às janelas que deitavam para a Taipa, vi uma espessa e negra nuvem de fumo na direcção em que estava a fragata, e quando foi correndo vagarosamente com o vento, apareceu apenas uma parte da popa do navio, que daí a pouco começou a arder. Corri à Praia Grande e encontrei o ajudante do governador Leite a embarcar numa lorcha para o lugar do desastre; acompanhei-o, e presenciámos ainda no caminho duas explosões parciais. Fomos os primeiros que de Macau chegámos a bordo da Marion, e vi o mais doloroso espectáculo que jamais presenciei. Os corpos de dez homens desfigurados, e com os membros quase todos despedaçados, jaziam no convés banhado de sangue, dando os mais lamentosos gritos; era uma cena de cortar o coração. Tinham sido tirados dos restos da fragata, ou do mar pelos escaleres da Marion; entre eles havia o tenente mouro ou lascar Vsangi, e o guarda-marinha João Bernardo da Silva Pereira, que estava de quarto, e que morreu à minha vista em tormentos horríveis.
Daí a pouco chegaram os escaleres da Íris e da D. João, e o próprio comandante da estação, e em seguida foram os feridos conduzidos para o hospital em terra, onde depois todos vieram a morrer, à excepção de um grumete português.”
Segundo o que conta Marques Pereira, pereceram “cento e oitenta e oito vidas da guarnição, proximamente quarenta de chineses que estavam a bordo, ou junto do navio, e de três marinheiros franceses, presos. Escapou vivo da catástrofe só um grumete, chamado Barbosa”. Manuel Teixeira refere que os três marinheiros da galera francesa Chilli estavam na fragata detidos. “Dos salvados porém viveram cinco, sendo deste número dois chinas dos trinta que, se supõem, estavam a bordo, e nas embarcações que se achavam atracadas à fragata, os quais, com a única excepção daqueles dois, pereceram todos.”
Por se encontrarem em terra, da guarnição escaparam à explosão trinta e seis praças e entre eles o segundo-tenente João Maria Celestino e o Aspirante Francisco Assis da Silva, filho do Comandante, que doente estava no hospital.
À noite, a parte da fragata à tona continuava numa grande fogueira de madeira teca no “meio da água, como luz sinistra, ou tocha funerária ardendo sobre o sepulcro de tantas vítimas” na escuridão de um episódio de má memória.

O suspeito responsável pela explosão

Se a maior parte dos corpos ficaram despedaçados pela explosão e desapareceram nas águas, setenta e um cadáveres foram sepultados, sendo oito provenientes dos que tinham sido salvos pela corveta americana Marion, mas desses, apenas sobreviveram dois chineses.
O cadáver do Comandante, o Capitão Tenente Francisco de Assis e Silva, foi encontrado dois dias depois, sendo sepultado no Cemitério de S. Paulo com todas as honras que lhe eram devidas.
Segundo o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 16 de Novembro de 1850: “Impossível é explicar a causa da horrível catástrofe. Sendo bem sabida a severa disciplina, e a boa ordem que o Comandante Assis mantinha a bordo do seu navio, não se pode atribuir aquele desastroso acontecimento a algum descuido havido na ocasião da Salva, que nesse dia se fez a bordo; muito especialmente se nos lembrarmos que a explosão teve lugar duas horas depois não se tendo observado sinal ou indício algum de incêndio a bordo, nem de bordo da Corveta Americana Marion, que estava fundeada mui próximo da fragata, nem do posto da Taipa; o que faz crer que a explosão foi efeito de fogo lançado no paiol da pólvora; mas como, ou por cuja agência, só Deus sabe, e é possível que nunca venha a descobrir-se.”
Assim, a causa da explosão no paiol onde se encontravam trezentos barris de pólvora deveu-se a alguém ter aí posto fogo. Carlos José Caldeira no seu livro diz: “A fragata foi destruída pela explosão do paiol da pólvora, onde se levou fogo de propósito, ou por descuido; pelo que disseram os que sobreviveram algum tempo a esta catástrofe, torna-se provável a primeira hipótese: o fiel da artilharia era um conhecido malvado, bêbedo relaxado, e tinham-se-lhe ouvido ameaças de praticar tal atrocidade, por ocasião de receber alguns castigos; naquele mesmo dia antes da salva, parece que o próprio comandante lhe puxara pelas barbas, por alguma falta no serviço.”
