Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasAlbert e David Maysles [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a verdade as únicas coisas que são necessárias são uma câmara e um bom microfone. Albert e David Mayles provam-no em vários dos seus documentários. Só conheço três. Um tema atraente é uma ajuda inestimável. Grey Gardens (realizado com Ellen Hovde e Muffie Meyer) não agradará a todos. Duas mulheres de idade, mãe e filha, aparentadas à família Kennedy, vivem numa casa delapidada em condições de higiene atrozes. Agradará contudo, a todos os que encontram nele matéria para se congratular com a sua própria situação. Ou agradará a quem sentir uma propensão – ou não consiga resistir – para uma lenta queda aguda. É muito atraente ver os resultados da queda social e mental de duas mulheres de boa família. O contraste cruel que a exibição das suas fotografias de juventude cria sublinha as nossas próprias crueldades finas. O cinema e a fotografia, mais do que a pintura, a arquitectura ou a música, são artes que exploram a fraqueza. À exibição deste contraste junta-se o discurso de mãe e filha, um discurso ensaiado ao longo de décadas, cheio daquilo que nós pensamos que é uma tristeza e uma solidão imensas, décadas de um insistente discurso recriminatório praticado num mundo fechado, cercado por uma vegetação cerrada, espinhosa e labiríntica. É uma grande incompreensão, onde residirá também a incompreensão por um afecto e por uma dependência que pode também ser a nossa. Esse o transporte que em Grey Gardens e em The Beales of Grey Gardens (feito posteriormente com material que sobrara do primeiro filme) se opera – a transferência para nós de um conjunto de situações que de início nos parecem inteiramente excêntricas. E, repita-se, pouco mais é preciso que dedicação, um pouco de amor, uma câmara e um bom microfone. Salesman (1969, com realização também de Charlotte Zwerin) apresenta uma imagem pouco usual da América. Faz pensar em Wise Blood, de John Huston, que retrata uma América provinciana cuja persistência hoje não é já uma surpresa mas a confirmação de que a história não tem necessariamente de caminhar para um futuro de tolerância e modernismo, Pouco interessam algumas críticas que se apontam aos irmãos Maysles por não serem por vezes tão verdadeiros quanto a ideia de cinema verdade – ou cinema directo – com a qual aparecem frequentemente associados, impõe. Os filmes que ficaram são testemunhos bem directos de aspectos menos conhecidos da América. Salesman segue um grupo de vendedores de bíblias de luxo em Nova Inglaterra e na Florida. Para além de ser sobre religião é mais particularmente sobre um pobre diabo, o Senhor Brennan, que tem de vender o Livro para sobreviver. Tão atraente como a tristeza que o envolve é penetrar nas casas de classe média baixa das famílias a quem tenta vender o seu produto. Este é um filme que explora, com compaixão, uma estética do falhanço. Um grupo de homens solitários e cinzentos cuja identificação – ou sequer afecto – para com o produto que vendem nunca vem ao de cima. O semblante carregado, a pressão de vender, o cabelo molhado, os cigarros constantes, uma linguagem corporal pesada e a persistência da referência às origens, irlandesas ou escocesas, são as parcelas visíveis desta imagem. O espectador, cruel como um estudante liceal, delicia-se na queda lenta do pobre Brennan (diferente da queda de Grey Gardens, a que não assistimos mas que é uma queda consumada, acabada, compreendida, vivida com compulsão, e em que as duas figuras principais, mãe e filha, se acabam por constituir como verdadeiras personagens cujo comportamento excêntrico as torna quase ficcionais), no espectáculo dos motéis, das camisas de manga curta com gravata e canetas no bolso e das conversas pouco interessantes. Assim como Grey Gardens, Salesman é sobre entrar na casa dos outros, e como ele um produto sedutor mas de um sabor amargo que questiona a justeza da nossa propensão para a coscuvilhice. Nos dois se demonstra uma domesticidade que vem acompanhada de odores e ruídos próprios e reforça a ideia de que o tom documental não é necessariamente diverso do ficcional. A nível da intenção, a ficcional e a documental, não existem diferenças que vão para lá de uma fachada, e estes filmes ilustram com brilho a ideia que já aqui nesta página se expôs várias vezes sobre a indefinição da fronteira entre o documentário e a ficção e a ganga classificativa que tem acompanhado, inutilmente, a historização e a classificação do cinema. O cinema é a arte de que menos se devia falar. Tal como acontece com Grey Gardens, o aparente desprendimento da equipa de filmagem vai aos poucos demonstrando afecto pelas figuras filmadas e o modo como se fixa, intensamente, nos rostos dos retratados, revela um inocente desejo de compreender e de penetrar fundo no seu sistema de desejos e desilusões. Gimme Shelter, 1970, co-realizado com Charlotte Zwerin, é um pouco diferente. É sobre um concerto da banda Rolling Stones, o Altamont Free Concert (1969), integrado numa tournée pelos Estados Unidos – houve 4 nascimentos e 4 mortes. A inocência do Flower Power esgotara-se, a densidade que se desenvolveu neste espectáculo é violenta e natural. É conhecido porque se centra num concerto onde se deram vários acontecimentos, não musicais, que o marcaram. Trata-se, ao contrário dos outros dois filmes, de um filme sobre um grupo de pessoas conhecidas e sobre um acontecimento famoso. Não retrata de modo nenhum uma existência doméstica. Não nos deixemos arrastar por grandes entusiasmos. Não são grandes filmes. Cinematograficamente pouco há que os distinga para lá de um à-vontade de ir filmando, sem planos, deixando correr a filmagem, o que ficou conhecido como cinema de reacção – o seu encanto vem desta inocência. Libertam a ideia de que qualquer um, com uma câmara e um microfone poderia fazer filmes semelhantes (de certo modo é o que acontece hoje em dia, especialmente porque filmar é uma actividade muito acessível em termos de custos e em termos técnicos). O que os distingue é o interesse que a vida dos retratados podem suscitar junto do público. O mesmo se pode dizer dos filmes de um outro autor americano que já foi alvo de atenção nestas linhas: Errol Morris. Neles se exibe uma América demente e sanguinária e uma obsessão pela morte, mas também um comprazimento (em alguns) pela descrição do interior doméstico e pela excentricidade de figuras banais. Aceder aos filmes dos irmãos Maysles e de Errol Morris permite aceder, pelo menos, a uma colorida encenação da América.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e Ideias“A revolução de 1383” de António Borges Coelho [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntónio Borges Coelho é natural de Murça, distrito de Vila Real em Trás-os-Montes onde nasceu em 1928. Tendo-se dedicado a várias actividades literárias tais como a poesia e o teatro é porém como historiador que produziu as suas obras mais significativas. Dessa obra variada e multifacetada destaco, A Revolução de 1383, uma das primeiras obras do autor datada de 1965, As Raízes da Expansão Portuguesa de 1964, Portugal na Espanha Árabe publicada entre 1972 e 1975, Comunas ou Concelhos de 1973, obra de referência para a compreensão social do fenómeno das cartas de foral atribuídas em Portugal ao logo da Idade Média, A Inquisição em Évora de 1987, que constituiu o tema da sua dissertação de doutoramento, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Dedica-se actualmente à elaboração e publicação de uma História de Portugal da qual saíram já alguns volumes. Foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago e recebeu o Prémio da Fundação Internacional Racionalista. A revolução paradigmática Para Borges Coelho, tal como para António Sérgio e Álvaro Cunhal, a revolução de 1383 foi sobretudo orientada pela burguesia comercial e marítima e em certa medida instrumentalizada por esta classe social. Apesar de nenhum destes autores utilizar o conceito de sobredeterminação ou de causa em última instância, é esse o tipo de compreensão que resulta. Para Joel Serrão, que se opõe às teses dominantes, a revolução foi essencialmente popular e a verdade é que houve momentos em que o povo foi mesmo o único braço a abraçar a causa da revolução sem ambiguidades, mas a verdade também é que o plano foi gizado por Álvaro Pais e que o apoio da burguesia foi determinante. Quer dizer, apesar do papel importantíssimo do povo, a revolução foi, às claras algumas vezes e na sombra outras, desencadeada e alimentada pela estratégia e pelos interesses da classe média, o que quer dizer que foi em última instância liderada pela burguesia e sobredeterminada pelos seus interesses. É justamente isso que nos mostra a obra de António Borges Coelho. Nota adicional: Borges Coelho seguiu de perto a crónica de Fernão Lopes. Porquê? Desde logo porque é o grande documento da época e provavelmente o mais fiável. António Borges Coelho defende Fernão Lopes dos seus «detractores». E porque é que são «detractores»? Porque «o que a muitos dói é o conteúdo revolucionário da crónica que é a história da primeira revolução burguesa nacional». Porquê esta defesa tão apaixonada de Fernão Lopes? Possivelmente porque, como Álvaro Cunhal tinha afirmado, «o testemunho de Fernão Lopes é uma contribuição decisiva para a compreensão do carácter de classe da revolução». Ou provavelmente apenas porque Fernão Lopes é um cronista em vias de o não ser e a sua modernidade teria que ser tida em conta. Borges Coelho não foi o primeiro a incensar Fernão Lopes e seguramente que também não foi o último. A verdade é que o processo complexo que agita a sociedade portuguesa na antecâmara da Idade Moderna possui os contornos inequívocos de um processo revolucionário e é isso que incomoda algumas consciências. E a revolução de 1383 foi até uma revolução muito paradigmática pois não excluiu o plano do afrontamento social e o plano do confronto não apenas ideológico mas com recurso a uma violência que não deixa margem para dúvidas relativamente ao seu carácter revolucionário e radical. O assassinato do Bispo da Sé de Lisboa assim como a coacção sobre muitos alcaides que hesitavam em tomar partido pelo Mestre de Aviz, e alguns deles foram identicamente assassinados, são a par da fuga para Castela de figuras gradas da nobreza da época, sinais claros de que a revolução de 1383 apresentou todas as características de um processo revolucionário de classe. Pelo que me parece portanto que a análise de Borges Coelho é acertada, tanto na ênfase revolucionária, como na sua característica subordinada à luta de classes. Quanto ao valor da crónica de D. João I e do próprio Fernão Lopes Borges Coelho não foge à questão e no prólogo à segunda edição da obra diz: “Em que base se apoia «A Revolução de 1383»? No poço sem fundo em que mergulharam e beberam todos os comentadores: a Crónica de D. João I de Fernão Lopes. E não se envergonha do facto. Não tem complexos por isso. Quem desdenha da Crónica ou é tolo ou tem medo das cargas explosivas que transporta no seu ventre”. Mas diz ainda referindo-se a outras fontes da sua obra: “Mas o livro não enjeitou outras informações nem fugiu, muito menos, à contraprova documental. Embora não tivesse hibernado nos arquivos, utilizou os cinco livros da Chancelaria de D. João I conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo; analisou numerosos documentos laboriosamente recolhidos por Silva Marques nos Descobrimentos Portugueses; por Gama Barros na História da Administração Pública em Portugal, por José Soares da Silva nas Memórias para a História…; por Caetano de Sousa na História Genealógica da Casa Real Portuguesa – Provas… E não só. Bebeu ainda, contestando, nos diferentes autores que abordaram o que alguns ainda hoje designam, pudicamente e por hábito, como «crise». Cito, em especial, as Crónicas de Pedro Lopes de Ayala e Jean Froissart, A História da Sociedade em Portugal no século XV de Costa Lobo, As Lutas Sociais em Portugal na Idade Média de Álvaro Cunhal, a História da Cultura em Portugal de António José Saraiva, o prefácio à Crónica de D. João I de António Sérgio, O Carácter Social da Revolução de 1383 de Joel Serrão, etc”. Com estas considerações o autor abre-se a uma ampla bibliografia sobre o estudo do tema e desse modo situa o seu livro no duplo papel de interpretação original a partir das fontes mas também o seu papel de síntese centrada nas múltiplas abordagens levadas a cabo pela historiografia e pelo ensaísmo nacional ao longo do século XX.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasNotícia da explosão antes dela ocorrer [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início de Outubro de 1850, o Tenente Luís Maria Bordalo em Macau acabava de receber uma carta do irmão, escrita em Lisboa entre finais de Agosto e princípios de Setembro. Francisco Maria Bordalo mostrava-se preocupado pois na capital corria o rumor sobre uma explosão na fragata D. Maria II estacionada em Macau. Perguntava-lhe pela saúde, como desejo de resposta ao acontecimento que escutara. Estranha história a que leu sobre tais rumores e logo na fragata D. Maria II em que andava embarcado. Os territórios portugueses do ultramar eram desde há muito cobiçados por holandeses, ingleses e franceses e como elemento dissuasor, em meados do século XIX foram “estabelecidas as estações navais, isto é, agrupamentos de um ou mais navios cujas missões eram coordenadas pelo comandante do navio mais antigo e que permaneciam na área durante um período prolongado”, como explica Rodrigues da Costa. Já Luís Gonzaga Gomes referia que a 10 de Setembro de 1850, a estação naval compunha-se da fragata D. Maria II e das corvetas à vela Iris e D. João I, tendo os três navios 559 praças de guarnição. Esta imponente fragata, construída por volta de 1810 em madeira teca, fora comprada à Inglaterra em 1831 pelo Rei D. Pedro IV. Tinha então o nome de Ásia, sendo também na mesma altura adquirido o navio Congress. Mudaram ambos o nome, ficando a fragata a chamar-se D. Maria II, nome da filha de D. Pedro e que seria coroada a 15 de Setembro de 1834, passando o Congress a ter o nome de Rainha de Portugal. Estes dois navios eram os principais da esquadra liberal e a fragata D. Maria II estivera nos momentos decisivos da restauração do regime liberal, em 1832. Primeiro, na Ilha Terceira nos Açores, depois no desembarque das tropas liberais de D. Pedro na Praia do Mindelo para irem ocupar a cidade do Porto e por fim, nos bloqueios do Tejo. Após terminada esta guerra entre D. Pedro e D. Miguel, ambos filhos de D. João VI e com a nova Constituição Setembrista de 1838, que representou a primeira tentativa de reconciliação entre as duas posições constitucionais antagónicas (a democrática de 1822 e a realista de 1826), a fragata fez três viagens até à Índia. Entre 1846 e 1847 participara nos combates contra a Junta Revolucionária de tendência miguelista. Voltou a fragata à Índia em 1849 sendo então comandada pelo Capitão-tenente Francisco de Assis e Silva. Estando em Goa, foi requisitada para Macau onde a 22 de Agosto de 1849 o Governador Ferreira do Amaral tinha sido assassinado. Aqui chegada a 3 de Junho de 1850, a fragata D. Maria II com os seus quarenta e dois canhões integrou a Estação Naval de Macau, conjuntamente com as corvetas à vela Iris e D. João I. Explosão na Fragata Francisco Maria Bordalo, no seu livro ‘Um passeio de sete mil léguas’ descreve que: “Em mais de metade do seu curso ia o dia 29 de Outubro de 1850. Um formoso sol alumiava a enseada da Taipa, onde se baloiçavam dois vasos de guerra, vistosamente adornados de flâmulas e galhardetes, trajando suas melhores galas, e saudando com o ribombo do canhão o aniversário de um rei filósofo e artista. Acabavam de soar duas