Naruse Mikio na Cinemateca de Macau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]aruse Mikio não será o realizador japonês mais excitante. Mas depois de alguns dos realizadores com nomes mais sonantes e estridentes será dos mais interessantes pela fibra que demonstram os seus shomingeki.
Shomingeki é um tipo de filme, de imensa popularidade no Japão, que narra a vida de pessoas comuns, o constante esforço para arranjar dinheiro, o endividamento, a falta de comida ou de meios que permitam o avanço social, a vergonha, a perda de face, o desprezo pelos mais desfavorecidos, os casamentos por interesse, a inveja e a extrema abnegação de algumas das suas figuras, muitas vezes femininas. São alguns shomingeki que a nova Cinemateca. Paixão nos mostra.
A tendência para o retrato das classes comuns é uma tendência que no cinema japonês aparece nos anos 20 (com Shimazu e Gosho Heinosuke, por exemplo, o primeiro hoje em dia relativamente conhecido fora do Japão) e que se estende praticamente aos dias de hoje, mas que teve particular sucesso antes e depois da segunda grande guerra. Rapidamente o público de menos meios favoreceu a ideia de se ver retratado no ecrã.
Depois da Guerra, praticamente todos os filmes são shomingeki. A maior parte da população passava por muitas dificuldades e o cinema espelhava-o perfeitamente. É, aliás, um filme de Naruse, um dos primeiros tsuma-mono (filmes sobre esposas), Repast/Meshi, de 1951, baseado no último romance de Hayashi Fumiko, o filme que é considerado como o que relançou o género depois da Guerra.
Não é um mundo ideal, antes um registo cru e fatalista da realidade a que se acrescenta, por vezes, uma vaga tonalidade poética e uma forte ciência da transitoriedade da vida (como em Ozu, o realizador do Nada).
Pode ser, para algumas sensibilidades, um cinema repetitivo e envergonhado mas Naruse pratica-o, como Ozu, com elegância, sem excessos melodramáticos e por vezes com um forte poder evocativo. Se Naruse foi acusado de manter um estilo demasiadamente monótono, sem altos e baixos, por outro lado a sua monotonia é de uma firmeza que se torna atraente.
Nesta página, onde se contam já 64 artigos sobre cinema japonês, mais de 20 dos quais sobre filmes dos anos 60, nem um se dedicara a Naruse.
(Estas considerações tecem-se com base num universo de 8 a 10 filmes dos anos 50 e 60 de entre uma filmografia de 89 – em que 21, maioritariamente dos anos 30, se perderam. Fala-se de alguns dos mais famosos mas este é um corpus reduzido, para além de que no ciclo em questão figura apenas um dos seus conhecidos filmes dos anos 50, década em que realizou filmes que se distinguiram).
Floating Clouds/Ukigumo (1955) é, talvez a par de A Woman Ascending the Stairs, o filme mais interessante dos que se mostram na nova Cinematheque. Passion. É o mais antigo deles mas talvez um dos dois que conseguem um fôlego quase épico e será esta elevação que o tem distinguido. É uma história de Hayashi Fumiko, que cedo ganha uma tonalidade fatalista.
Começa no Vietname, durante a Guerra, onde dois amantes se conhecem. De regresso ao Japão, estes retomam o romance (mesmo que o homem seja casado) e o mais interessante é a incapacidade de reproduzir os momentos de felicidade que haviam conhecido durante a Guerra. O filme é uma longa lista de tentativas falhadas enquadradas na deprimente envolvência do Japão do pós-guerra onde não falta o envolvimento com um soldado americano.
A sua curva indica desde cedo a impossibilidade da felicidade, uma impossibilidade que se torna dolorosa porque Naruse consegue rapidamente dar-nos a perceber que os dois protagonistas da história estão irremediavelmente condenados um ao outro. Ela é a brilhante Takamine Hideko.
A Woman Ascending the Stairs/Onna ga kaidano agaru toki (1960) é talvez o mais conhecido filme deste autor. Retrata os esforços de uma mulher de 30 anos recentemente enviuvada (de novo Takamine Hideko) para sobreviver e manter a sua honra intacta num mundo materialista e masculino. Própria é a sedução que se desprende do mundo dos bares de Ginza onde se vê forçada a trabalhar, uma sedução que lhe dá um ar menos popular e menos dependente de cenas domésticas. É o mais urban cool de todos estes seis filmes.
O plano de Keiko de abrir o seu próprio bar atrasa-se sucessivamente devido a problemas de família, o habitual desfile de endividamentos, falta de dinheiro e familiares doentes dependentes de apenas uma pessoa.
A dolorosa cena final, de Keiko a subir as escadas que dão acesso a um bar que não é dela, mantêm a narrativa aberta para uma história cuja conclusão dificilmente seria eufórica.
Daughters, Wives and a Mother/Musume tsuma haha (1960) é, desta selecção, o filme que mais semelhanças tem com os filmes de Ozu mais conhecidos. Nesse género, mesmo sob a ameaça da inevitável com comparação Ozu, não desilude. A presença de Setsuko Hara, a Eterna Virgem, impede-nos de esquecê-lo.*
Os admiradores de Nakadai Tatsuya devem evitar ver este filme. O actor japonês, que nos habituou a presenças intensas como feroz guerreiro, capaz de artes marciais inultrapassáveis, parece, em Musume tsuma haha, um completo palerma.