Carlos José Caldeira refere: “O grumete português Barbosa, único que sobreviveu a esta espantosa catástrofe, foi por uma leve falta chibatado a bordo da D. João pouco tempo depois de restabelecido, e daí a pouco desertou do serviço. Teve razão de fugir por tal acto de barbarismo, ou de inadvertência.”

Um estranho enigma

O texto oficial que narra o acontecimento apareceu no Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 15 de Fevereiro de 1851 e terá sido escrito por Carlos José Caldeira, na altura responsável pela redacção do Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, como refere Rogério Beltrão Coelho na Revista Macau de Janeiro 98 ao falar do Livro “Memória de 1850” de Carlos José Caldeira editado em 1997 pela Quetzal.
Nesse Boletim do Governo lê-se uma notícia do Friend of China de 22 de Janeiro de 1851 onde se refere o seguinte: “Cinco dias antes da explosão da Fragata D. Maria II, na Taipa, uma nau Turca de primeira ordem, com 104 canhões e 700 homens e o Vice-Almirante a bordo, voou pelos ares em Constantinopla. O Malta Times de 12 de Novembro refere que a nau se denominava Neiri Cheykit e que além dos 700 homens da tripulação havia a bordo 200 recrutas de outros navios. O Sultão tinha tido grande desgosto com este desastre e com a sua liberalidade costumada, mandara 100 000 piastras do seu bolsinho para distribuir entre as viúvas e os órfãos da tripulação e tinha ordenado que de todos se fizesse uma relação com o fim de lhes conceder pensões. Nesta catástrofe se perdeu a flor da oficialidade da Marinha Otomana.”
Segue-se outra notícia do China Mail de 23, o Daily News de 20 de Novembro, diz: “Notícias recebidas pela mala da Índias Ocidentais nos referem o facto que no dia 24 de Agosto de 1850 a bordo do navio de guerra inglês Sieift, tendo sido repreendido por negligência nas suas obrigações o Fiel de artilharia Villiam Muir, dirigiu-se este ao fogão da proa, acendeu um murrão e foi descoberto pelo cabo do destacamento no acto de entrar no paiol, com a intenção de fazer voar o Navio.”
E continuando no Boletim do Governo: “São bem singulares as circunstâncias deste facto, pela semelhança que apresentam, com as que provavelmente precederam a explosão da Fragata D. Maria 2a., segundo a conjectura mais provável que pode explicar aquele terrível sucesso e que o atribui ao Fiel da Artilharia da mesma Fragata que, além do seu péssimo carácter, também fora repreendido asperamente depois da salva ao meio-dia de 29 de Outubro. Custaria até aqui conceber tanta maldade no coração de um homem, mas o acontecimento referido, mostra bem que há na espécie humana monstros capazes das mais horríveis acções. Virá aqui a propósito referir outra extraordinária coincidência relativa ao mesmo sucesso.”
Voltemos à carta de Lisboa recebida pela mala que chegou a Macau nos inícios de Outubro de 1850, quase meio mês antes da explosão acorrer. Quando o Tenente Luís Maria Bordalo leu o que seu irmão Francisco escrevera sobre os rumores que circulavam em Lisboa, por ser muito singular o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, pois falava da notícia de uma explosão na fragata D. Maria II. Estranho quando só dois meses depois tal se veio a verificar a 3600 léguas de distância, tendo o Tenente Luís Maria Bordalo morrido na explosão.
Na ilha da Taipa, junto à fortaleza, encontra-se escrito em português e chinês um memorial às vítimas da explosão da fragata D. Maria II erecto em 1851. No entanto, todas as datas em ambas as línguas, que na pedra granítica foram gravadas, estavam erradas e após terem sido emendadas muito mais tarde, não se conseguem agora ler com nitidez.