horas e meia nos sinos das embarcações, quando uma delas se ergueu com todo o seu peso sobre o dorso das águas, despedaçou-se com um estampido medonho, e de entre colunas de fumo e fogo arrojou para longe de si madeiros, canhões, ferragem e cordoalha…” Ocorreu essa violenta explosão na fragata portuguesa D. Maria II, fundeada na Taipa, em frente de Macau, onde se encontrava ancorada no dia do aniversário do Rei D. Fernando (segundo marido da Rainha D. Maria II), quando estava em vésperas de largar para a Índia. “Da corveta americana Marion, que ali se encontrava também ancorada, correndo grande risco, acudiram com destemida coragem os seus oficiais e marinheiros, porém, apenas puderam recolher os restos mortais de algumas das vítimas” Luís Gonzaga Gomes. A corveta Marion escapou com muita sorte ao iminente perigo pois, estava fundeada a pouca distância da fragata e viu passar a artilharia desta entre os seus mastros, ficando apenas com cabos cortados e um ferido. Os marinheiros da corveta, ainda havia pequenas explosões e já arriscando as suas vidas, prestavam socorro, conseguindo retirar dez homens do que restava da fragata, encontrando-se todos muito feridos. Carlos José Caldeira, no seu livro ‘Apontamentos de uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa’, refere encontrar-se no palácio episcopal quando escutou um grande estrondo e detonação que abalou a cidade quebrando vidraças, “indo às janelas que deitavam para a Taipa, vi uma espessa e negra nuvem de fumo na direcção em que estava a fragata, e quando foi correndo vagarosamente com o vento, apareceu apenas uma parte da popa do navio, que daí a pouco começou a arder. Corri à Praia Grande e encontrei o ajudante do governador Leite a embarcar numa lorcha para o lugar do desastre; acompanhei-o, e presenciámos ainda no caminho duas explosões parciais. Fomos os primeiros que de Macau chegámos a bordo da Marion, e vi o mais doloroso espectáculo que jamais presenciei. Os corpos de dez homens desfigurados, e com os membros quase todos despedaçados, jaziam no convés banhado de sangue, dando os mais lamentosos gritos; era uma cena de cortar o coração. Tinham sido tirados dos restos da fragata, ou do mar pelos escaleres da Marion; entre eles havia o tenente mouro ou lascar Vsangi, e o guarda-marinha João Bernardo da Silva Pereira, que estava de quarto, e que morreu à minha vista em tormentos horríveis. Daí a pouco chegaram os escaleres da Íris e da D. João, e o próprio comandante da estação, e em seguida foram os feridos conduzidos para o hospital em terra, onde depois todos vieram a morrer, à excepção de um grumete português.” Segundo o que conta Marques Pereira, pereceram “cento e oitenta e oito vidas da guarnição, proximamente quarenta de chineses que estavam a bordo, ou junto do navio, e de três marinheiros franceses, presos. Escapou vivo da catástrofe só um grumete, chamado Barbosa”. Manuel Teixeira refere que os três marinheiros da galera francesa Chilli estavam na fragata detidos. “Dos salvados porém viveram cinco, sendo deste número dois chinas dos trinta que, se supõem, estavam a bordo, e nas embarcações que se achavam atracadas à fragata, os quais, com a única excepção daqueles dois, pereceram todos.” Por se encontrarem em terra, da guarnição escaparam à explosão trinta e seis praças e entre eles o segundo-tenente João Maria Celestino e o Aspirante Francisco Assis da Silva, filho do Comandante, que doente estava no hospital. À noite, a parte da fragata à tona continuava numa grande fogueira de madeira teca no “meio da água, como luz sinistra, ou tocha funerária ardendo sobre o sepulcro de tantas vítimas” na escuridão de um episódio de má memória. O suspeito responsável pela explosão Se a maior parte dos corpos ficaram despedaçados pela explosão e desapareceram nas águas, setenta e um cadáveres foram sepultados, sendo oito provenientes dos que tinham sido salvos pela corveta americana Marion, mas desses, apenas sobreviveram dois chineses. O cadáver do Comandante, o Capitão Tenente Francisco de Assis e Silva, foi encontrado dois dias depois, sendo sepultado no Cemitério de S. Paulo com todas as honras que lhe eram devidas. Segundo o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 16 de Novembro de 1850: “Impossível é explicar a causa da horrível catástrofe. Sendo bem sabida a severa disciplina, e a boa ordem que o Comandante Assis mantinha a bordo do seu navio, não se pode atribuir aquele desastroso acontecimento a algum descuido havido na ocasião da Salva, que nesse dia se fez a bordo; muito especialmente se nos lembrarmos que a explosão teve lugar duas horas depois não se tendo observado sinal ou indício algum de incêndio a bordo, nem de bordo da Corveta Americana Marion, que estava fundeada mui próximo da fragata, nem do posto da Taipa; o que faz crer que a explosão foi efeito de fogo lançado no paiol da pólvora; mas como, ou por cuja agência, só Deus sabe, e é possível que nunca venha a descobrir-se.” Assim, a causa da explosão no paiol onde se encontravam trezentos barris de pólvora deveu-se a alguém ter aí posto fogo. Carlos José Caldeira no seu livro diz: “A fragata foi destruída pela explosão do paiol da pólvora, onde se levou fogo de propósito, ou por descuido; pelo que disseram os que sobreviveram algum tempo a esta catástrofe, torna-se provável a primeira hipótese: o fiel da artilharia era um conhecido malvado, bêbedo relaxado, e tinham-se-lhe ouvido ameaças de praticar tal atrocidade, por ocasião de receber alguns castigos; naquele mesmo dia antes da salva, parece que o próprio comandante lhe puxara pelas barbas, por alguma falta no serviço.” Carlos José Caldeira refere: “O grumete português Barbosa, único que sobreviveu a esta espantosa catástrofe, foi por uma leve falta chibatado a bordo da D. João pouco tempo depois de restabelecido, e daí a pouco desertou do serviço. Teve razão de fugir por tal acto de barbarismo, ou de inadvertência.” Um estranho enigma O texto oficial que narra o acontecimento apareceu no Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 15 de Fevereiro de 1851 e terá sido escrito por Carlos José Caldeira, na altura responsável pela redacção do Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, como refere Rogério Beltrão Coelho na Revista Macau de Janeiro 98 ao falar do Livro “Memória de 1850” de Carlos José Caldeira editado em 1997 pela Quetzal. Nesse Boletim do Governo lê-se uma notícia do Friend of China de 22 de Janeiro de 1851 onde se refere o seguinte: “Cinco dias antes da explosão da Fragata D. Maria II, na Taipa, uma nau Turca de primeira ordem, com 104 canhões e 700 homens e o Vice-Almirante a bordo, voou pelos ares em Constantinopla. O Malta Times de 12 de Novembro refere que a nau se denominava Neiri Cheykit e que além dos 700 homens da tripulação havia a bordo 200 recrutas de outros navios. O Sultão tinha tido grande desgosto com este desastre e com a sua liberalidade costumada, mandara 100 000 piastras do seu bolsinho para distribuir entre as viúvas e os órfãos da tripulação e tinha ordenado que de todos se fizesse uma relação com o fim de lhes conceder pensões. Nesta catástrofe se perdeu a flor da oficialidade da Marinha Otomana.” Segue-se outra notícia do China Mail de 23, o Daily News de 20 de Novembro, diz: “Notícias recebidas pela mala da Índias Ocidentais nos referem o facto que no dia 24 de Agosto de 1850 a bordo do navio de guerra inglês Sieift, tendo sido repreendido por negligência nas suas obrigações o Fiel de artilharia Villiam Muir, dirigiu-se este ao fogão da proa, acendeu um murrão e foi descoberto pelo cabo do destacamento no acto de entrar no paiol, com a intenção de fazer voar o Navio.” E continuando no Boletim do Governo: “São bem singulares as circunstâncias deste facto, pela semelhança que apresentam, com as que provavelmente precederam a explosão da Fragata D. Maria 2a., segundo a conjectura mais provável que pode explicar aquele terrível sucesso e que o atribui ao Fiel da Artilharia da mesma Fragata que, além do seu péssimo carácter, também fora repreendido asperamente depois da salva ao meio-dia de 29 de Outubro. Custaria até aqui conceber tanta maldade no coração de um homem, mas o acontecimento referido, mostra bem que há na espécie humana monstros capazes das mais horríveis acções. Virá aqui a propósito referir outra extraordinária coincidência relativa ao mesmo sucesso.” Voltemos à carta de Lisboa recebida pela mala que chegou a Macau nos inícios de Outubro de 1850, quase meio mês antes da explosão acorrer. Quando o Tenente Luís Maria Bordalo leu o que seu irmão Francisco escrevera sobre os rumores que circulavam em Lisboa, por ser muito singular o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, pois falava da notícia de uma explosão na fragata D. Maria II. Estranho quando só dois meses depois tal se veio a verificar a 3600 léguas de distância, tendo o Tenente Luís Maria Bordalo morrido na explosão. Na ilha da Taipa, junto à fortaleza, encontra-se escrito em português e chinês um memorial às vítimas da explosão da fragata D. Maria II erecto em 1851. No entanto, todas as datas em ambas as línguas, que na pedra granítica foram gravadas, estavam erradas e após terem sido emendadas muito mais tarde, não se conseguem agora ler com nitidez.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasNem a luz [dropcap style=’circle’]G[/dropcap]ostar de conduzir. Um paradigma onírico de infância que seria fácil de explicar. A ver com mais nada do que comigo própria. Nenhum intuito de poder. Nenhuma ilusão megalómana de mostrar caminhos, dominar existências. Conduzir como caminhar, num veículo como uma segunda pele. Mas também conduzir passos por entre as margens de indeterminação de alguns momentos, como modo de resistir à convergência excessiva de outros. Outra maneira de deixar passar o tempo. Menos sombria do que na noite e menos saída do curso dinâmico daquele, é caminhar pelo dia. Igual a deixar a noite caminhar por nós. Igual a não fazer nada e ficar simplesmente a imbuir-nos do fluir da vida como se nada nos obrigasse. Igual à noite na sua ausência possível do elaborar. Mas mais luminoso. Caminhar o dia inteiro como se mais nada houvesse. Uma coisa solar. Coisa racional. Que limpa de escolhos quotidianos e em que se depara com a inutilidade do sonho de domar a existência. Que é quem nos leva. Contrariar esta exaustão de tantas coisas que não são nada. Uma luta inglória, mas da qual não há que fugir. Algo se constrói, que não pode ser tudo o que o sonho e os compromissos delinearam. Mas o caminho é turvo, e demolidor, introduz com intencionalidade farpas que nos impelem para a frente. Que obrigam a correr. Por isso é preciso sair. Regularmente como quem leva um cão a passeio. Sair dos moldes diários e ensaiar um arremedo de liberdade. Limpar a alma de círculos viciosos, etéreas amarras, que marcam e ferem como cordas apertadas, a pele. Este brilho mais suave da luz, quase de Outono. Sem a dureza do Verão que obriga a caminhar rente às paredes como na cidade da minha infância. Branca como não há outra aqui. Noutras paragens sim. Branca, incendiada, acesa com toda a luz possível e pequenas sombras de início da tarde. Caminhos escuros nas beiras de fachadas imaculadamente caiadas e com amor. Ano após ano o banho de luz de uma cal fina. E eu, meio estrangeira, caminhava entre casas de avós e tios-avós, renitente ao apagamento da sesta. E também orgulhosa de lhe saber os caminhos tão bem, dentro e fora das muralhas, como se fosse minha. A cidade de primas e primas-avós de nomes luminosos como Cândida, Aurora, Estrela, Felizarda, Esperança. E nomes de flores. Mas isso é uma outra estória num outro lugar de tios e primos. Essa luz excessiva a compensar o facto de a cidade mergulhar na terra arenosa e plana, longe da água. Alguém me dizia, por uma vez dever tentar escrever algo luminoso. Recuar até alguma memória que o fosse. O que fiz. A luz, a luz e as suas sombras. Inseparáveis. Porque nem a luz. Nem ela na sua plenitude que tudo faz e desfaz, nos seus excessos, é dissociável das trevas que são o seu reverso. Como fugir aos cantos escuros das coisas, sem uma dose impensável de distância anestésica, e como abstrair-me do olhar que tenho sobre os limites. Meus e de outros. Como não reconhecer os lados de trás, mesmo das coisas mais luminosas e como não temer o dia que ainda se insinua, e já é definido por um esboço incontornável de premeditação. Fazer minhas, realidades alheias, sentir com tristeza o evoluir inexorável de um comboio que irá para além de mim e ao qual a minha indiferença é apesar de tudo uma impossibilidade. Como?… Aquilo de que quereria falar, é da luz objectiva, que incide nas coisas e as dá a ver. Da luz que lembrei ao desfolhar esse pequeno museu de memórias. De cidades. Da luz que ilumina fisicamente e apaga os fantasmas da noite. Da luz que é estar aqui e não debaixo de terra. E que, pouco ou muito, tem que ser estímulo prosaico e suficiente. Memórias lá muito atrás, parecem estar lá em baixo. Longínquas e muitas com esta luz de Évora sempre. Mas tantas sombras inerentes. A infância não é paradigmática senão pela completa abstracção de tempo passado e futuro. Para além disso tem cores tão sombrias como pode ter qualquer outro momento da vida. Tudo o que lembro está envolto numa luz. Diurna. Ou na sua ausência, numa penumbra suave, ou numa quase escuridão de onde se autonomizam formas essenciais. Daquelas que não precisam sequer de iluminação porque mesmo mergulhadas no abismo escuro, são alcançáveis pelo tacto. As outras que são imprecisas e talvez inexistentes, nascem da escuridão e apagam-se com a luz. Curiosa inversão de coisas. Claro que ela é o revelador. Mas tem uma consistência própria como se uma matéria têxtil que se estende sobre todas as coisas cobrindo-as de uma interpretação particular. A luz é amante táctil das superfícies e dos recantos onde se recusa a entrar. Ou talvez se esconda neles. Invisível e lúdica. É uma espécie de olhar irónico ou caloroso e sorridente a descrever tudo por onde passa. Gosto desta luz mais suave. Da mesma forma diferenciada a produzir brilhos nas transparências de cada folha fina de árvore. O mais luminoso que encontrei, metáfora dos passos que quero leves. Há na matéria orgânica que nos compõe uma formação, atávica, genética, de apelo à sobrevivência. E à morte. Há dias em que não sei viver, para além da inércia a que não consigo subtrair-me, excepto na escolha radical entre luz e sombra. O tudo e o nada que gere e gera esta página da vida, noutros dias em cinzas, hoje entre a luz e a escuridão total. Quando as margens são as do abismo , não há meio termo. Vida e morte andam por aí. O que sinto, queria, prefiro nessa outra língua mais redonda, sucinta e suave. Lost. No demasiado conhecido. Sinto. A razão a encaminhar passos surdos, que se quereriam perder porque essa é a metáfora do momento. A da luz, senhora das mais ricas e essenciais conotações. Vida, saber. E os seus contrários, sem os quais não há sentidos tão densos. E todos os caminhos que os meus passos ensaiam acabam por ir dar ao rio. E o rio, são os dias líquidos a correr. O segredo é não definir uma geografia possível, não definir um limite e não ter objectivos. Mas há uma inclinação que faz resvalar mesmo a partir de dentro para o rio. Não saberia viver numa cidade interior. Só à noite e mesmo assim sabendo-o ali mais abaixo. Noutro tempo, em Macau lá longe, no primeiro ano todas as manhãs, muito cedo, descia da Penha em direcção ao rio, uma enorme mancha lisa de um branco prateado, sem o mais leve irisado, da mesma cor do céu, mas com um brilho ténue e a mesma mansidão alastrada à cidade nas imediações, quase sem cores para além dos cinzas suaves. É como o lembro de então. E desembocava na baía contornando-lhe o recorte que já não existe, o