Nesta história de inúmeras implicações familiares repete-se o tema da abnegação pessoal perante os imperativos familiares que encontramos em tantos outros filmes da época. A abnegada é Setsuko Hara. Takamine Hideko participa mas, desta feita, num papel mais secundário. Quem toma o papel de mulher independente e ocidentalizada é uma outra personagem, interpretada por Reiko Dan, mas com um relevo pouco significativo. Naruse escolheu sublinhar o elogio da abnegação a sublinhar a afirmação da independência – que nestes filmes tantas vezes vem associada à ocidentalização. **
Her Lonely Lane/Horoki (1962). À habitual exposição da vida das camadas mais destituídas, uma verdadeira obsessão do cinema dos anos 40 aos anos 60, acrescenta-se o interesse de se tratar da vida de uma escritora, Hayashi Fumiko.
Foram vários os livros de Hayashi de que Naruse se serviu para os seus filmes mas o que nos é mostrado é essencialmente a parte da sua vida anterior à consagração, um período de extrema pobreza e sucessivas histórias amorosas desastrosas.
Yearning/Midareru (1964) é uma agradável surpresa, uma história de problemática familiar que se transforma numa intensa história de amor. De repente começa a desenhar-se um improvável desenvolvimento e as cenas que se passam na viagem de comboio ganham uma independência original. Tal como acontece em Floating Clouds, o espectador, que se espera bondoso, é levado a pensar que no final da viagem se encontra a felicidade. A última imagem do rosto de Takamine Hideko, é tão emblemática como a imagem final da subida das escadas em A Woman Ascending the Stairs. Yearning é, com Floating Clouds, o mais intenso dos filmes em exibição.
Scattered Clouds/Midaregumo (1967) é uma história sentimental que se distingue pela justeza da sua realização. Não há um cabelo fora do lugar, pode falar-se de um sentimentalismo mecânico. O seu último filme é também centrado, como acontece em tantos outros (todos os que se mostram) numa figura feminina.
A trama é sedutora: uma mulher apaixona-se pelo homem que acidentalmente matara o seu amado marido.
Naruse manteve-se, mesmo no final dos anos 60, afastado de usos praticados por outros autores mais ousados como Oshima, Wakamatsu Koji, Suzuki, Nakagawa Nobuo ou Teshigahara, tendo escolhido continuar a fazer o mesmo tipo de retratos de gente comum.
Sem que se retire mérito à selecção de filmes de Naruse mostrados este Novembro, é pena que se não tenha conseguido mostrar um dos seus filmes mais conhecidos, Mother/Okaasan, de 1952. Este é o filme que Naruse considerava como o mais feliz dos seus filmes, verdadeiramente um rio tranquilo em que a consciência da fugacidade de tudo se exprime com uma sinceridade inultrapassável.
De 1952 é Lightning/Inazuma (um dos meus preferidos, que não faz parte deste ciclo). Também uma adaptação de um livro de Hayashi Fumiko e também com Takamine Hideko, é uma história comovente vista, mais uma vez, através dos olhos femininos de uma guia turística em idade de casar. Praticamente tudo anda à volta do pouco dinheiro de um seguro de vida de uma sua meia irmã. É um filme pouco conhecido e simples, que nada acrescenta às muitas manifestações do género, mas é um bom exemplo de outro filme em que não há falhas, em que no seu simples desenvolvimento há uma firmeza narrativa impecável.
Lightning é interessante em que, ao contrário do que acontece com os filmes deste ciclo, termina numa linha narrativa muito aberta em que se percebem vários traços de optimismo, o menor dos quais não será a confiança de uma mulher solteira de construir o seu próprio futuro. ***
Kyioko é o exemplo perfeito (e lembre-se que Lightning é de 1952) de uma heroína determinada e com ideias próprias que não receia fazer face a ideias ultrapassadas e que expressa um optimismo que não é comum em Naruse.
Por fim, como o título deste artigo sugere, faça-se um grande elogio à abertura, na Travessa da Paixão, n.13, junto das ruínas de São Paulo, da Cinemateca .Paixão., cujos desígnios são ainda vagos mas que desejam auspiciosos. Oferece uma atraente sala de 60 lugares e, por agora, um pequeno átrio na porta contígua.
Ao pequeno ciclo Naruse junta-se, até dia 8 de Dezembro, a mostra de 3 filmes do realizador formosino Edward Yang a serem vistos no C.C.M., de um filme de 2015 de Du Hai Bin, e vários filmes de Macau e Hong Kong.
Para lá da exibição de filmes que se distingam dos que habitualmente se mostram nas salas tradicionais, conta-se acrescentar uma videoteca e um arquivo e a promoção de seminários pertinentes à área do cinema e do vídeo. Este poderia vir a ser um local muito útil. O edifício em si é de uma justeza inultrapassável.

* Setsuko Hara, que fez 6 filmes com Ozu e ganhou desse modo uma fama que se internacionalizou, morreu com 95 anos no passado dia 5 de Setembro. O desejo de levar uma vida recatada, desde que se retirou em 1962, levou a que a notícia do seu falecimento tenha sido apenas tornada pública a semana passada.
** Para tudo isto poderá ver-se Russell, Catherine, The Cinema of Naruse Mikio. Women and Japanese Modernity, 2008.
*** Takamine Hideko tem, aliás, um tipo de rosto que inspira confiança no futuro e não o típico rosto sofredor de algumas das heroínas dos shomingeki como Setsuko Hara ou a mãe em Okaasan – a enternecedora Tanaka Kinuyo.

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