Amour Fou, Jessica Hausner, 2014

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]fácil ver Amour Fou como semelhante a Lourdes (2009), o anterior filme de Hausner. Existe nos dois, central a todos os sentimentos que estes filmes da realizadora austríaca demonstram, uma doença que os corrói. Nada de espantoso que se mostrem duas histórias com este tipo de semelhança. O que me enche de alegria é que em Amour Fou permaneça a encenação que tornara Lourdes um objecto de encantadora decepção. Ainda hoje não percebo bem o que é Lourdes e quais são as suas intenções.
As críticas, facilmente observáveis, que faz a alguns religiosos ou ao sistema que explora as aparições da virgem da lenda cristã, são de uma polidez que não afastam a dúvida que desde cedo se instala no filme e que o marca indelevelmente.
Hannah McGill escreve (Sight and Sound, Dezembro 2015): “the wheelchair used by Christine in Jessica Hausner’s Lourdes (2009) is the site of a miracle, a fraud or an extraordinary coincidence.”
Amour Fou tem o que Lourdes tem, se bem que a expressão da doença não seja neste último filme tão visível como o é na demonstração da paralisia causada por esclerose múltipla que condiciona a vida quotidiana de Christine. Mas, afinal, a sua doença poderá ser, como o tumor ou a úlcera de Henriette, tão real como imaginária.
O Abandonado em Amour Fou é o pobre Heinrich (Heinrich von Kleist, o autor de Die Marquise von O, livro que é referido várias vezes ao longo do filme como exibição de um comportamento que pode causar escândalo). A extrema melancolia e tristeza que o aflige e que o eleva, de início, a uma posição de importância dramática, erode-se lentamente à medida que as circunstâncias se alteram e aparece quase como objecto de ridículo.
Hausner, cruel, não parece deixar que von Kleist se exiba como um romântico convincente – e este impedimento é da mesma ordem que a da decepção que percorre Lourdes. Nem todos, contudo, entenderão as evoluções deste grupo de amigos como tendo qualquer humor.
Neste filme de 2104, à melancolia que acomete Heinrich e depois Henriette e, de certa forma, toda a família, juntam-se as visíveis críticas que se dirigem ao conservadorismo social da Alemanha (Berlim) dos anos dez do século XIX, visível no carácter intransigente da mãe, granítica ao ponto da caricatura, no racionalismo avesso a qualquer voo de imaginação do Sr. Vogel, o marido, cuja tolerância aos possíveis transportes sentimentais ou poéticos da esposa, no entanto, o cobrem de uma benevolência também caricaturizada, e nas inconveniências que um modelo social rígido impõe à opção de uma vida mais liberta e menos humilhada por estes constrangimentos. Heinrich tem um plano para libertar Henriette da humilhação causada pela convenção.
Alguns lembrarão como em Die Marquise von O (deve ver-se o filme de Eric Rohmer com Edith Clever) a intransigência moral é um mal que leva a trama a uma atmosfera de intensa opressão (no tratamento que os pais e irmão da Marquesa dispensam à filha num momento de sofrimento e dúvida).
É à volta do contrato que Heinrich deseja celebrar primeiro com a sua prima Marie e, posteriormente, com Henriette, um pacto de morte conjunta, que todo o filme gira. Apenas Heinrich, o poeta e prosador propenso ao desgosto pelo mundo, e mais tarde Henriette, possuidora de dotes musicais suficientes para ser vista como uma alma artística, se mostram sensíveis a este cenário.
A história tem como aspecto, constantemente, um fundo de profunda e dolorosa banalidade e domesticidade. É assim que Henriette Vogel canta (Mozart e Beethoven), como uma amadora, aplaudida por uma plateia imóvel e convencional onde a enigmática criada surge como uma presença fantasmagórica quase irreal.
Uma das cenas mais divertidas do filme é a em que Heinrich tenta, pela segunda vez, convencer a atraente prima Marie, agora noiva de um francês (horror, país de onde chegam ideais de um sistema fiscal a impor na Alemanha que levanta sérias dúvidas entre o aborrecido círculo dos Vogel), a cumprir de vez o pacto de morte. “Concordo que a vida não tem sentido e as pessoas são cruéis mas não há necessidade de deixar que isso o incomode assim tanto” – diz-lhe a cativante prima Marie (Sandra Hüller).
Apenas Henriette poderá desejar e compreender a sedução do medo, como se depreende de uma das conversas que mantém, logo no início, com o poeta a propósito do destino funesto da Marquesa de O.
Amour Fou conta com uma alta vantagem, um extremo rigor na composição dos vários quadros que compõem a história, de que resulta um filme muito belo e a que se juntam as vozes urgentes e por vezes lamentosas do texto.
À austeridade dos interiores e ao tom tenebrosamente ameno dos exteriores onde praticamente não se vêem céus, acrescenta-se um cuidado minucioso no tratamento cromático (e nos arranjos florais, mais exuberantes no início do filme do que no fim).
A celeridade das vozes, off e directas, uma característica muito própria da prosódia de certo cinema de língua alemã, trazem a Amour Fou uma urgência dramática e romântica que coloca as suas personagens à beira constante do perigo. Amour Fou acaba com o espectáculo das duas figuras mais brancas e mais enigmáticas da história, a espectral serva criada à imagem de Vermeers e a pequena Pauline Vogel a quem cumpre agora continuar os espectáculos de canto amador.
Que outros males, reais ou imaginários, e que outras imagens (depois destas tão belas) nos trará no futuro Jessica Hausner?

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