mais possível encostada a ele. As árvores de S. José, os homens dos passarinhos contemplativos. Até que, mais à frente tinha que inverter para dentro da malha urbana, para chegar ao meu destino. À noite a mesma coisa mas de noite. Aulas nocturnas, então. Meia hora para lá e meia hora para cá. Três cidades. E uma quarta em que nasci por acaso e que visitei miúda, naquela curiosidade afectiva de ser dali. E com a megalomania inocente de criança, orgulhosa de esta ter nada menos do que as portas do sol. Os socalcos sobre o rio um pouco assoreado, pequenino ali, e que eu não entendia como se tornava enorme aqui mais abaixo. Olhei-o como rio-criança. E áquilo a que resumi a minha cidade de nascença, com um nome luminoso e uma amplidão de vista mesmo de fora que é só o que recordo, uma semelhança lírica com a cidade perdida dos Incas. Fantasia curta e maravilhada de pré-adolescência. Analogia feita mais tarde, certamente mas ainda com a mesma ingenuidade. Cidades brancas como a luz. Lá atrás. Num ângulo particular, uma hora do dia e da memória, uma estação do ano e da vida. A luz, que resiste indecisa entre a sua natureza simbólica e a sua natureza metafórica. Falar na luz e no seu contrário, a sombra que dá existência às coisas fugidias, irreais e mutáveis. Segundo a sabedoria dicotómica oriental, o estudo das sombras é o yin, na base da geomancia antiga e portanto da orientação. Ao contrário da conotação ocidental com símbolos do mal, da perdição e da morte. Nos evangelhos, como no Corão, nos textos taoistas, ou textos filosófico religiosos budistas, sempre a eterna e universal oposição entre luz e trevas. Figurada poeticamente no ocidente por aquela entre anjos e demónios, ou na China pelas influências celestes ou terrestres, sendo que a terra designa as trevas e a ignorância e o céu a luz e a sabedoria. E são da mesma natureza, fazendo parte do mesmo caminho de busca do conhecimento. Tal como na gnose ismaelita a oposição é a do corpo e do espírito, princípios luminosos e obscuros coexistentes no mesmo ser, a dualidade Yin e Yang chinesa em que em cada um contém traços do outro. No Islão é espírito. Segundo S. João, identificada ao verbo. Este simbolismo da luz-conhecimento, sem refracção, ou seja apercebida sem intermediários deformadores e por intuição directa, define o carácter da iluminação iniciática. Esse conhecimento imediato, que é luz solar opõe-se à luz lunar, que sendo reflectida figura o conhecimento discursivo e racional. A luz sucede às trevas tanto na ordem da manifestação cósmica como da iluminação interior. (Post tenebras lux) Por isso ver a continuidade dos dias com a sua enorme carga de obscuridade e de desconhecido. Ao invés do desalento imiscuído na certeza da infelicidade, da configuração de uma linha de vida à luz de um olhar fatalista, em que o desenho esboçado parece fazer antever com toda a nitidez a perpetuação dos motivos que nos tolhem. E do saber, fazer parte o enorme quinhão de ignorância como forma aberta. Só assim suportável caminhar até ao dia seguinte. A primeira coisa pela manhã, é lavar o rosto do torpor do sono, da má vontade de acordar. Uma frescura boa para recomeçar, e no caminhar lavar também a alma das marcas de todas as certezas demolidoras. Diluí-las, no olhar para as coisas de sempre mas sempre outras, as mesmas coisas como a mesma água fresca da manhã. Tudo igual, mas subtilmente como se fosse o início de todo. O mesmo brilho da luz nas coisas, a mesma cidade, o mesmo rio, a mesma pessoa. Outro dia. E o espaço vazio para algo diferente se aconchegar no seio de tanta mágoa acumulada. E pensar que desistir, só ontem ou amanhã. Se muitas vezes não se pode ver a realidade a uma luz diferente da que nos fere, há que não olhar. Fazer tréguas sem pesar. Perder momentaneamente o apego àquela melancolia ancorada no sentido de se estar na razão ao ser infeliz. Este país de gente a rebentar pelas costuras de não caber na ordem de penas que lhe cabem, de gente sem uma luz vinda lá de longe, não se sabe sequer de onde poderia sonhar-se. De gente que não consegue deixar de se permitir estragar o pouco de reservas de bem- estar, que fica doente também da mente, que se aliena no próprio circuito fechado da dor e da alienação, não conseguindo já destreza para encarar tudo como um mal de saúde entre outros mas que não precisaria de o ser. E a luz, que o é sempre e é gratuita, e já não conforta nem consola quem prefere sucumbir ao peso dessa inércia, a aceitar que ela pode ser adiada para o momento anterior ou seguinte. E entre eles algo de silenciosamente nulo a poder ser a trégua entre batalhas. “A existência não é mais do que um curto-circuito entre duas eternidades de escuridão”. Palavras de Nabokov. E quando parece não haver nada a fazer, há que caminhar entre as duas eternidades. De uma para a outra. Mesmo não lhes sabendo os limites, início e o fim. Mas entre ambas. No lado iluminado das coisas, mesmo que este se restrinja à crua realidade da luz solar, do dia claro ou ensombrado de nuvens. Sempre uma luz a opor-se às trevas maiores. Deverá haver na felicidade absoluta uma demência e uma alienação egocêntrica que não é nem paradigma possível. Ter a luz e as respectivas trevas como reverso. E luminosidade garantida, essencial e diária. A possibilidade de olhar simplesmente este intervalo de luz real, sair em parte dos trilhos sofridos e viver à luz da metáfora inesgotável o momento raro de estar aqui. Raro e precário. Raro e breve. Olhar a luz e as suas revelações físicas, concretas e conhecidas, ou pequenas novidades no conhecido na sua incompletude, ou simbolicamente no muito que significa só por ser universalmente o registo de estar. De ver. Por agora e enquanto é possível. Não será talvez uma construção. Não num sentido sólido, estruturado e articulado. Tão só, talvez a desconstrução da inércia desesperante dos dias que se sucedem indomáveis inglórios e frustrantes. O poder não está do lado luminoso. As grandes decisões competem a quem tem as motivações mais sombrias. Resiliência é ser momentaneamente e serenamente feliz a prazo apesar de tudo. Por momentos. Passar é o que se faz. Deixar pegadas ou não, não é um acto de vontade. Nada mais forte visceral e absoluto. Olhando o comum cenário lavado das contingências existenciais. As ruas, as fachadas de vidas sabe-se lá quanto mais difíceis, os caminhos urbanos, a opaca realidade das pedras, a depurada, embora por vezes sem futuro, premência das formas naturais, a alternância dos dias e das noites, da luz sobre as coisas e da morte sucessiva das mesmas. A luz. Enquanto o sol durar pendurado nos dias, é bom sinal. E caminhar. Como mantra ou desassossego.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO medo da inscrição [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ilósofo e pensador português nascido em 1939, em Muecate, Província de Nampula, Moçambique. Após completar o ensino secundário na capital moçambicana em 1957 veio estudar para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde se inscreveu no curso de Ciências Matemáticas. No ano seguinte mudou-se para Paris, em França, onde prosseguiu os estudos em Matemática, no entanto, percebeu que a sua área preferida era a Filosofia e mudou de curso. Em 1968 concluiu a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras de Paris, na Universidade da Sorbonne. No ano seguinte fez o mestrado de Filosofia, com uma tese sobre a moral de Kant. Em 1982 concluiu o doutoramento com a tese Corpo, Espaço e Poder, editada em livro em 1988. Entretanto, já desde 1965 era professor de Filosofia num liceu, funções que manteve até 1973, com passagens por Vincennes e pela Córsega. A partir dessa altura foi coordenador do Departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VIII. Em 1976 José Gil regressou a Portugal para ser adjunto do Secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica. Cinco anos mais tarde instalou-se definitivamente em Portugal quando passou a ser professor auxiliar convidado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Leccionou Estética e Filosofia Contemporânea e paralelamente deu aulas no Colégio Internacional de Filosofia, de Paris, numa escola em Amesterdão, na Holanda, e na Universidade São Paulo, no Brasil. A partir de 1996 passou a dirigir a Colecção de Filosofia da editora Relógio D’ Água. Publicou diversos artigos e ensaios científicos em revistas e enciclopédias de todo o mundo, destacando-se nas suas preferências a reflexão sobre o corpo. Em 2004 publicou Portugal, Hoje. O Medo de Existir, a sua primeira obra escrita directamente em português, que rapidamente se tornou um sucesso de vendas O medo da inscrição Em princípio, talvez a priori mesmo, seria tentado a opor uma imediata resistência à ideia do que a expressão “medo de existir” sugere, ou pelo menos pode sugerir. Mas uma vez lido o livro, devo dizer que compreendo a utilização do conceito e da expressão e com ambos me solidarizo. Afinal a expressão não é, sobretudo, para interpretar de uma forma literal. Não há qualquer coisa como um inequívoco medo de existir enquanto facto, mas antes do mais um medo da inscrição e sobretudo um medo difuso, enquanto sintoma, e por esse motivo um “medo entranhado, incorporado, medo sem objecto (…) e no entanto ubíquo”. Toda a obra de José Gil é aliás sobre sintomas e nesta perspectiva ela inscreve-se numa tradição antiga, que mergulha sobretudo na genealogia barroca. Porém essa inscrição na cultura barroca é incompleta na medida em que o livro de José Gil, não se desenvolve segundo os cânones de uma medicina, ou melhor de uma vocação terapêutica, mas antes apenas numa perspectiva semiológica. Claro que o momento da análise semiológica é já determinante para a elaboração de uma solução terapêutica, uma vez que esta se começa a esboçar sob a rede articulada dos sintomas e acabará por se expor na superfície do quadro uma vez constituído. Contudo o autor deixa as coisas no plano dos subentendidos inevitáveis e não passa à elaboração de uma grelha de soluções ou simples sugestões, como se o momento da elaboração do quadro clínico até ao momento do diagnóstico fosse um momento completamente separado do outro momento, aquele em que se elabora um receituário. Como se, no fim de contas, esse outro momento não interessasse ao filósofo. Mas como disse, muitas vezes não é necessário explicitar as soluções uma vez que o acto de elaboração do diagnóstico põe tudo em evidência. Por exemplo, no texto de José Gil fica muito claro que a não-inscrição, enquanto mal maior dos portugueses e do país, está particularmente associada à inexistência de um verdadeiro espaço público e que trabalhar no sentido de promover esse espaço, democrático, independente e livre representaria um duro golpe na não-inscrição estrutural dos portugueses. O conceito axial, portanto, o conceito que atravessa transversalmente o texto e suporta toda a análise do autor relativamente aos elementos idiossincráticos da sociedade portuguesa, é o conceito de não-inscrição. É a não-inscrição que fundamenta, tudo o resto, e que em última instância rói nos seus alicerces a própria vida democrática e até o futuro. E o que é a não-inscrição? É desde logo, nas próprias palavras de José Gil, a produção de não acontecimentos, ou seja “A não-inscrição é quando o acontecimento não acontece; e não acontece porque há uma espécie de buraco negro que suga o espaço público, entre o acontecimento e a vida privada do indivíduo. Por exemplo, no plano artístico e cultural, os portugueses não têm uma escala de valores para aferir o que é e o que não é importante. Eles vão buscar lá fora”. A não-inscrição exprime o permanente sentido do adiamento dos portugueses, na linha daquele verso do cantor rock “é prá manhã, bem podias fazer hoje”, associado sempre aos atavismos estruturais subordinados à hesitação, ao medo, a uma prudência excessiva e cautelosa, muitas vezes excessivamente cautelosa. Mas a verdade é que a inexistência de uma vida social e cultural dinâmica resulta numa falta de ideia de projecto. Como diz José Gil: “Não há apetência para a acção porque eu não vejo o efeito da minha acção, há uma série de barreiras que faz com que o tempo e a dimensão do futuro estejam quase ausentes do nosso presente”. Esta falta de câmaras de eco em que as acções, sobretudo intelectuais e artísticas, possam produzir um efeito, conduz ao isolamento, ao fechamento em relação aos outros. E se no tempo salazarista isso podia ser imputado à falta de liberdade, o mesmo argumento não pode ser usado agora; e a verdade é que havia mais tertúlia, mais polémicas, mais vida académica, mais recepções tanto da arte como da literatura nesse tempo salazarista do que agora, em que praticamente acabaram todos os fóruns de manutenção de uma vida intelectual e cultural com carácter social. Hoje tudo se passa mais ou menos em silêncio e em solidão. Um exemplo, que é significativo: Praticamente desapareceram as revistas de pensamento e cultura assim como os suplementos literários e culturais que animavam a vida social. Eu acedi, muitas vezes através dos suplementos culturais, às novidades literárias e acompanhei a actividade produtiva de quase todos os escritores portugueses da segunda metade do século XX. Em particular no domínio da produção poética podíamos aceder a tudo o que se ia produzindo através dos inúmeros suplementos literários de quase todos os jornais diários, matutinos ou vespertinos. Estou a lembrar-me do suplemento literário da Capital à quarta feira, do suplemento literário do Diário de Lisboa à quinta feira, do suplemento literário do Diário Popular à sexta, do DN Juvenil e do Suplemento do mesmo jornal à segunda feira de manhã. O Século e o Primeiro de Janeiro apareciam recheados de gordos suplementos culturais ao Domingo, etc. Hoje em dia até o Expresso e o Público praticamente acabaram com os seus suplementos culturais. Hoje em dia, mais do que em qualquer outra época da vida portuguesa todo os acontecimentos são, por assim dizer, esvaziados de substância, de conteúdo, restando deles a mera forma vazia e sem consequências. Salvo os pequenos grupos, as pequenas tribos, tudo o que acontece não transporta consigo uma visibilidade social. Existe em privado e não no espaço público, até por que esse espaço público não existe. A vida cultural funciona em guetos. Para José Gil, a explicação reside na não-inscrição, porque o tempo da não-inscrição é o tempo da repetição e do adiamento permanente, e eu acrescentaria porque esse tempo é um tempo privado, prudente e mesquinho. Sendo que esta prudência, este acanhamento, este modo de viver para dentro e não para a partilha, a discussão e a crítica se subordina ao medo. José Gil disse numa entrevista que, a situar esta obra no âmbito das ciências sociais se inclinava para a considerar na família dos estudos de mentalidade. Estou apenas parcialmente de acordo, na medida em que a tradição dos estudos de mentalidade têm vindo a desenvolver-se fortemente indexados à História, o que me parece louvável, pois sem o elemento de historicidade constitutiva dos comportamentos, eles terão tendência a esvair-se numa teia de estereótipos mais ou menos redundantes. Por outro lado a historicidade, ou mesmo neste caso a História “tout court” só o é na condição de ser social e não me parece que essa valência se evidencie neste, porém notável, livro do filósofo José Gil. Quero eu dizer que esta obra apresenta uma dimensão histórica escassa e limitada, limitando-se na maior parte das vezes a pôr em destaque o anterior regime. Ora, se alguma coisa caracteriza as reflexões sobre mentalidades é a sua natural propensão para se instalar no domínio da longa duração; não por capricho mas porque só ao nível das estruturas as questões de mentalidade podem ser apreendidas, quer na sua estabilidade tendencial, quer nas flutuações ou mesmo roturas eventuais que são sempre lentas e morosas, por vezes mesmo imperceptíveis. O domínio das mentalidades é como dizia Braudel uma lebre muito esquiva, difícil de apanhar e contudo o tempo das mentalidades é quase da ordem da inércia. Enfim um paradoxo, o que é por natureza lento em história pode ser o mais difícil de surpreender. De onde virá essa nossa tendência para a não-inscrição é algo que o livro não esclarece. Deixa no ar umas ideias relacionadas com factos recentes, mas a mim parece-me, os fundamentos são antigos e resultam de traços persistentes, uns de carácter, históricos outros. E para mim os históricos são sempre os mais importantes e de qualquer modo os que estão mais ao nosso alcance, mesmo que sejam, repito, justamente difíceis, esquivos e aparentemente escondidos, imbrincados que estão numa trama muito complexa de causas e circunstâncias. Voltemos ao conceito de não-inscrição e à sua enorme importância. Deleuze, no seu livro O que é a Filosofia? Afirma que a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos. Também Paul Veyne na notável obra, Como se Escreve a História faz sobressair como determinante para o sucesso das disciplinas sociais, eu diria que para todas as áreas do saber, a ideia de que o progresso do conhecimento é homólogo de um verdadeiro progresso conceptual. São os conceitos que progressivamente vão abrindo as portas de zonas obscuras do conhecimento. Nunca haverá nada como um conhecimento total, uma espécie de auto transparência, por maioria de razão nos domínios em que o objecto do conhecimento é o próprio sujeito desse conhecimento, mas à medida que novos conceitos iluminam e escancaram zonas que antes estavam na sombra ou na penumbra, um certo tipo de progresso desenha-se inequivocamente. É isso que se passa com o conceito de não-inscrição criado por José Gil, no contexto deste seu livro inovador e de algum modo revolucionário. Dele, se pode dizer que é uma verdadeira inscrição e que citando o próprio autor, na entrevista referida, depois do seu livro e da aplicação do conceito de não-inscrição “já não se pode escrever da mesma maneira”, agora aqui eu acrescento, sobre os portugueses. É esse o sentido maior da inscrição, produzir uma marca, deixar um rasto, um traço (trace em francês).