28 Set 2015

Nem a luz

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]ostar de conduzir. Um paradigma onírico de infância que seria fácil de explicar. A ver com mais nada do que comigo própria. Nenhum intuito de poder. Nenhuma ilusão megalómana de mostrar caminhos, dominar existências. Conduzir como caminhar, num veículo como uma segunda pele. Mas também conduzir passos por entre as margens de indeterminação de alguns momentos, como modo de resistir à convergência excessiva de outros. Outra maneira de deixar passar o tempo. Menos sombria do que na noite e menos saída do curso dinâmico daquele, é caminhar pelo dia. Igual a deixar a noite caminhar por nós. Igual a não fazer nada e ficar simplesmente a imbuir-nos do fluir da vida como se nada nos obrigasse. Igual à noite na sua ausência possível do elaborar. Mas mais luminoso. Caminhar o dia inteiro como se mais nada houvesse. Uma coisa solar. Coisa racional. Que limpa de escolhos quotidianos e em que se depara com a inutilidade do sonho de domar a existência. Que é quem nos leva. Contrariar esta exaustão de tantas coisas que não são nada. Uma luta inglória, mas da qual não há que fugir. Algo se constrói, que não pode ser tudo o que o sonho e os compromissos delinearam. Mas o caminho é turvo, e demolidor, introduz com intencionalidade farpas que nos impelem para a frente. Que obrigam a correr. Por isso é preciso sair. Regularmente como quem leva um cão a passeio. Sair dos moldes diários e ensaiar um arremedo de liberdade. Limpar a alma de círculos viciosos, etéreas amarras, que marcam e ferem como cordas apertadas, a pele.
Este brilho mais suave da luz, quase de Outono. Sem a dureza do Verão que obriga a caminhar rente às paredes como na cidade da minha infância. Branca como não há outra aqui. Noutras paragens sim. Branca, incendiada, acesa com toda a luz possível e pequenas sombras de início da tarde. Caminhos escuros nas beiras de fachadas imaculadamente caiadas e com amor. Ano após ano o banho de luz de uma cal fina. E eu, meio estrangeira, caminhava entre casas de avós e tios-avós, renitente ao apagamento da sesta. E também orgulhosa de lhe saber os caminhos tão bem, dentro e fora das muralhas, como se fosse minha. A cidade de primas e primas-avós de nomes luminosos como Cândida, Aurora, Estrela, Felizarda, Esperança. E nomes de flores. Mas isso é uma outra estória num outro lugar de tios e primos.
Essa luz excessiva a compensar o facto de a cidade mergulhar na terra arenosa e plana, longe da água. Alguém me dizia, por uma vez dever tentar escrever algo luminoso. Recuar até alguma memória que o fosse. O que fiz. A luz, a luz e as suas sombras. Inseparáveis. Porque nem a luz. Nem ela na sua plenitude que tudo faz e desfaz, nos seus excessos, é dissociável das trevas que são o seu reverso.
Como fugir aos cantos escuros das coisas, sem uma dose impensável de distância anestésica, e como abstrair-me do olhar que tenho sobre os limites. Meus e de outros. Como não reconhecer os lados de trás, mesmo das coisas mais luminosas e como não temer o dia que ainda se insinua, e já é definido por um esboço incontornável de premeditação. Fazer minhas, realidades alheias, sentir com tristeza o evoluir inexorável de um comboio que irá para além de mim e ao qual a minha indiferença é apesar de tudo uma impossibilidade. Como?…
Aquilo de que quereria falar, é da luz objectiva, que incide nas coisas e as dá a ver. Da luz que lembrei ao desfolhar esse pequeno museu de memórias. De cidades. Da luz que ilumina fisicamente e apaga os fantasmas da noite. Da luz que é estar aqui e não debaixo de terra. E que, pouco ou muito, tem que ser estímulo prosaico e suficiente.
Memórias lá muito atrás, parecem estar lá em baixo. Longínquas e muitas com esta luz de Évora sempre. Mas tantas sombras inerentes. A infância não é paradigmática senão pela completa abstracção de tempo passado e futuro. Para além disso tem cores tão sombrias como pode ter qualquer outro momento da vida. Tudo o que lembro está envolto numa luz. Diurna. Ou na sua ausência, numa penumbra suave, ou numa quase escuridão de onde se autonomizam formas essenciais. Daquelas que não precisam sequer de iluminação porque mesmo mergulhadas no abismo escuro, são alcançáveis pelo tacto. As outras que são imprecisas e talvez inexistentes, nascem da escuridão e apagam-se com a luz. Curiosa inversão de coisas. Claro que ela é o revelador. Mas tem uma consistência própria como se uma matéria têxtil que se estende sobre todas as coisas cobrindo-as de uma interpretação particular. A luz é amante táctil das superfícies e dos recantos onde se recusa a entrar. Ou talvez se esconda neles. Invisível e lúdica. É uma espécie de olhar irónico ou caloroso e sorridente a descrever tudo por onde passa. Gosto desta luz mais suave. Da mesma forma diferenciada a produzir brilhos nas transparências de cada folha fina de árvore.
