Fios de seda, linhas da mão

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]avia um roupão de seda preta. Cetim. Longo e fluido com um líquido suave e tépido. Que se colava ao corpo, escorrendo fresco e quente. Fresco quando estava quente. E cálido quando soprava uma aragem já fresca. Como a primeira pele sem outra. Seda antiga. De muitos anos.
Ele não podia ir-se embora zangado com o seu corpo, zangado com os seus lábios. Zangado com o seu amor. Tocado de uma zanga maior que o momento. Com algo que era outra coisa.
Ela viu-se subitamente descalça, envolta no roupão de seda negra, com os pés inadvertidos e imprevidentemente indiferentes, nas pedras escuras da rua. Escura, silenciosa, muda como ela. De corpo e alma. Porque ele não podia ir-se embora zangado. E ficar a ver da janela a fúria a apequenar-se rua fora. Por isso correu sem pensar em mais nada do que isso. Mas a rua estendia-se para ambos os lados, vazia. Mais vazia do que em qualquer noite em que ele não a tivesse percorrido. E agora, como se se tivesse evaporado à saída da porta. Mergulhando na inexistência impossível. Por haver ausência. E esta se opor àquela.
Tudo da seda para o interior era exposto em sangue, vísceras, carne e osso. O teatro anatómico que ninguém viu.
Ainda correu no sentido do trânsito. Talvez para lá da esquina o vulto escuro em fuga. Não voltou a vê-lo. Foi assim.
Ele virou-se com uma agitação adormecida e quase convulsiva, desarrumando mais os lençóis da cama. Uma mão pesada caiu-lhe sobre o peito. A sua, na reviravolta abrupta. Acordou alagado. Um curto pânico que logo se resumiu a uma angústia indefinida. A cama larga sem obstáculos para ambos os lados. Ninguém, como na rua ainda agora. Pensou em telefonar para ouvir simplesmente a voz que não estava lá. Talvez uma sonata de piano irreconhecível em fundo. Pelo menos. A voz de quem não sabia quem era. Ele. Não sabia. De quem era. A voz. Muda, com piano por trás. Nem o número para ligar de volta. A voz inaudível que lhe dizia: -Sabes quem eu sou. 25
Ela esperou que adormecesse e voltou. Instalou-se de novo a vê-lo partir no sono. Voltou a vê-lo doridamente partir no sonho dele. Sentada de lado. Virando-lhe as costas para sentir. Agora lentamente e de novo, desaparecer no ar. Inconsolável minuto sólido, gelado. Fim do tempo.
Ele acordou caído com estrondo de costas na cama. Uma espécie de explosão no interior do crânio, ou então o fim do mundo. E o impacto violento de todo o corpo como uma prancha vinda de cima e abalando fortemente a cama no impacto. Com cem vezes o seu peso, e cem vezes cem segundos passaram até a respiração voltar ao ritmo normal. Uma ténue figurinha, ou talvez só o resto de uma forma fluida a negro, ainda por uma fracção ínfima de segundo, deslizou-lhe dos olhos para o interior das paredes. Ou outra coisa qualquer. E de novo acordou nessa mesma sensação de ansiedade, nervosismo e desapontamento, embalado pelo motor do carro, noite fora, ainda longe de chegar. Ao lado ela olhava-o. “Olha para o caminho.” Disse. Ou talvez tenha sido: “Olha por onde vais…”. E ela tenha dito: “Sei para onde vou, sei de onde venho” Agora. Ou então: “Olho para ti e é como olhar para a frente e olhar para trás. Olhar para ti agora.” E vê-lo fechar irreprimivelmente os olhos de novo. Caído mansamente num sono de sonhos. Agitados aí. Virar-se na cama sem tréguas. Na cama vazia. Revolver a roupa até não restar mais nada a que se agarrar sobre o corpo. Um campo de batalha. Ela, que compõe os lençóis entre sonhos. Que mesmo aí pressente e verifica a ordem geométrica e rigorosa da dobra do lençol. Que arruma as roupas de cada vez que se vira.
Vira-se de lado, fecha os olhos e respira fundo. Espera que venha sonhá-la. Quando adormecer um sono de valeriana, um sono de camomila. Tília. Um sono de roseiras bravas. Pequeninas, de um branco rosado manchado e muitos espinhos quase invisíveis. Eram roseiras. E ele pensara que com as unhas lhe arranhara o peito. E ficou zangado para sempre. E acordou de novo alagado em suor e inquietação. Zangado. Mas o problema não eram os espinhos. Eram as rosas.