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasÍndia [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Uma das prendas que o cinema, como arte simples e acessível, oferece a um público largo, é a possibilidade de aceder a impressões profundas de países e lugares não visitados ou pouco conhecidos. Um admirador de Bergman conhece, sem nunca ter ido à Suécia, o efeito que uma brisa de fim de uma tarde de Verão provoca como anunciadora do Outono assim como um seguidor de Ozu sentirá sem dificuldade, sem nunca ter estado no Japão, o odor húmido de um jardim, também no Verão, e a resignação no olhar das suas personagens simples e em geral boas. O cinema condenou-se desde cedo a ser uma arte sensual. Poder-se-iam acrescentar muitos outros exemplos de como o cinema nos permite entrar facilmente na casa de um parvenu senegalês ou num bordel do Arkansas. Wadjad, de Haifaa al-Mansour (2012) mostra que as ruas de Riyadh não estão pavimentadas a ouro mas demonstram uma inesperada pobreza urbana. Bastam 20 minutos para que se alterem ideias sobre um país. Um dos países que melhor conheço, sem nunca lá ter estado, é a Índia, uma Índia que se começou a insinuar suavemente em mim através dos filmes de Satyajit Ray e que com o concurso de outros autores é uma referência cinematográfica e civilizacional fundamental. Satyajit Ray cumpriu, junto de um público mundial, o mesmo papel que Kurosawa (especialmente através de Rashomon) preenchera como foco de atenção para com o cinema japonês. Mas se no Japão Mizoguchi e Ozu se insinuaram também como responsáveis por esta onda de interesse, não se pode dizer que Ritwik Ghatak, Mehboob Khan, Raj Kapoor ou Mrinal Sen tenham ultrapassado, como aconteceu com os dois autores japoneses acima indicados, um injusto anonimato internacional.* No que pertence ao cinema, em particular, a Índia – como a Rússia, o Japão, os Estados Unidos ou a Itália – tem filmes cujo desconhecimento impossibilita qualquer tentativa de perceber minimamente esta popular forma de entretenimento (assim como um desconhecimento do cinema mudo o provoca). Nesta página só se falou de filmes de Ray, provavelmente porque o cinema indiano provoca em mim um desfalecimento iluminado que o tem impedido e porque o acesso a outros filmes deste país nem sempre é fácil. O cinema indiano provoca um conhecimento do mundo que previne que se descorra sobre ele. Subarnarekha é um filme em bengali, de Ritwik Ghatak, realizado durante uma das épocas de ouro do cinema indiano, os anos 60.** Nele se discorre sobre a prepotência exercida pelos poderosos sobre os desprotegidos e a perda de inocência dos sonhadores. Como acontece com alguns filmes de Ray, Subarnarekha tem o poder de, subitamente, no meio do abandono a que nos deixara, nos espantar com uma revelação. O crescimento de Sita, de uma pequena criança para uma jovem mulher é um pequeno milagre, como milagre é o equilíbrio que tantas vezes neste cinema se consegue entre o filme de denúncia social e o de uma poderosa força poética. Parte do encanto desta cinematografia vem sua da música e é difícil não lembrar Bruce Chatwin (mesmo que esteja errado, Chatwin tem o poder de nos convencer ou de nos deixar seduzir por algo em que não acreditamos) quando este argumenta que as línguas nasceram da canção, assim como é indispensável, ao receber o cinema indiano, deixarmo-nos arrastar pela força fluvial da sua música. Como por milagre, a história de Sita e Abhiram transforma-se numa história de amor. Talvez seja melhor nunca ir à Índia. O Rio Subarnarekha não podia levar-nos senão na direcção de uma outra transformação, esta trágica. Uma pequena revelação e o sistema de castas toma conta de todo o filme.*** Esta é a história de Sita mas também a história do irmão, Ishwar Chakraborty, e o comércio que faz da sua integridade revolucionária por uma vida de conforto e sucesso material. Nenhuma delas se conta aqui com pormenor, mas avisa-se que os indianos têm uma capacidade firme para transformar uma história quase banal numa de pertinência universal. O modo como as curvas do rio (que aqui não é um rio sedutor e solar mas, ao invés, agreste) se definem é o modo como se vão mostrando as curvas da vida de Sita e do irmão Ishwar. Seria útil, e não muito difícil, fazer um trabalho em que se explicasse com detalhe como o cinema indiano e o cinema japonês dedicam uma atenção persistente à glorificação da mulher e das suas conquistas. Lembro poucos filmes indianos onde a sua presença não seja determinante. * Pather Panchali, de S. Ray, é de 1955. Foi visto, e nunca mais esquecido, no Festival de Cannes de 1956. Rashomon, de Kurosawa, que o Festival de Veneza lançou internacionalmente, é de 1950. ** dois dos filmes de Ray de que aqui já se falou são dos anos 60, Charulata e Mahanagar. Outro, Jalsaghar, é de 1958. São os três em bengali (Ray tem apenas um filme em hindi, Sadgati/The Deliverance e um outro, o exemplar Ghare Baire/The Home and the World, falado em hindi, urdu e inglês. Todos os outros são em bengali ou, três deles, em inglês). *** desde cedo que o cinema indiano tomou o tema das castas como assunto. É um exemplo de como esta cinematografia se debruça sobre a força do preconceito e a persistência de certo tipo de interditos cuja quebra promove a queda, a glória ou o martírio. É preciso, no entanto, lembrar que sendo a Índia o país que mais filmes produz anualmente, estes assumem expressões muito diversificadas.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias李渔 LI YÜ, ESCRITOR DE ÓPERAS [dropcap style=’circle]L[/dropcap]i Yϋ (李渔), nome artístico de Xianlü (1611-1680), foi um escritor dramaturgo que se dedicou aos romances, como o livro erótico chinês, Rou Pu Tao, (肉蒲团) e cujas peças para teatro foram representadas pela Companhia de Ópera por si criada. Apesar de a família ser de Zhejiang, nasceu na aldeia de Rugao, hoje prefeitura de Nantong província chinesa de Jiangsu, onde o pai tinha um pequeno negócio de produtos de medicina e a mãe trabalhava como empregada de limpeza. Levava já onze meses na barriga e após três dias e noites de dores sem conseguir dar à luz, no sétimo dia da oitava Lua passou em frente a casa um ancião. Chamado pela tensão que dentro de portas se desenrolava, encontrou um lugar não propício para aquele novo Ser nascer e assim, transportando a grávida para o Templo dos Antepassados da aldeia, logo facilmente chegou a criança ao mundo. O ancião chamou-lhe Xianlü (仙侣, o que acompanha o Imortal) e para seu destino o nome (号, hao) de Tiantu (天徒, Estudante do Céu). Com o nome de nascimento Xianlü e de cortesia Li Weng, reinava ainda a dinastia Ming quando foi fazer os iniciais exames imperiais, depois de a mãe, seguindo os passos da progenitora de Mêncio, por três vezes ter mudado de casa para o ambiente a rodear o filho lhe ser propício aos estudos. E foi, pois como estudante, ao passar a morar já na cidade em frente à biblioteca, dedicou-se a sorver conhecimentos a esses livros. Mas, com o falecimento do pai tiveram que regressar à aldeia, onde aos dezanove anos se casou. Cinco anos depois, em 1635, foi a Jinhua fazer os exames preparatórios para poder participar nos Exames Imperiais (Keju) na categoria Gongju. Nesses exames locais, denominados Tongshi, ficou Xianlü aprovado, tomando o título de Xiucai e com a possibilidade de ir à capital da província realizar os Exames Imperiais. Assim em 1639, encontrava-se em Hangzhou cheio de expectativas, quando entrou confiante no enorme recinto para fazer o Exame Provincial (Xiangshi), que lhe daria o título oficial de Juren. Falhou! Voltou em 1642, no que viriam a ser os últimos exames da dinastia Ming, mas no caminho para a capital da província de Zhejiang soube que o exército manchu acabava de atravessar o Rio Yangtzé e por isso regressou à aldeia. Com o destino traçado, resolveu ficar por Rugao e aí criar o seu jardim Yi, onde planeou passar o resto da vida e dedicar-se exclusivamente à literatura. A ilusão da carreira burocrática ficara para trás com a queda da dinastia Ming em 1644 e a mudança para a dinastia Qing não lhe dava possibilidades de ser admitido nos exames seguintes, que o conduziriam às posições de hierarquia de governação, acessíveis a partir de então quase só para os manchus. Escrever sem ganhar dinheiro Crendo ter um lugar para toda a vida na aldeia, pois era um camponês que sabia ler e escrever e com os seus conhecimentos ajudava a resolver muitos dos problemas que aí surgiam, os anos foram passando e com ele gastando o original, apesar de manter as mãos a trabalhar a terra, plantando o seu jardim Yi. Reconstruiu a sua casa, decorando-a e ter-se-á divertido a escrever sobre esse assunto. Mas eis que em 1648, ou em 1651, após uma controvérsia com uma aldeia vizinha, resolveu partir e ir com a família viver para Hangzhou. Aí descobriu pessoas que gostavam de assistir aos inventos que surgiam ao redor das mesas de chá onde se escutavam com grande atenção e entusiasmo histórias contadas em actuações teatrais de poucos adereços, mas explicadas requintadamente em gestos e voz. O ambiente cultural fervilhava em espectáculos, sobretudo de vários tipos de Ópera que dinamizavam a cidade. Apercebendo-se ser ali o lugar e inspirado por aquele estar, viu a possibilidade de poder fazer o que mais gozo lhe dava e ainda conseguir mostrar o seu talento. Escreveu muito entre 1651 a 1661, no período em que viveu em Hangzhou, sendo o livro Doze Mansões (十二楼, Shi Er Lou) editado por essa altura. Tornou-se também um dos primeiros escritores a vender as suas histórias, para depois serem contadas, ou em letras adaptadas às peças de Ópera. Assinava a obra com o nome de Li Yü e já tinha escrito seis letras de Ópera e duas pequenas histórias, que toda a gente muito apreciou. A fama crescia e mal acabava de escrever uma história, após ser impressa em Hangzhou, logo era reproduzida e enviada pela China, onde em algumas cidades eram impressas e vendidas sem que Xianlü ganhasse mais algum dinheiro com o que fazia. Percebendo ser Nanjing onde os seus escritos estavam avidamente a ser copiados e muito difundidos, para aí se mudou e passou vinte anos, os melhores e os mais penosos da sua vida. Já estabelecido em Nanjing, Li Yü em 1657 terminou o livro erótico chinês, Rou Pu Tao, (肉蒲团), sobre o qual escrevemos na semana passada. Viajava frequentemente por toda a China, estaria ele talvez ligado a algum grupo de Ópera que percorria o país em digressões. Foi em duas dessas viagens de 1667, já com grande fama de escritor, que a sua vida mudou de rumo ao lhe serem entregues, para suas estudantes, duas jovens raparigas de treze anos. Se ainda até 1668 vai a Hangzhou visitar a esposa, só dez anos depois lá voltou. Consagrado como escritor e criador de óperas, entrava num novo processo e começou a rever a grande quantidade de letras de Ópera por ele escritas. Entre elas escolheu dez, fazendo um livro a que chamou Li Weng Shi Zhong Qü (笠翁十种曲) e quando em 1668 foi editado, rapidamente se tornou o primeiro em vendas. Li Yü comentava sobre as suas peças dizendo: “Óperas são para as pessoas ficarem alegres, para quê pagar para as fazer chorar! O que escrevo é para fazer as pessoas rir e espero que todos os que lêem os meus livros atinjam Milafo (Buda Sorridente).” Companhia de Ópera Família Li A viver em Nanjing, numa das suas inúmeras viagens, em 1667, Li Yü, já com a idade de cinquenta e seis anos, passou por Linfeng onde um oficial local lhe entregou uma miúda de treze anos, QiaoJi, recomendada pela sua inteligência, pois logo na primeira semana de aulas absorvera o que a professora lhe tinha para dar durante todo o ano e assim, ao chegar às mãos do mestre já vinha prendada pela belíssima voz e representava-se como uma verdadeira senhora. Meses depois, ao viajar por Langzhou, um amigo ofereceu-lhe uma outra rapariga, WangJi também com uma excelente voz e da mesma idade. Reconhecendo haver qualidade nas suas estudantes e escrevendo letras de Ópera, nada melhor do que as preparar para a interpretação das suas obras expressamente criadas para elas, o que veio a originar a Companhia de Ópera Família Li. De 1667 a 1672, as duas jovens viveram dos treze aos dezanove anos com Li Yü e de suas estudantes, passaram a interpretar em palco as obras do mestre. QiaoJi realizava na perfeição o papel de senhora, representando WangJi o masculino, algo contrário ao que ocorria nos palcos de Ópera chinesa pois, o normal era os homens a desempenhar os papéis femininos. O envolvimento do trio gerou um laço familiar entre eles e de professor e actrizes tornaram-se amantes. Período de uma grande criatividade, de muita obra e actuações, sempre em digressões extremamente desgastantes, como a ocorrida em 1670 entre Fujian e Guangdong. Ressentindo-se do prolongado esforço, em 1672, as jovens, uma a seguir à outra, adoeceram e falecerem ambas com dezanove anos. De forma fulminante terminava assim um período intenso de ‘criactividade’, ficando Li Yü completamente destroçado. Ainda em 1672, com sessenta e um anos fez amizade com Pu Song Ling (蒲松龄), cuja idade andaria pelos trinta e já escrevera o livro Liao Zhai Zhi Yi (聊斋志异). Relacionava-se também com o avô de Cao Xue Qin, sendo o neto quem viria a escrever o Romance Mansão Vermelha. Li Yü ainda tentou manter a sua Companhia de Ópera, mas fechou-a em 1673, tendo no entanto nesse Verão recebido um convite do Governador da província de Shanxi para fazer representações na capital, Taiyuan. Período em que viajou até Pequim, tendo de vender a residência