O mais luminoso que encontrei, metáfora dos passos que quero leves. Há na matéria orgânica que nos compõe uma formação, atávica, genética, de apelo à sobrevivência. E à morte. Há dias em que não sei viver, para além da inércia a que não consigo subtrair-me, excepto na escolha radical entre luz e sombra. O tudo e o nada que gere e gera esta página da vida, noutros dias em cinzas, hoje entre a luz e a escuridão total. Quando as margens são as do abismo , não há meio termo. Vida e morte andam por aí.
O que sinto, queria, prefiro nessa outra língua mais redonda, sucinta e suave. Lost. No demasiado conhecido. Sinto. A razão a encaminhar passos surdos, que se quereriam perder porque essa é a metáfora do momento. A da luz, senhora das mais ricas e essenciais conotações. Vida, saber. E os seus contrários, sem os quais não há sentidos tão densos.
E todos os caminhos que os meus passos ensaiam acabam por ir dar ao rio. E o rio, são os dias líquidos a correr. O segredo é não definir uma geografia possível, não definir um limite e não ter objectivos. Mas há uma inclinação que faz resvalar mesmo a partir de dentro para o rio. Não saberia viver numa cidade interior. Só à noite e mesmo assim sabendo-o ali mais abaixo. Noutro tempo, em Macau lá longe, no primeiro ano todas as manhãs, muito cedo, descia da Penha em direcção ao rio, uma enorme mancha lisa de um branco prateado, sem o mais leve irisado, da mesma cor do céu, mas com um brilho ténue e a mesma mansidão alastrada à cidade nas imediações, quase sem cores para além dos cinzas suaves. É como o lembro de então. E desembocava na baía contornando-lhe o recorte que já não existe, o mais possível encostada a ele. As árvores de S. José, os homens dos passarinhos contemplativos. Até que, mais à frente tinha que inverter para dentro da malha urbana, para chegar ao meu destino. À noite a mesma coisa mas de noite. Aulas nocturnas, então. Meia hora para lá e meia hora para cá.
Três cidades. E uma quarta em que nasci por acaso e que visitei miúda, naquela curiosidade afectiva de ser dali. E com a megalomania inocente de criança, orgulhosa de esta ter nada menos do que as portas do sol. Os socalcos sobre o rio um pouco assoreado, pequenino ali, e que eu não entendia como se tornava enorme aqui mais abaixo. Olhei-o como rio-criança. E áquilo a que resumi a minha cidade de nascença, com um nome luminoso e uma amplidão de vista mesmo de fora que é só o que recordo, uma semelhança lírica com a cidade perdida dos Incas. Fantasia curta e maravilhada de pré-adolescência. Analogia feita mais tarde, certamente mas ainda com a mesma ingenuidade. Cidades brancas como a luz. Lá atrás. Num ângulo particular, uma hora do dia e da memória, uma estação do ano e da vida.
A luz, que resiste indecisa entre a sua natureza simbólica e a sua natureza metafórica. Falar na luz e no seu contrário, a sombra que dá existência às coisas fugidias, irreais e mutáveis. Segundo a sabedoria dicotómica oriental, o estudo das sombras é o yin, na base da geomancia antiga e portanto da orientação. Ao contrário da conotação ocidental com símbolos do mal, da perdição e da morte. Nos evangelhos, como no Corão, nos textos taoistas, ou textos filosófico religiosos budistas, sempre a eterna e universal oposição entre luz e trevas. Figurada poeticamente no ocidente por aquela entre anjos e demónios, ou na China pelas influências celestes ou terrestres, sendo que a terra designa as trevas e a ignorância e o céu a luz e a sabedoria. E são da mesma natureza, fazendo parte do mesmo caminho de busca do conhecimento. Tal como na gnose ismaelita a oposição é a do corpo e do espírito, princípios luminosos e obscuros coexistentes no mesmo ser, a dualidade Yin e Yang chinesa em que em cada um contém traços do outro. No Islão é espírito. Segundo S. João, identificada ao verbo. Este simbolismo da luz-conhecimento, sem refracção, ou seja apercebida sem intermediários deformadores e por intuição directa, define o carácter da iluminação iniciática. Esse conhecimento imediato, que é luz solar opõe-se à luz lunar, que sendo reflectida figura o conhecimento discursivo e racional. A luz sucede às trevas tanto na ordem da manifestação cósmica como da iluminação interior. (Post tenebras lux)
Por isso ver a continuidade dos dias com a sua enorme carga de obscuridade e de desconhecido. Ao invés do desalento imiscuído na certeza da infelicidade, da configuração de uma linha de vida à luz de um olhar fatalista, em que o desenho esboçado parece fazer antever com toda a nitidez a perpetuação dos motivos que nos tolhem. E do saber, fazer parte o enorme quinhão de ignorância como forma aberta. Só assim suportável caminhar até ao dia seguinte. A primeira coisa pela manhã, é lavar o rosto do torpor do sono, da má vontade de acordar. Uma frescura boa para recomeçar, e no caminhar lavar também a alma das marcas de todas as certezas demolidoras. Diluí-las, no olhar para as coisas de sempre mas sempre outras, as mesmas coisas como a mesma água fresca da manhã. Tudo igual, mas subtilmente como se fosse o início de todo. O mesmo brilho da luz nas coisas, a mesma cidade, o mesmo rio, a mesma pessoa. Outro dia. E o espaço vazio para algo diferente se aconchegar no seio de tanta mágoa acumulada. E pensar que desistir, só ontem ou amanhã.
