A propósito de alguns filmes africanos I

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] meu conhecimento do cinema africano é muito escasso. São duas as razões por trás desta falha: o difícil acesso e a pouca informação que existe sobre ele. Confesso que a elas se junta um interesse médio. Tirando Yeelen, de Souleymane Cissé (Mali, 1987) e Yaaba/Avó, de Idrissa Ouedraogo (Burkina Faso, 1989), que passaram no circuito comercial ou em sessões de cinemateca em Portugal (ou terá sido na televisão?), pouco mais cinema africano (com a excepção de filmes egípcios) me lembro de ter visto durante os meus anos de formação. Assim, as considerações que aqui se tecem devem ser recebidas mais como produto de uma súbita curiosidade do que como produto de um conhecimento aturado.
Yaaba é a história da exclusão social de uma velha, Sana, que se torna amiga de um rapaz. É sobre superstição mas contém também apelos à tolerância e à compreensão. O rapaz, Bila, tem um pensamento excêntrico ao que é normal na aldeia – ele é quem tem razão nas questões que excitam o lugarejo e este torna-se um filme amigo, banhado de uma benevolência universal.
Yeelen é um filme do Mali que ganhou fama internacional nos anos 80. Também é uma aventura rural e também se debruça, como Yaaba, sobre feitiçaria. Estes dois filmes ajudaram a fixar uma ideia rural (e étnica gira) sobre o cinema africano – pouco conhecido internacionalmente até à altura – que se tem mantido.
Já aqui se falou longamente sobre o papel que os festivais de cinema têm tido na divulgação de cinematografias menos conhecidas a propósito da indiana e da japonesa. O mesmo se aplica às do Senegal, Burkina Faso e Mali.
La Noire de… (1966), de Ousmane Sembene, foi provavelmente o primeiro filme da África sub-saariana a alcançar alguma fama internacional e será um dos primeiros filmes feitos por um africano (ou o primeiro). É o primeiro filme de Sembene. A administração colonial francesa manteve até tarde uma interdição de fazer filmes a quem não fosse francês e só nos anos 60 se pode falar verdadeiramente de um cinema africano feito por africanos dos países de expressão francesa (por oposição a um cinema sobre África feito por autores ocidentais que mereceu muitas vezes a censura africana).
La Noire de… conta as desventuras de uma rapariga senegalesa enquanto empregada doméstica num país que imaginara belo e acolhedor, a França, mas que acaba por não conhecer por se ver mantida num estado de quase aprisionamento e total objectificação. O filme conta-nos a sua revolta, mostra-nos a sua frustração e interroga-se sobre a identidade de Diouana enquanto servidora.
É um filme seco e agreste, engolidor, filmado num preto e branco frio e rugoso e que deixa o espectador num estado de entorpecimento. Não existe aqui qualquer hesitação de primeira obra, esta é uma pequena (55 minutos) obra prima.
Não será o último filme de Sembene a dar uma importância central ao destino das mulheres – a par das inevitáveis referências à venalidade, ao colonialismo e ao neo-colonialismo (o Senegal tornara-se independente em 1960).
Em Mandabi (1968) Ousmane tece uma história de humor subtil em que a burocracia e a corrupção se exibem com uma calma morna. Ibrahima recebe um dinheiro de França, de um sobrinho, e antes de o poder levantar é assediado por um grupo crescente de ávidos interesseiros. Arranjar a documentação necessária para poder levantar o dinheiro do sobrinho é a grande tarefa do simples e bondoso Ibrahima.
Nesta pequena viagem encontramos a venalidade, a preguiça, o engano, a mendicidade e um sol inclemente. A cada esquina espreita um pequeno ardil para ludibriar o incauto analfabeto. Nem sempre esta técnica – a de estender a crítica a um país através de uma história pessoal quase banal – se alcança com a facilidade com que Ousmane Sembene no-la serve.
Xala (1974), outro filme do mesmo autor senegalense, também conhecido como escritor, conta a história de um casamento de um membro proeminente da Câmara de Comércio senegalesa com a terceira mulher. O tom é o tom seguro de quem sabe perfeitamente o que está a fazer. O humor resultante da sua falha sexual para com a terceira mulher acompanha a crítica da europeização da classe dirigente africana.
Um dos presentes na festa de casamento, um negro senegalês, afirma que já não passa férias em Espanha porque há muitos negros. O modo como as mulheres escolhem vestir-se, tradicionalmente ou à europeia, indica, como no cinema japonês e indiano foi marca muito útil, gostos pessoais que mostram a tensão entre o modelo europeu e o modelo local e entre o desejo de afirmação nacional (ou continental) pós-colonialista e a incontornável sedução da europeização.
Hadji, o noivo, recusa-se (como recusara outras pequenas sugestões de amigos) a vestir um kaftan e a praticar um ritual tradicional propiciatório de um bom desempenho sexual. As mulheres não deixam de o culpar por não ter aceite praticá-lo. “Vocês têm todos a mania que são europeus” – diz uma delas.
Na altura da consumação do terceiro casamento Hadji falha e não há como negar o problema: Hadji tem a xala – é necessário consultar um marabout.
Paralelamente à história de Hadji, uma em que as mulheres, muito menos submissas do que de início se poderia pensar, têm uma importância nuclear, mostra-se a corrupção e a prepotência da classe dirigente que – num caso particular, quase cómico – lava o seu Mercedes com Evian. A impotência de Hadji é a impotência do Senegal do pós-colonialismo em constituir-se como uma nação de progresso e transparência 14 anos depois da independência.
Como continuaremos a ver na próxima semana, ao falar de Djibril Diop Mambéty, estes são filmes urbanos e sofisticados, longe da impressão rural e paisagística séria que se criou posteriormente a propósito do cinema africano.

(continua)

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