que tinha em Nanjing no ano de 1674. Xianlü voltou no Verão de 1677 para Hangzhou, fugindo das memórias daqueles tempos de Nanjing, trazendo a finalidade de ir ajudar os seus filhos a entrar nos exames imperiais e aqui veio a falecer em 1680. Que personagem era Li Yü? Escreveu no livro erótico chinês, Rou Pu Tao (肉蒲团): “Portanto, se Mencius tivesse assumido a atitude de um conselheiro severo, se houvesse levantado a voz, e, com uma expressão solene, lhe dissesse: Se acaso Mencius tivesse falado nestes termos, o príncipe tê-lo-ia escutado em silêncio por uma questão de delicadeza não faria comentários. Porém, de si para si, desculpar-se-ia, pensando: . E faria orelhas moucas às palavras do mestre. Mas que fez Mencius? Evitando assumir ares pedantes, referiu-se com ironia às fraquezas do príncipe. Em tom de conversa afável, falou-lhe de um caso idêntico da história, ou seja, o do príncipe Tan-fu (Rei T’ai, bisavô do duque Wu), que padecia de uma atracção semelhante pelas mulheres. Descreveu-lhe um episódio divertido da história galante, no qual se conta que o príncipe Tan-fu (c. 1250 a.C.) necessitava a tal ponto de companhia feminina que não podia passar sem ela por mais de um quarto de hora. Este príncipe, até mesmo no meio dos maiores perigos, quando fugia a cavalo diante do inimigo, queria levar consigo a favorita na mesma sela. Com isto conseguiu não só que o príncipe lhe prestasse atenção, mas ainda que o escutasse com o maior interesse. Esperava, sem dúvida, ouvir que um homem dissoluto a ponto de não ser capaz de passar sem mulheres, nem mesmo durante um quarto de hora, e que levava consigo a favorita enquanto fugia à frente do inimigo, tivera um mau fim e perdera o trono e ao mesmo tempo a vida. Mas nada disso; o que ouviu foi que este príncipe, em vez de se entregar unicamente aos prazeres do leito, ajudava o povo a partilhar os mesmos prazeres. Fazia tudo quanto estava ao seu alcance para promover os casamentos em todo o país, e tratava de investigar se havia alguma rapariga solteira e abandonada nas casas dos seus vassalos, ou se existiam homens celibatários em idade de casar. Sempre que celebrava uma festividade no palácio com as suas esposas, queria que o povo se divertisse também, partilhasse o seu contentamento, e, nesse sentido, organizava festas populares. Por isso se tornou para o seu povo uma verdadeira , um promotor da alegria de viver, pondo em prática o velho preceito de governar estabelecido pelo filósofo Kuan-tzu [Kongzi em mandarim, ou Confúcio para o Ocidente] (sétimo século a.C.); “. Para que todos os homens pudessem ser bafejados por uma felicidade idêntica, os governantes deviam tomar o terceiro lugar a seguir ao Céu e à Terra. O governante é como o Céu que abriga todos os mortais. É como a Terra que os mantém a todos. Um governo egoísta conduz à anarquia. Quem, entre os povos, poderia deixar de bendizer e exprimir a sua gratidão para com um tal príncipe? Quem ousaria censurá-lo pelas suas fraquezas e acusá-lo de injustiça? Assim falou Mencius.” citado da versão portuguesa do livro erótico chinês Jou Pu Tuan, escrito por Li Yϋ (1611-1680) e traduzido por Maria Isabel Braga, que saiu na Editora Livros do Brasil, Lisboa em 2002. E foi com esta fórmula que Li Yü desenvolveu a picante história erótico no seu livro Rou Pu Tao, (肉蒲团) cuja tradução livre significa Macio Tapete de Carne.
Anabela Canas de tudo e de nadaComboio da noite [dropcap style=’circle’]E[/dropcap] de novo chegou. Tão certa e tranquila como eu estar aqui. Mas quem sou eu? Isso não se sabe de momento. A esta hora já. No final das linhas talvez. Será sempre algo que não posso garantir. Mesmo no fim da linha final. Ficará como deve para resolução em outras instâncias. Mais tarde. Que fazer? Mas ela chegou de mansinho como todas as noites, a noite. Com hora marcada. Arrastando tranquilamente o que lhe pertence para se ir instalando. Algum silêncio súbito, o das oito horas. O céu ainda claro deste lado. Esforçadamente claro, enquanto se acendem luzes interiores. Mas o rosto da cidade escurece de repente ensombrado pelo quase fim. Mais tarde reacende-se, acomodado já à escuridão. Instalada como se para sempre. E instalo-me eu também nela, finalmente apaziguada. Abro-lhe as janelas e entra como um gigante bom empurrando as luzes para os cantos onde se fabricam sombras todos os dias diferentes. Esconderijos gerados pela quotidiana mudança de lugar das coisas. Pela dança dos candeeiros que se revezam. Diferentes modelações. Pontos de luz baixa, misteriosa, ou brilhante e excessiva. Conforme os dias. As noites. E o interior ganha diferentes densidades palmo a palmo. E depois volta para fora como um enorme animal, selvagem mas manso, que prefere a frescura do exterior. Brigamos benignamente pela agenda que me rouba das mãos. A incompletude dos dias. Aponta-me um dedo inquisitivo, acusador. Mudamente pergunta se entendi. E deita-se ali fora ocupando tudo, preenchendo a minha alma de um conforto bom. Só de saber a sua presença. A cair no sono. A respiração calma. Acalma-me. Quando já muito do que tenho para fazer não é possível. Tantas tarefas – que vida – mas tudo o mais que interessa pode finalmente fluir em liberdade. Condicional, é certo. Breve virá uma nova madrugada a pôr cobro a tudo e a obrigar-me a fugir para a cama. Fechar portadas para parecer de noite com o secreto conforto de, não o sendo, serem improváveis os fantasmas que me esperam quase sempre aos pés da cama. A que resisto virar as costas por medo. E o que fiz dela antes que se fosse, é variável. Por vezes fumo-a apenas. Estendo-a em quantos cigarros ali couberem. Colados uns aos outros. Há que tacteá-la cuidadosa mas intensivamente. Intencionalmente. A ver de que forma se apresenta. Tudo é possível da mais feroz borrasca em mês de verão, à mais terna e dócil passagem do tempo por disposições boas, cronometradas e sintonizadas. Pode vir como um veneno rápido que se tem de contrariar com uma solução quimicamente adequada. O cigarro com o gesto certo do queixo. Ou o ângulo do olhar esvaziado de conteúdo. Passivo e pacificado. Ou como um aroma ténue difícil de agarrar de perseguir, mas que é a revelação de outros momentos, na sua maravilha, difícil de agarrar e memorizar. À espera mas fazendo malas executando mil e uma coisas, gestos e sublimações até o derradeiro encontro. De hoje. Todos os dias. Ali está sempre com uma maquilhagem diferente e uma roupa surpreendente. A seduzir mas nem sempre da maneira mais fácil. Umas vezes, melíflua a fazer-se difícil. Outras, vem suave a ocupar pouco lugar, flexível e acalentadora. Mas a verdade é que sempre deixa espaço a um compromisso. Sei contudo que as negociações são truncadas. Ela é manhosa e por vezes, porque amiga, a sua dificuldade é pedagógica. Deixa-me sofrer um pouco até atingir o tal ponto de concórdia. E nesse ponto volta a crescer a sua identidade de animal gigante, benigno e adormecido. No meu íntimo sei como não há tempo a perder nesta negociação. Por vezes o tempo corre desperdiçado nela. Porque mais tarde vem aí a aurora. Ou porque agora cai soturna a noite mas se reparar bem e sem desconfiança, com a mansidão sub-reptícia e transparente, de quem envolve na medida do permitido. Nem mais um grama de peso sobre a pele. Nesta féerie que faz estacar em desespero por não estar tudo preparado para a escuridão. Porque o céu é de uma imensidão azul, ou porque está pejado de nuvens fofas ou anunciando já o negrume nos seus cinzas pesados e que não chovem uma lágrima mesmo assim. Não gosto de ser apanhada por essas esquinas dos dias fora de casa. Às vezes corro contra ela quando se aproxima, como contra o vento. Na ânsia de, precisamente antes de chocar com ela, atingir a porta de casa e ver daí já como ela se instala ao meu redor. Depois. Nunca quero que parta. E cada vidro da casa, quando passo reflete uma amálgama diferente. Exterior e interior. Mas a esta hora, de todas fujo. Abro as janelas para ver para fora e para dentro. Melhor. Neste intervalo dos dias. O tempo tem que passar e isso é bom e mau e eu não quero ter pressa. O tempo passa, o tempo pára e o tempo separa. Mas nunca fico à espera dela. Sei que é ela que me espera no combóio da noite. Aquele de regressar. Regressar a setembro com uma luz subitamente a baixar de tom. Essa luz que não me dei conta de ter ido amortecendo. Que muda tanto nas estações e na vida. Setembro, agora mais do que dois terços para trás. Do ano, também. Mas eu preciso de tomar todos os dias este comboio da noite. Para amanhã. Gosto de comboios e mais ainda deste, cujo movimento embalador é discreto, imperceptível quase. O caminho sempre variável na lonjura e duração. Shhh…só para quem entende esta solidão viciosa e plena. De gente estranha insone e renitente. E está uma bela noite. Quase incolor, quente e leve de novo, há uns dias. Mas agora já fresca, e hoje acinzentada até. Clareando por efeito de um tapete denso de nuvens lisas que afinal derramaram uns chuviscos esparços. E umas súbitas rajadas de vento vindo não sei de onde que não perguntei. Ela dorme imperturbável. Mas não lhe importa a cor que se pode até inventar em azul nas noites mais negras. Mais tarde virá a quietude maior. E se o está é porque nela posso finalmente reparar, e se a sinto bela como se me apresenta, é da enorme elementaridade destes pequenos ingredientes. Dispondo os falíveis órgãos dos sentidos a absorver a calma que desce sobre o bairro, uma certa expressão do rosto em que tento diluir todas as crispações do dia, e uma dada disposição do corpo, ao conforto real deste abrandamento que antecede a paragem. Acontece ela ser bela como o é para mim. Dessas sensações como rotundas esponjas se filtra uma serenidade que se faz de esquecimento. Paragem. Anulação de tudo o que vivencial ultrapasse o limite apertado do momento. Se pensar que estar triste é o simples estar sem euforia, e que, destituído da memória, o estar simplesmente, não é em muito diferente. Como é estar? E estar quando tudo se converte em desordem e é uma desordem a que se é estranho…e onde se tem que reencontrar uma linha própria para acompanhar sem mergulhar nela…e sem que ela desarrume por contágio a arrumação que houver por aqui…Ténue arrumação, que com a passagem do tempo parece tornar-se mais e mais incomportável. Os dias a imprimir desconsolo a um olhar que tenho dorido e acharia eu, sem culpa e sem magia. Querer fazer tanto e tudo cada vez mais por fazer. Mundo de desarrumos este. E tudo o que faço agora é no meio dessa desordem. Triste conquista. Aprender a desfocar. A esquecer todos os dias. O que vem e o que foi. E sair de novo amanhã um pouco limada das excrescências de hoje. Mas nem sempre com o mapa nítido à observação. Por vezes vejo e digo para mim que a minha alma perde forma. Estende-se e alarga-se em forma de picos que ferem para o lado de dentro. O possível alerta que o crânio não comporta e se expande numa respiração sem ritmo. A vida começou a cansar. Todos os dias. Talvez seja assim e por aí, que as pessoas, com a idade, começam a despedir-se suavemente. Preciso de esvaziar alguns fragmentos de dias, flutuar um pouco por entre deveres não apetecidos nem queridos, quase sem pensar. Algo mais como um olhar inquieto sobre todas as coisas, um pouco como atravessar uma rua sem estar distraído, olhando para todos os lados mesmo sabendo de onde vem o trânsito…deixar-se arrastar pelo vento sem cair…fechar os olhos por um instante apenas… ter o suporte da memória arrumada sem mudar nada de sítio…não querer saber onde se quer ir, não querendo saber onde se vai parar…E planar um pouco nesta suspensão aparente entre dias. Mas, o tempo é voláctil. Como o álcool. Como o gaz de um isqueiro, que, utilizado ou não se evola lenta e inexoravelmente. Embora a velocidades diferentes num caso ou no outro. E de novo vi o dia encher as minhas janelas de uma luz ao início lilás. Mas não tornou de todo mais nítida a minha visão das coisas. Um dia, vi uma gaivota descrever um grande círculo aqui por cima e parecia cor-de-rosa. Mas eu sabia que não era cor–de-rosa e isso eu entendo. Não houve intencionalidade em apresentar-se-me assim. A magia, disse Novalis, é a arte de utilizar, à nossa vontade, o mundo dos sentidos. Poderia estabelecer então, para meu conforto que a gaivota era de facto daquela cor em que a vi, já que não voltou para nela comprovar a ilusão pontual do meu olhar…Que a pizza no prato da mesa ao lado era prateada e que aquela árvore estava, de facto, sobre o carro parado na rua. Fixar um olhar único sobre as coisas por momentos. Então algo pode ter acontecido sobre a minha mesa, a tinta. Posso deitar-me feliz e com a madrugada. A fugir dela, de facto. Ou não. E do mesmo modo ter atravessado tranquila um espaço enorme de vida fugindo a recordações e sonhos – os de antigamente – ou então ainda mergulhando nelas como num privilégio. E num ou outro como um sonho que é. O amanhecer que, eu odeio me apanhe na cama acordada e sem sonhos, e mais ainda fora dela. Ali preciso de interpor o sono possível. É o reinício que eu temo. Sente-se na qualidade do silêncio. Que se torna subitamente total. Um hiato nítido. E no espaço de um minuto ínfimo, dispara o dia novo.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasPortugal: acidente ou destino [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]amião António Peres nasceu em Lisboa no dia 8 de Julho de 1889 e veio a falecer na cidade do Porto a 26 de Outubro de 1976. Foi professor nas Universidades do Porto e Coimbra, depois de ter sido professor de liceu. Foi um dos fundadores da Academia Portuguesa de História, distinguindo-se ainda como insigne numismata. Do vasto conjunto da sua obra destacaria: Como Nasceu Portugal, História dos Descobrimentos Portugueses, Portugal na História da Civilização, Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil e a Monumental História de Portugal, conhecida como de Barcelos, que dirigiu e publicou. Dirigiu ainda a Monumental História de Portugal, dita de Barcelos, que dirigiu entre 1928 e 1954. A obra de Damião Peres, que hoje nos ocupa, intitulada Como Nasceu Portugal é constituída por duas partes distintas, mas complementares. Na primeira parte, para mim aquela que possui mais interesse, embora não seja absolutamente original, o autor aborda um enorme conjunto de teorias justificativas da independência e autonomia de Portugal no quadro das nações ibéricas. Na segunda parte o autor procede à narrativa dos factos, sobretudo políticos, da Formação de Portugal a partir da génese do Condado Portucalense. Neste tema não se coíbe de abordar também as questões sociais e jurídicas ligadas a assuntos polémicos, como a questão, por exemplo, do feudalismo. O tema da primeira parte do livro, sendo relevante e muito atractiva intelectualmente, não é contudo original, pois acaba por ser uma antologia das posições assumidas por uma grande variedade de historiadores, geógrafos, etnólogos e ensaístas sobre a história de Portugal. E nem sequer constitui uma abordagem única uma vez que depois dele foram muitos os autores e as obras que glosaram o mesmo tema. Estou sobretudo a pensar na obra de Francisco da Cunha Leão e o seu O Enigma Português, mas sobretudo, e volto a insistir, no facto de que o assunto está disseminado, pela historiografia, geografia e etnografia portuguesas em autores como: Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Jaime Cortesão, Amorim Girão, Orlando Ribeiro e José Matoso, se me ativer a alguns dos mais importantes nomes da cultura portuguesa, mas ainda em Elisée Reclus, Lautensach ou Schwalbach se pensar em autores estrangeiros que também se pronunciaram sobre o assunto. Para Alexandre Herculano a independência e a originalidade autónoma de Portugal nada tem a ver com as teses renascentistas de André de Resende, contidas na obra