Ela percorre as ruelas que ladeiam os canais. Pequenos túneis que afastam os passos momentaneamente dos brilhos insalubres da laguna, e os voltam a aproximar inevitavelmente. O som cavo dos saltos nas pedras largas e incertas, por vezes a soar a oco. Uma porta estreita. Uma escada empinada. E o quarto. Ferver ervas num pequeno fogão ao canto. Acreditar, talvez, que lhe hão-de trazer algum entorpecimento. Suficiente se os pensamentos serenarem. Da janela olha fixamente as águas escuras e espessas àquela hora. Amanhã Tintoretto na Academia. Uma emoção rara por dia é mesmo assim quase demais. E uma noite de cada vez.
Cento e dezoito ilhas, cento e sessenta canais e mais de quatrocentas pontes são dados suficientes para desenhar uma carta, mas nunca o mapa dos sentidos. Menos ainda das emoções. Esse exige uma cartografia própria em cinzas e sonoridades cavas. Em ocres deslavados e rosas velhos aclarados pela poluição, e mesmo a do sentir tóxico. Uma cidade de uma beleza que rescende de reminiscências doentias de ausências e impossibilidades. Que pode até exalar aromas fétidos dependendo das marés. Porque de tão inebriante e onírica, só serve de cenário aos sonhos mais utópicos e paradigmáticos. Nada a menos do que isso. Ir a Veneza, mesmo que seja para chorar já é semear nas pedras antigas mais voragem de memórias. Cada canal percorrido ladeado a passos acariciantes, é como uma linha da mão. Um destino cumprido e traçado no desenho da laguna. Uma ideia que fica como uma camada ténue a somar a todas as que se pressente formarem a textura quase orgânica. Esta no mar ali ao lado e este no seu maior interior. Ser um mar interior a continentes deve ultrapassar em muito a beleza do azul que o define e atirar para um interior incorporal. Um mar interior também nela.
Sim. Voltar a Veneza sempre que se perdeu a vontade de sonhar. Como um reencontro em dois. Mesmo para ver partir alguém e muito mais para esperar. Dali do coração da europa. E o reencontro é caro de um preço semelhante ao que os antigos se dispunham a pagar pelo segredo da seda. Na sua rota desde muitos séculos atrás. A rota continental do norte, dos confins da Ásia, no mundo antigo. E, por onde entrou a magia da seda entra a magia do sonho. Feitos ambos de fios paradoxais. Finos, ténues, versáteis, luminosos, fortes e adaptáveis. Há qualquer coisa em comum, de líquido, nas cidades que se prestam ao sonho. Qualquer coisa de seminal, vivo. Que segrega como fluidos orgânicos, murmúrios e segredos quase palpáveis. Teias e padrões de séculos ou de instantes. O tempo em retrocesso, voluptuoso, luxurioso. Há tanto tempo que sonha ir sonhá-lo, a sonhá-la em Veneza. Isso nunca aconteceu. Fora do espaço que reserva a isso.
A seda é uma outra pele. Uma construção. Que aquece na sua exacta medida. Suficiente ou insuficiente. Com limites. Mas aquém deles é de um enorme poder sugestivo. Ao tacto. De um inefável conforto, quase consolo. Quase carícia.
Ele inclina-se com uma pequena guinada do volante e apanha o lenço que caiu. Seda de um amarelo saturado. E foi quando ela fez o gesto a pedi-lo que ele reparou nas estranhas linhas que lhe cruzavam a mão como um mapa. Como se o lenço fosse pretexto. Visão fugaz que não teve tempo de processar nem pediu para rever. Não ia entendê-las, de qualquer modo. Mas eram talvez o único chão possível. O mapa do chão. O tempo diria. Alguém disse: “Se chegares a onde vais não vais querer voltar aonde partiste. Se partires do sítio exacto chegas aonde vais sem erro e sem remição. Vai simplesmente, e retorna ao ponto de partida próprio todos os dias para voltares a partir de um lugar diferente. E chegas, se chegares com a coragem de quem não tem certezas. Chegas e partes. É o mesmo lugar. O tempo um círculo perfeito.” Leu nas entrelinhas da mão que se lhe expõe e foi suficiente. Mas era a mão dela. De linhas estranhas. Discretamente olhou a sua e caiu na sonolência boa que o embalo do rolar na estrada lhe insinuava nos olhos pesados, nos músculos cansados e na alma exausta de dilemas insolúveis. Mas de novo aquele roupão de cetim preto acusatório e sem permissão de tréguas.
Olha-o por detrás do espelho retrovisor. Do lado de cá do espelho. Reflectido no vidro. Na água. No copo onde bebe. E será sempre assim mesmo que o não diga. As pessoas não gostam de ser observadas.
Afasta-se da janela mas retorna irresoluta. De novo mergulha nas águas estreitas e misteriosas. Não sabe o que fazer ao tempo. A esta hora, o comboio em que viaja já chegou talvez a Trieste.

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