Se muitas vezes não se pode ver a realidade a uma luz diferente da que nos fere, há que não olhar. Fazer tréguas sem pesar. Perder momentaneamente o apego àquela melancolia ancorada no sentido de se estar na razão ao ser infeliz. Este país de gente a rebentar pelas costuras de não caber na ordem de penas que lhe cabem, de gente sem uma luz vinda lá de longe, não se sabe sequer de onde poderia sonhar-se. De gente que não consegue deixar de se permitir estragar o pouco de reservas de bem- estar, que fica doente também da mente, que se aliena no próprio circuito fechado da dor e da alienação, não conseguindo já destreza para encarar tudo como um mal de saúde entre outros mas que não precisaria de o ser. E a luz, que o é sempre e é gratuita, e já não conforta nem consola quem prefere sucumbir ao peso dessa inércia, a aceitar que ela pode ser adiada para o momento anterior ou seguinte. E entre eles algo de silenciosamente nulo a poder ser a trégua entre batalhas. “A existência não é mais do que um curto-circuito entre duas eternidades de escuridão”. Palavras de Nabokov. E quando parece não haver nada a fazer, há que caminhar entre as duas eternidades. De uma para a outra. Mesmo não lhes sabendo os limites, início e o fim. Mas entre ambas. No lado iluminado das coisas, mesmo que este se restrinja à crua realidade da luz solar, do dia claro ou ensombrado de nuvens. Sempre uma luz a opor-se às trevas maiores.
Deverá haver na felicidade absoluta uma demência e uma alienação egocêntrica que não é nem paradigma possível. Ter a luz e as respectivas trevas como reverso. E luminosidade garantida, essencial e diária. A possibilidade de olhar simplesmente este intervalo de luz real, sair em parte dos trilhos sofridos e viver à luz da metáfora inesgotável o momento raro de estar aqui. Raro e precário. Raro e breve. Olhar a luz e as suas revelações físicas, concretas e conhecidas, ou pequenas novidades no conhecido na sua incompletude, ou simbolicamente no muito que significa só por ser universalmente o registo de estar. De ver. Por agora e enquanto é possível. Não será talvez uma construção. Não num sentido sólido, estruturado e articulado. Tão só, talvez a desconstrução da inércia desesperante dos dias que se sucedem indomáveis inglórios e frustrantes. O poder não está do lado luminoso. As grandes decisões competem a quem tem as motivações mais sombrias. Resiliência é ser momentaneamente e serenamente feliz a prazo apesar de tudo. Por momentos. Passar é o que se faz. Deixar pegadas ou não, não é um acto de vontade. Nada mais forte visceral e absoluto.
Olhando o comum cenário lavado das contingências existenciais. As ruas, as fachadas de vidas sabe-se lá quanto mais difíceis, os caminhos urbanos, a opaca realidade das pedras, a depurada, embora por vezes sem futuro, premência das formas naturais, a alternância dos dias e das noites, da luz sobre as coisas e da morte sucessiva das mesmas. A luz. Enquanto o sol durar pendurado nos dias, é bom sinal. E caminhar. Como mantra ou desassossego.

28 Set 2015