De antiquitatibus Lusitaniae, obra essa, em que se explora uma linha de continuidade com a Lusitânia e com os antigos lusitanos. Herculano coloca antes em evidência uma solução política ligada à vontade dos primeiros barões do Condado Portucalense, tese essa, ampliada e reforçada por uma verdadeira teoria do acaso em Oliveira Martins. Oliveira Martins na História de Portugal, cita Alexandre Herculano para, baseando-se na sua obra reforçar a sua tese: “Portugal, diz o Sr. Herculano, nascido no XII século em um ângulo da Galiza, dilatando-se pelo território do Al-Gharb sarraceno, e buscando até aumentar a sua população com as colónias trazidas de além dos Pirinéus, é uma nação inteiramente moderna”. Isto quer dizer que não tem nada a ver com a posição de André Resende. Contudo agora Oliveira Martins não enfrenta apenas os autores que afirmam a antiguidade de Portugal, enfrenta também aqueles que fundamentam a autonomia de Portugal a partir das características únicas da sua geografia, o que não deixa de ser uma falácia como muitos outros vieram a demonstrar. Mas Elisée Reclus, geógrafo francês, inclinou-se seriamente para essa perspectiva, logo negada por Oliveira Martins: “Se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na sua formação às ordens da geografia”. As fronteiras de Portugal foram até onde chegaram as espadas dos barões belicosos. Diz ele: “(…) os barões audazes, ávidos e turbulentos são ao mesmo tempo ignorantes de teorias e sistemas. (…) Com um retalho da Galiza, outro retalho de Leão, outro da Espanha meridional sarracena, esses príncipes compuseram para si um estado (…) Eles foram até onde foi a ponta das suas espadas: tudo lhes convém, tudo lhes serve, contanto que alarguem o seu domínio”. (Oliveira Martins, História de Portugal) Porém a melhor argumentação contra o papel da geografia relativamente à independência de Portugal, foi levada a cabo por um geógrafo de profissão, Amorim Girão. Mas há que reconhecer que os caboucos estavam já lançados pelo próprio Oliveira Martins que relativamente a quase tudo teve intuições geniais. Veja-se o que ele diz na sua História de Portugal a pretexto da geografia, ou pelo menos como ele começa a organizar a sua argumentação: “Quando se observa o retalho da Península, de que a história fez Portugal, separado do corpo geográfico a que pertence, desde logo se vê como a vontade dos homens pôde sobrepujar as tendências da natureza. Os rios e as serranias descem, perpendiculares sobre a costa ocidental, prosseguindo uma derrota e provindo de uma origem que se dilatam para muito além das fronteiras, até o coração do corpo peninsular. As cumeadas das montanhas e os vales extensos mudam de nacionalidade naquele ponto convencional que aos homens aprouve fixar. Não falta, porém, quem pretenda encontrar, no nosso próprio território, motivos determinantes da constituição primordial da nação: tanto pode a obcecação doutrinária! Diz um que essa separação dos litorais é uma regra; nega outro o carácter arbitrário da linha das fronteiras de leste, afirmando que essa linha coincide com os limites extremos até onde os nossos rios são navegáveis. Decerto nunca os viu quem tal afirma”. Mas, como dizia, é Amorim Girão que leva mais longe a argumentação contra a influência da Geografia. E fundamenta-a sobretudo valorizando o patriotismo e a genuína vontade dos portugueses em serem independentes contra todos os obstáculos. Para Amorim Girão não só não se vislumbram situações de descontinuidade junto à fronteira portuguesa com Espanha como pelo contrário se passa com total tranquilidade sem sinais de rotura geográfica do Minho para a Galiza, das Beiras Interiores, ou Alentejo para Castela ou para a Estremadura espanhola e do Algarve para a Andaluzia. E as zonas vizinhas de ambos os lados da fronteira apresentam características absolutamente idênticas, mas curiosamente, e isso é um argumento bem conduzido por Amorim Girão, existem reais diferenças entre as várias regiões de Portugal entre si. Portugal é mesmo, num espaço vital tão reduzido, um território extraordinariamente heterogéneo. É impressionante a variedade de situações geográficas, geológicas e paisagísticas que o país apresenta. Há muito mais semelhanças entre regiões vizinhas de Portugal e de Espanha que entre regiões de Portugal entre si. Amorim Girão pretende que se retire uma consequência disso, a saber que foi a vontade de autonomia e o espírito patriótico do povo português que foi determinante, sem as ajudas da geografia e de resto até contra ela. Mas este livro informa-nos ainda sobre as posições de outros geógrafos, como é o caso de Lautensach e Schwalbach, assim como de outros cientistas sociais como Jaime Cortesão, António Sardinha, Leite de Vasconcelos entre muitos outros. Valeria muito a pena analisar as interessantes posições dos dois eminentes cientistas sociais alemães, até por que remetem para teorias de valor universal e que de algum modo merecem acolhimento, mas não se justifica agora. Uma das teorias explicativas, promovidas neste pequeno livro de Damião Peres, faz referência a um autor consagrado, Jaime Cortesão, que na sua obra Os Factores Democráticos da Formação de Portugal congrega uma plêiade de argumentos ou de factores concorrentes, para ajudar a compreender esse mistério que é a independência de Portugal relativamente ao resto da Península. Jaime Cortesão associa as fronteiras políticas portuguesas sobretudo a outras fronteiras muito mais antigas e de outra inequívoca e distinta fundamentação. Assim as fronteiras de Portugal decalcariam, grosso modo, antes de mais, a fronteira da Civilização Megalítica Ocidental (Do Calcolítico), segundo a clássica divisão da Península Ibérica, levada a cabo por Bosch Gimpera, em três regiões pré-históricas com civilizações autónomas, a ocidental (a civilização dos dolmens e das antas), a central que corresponderia à região castelhana e a levantina que corresponderia à região da Catalunha. Em segundo lugar o autor considera a divisão linguística que acompanharia as fronteiras anteriores e que delimitaria a ocidente uma língua própria, aquilo a que ele designou por Rimance Românico do Ocidente. Finalmente Jaime Cortesão considera as consequências da colonização romana e associa o território nacional às regiões de influência dos três mosteiros ocidentais, o bracarense (de Bracara Augustae, hoje Braga), o scalabicense (de Scalabis, hoje Santarém) e o pacence (de Pax Julia, hoje Beja). O autor considera ainda, na sua complexa tese histórico-civilizacional, que esta ocidentalização teria sido reforçada pela atlantização do território a que não pode ser considerada estranha a chamada rede viária atlântica, criada pela colonização romana. Vale a pena ler este pequeno livro de Damião Peres para se poder passar em revista e de uma forma crítica todas estas teorias e muitas outras, igualmente cultas e pertinentes sobre uma ideia tão enigmática: A autonomia e a independência deste reino peninsular que é Portugal. Não se esqueça que de entre todas as periferias marítimas da Península Ibérica, só esta logrou separar-se da massa continental, embora outras o tenham igualmente tentado. Manuel Afonso Costa
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasCervejas II [dropcap style=’circle’]D[/drocap]e vez em quando tem de se falar de cervejas – sem fazer referência à colorida antiguidade da sua história, que se tornou, pela insistência, uma grande maçada e não mudou. A internet tem a vantagem de nos poupar à repetição do que é fácil de encontrar por todos. Em Macau, o consumo de cerveja tem vindo a tomar contornos um pouco diferentes e só essa transformação – que é subtil, nada bombástica, note-se – causa estas linhas. A transformação dá-se na oferta de certos supermercados ou casas mais especializadas. Nos hotéis e nos restaurantes, em geral, não tenho notado, infelizmente, grande vontade em diversificar significativamente a escolha, apenas uma estagnante ignorância e falha de vitalidade, permanecendo teimosamente em lista as aborrecidas marcas de sempre. O consumo de algumas dessas marcas continua a ser causa de perplexidade. Quem é que consegue ainda pedir uma Carlsberg, uma San Miguel ou uma Heineken nos tempos correntes, lagers praticamente sem sabor e sem qualquer carácter? Numa passagem coberta, na Taipa, que entronca com o Jardim Cidade das Flores, abriu uma microscópica loja de intenção intrigante que vende roupa de criança e algumas cervejas, frutadas e não. É um conjunto muito diminuto mas que merece comovida visita. Em baixo, mal se vendo, há umas garrafas de Franziskaner. Na Avenida Sidónio Pais, perto do lugar onde com ela entronca a Avenida Ouvidor Arriaga, existe uma lojinha também perdida na sua vocação, que vende um conjunto de umas 8 cervejas, algumas frutadas, onde se contava, até há pouco tempo, uma excelente St.Peter’s Organic Ale em bonita garrafa. Por vezes, em alguns supermercados, encontram-se cervejas belgas, japonesas, francesas, alemãs ou australianas que há pouco tempo não existiam em Macau. Continua a não existir, no entanto, na cidade (que se saiba), um bar especializado em cervejas. O McSorley’s só merece referência porque a oferta é, em geral, muito fraca. Terá uns 18 nomes em cartaz. Acontecimento de grande alcance para o curto mercado local foi a abertura do estabelecimento Beer Collection, uma diminuta loja situada numa pequena rua, Travessa das Hortas (?), transversal à Estrada da Areia Preta. Nela se encontra um número considerável de marcas de variadíssimas proveniências em que se nota uma insistência em nomes belgas mas onde se disponibilizam outros de proveniências mais alargadas, como a Espanha, a Itália, a Nova Zelândia, o Japão (até Karuizawa), etc. Número considerável aqui quer dizer umas 40 ou 50. Seria fastidioso estar a fazer listas. Além disso, os nomes em stock variam muito consoante o seu escoamento e encomendas. Há um sítio na internet. Além das cervejas (e de cidra e ginger beer) está disponível um conjunto decente de vários tipos de copos para tipos diferentes de cerveja. Mais importante é aperceber no semblante dos jovens que animam a loja gosto e entusiasmo pelo que estão a fazer (só abre das 17.00 às 01.00h). No exterior consegue-se um pequeno espaço para experimentar alguns dos produtos em oferta. Na envergonhada secção que a loja Marks & Spencer dedica a produtos alimentares oferecem-se habitualmente umas 5 ou 6 cervejas engarrafadas a pensar nesta conhecida loja inglesa. Não é uma oferta particularmente aventurosa mas nela costumam estar incluídas algumas porters, ales, pale ales e até uma cerveja de centeio, a Battersea Rye. Toda esta conversa tende à conclusão de que o melhor lugar para beber cerveja é em casa e à confirmação de que continua a não haver restaurantes ou bares onde a oferta não ultrapasse uma ignorante banalidade. Há, no entanto, alguns pequenos restaurantes (em geral de atmosfera jovem) em que se conseguem algumas cervejas belgas e japonesas – estas menos conhecidas em Macau mas de larga circulação em Hong Kong ou Singapura como a Coedo ou as bonitas Hitachino.* Em Hong Kong existe, compreensivelmente, um conjunto de bares onde o consumo de cerveja é levado a sério. A moda da craft beer, em guerra contra a ditadura das aborrecidas grandes marcas intercontinentais, tem contribuído para o alastrar desta tendência alegre. Na cidade vizinha existem, pelo menos, 8 pequenas companhias produtoras de cerveja, fazendo lembrar que a Macau Beer não tem conseguido a expansão e o brilho que merece e tem permanecido numa obscuridade triste e estagnante. O mesmo se pode dizer de Macau, onde, ao contrário de Hong Kong, persiste uma firme reacção rural contra a qualidade de vida urbana. A mais antiga companhia cervejeira de HK, a Hong Kong Beer Co., foi fundada em 1995 mas as outras sete que conheço são de fundação recente. Este ano abriram três. Tap. The Ale Project, em Mongkok; The Globe e The Roundhouse, no Soho; The Bottle Shop, (loja) em Sai Kung e The Crafty Cow, em Sheung Wan, são alguns dos nomes de lojas ou bares que se distinguem. Há outros, cujo nome não retenho, espalhados pela cidade – por Kennedy Town, Tai Hang, Causeway Bay, Wanchai, etc. O marketing que tem andado associado à nova moda das cervejas tem utilizado o argumento do acompanhamento de comida com cervejas – o que banalizou um dos termos mais enervantes da restauração actual, o pairing. No rótulo dos nomes que o Marks & Spencer dispensa (que são concebidos para a loja) inclui-se uma pequena informação sobre o tipo de comida que determinada bebida deve acompanhar. Assim, no rótulo de uma Yorkshire Gold, para lá da lista de ingredientes, de indicar que é própria para vegetarianos, que não deve ser servida muito fresca, que não deve ser consumida por mulheres grávidas, que os homens não devem consumir mais de 3-4 unidades de álcool diariamente e as mulheres 2-3, e de outras indicações inúteis e indesejadas, indica-se, por fim, que se trata de uma cerveja indicada para acompanhar pratos leves como peixe, marisco, galinha ou salada. A partir de que altura é que começámos a ser tratados como estúpidos? Uma Organic Scottish com Heather Honey fará bom par com tagine de carneiro, couscous e vegetais mediterrânicos grelhados.** Todo este enervante nannying, que convoca desejos de consumir 30 unidades por dia, não ingerir qualquer alimento e destruir esquadras de polícia e atacar civis indefesos, não faz esquecer que a diversidade de marcas e tipos de cerveja que se encontra em Macau, não sendo ainda totalmente satisfatória, já serve a singelas experiências e ao acompanhamento de refeições. * no Japão há cerveja para crianças, sem álcool, algo impossível de publicitar na Europa ou na América. Kodomo no nomimono – bebida para crianças. ** enquanto continua a não ser obrigatória, em qualquer continente de bebida alcoólica, qualquer indicação do valor calórico.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSanto Ofício [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]draconismo severo tem sido um hábito mormente gentil numa terra morna com mecanismos impiedosos. Mecanicamente verboso com tendências mórbidas a extrapolar a sua escala de acção, numa continuidade diluída em outras coisas, como o dislate, a delação, o disfarce e a corrupção, muitas vezes alienado, pois nada se trata com a precisão dos casos simples. Não é fácil portanto o desapego a um «Santo Ofício» umbilical, de teor complexo e bizarramente amarfanhado em brumas. A repressão inquisitorial deu azo a um recalcamento dos afectos que levam a um siso, também ele difuso… sisando muito a propósito de nada, numa esteira de saúde pública doente de todo na sua invenção dos males. Recuemos ao século dezoito e ao disparate guardado nas Arcádias, como a vida de Filipe Elísio, o poeta, pois foi a sua mãe que o traiu num processo quase macabro. Filipe Elísio foi um maravilhoso poeta helenístico que, ao serem-lhe atribuídas afirmações heréticas e a leitura de livros proibidos, lhe fora movido um processo duro, em que o poeta ao encetar a fuga não mais viria ao país. Foi amigo de Lamartine e, após o indulto de D.Maria I, acabou por não regressar devido à maquinação dos seus inimigos que numa irracionalidade ilimitada o haviam de perseguir até ao fim. Por isso, e quando escutamos agora a essência das coisas, nós ainda as vemos como reflexos que trespassam o fino asfalto da consciência; sempre a mesma mordaça, aquela forma de reduzir o outro ao nível de um perseguido, persecutoriamente e visceralmente inimigos nem se sabe bem de quê, num local pequeno cujo alongamento pode muito bem ferir de morte um outro e cujo conteúdo de zelo passa indiscriminadamente por punir. Filipe Elísio está publicado no «Parnaso Lusitano» da Arte Poética Portuguesa . Grande trabalhador da língua que o tempo pareceu esquecer, não sendo redimido, como tantos outros, pelo erro da expulsão. De uma forma mais ténue, estamos mais ou menos nestes beirais, a sociedade portuguesa filtra-se quase sempre nas elites sem expressividade para ser representativa do que quer que seja. Por outro lado, são eles que ainda firmam os “guetos”, os esquecimentos estratégicos por onde sempre passará a sua influência de uma hidra sem rosto. Não é por isso, na escala da Paz, aquele lugar seguro que almejam as gentes, bem pelo contrário: há dramas inconfessáveis em cada beiral das vidas, que só não são confessáveis porque de nada serve, não se vê o movimento para a interajuda como resolução social, é preciso saber isto e calar. A escola do fascismo mais não foi que o prolongamento, não sei se com mães delatoras ou não mas, pelo menos, com familiares muito próximos. O imaginário do fantástico talvez até seja limitado para entender tais psiques pois que qualquer metamorfose é sem dúvida mais simples que esta chaga aberta na mente e “modus-vivendi” de um Povo. Por três homens que vi dignos de estima, vi mil malvados Judas. Avarentos, filautes, vis sejanos. Cavernas de calúnia, sem pesar me despeço; e, se o previra Rejeitar entrar na orbe. Um excerto do seu epitáfio Todos os dias há processos e proibições, como seja a última de não se poder ser fotografado ao lado de alguém sem o seu consentimento para passar a publicado, das mães que são presas porque fogem com os filhos num enquadramento de fragilidade social de arrepiar, de não se ousar pronunciar o nome de um adversário, de coisas absolutamente estarrecedoras e impróprias para uma mente sã. E uma sociedade civilizada. Voltou o gene obscurantista como se dormisse à espera de um acordar tão óbvio quanto impossível de combater. Direi que num clima destes, em que cada um se espreita pelas piores razões, apetece nunca mais vir, caso se vá para um outro lado, impelido por um tentáculo sem freio. Questionar estes assuntos é tão tabu quanto inimaginável, convém sempre dar a impressão que o futuro é agora, e que se ultimam os preparos de uma Humanidade melhorada. Mas não nos enganemos: ela é apenas o lado que ressurge do tempo das perseguições. A Justiça é quase plenária, está cada vez mais ao serviço de coisas morais face ao conteúdo da matéria, as pessoas agora podem aventurar-se na prática do abominável. Quem não tem para onde ir, sentindo-se a mais, vê melhor um destino ameaçador, uma mórbida onda de desproteção maciça e de negrume. Os grandes ideais ainda foram no tempo em que se comiam bifes e as barbas suavam nos Verões. Não há tempo a perder para começar a dizer o óbvio, com o risco de nada mais se poder dizer do que aquilo que não é óbvio e nos deixarão. E com toda esta imensa nuvem de chumbo lendária nos queremos entender nos interstícios destes sinais. Com o tempo aprendemos que o medo é uma ausência de generosidade. E que não a ter, contribui para uma escalada onde ninguém fica a salvo, quase como um excesso de zelo movediço que faz asfixiar o seu autor. Olhamos e reparamos que há sombras… sombras e com elas espectros invencíveis. Agora é altura de rasgar os autos porque a Fé se busca em outras paragens. Sem mais nada que a incerteza, a diferença pode constituir de novo a culpa formada para se actuar, e, até, nos fazer migrantes engalanados a salto em buscas de novas paragens.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasForças de bloqueio. Uma questão antiga Vitorino Barbosa de Magalhães Godinho nasceu em Lisboa a 9 de Junho de 1918 e faleceu em Lisboa a 26 de Abril de 2011. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1940, tendo sido professor dessa Faculdade entre 1941 e 1944. Continuou depois os seus estudos e carreira universitária em Paris, onde se doutorou em 1959, tendo passado pelo CNRS (Centre National de Recherches Scientifiques ) entre 1947 e 1960. Regressou entretanto a Portugal para leccionar no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos entre 1960 e 1962. Virá a acabar a carreira na Universidade Nova de Lisboa, na FCSH no Departamento de Sociologia que fundou e coordenou entre 1975 e 1988. Do conjunto imenso da sua obra escrita e publicada em língua portuguesa e francesa destacari: Documentos sobre a expansão portuguesa, 3 vols, 1943,1945,1956; A economia dos descobrimentos Henriquinos, 1962; Os descobrimentos e a economia mundial, 2 vols, 1963-1970 (2ª ed. correcta e ampliada, 4 vols, 1982-1983); Ensaios de História de Portugal, 1967 (2ª ed. ampliada, 1978); A estrutura da antiga sociedade portuguesa, 1971; Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar (séculos XIII-XVIII), 1990 [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste livro de Vitorino Magalhães Godinho representa, em minha opinião, um papel muito importante no conjunto da sua obra. A par dos Ensaios II e dos documentos Sobre a Expansão Portuguesa, contém as intuições mais consequentes acerca da História de Portugal, sobretudo através da caracterização sociológica da nossa estrutura social de Antigo Regime. O autor gizou as interpretações mais consistentes para que se possa compreender o facto pelo qual a expansão ultramarina veio a desencadear na sociedade portuguesa poderosos factores de bloqueio ao progresso e ao desenvolvimento. São, hoje em dia, considerados clássicos os seus argumentos, em particular a chamada de atenção para a tendência para a anemia do sector Primário, a consequente hipertrofia do Terciário de Antigo Regime, o complexo fenómeno de entesouramento das ordens nobiliárquicas e finalmente a nobilitação da burguesia (As traições da burguesia de que falava Fernand Braudel). Em síntese: “ …ao contrário do que tudo levaria a supor, a população agrícola, o sector primário de actividades, não tem a maioria, nem mesmo se aproxima da metade, fica à volta de 1/3 . Ora numa economia de antigo regime, que …não dispõe …de meios de fomentar a produtividade agrícola por trabalhador e em que essa produtividade é extremamente baixa, se estamos perante uma sociedade em que o sector primário se encontra muitíssimo reduzido, não pode deixar de tratar-se de sociedade cujos mecanismos de crescimento e desenvolvimento estão bloqueados. E na verdade sabemos que a população da Espanha diminuiu em finais do século XVI e durante longas décadas do século XVII. O clero hipertrofiou-se, vimo-lo atrás. A percentagem do clero conjuntamente com os fidalgos eleva-se a …36,8%; se ainda lhe somarmos os servidores e ociosos, temos a percentagem, astronómica para uma sociedade anterior à Revolução Industrial, de 40,5% para as classes não produtoras da população (…) Por outro lado, formas conexas de mentalidade (conexas dessa estrutura) que permaneciam demasiado voltadas para o passado, arcaizantes, só de onde a onde se entreabrindo às tentativas isoladas e sempre frustradas dos estrangeirados”. Mas não se ficam por aqui os méritos desta obra. Ao colocar em cima da mesa de estudo a prossecução de um inquérito cerrado às causas explicativas para o falhanço da modernização de Portugal em tempo útil e na altura própria, o autor levanta muitas outras questões, e sempre de forma pertinente e lúcida. É o caso, por exemplo, da malha urbana do país, salientando o facto de que, comparativamente a Espanha, nos falta uma rede de cidades de média dimensão entre as duas grandes metrópoles, Lisboa e Porto. E isso, tal como tudo o resto, cava a profunda assimetria entre o litoral e o interior que é um dado estrutural da nossa história. Afinal a atlantização do território era já um argumento de Jaime Cortesão, nos Factores Democráticos na Formação de Portugal. Contudo, e volto ao tema essencial do livro, é na estrutura social de antigo regime que se encontra o nó górdio do bloqueio ao progresso e ao desenvolvimento. Porque é que não se deu a revolução agrícola e a consequente revolução industrial, tanto mais que em princípio havia todas as condições para isso atendendo à possibilidade da chamada acumulação primitiva do capital, condição necessária mas não suficiente. De facto, a hipertrofia do terciário de antigo regime causado pela corrida aos negócios coloniais, sobretudo na conjuntura oriental, desencadeou efeitos perversos de longa duração. Esta hipertrofia associada à anemia do sector primário foi fatal, segundo Vitorino Magalhães Godinho. (…) É que em termos económicos, apesar das excepções do Círculo dos Ericeiras e do Marquês de Pombal, o século XVIII se mantém muito próximo da estrutura social do século XVII, isto é, a estrutura de uma sociedade de ordens, estamental e hierarquizada com a cúpula ideológica da monarquia absoluta. Não admira que muito do barroco tenha persistido no século XVIII, uma vez que persistiram muitos dos seus elementos estruturais: — A economia é e continua a ser quantitativamente agrária, agrícola, rural. — É em torno da propriedade da terra que se estabelecem as relações sociais de poder, e se estrutura também o próprio regime, a monarquia absoluta assim como o complexo de interesses monárquico-senhoriais cobertos pela monarquia absoluta. Porém o sector dinâmico da economia é, todavia, de natureza mercantil, e é ele que é responsável pelas transformações que vão minando progressivamente o sistema, embora com grande lentidão porque as forças de inércia são muito pesadas. Essa erosão está associada à massificação urbana pela fuga de gentes dos campos para as cidades e aos fenómenos de traição social, através das nobilitações, mas também dos aburguesamentos, e da ‘proletarização’. “Sabe-se por outro lado, que a nobreza está profundamente mercantilizada, e sabe-se também que os grupos de mercadores e negociantes buscam por todos os meios integrar-se na ordem nobiliárquica: a realidade é o mercador-cavaleiro e o cavaleiro-mercador, o fidalgo-negociante e o negociante-enobrecido, não sendo por isso fácil a existência de uma burguesia autónoma, com seus valores próprios”, (em Godinho, obra em análise, p. 84). Este é um dos factores para o bloqueio, mas não o mais decisivo, uma vez que fundamentalmente o que prevalece são os bloqueios estruturais que sapam o processo de descolagem: absentismo, conservadorismo agrário, atrofia do sector primário e hipertrofia do sector terciário de Antigo Regime, como já referi. Como se sabe na viragem do século XVI para o século XVII e já a partir de meados da centúria de Quinhentos, transformações associadas ao comércio ultramarino ou colonial e que se traduziram por uma inflexão do centro de gravidade dos interesses portugueses do complexo histórico-geográfico do Índico para o complexo histórico-geográfico do Atlântico, mais concretamente pela desaceleração do comércio das especiarias e pelo dinamismo crescente da economia do tabaco e do açúcar, produziu-se uma reconfiguração da estrutura social com a revitalização da classe média (pequena e média burguesia), associada à reanimação e revitalização dos portos de província e de pequena escala às custas de uma certa estagnação, senão mesmo deflação (refluxo), do porto de Lisboa. Mas esse fenómeno estranhamente não se manteve como tendência na crista da linha de longa duração e em finais de seiscentos a nobreza e o clero tinham recuperado as suas posições. Relativamente a Portugal, nesta longa linha de tensão entre o imobilismo e a inovação, esta foi sucessivamente travada pelos ciclos dinâmicos do comércio colonial. Tinha sido assim com as especiarias, depois com o ciclo do açúcar e tabaco e agora com os diamantes e o ouro do Brasil, ainda por cima convergentes com a estabilização do comércio dos vinhos depois do tratado de Methuen. Porque de cada vez que a reanimação dos circuitos comerciais resolveu conjunturalmente os problemas da economia portuguesa isso traduziu-se num adiamento das políticas de colonização interna e de desenvolvimento, das políticas de fixação para utilizar uma expressão de António Sérgio. A falência da política económica do Círculo dos Ericeiras de orientação desenvolvimentista à margem do mercantilismo dominante, está intimamente relacionada com o comércio brasileiro e com a política dos vinhos. Ambas, no seu conjunto, favoreceram a hipertrofia do sector terciário de antigo regime, que já referimos, e ao mesmo tempo o reforço do Barroco. O domínio da Companhia de Jesus e a presença do Tribunal do Santo Ofício protegiam a manutenção da estrutura senhorial da sociedade portuguesa, que encontrava na corte a cúpula da sua lógica dos interesses monárquico-senhoriais, para me exprimir como Maravall. Mas isso é outra história.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasThe Assassin, Hou Hsiao-hsien [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]erdera um pouco o rasto a Hou Hsiao-hsien. Millennium Mambo (2001) pouco mais me parecera que um exercício incerto, perdido numa bruma incerta e sem o pneuma dos filmes de Hou dos anos 90 e, particularmente, dos anos 80. Three Times (2005) pouco fez para descontinuar essa disposição. Flight of the Red Balloon (2008), que pode ser o melhor filme de sempre, evitei ver a todo o custo: um asiático em França é meio caminho andado para o disparate (sendo a grande excepção Love and Bruises, 2011, de Lou Ye, um realizador responsável por muitos filmes importantes para a formação de um gosto do século XXI – só tenho pena de não gostar de praticamente nenhum). Não vejo nos filmes de wuxia de Zhang Yimou, Ang Lee, Tsui Hark, Chen Kaige ou John Woo (faço uma pequena excepção, muito pequena, para Dragon/Wu Xia de Peter Chan), filmes que lançaram o género globalmente, motivo para grandes entusiasmos. Tenho dificuldade em ver, para lá de uma vontade pornográfica de agradar a todos, algo de substancial ou de pessoal nestes grandes projectos ruidosos, ansiosos de cumprir os requisitos de uma globalização que funciona porque se atinge com efeitos fáceis. Por todas estas razões, e umas difíceis de identificar, não esperava nada de The Assassin, nem muito nem pouco, e certamente nenhuma surpresa. Este parece planeado de forma a contrariar a formulação com que filmes como Hero; Flying Tiger, Hidden Dragon; Red Cliff; The Promise; Seven Swords ou House of Flying Daggers têm vindo lentamente a cristalizar o género do filme de artes marciais. Se o que The Assassin oferece de novo não é suficiente para criar um brilho ofuscante, é suficiente para ajudar a acreditar na sobrevivência do género para lá de uma formulação destinada a um mercado de massas completamente incaracterístico e anódino que transformou o wuxia num género deslavado e, curiosamente, muito semelhante a algum cinema americano. Um outro exemplo desta formulação, mais amolecida que arrogante, é The Grandmaster, de Wong kar-Wai, o modelo perfeito de como facilmente a decadência se insinua num autor anteriormente capaz de filmes sedutores e pessoais (e, inclusivamente, de um wuxia intrigante, belo e hipnótico, Ashes of Time, valoroso porque fora do seu tempo, o melhor western noodle ou wuxia spaghetti de sempre – ou o único). Não é de estranhar que após um filme completamente vazio, como é The Grandmaster (que fora antecedido de um filme patético, My Blueberry Nights, um desastre total) pouco se tenha ouvido falar de Wong kar-Wai. Estas coisas têm um ritmo próprio. As águas paradas em que Hou Hsiao Hsien caíra com Millennium Mambo e Three Times, e de que se salvou com The Assassin (Flight of the Red Balloon, repito, não vi) são as águas em que Wong kar-Wai ainda parece encontrar-se. A banda sonora de The Assassin é diferente das dos filmes em cima referidos. A música é quase inexistente e nunca é intrusiva, rejeitando o efeito fácil com que é usada nos outros. O mesmo se passa com as imagens, muito menos agressivas e muito menos manipuladoras. Não há, como é costume nos wuxia recentes, cenas com muitos figurantes, grandes cavalgadas ou barulho. É um filme sem truques de qualquer espécie, quase envergonhado em mostrar e praticamente sem imagens geradas por computador (que são, hoje em dia, ainda ridículas). Este é o programa do filme, e é a tentativa em permanecer humilde que o distingue. As imagens de interiores não conseguem, no entanto, desviar-se suficientemente da tentação da composição histórica gira. Hou Hsiao-hsien consegue, mesmo assim, distanciar-se do tipo de imagens vazias da maior parte dos filmes de artes marciais de Zhang Yimou, Ang Lee ou de alguns de Chan Kaige. Este filme tem muitas coisas que os outros não têm: humildade e bondade. É fácil de acreditar nele (ao contrário do que acontece com um exercício oco como The Grandmaster) – até na sua suave sensualidade. The Assassin tem a beleza gentil de um quadro inacabado, não apenas através da singeleza da sua história mas através do tom quase suplicante que demonstra. Espera-se com ansiedade um novo wuxia de Hou Hsiao-hsien um pouco menos envergonhado e com um pouco mais de ousadia – o que não é o mesmo que barulho. É prova de que é possível fazer wuxia sem demasiado ruído, assim como Ashes of Time é prova de que é possível fazer um wuxia contemplativo e quase psicadélico. O tom intimista resulta também do enquadramento das cenas de interior, que contêm espaços reduzidos (não há grandes salões, salas de audiência ou pavilhões), e uma rejeição por uma sumptuosidade fácil a que os outros não resistiram. Não admira que fora da Ásia Extrema vários espectadores se tenham deixado encantar por este exotismo chinês fino (o que não quer dizer que não se tenham também deixado levar pelo exotismo extremo de outros projectos de objectivos mais claros). Ao invés, as cenas de exterior são de uma finura crua e céus deliberadamente menos trabalhados que contrariam a minúcia no tratamento dos interiores. É nas cenas de exterior que o filme mais se liberta, mesmo que seja nos interiores que a sua intriga se urde. São estes céus que fazem lembrar, sem nostalgia mas com esperança no futuro, nos céus infinitos e livres dos filmes taiwaneses de King Hu.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasInternet [dropcap style=’circle]S[/dropcap]eria difícil de imaginar, há duas décadas, as vantagens que a internet nos traz hoje em dia como acompanhamento de leitura. Relembro este avanço, comovido, a propósito da leitura de um livro de W.G.Sebald, Austerlitz. No seu início descreve-se um quadro de Lucas van Valckenborch, um pintor flamengo do século XVI, em que umas figurinhas patinam no gelo em Antuérpia. Em segundos a internet oferece-me o quadro, em tamanho decente e pormenor suficiente. Vejo, entre muitos patinadores, a senhora de amarelo caída no gelo e o senhor de calções vermelhos que a ajuda a levantar-se, burgueses contentes e um grupo entretido em volta de uma fogueira. Logo de seguida consigo ver fotografias da grandiosa Estação Central de Antuérpia onde se passa o início da história de Sebald e onde nunca estive. Alguns dirão que os seus livros contêm fotografias porque existe neles uma necessidade imensa de mostrar e eu não poderia estar mais de acordo, mesmo que esteja enganado. Estas fotografias, abundantes, acabam por marcar ainda mais intensamente a profunda solidão que envolve as figuras que Sebald examina nos seus livros de uma maneira que só a fotografia consegue fazer. Os seus livros são como fotografias porque estas, ao mostrar, com rigor, acabam por nos transmitir a impossibilidade de ver verdadeiramente. Sabemos, ao ver as fotografias que os seus livros exibem e ao ler as suas ideias sobre os mecanismos da memória, que a garantia de permanência e realismo que a fotografia parece oferecer não passa também de uma ilusão. Por outro lado, as explicações de Sebald são de uma clareza ofuscante, os objectos, edifícios, paisagens e impressões oferecidos com extrema delicadeza, mas também com extrema precisão. Isso acontece, por exemplo, na descrição do cemitério de Piana, na Córsega, no texto Campo Santo que dá o título a um dos seus livros. Esta mecânica poderia levar-nos a pensar que a escrita é mais eficaz na representação do passado que a imagem fotográfica, ou indicar para a relativa ineficácia de ambas. Uma das malandrices que Sebald nos oferece é uma que de início passa quase despercebida, e se tal acontece é porque existe uma mestria difícil de igualar: a quase total inexistência, em alguns textos, de parágrafos. O texto Campo Santo, por exemplo, não tem nenhum e em Austerlitz há longas passagens construídas da mesma maneira. Austerlitz, a figura protagonista do livro com o mesmo nome, é-nos mostrada pelo autor muito detalhadamente, com uma bondade que não consegue disfarçar a admiração que aquele lhe causa. No entanto, quanto mais nos é mostrado mais nos convencemos da inutilidade da demonstração. Milan Kundera (em The Art of the Novel) fala da ilusão do presente: “There would seem to be nothing more obvious, more tangible and palpable than the present moment. And yet it eludes us completely. All the sadness of life lies in that fact. In the course of a single second, our senses of sight, of hearing, of smell, register (knowingly or not) a swarm of events and a parade of sensations and ideas passes through our head. Each instant represents a little universe, irrevocably forgotten in the next instant.” * Em The Emigrants Sebald conta-nos a história de quatro homens cujos destinos sofreram vários tipos de desajustes devido aos acontecimentos da Segunda Grande Guerra e à perseguição que vitimou os judeus durante os anos 30 e 40. Termina com a descrição crua de umas fotografias tiradas no gueto de Litzmannstadt, estabelecido em Lodz em 1940. A última é a fotografia de três mulheres de cerca de vinte anos, entretidas no trabalho de fazer carpetes. “interrogo-me sobre como se chamariam estas mulheres – Roza, Luisa e Lea, ou Nona, Decuma and Morta”. E depois o silêncio. Foi também Sebald que me fez voltar a Bruce Chatwin, outro autor que se mostra obsessivo em mostrar. Regressei ao autor inglês através de uma referência directa não a si próprio mas ao seu biógrafo, Nicholas Shakespeare. Lembre-se que Chatwin tem cinco livros de ficção, todos passados em lugares muito diversos: Patagónia, País de Gales, Austrália, Benin e Checoslováquia. Shakespeare percorreu todos esses lugares em busca do seu Chatwin, e é esta viagem que Sebald elogia.** No livro What Am I Doing Here, que reúne vários tipos de pequenos textos este espalha-se pela União Soviética, o Benim, os Camarões, Hong Kong, Paris, o Peru ou o Afeganistão. A sua obsessão pelo nomadismo, que o leva a teorizações não aceites por todos, tem uma semelhança grande em alguns dos textos de Sebald, onde as histórias que neles se revelam implicam quase sempre uma deslocação – muitas vezes forçada. Em What Am I Doing Here, conta-nos que encontrou em Werner Herzog uma pessoa que partilha com ele a ideia do valor sacramental de caminhar e o seu valor como actividade poética que pode curar os males do mundo e continua contando um episódio ilustrativo desta crença: quando, em 1974, Herzog soube que Lotte Eisner estava a morrer, dispôs-se a percorrer a pé, através de um inverno rigoroso, a distância entre Munique e Paris “confiante de que poderia, de certa forma, curá-la através da sua caminhada”. Quando chegou ao apartamento de Eisner esta recuperara e viveu durante mais dez anos. O entusiasmo que os livros de Chatwin suscitam é um entusiasmo juvenil e o rosto do próprio Chatwin nunca abandonou esse brilho entre o do adolescente e o de um sério diletante. O que não conheço em Sebald é a confusão de alguns textos de Chatwin (em Songlines), uma escrita aos tropeções, uma obsessão por compreender algo que claramente nunca conseguiu perceber e muito menos sistematizar. Mas serviu para ir ver na internet o que é um dasyurus geoffroii e pensar na nomadização e nas origens da humanidade. Outra vantagem da internet (este pequeno passeio começou por aí) prende-se com o acesso imediato a imagens animadas e/ou música. Nunca ouvira falar de Kevin Volans antes de ler o elogio que Chatwin lhe estende num dos textos constantes de What Am I Doing Here. A leitura do texto sobre o compositor sul-africano enriquece-se rapidamente porque a internet disponibiliza várias das peças deste compositor que estudou com Stockhausen e de quem eu nunca ouvira falar. * retirado do monumental livro de Gardiner, John Eliot, Music in the Castle of Heaven, 2013. ** ver Sebald, W.G., “The Mystery of the Red-Brown Skin”, em Campo Santo.
José Simões Morais Fichas de LeituraMendes Pinto encontra pertences da 1ª Embaixada [dropcap style’cirlcle’]R[/dropcap]egressamos ao continente chinês e pelas províncias de Fujian, Zhejiang e Jiangsu, vamos acompanhar Fernão Mendes Pinto no que, muitas vezes na primeira pessoa, descreve na Peregrinação. Os tempos ainda não vão longe desde que os portugueses ficaram proibidos de entrar na China, corria o ano de 1521 e pelo qual a segunda embaixada portuguesa ao Celeste Império e também o Embaixador Tomé Pires sofreram pesados castigos. Ainda na dinastia Ming reinava o nosso conhecido Imperador Jiajing (1522-66), que começou a governar logo em 1521, após o falecimento do Imperador Zhengde, o que contactara pessoalmente em Nanjing com a primeira embaixada portuguesa. Agora, Fernão Mendes Pinto seguindo com mercadores portugueses, embarcados iam fazer o trato no mar, mas, naufragando, são aprisionados como foras de Lei e conduzidos pelo interior da China a caminho de Beijing, para serem julgados. Já o relato do que ocorreu em 1541, quando o grupo do Capitão António de Faria, em que pela escrita Fernão Mendes Pinto vai integrado, seguia para “Nouday a tentar resgatar cinco portugueses, residentes em Liampó, que viajaram num barco cujas amarras se quebraram com o temporal e fora dar à costa e à sua vista se fizera em pedaços na praia e de toda a gente se não salvaram mais que treze pessoas, cinco portugueses e oito moços cristãos, os quais a gente da terra levou cativos para um lugar que se chamava Nouday” Peregrinação. Com as costas marítimas de Guangdong fechadas, os imensos interesses dos comerciantes, tanto portugueses como dos chineses, subornando os mandarins, muitos para pagarem os ordenados aos seus funcionários, levaram a que os portos de comércio fossem desviados para Norte, para a província de Fuquiam (Fujian, 福建). Em Zhangzhou (漳州, Chincheo), na baía de Amoy (actual Xiamen) e em Liampó, próximo de Ningpo (actual Ningbo), na província de Zhejiang, fizeram os mercadores portugueses os seus portos, conseguindo os produtos chineses, como a seda e porcelana e por troca, a prata vinda do Japão. Como diz Montalto de Jesus: “Segundo o Tratado da China, de Gaspar da Cruz, os chineses que emigraram em contravenção às suas leis dependiam dos portugueses para manter a comunicação com a China, forneciam-lhes guias e auxiliares, e, depois do imbróglio (com Simão) de Andrade, levaram-nos a Liampó (Ningpo), onde os mandarins, largamente subornados, faziam vista grossa ao comércio proibido, que, com o passar do tempo, se estendeu a Chincheu, chegando a restabelecer-se às próprias portas de Cantão.” Esse segundo ciclo dos portugueses na China foi brilhantemente descrito in loco por Fernão Mendes Pinto na Peregrinação e à medida que os documentos chineses tem sido traduzidos a credibilidade deste livro de viagens aumenta. São desse período os relatos da Peregrinação que se interligam com a história de Tomé Pires, o primeiro Embaixador português à Corte Imperial chinesa que, desacreditado, foi preso e mais tarde abandonado no interior do país. Estava Pires proibido de sair da China, até Malaca ser entregue ao seu dono, o Sultão tributário do Império Celeste. Já mais de quinze anos tinham passado desde 1524, quando as últimas notícias sobre Tomé Pires chegaram a Malaca e falavam sobre a sua morte. O primeiro relato na Peregrinação que refere o nome de um tal Tomé Pires ocorreu em 1541 em Nouday, na altura em que o grupo do Capitão António de Faria, onde Fernão Mendes Pinto parece ir integrado, seguia para tentar resgatar cinco portugueses que aí estavam presos. Já uma segunda história, para um próximo artigo, ocorreu dois anos depois, em 1543 e desenrolou-se em Sampitay, conhecida por Pizhou (邳州) e situada a Leste de Xuzhou, a Norte da província de Jiangsu, no percurso do Grande Canal e onde Fernão Mendes Pinto ficou a saber ter Tomé Pires aí vivido até cerca do ano de 1540. Couraças de veludo roxo de cravação dourada História contada do capítulo LXIII ao LXV da Peregrinação, tendo como resumo do capítulo LXIII: Como António de Faria teve novas dos cinco portugueses que estavam cativos, e do que fez sobre isso. No Capítulo LXIV: Como António de Faria escreveu uma carta ao mandarim de Nouday sobre o negócio destes cativos, e a reposta que teve dela, e o que ele fez sobre isso e no LXV: Como António de Faria cometeu a cidade de Nouday e o que lhe sucedeu. É neste capítulo que estão duas passagens interessantes, para além dos preliminares da história contada nos capítulos anteriores, mas que aqui não cabem. Assim passamos a transcrever o capítulo LXV: “Ao outro dia quase manhã clara António de Faria se fez à vela pelo rio acima com os três juncos e lorcha, e com as quatro barcaças que tinha tomado, e foi surgir em seis braças e meia pegado com os muros da cidade. E amainando as velas sem salva nem estrondo de artilharia, pôs bandeira de veniaga ao costume dos Chineses, para que com as mostras destas pazes lhe não ficassem nenhuns comprimentos por fazer, ainda que sabia que, segundo isto da parte do mandarim estava danado, que nenhuma coisa daquelas lhe havia de aproveitar. Daqui lhe tornou a mandar outro recado, com promessa de mais interesse pelos cativos e cumprimentos de muitas amizades, a que o perro se indignou de tal maneira que mandou aspar o coitado do chinês, e mostrá-lo do muro a toda a armada, com a qual vista António de Faria acabou de perder as esperanças que ainda alguns lhe faziam ter. E crescendo com isto a cólera aos soldados, lhe disseram que, pois tinha assentado de sair em terra, não esperasse mais, porque seria dar tempo aos inimigos para ajuntarem muita gente. Ele, parecendo-lhe bem este conselho, se embarcou logo com todos os que estavam determinados para este feito, que já estavam prestes para isso, e deixou recado nos juncos que não deixassem nunca de tirar aos inimigos e à cidade, onde vissem maiores ajuntamentos de gente, porém isto havia de ser enquanto ele não andasse travado com eles. E desembarcando abaixo do surgidouro obra de um tiro de berço sem contradição nenhuma se foi marchando ao longo da praia para a cidade, na qual já a este tempo havia muita gente por cima dos muros, com grande soma de bandeiras de seda, capeando, com muitos tangeres e grandes gritas, como gente que estribava mais nas palavras e nas mostras de fora que nas obras. Chegando os nossos a pouco mais de tiro de espingarda das cavas que estavam por fora do muro, nos saíram por duas portas obra de mil até mil e duzentos homens, segundo o esmo de alguns, dos quais os cento até cento e vinte eram de cavalo, ou, para melhor dizer, de sindeiros bem magros. Estes começaram a escaramuçar de uma parte para outra, e o fizeram tão bem e tão despejadamente que as mais das vezes se encontravam uns com os outros, e muitas delas caíam três, quatro no chão. Por onde se entendeu que devia de ser gente do termo, que era ali vinda mais por força que por sua vontade. António de Faria esforçou alegremente os seus para a peleja, e, fazendo sinal aos juncos, esperou os inimigos fora no campo, parecendo-lhe que ali se quisessem averiguar com ele, segundo a fonfarrice das suas mostras prometiam. Eles, tornando de novo à escaramuça, andaram um pedaço à roda, como que debulhavam calcadouro de tribo, parecendo-lhes que só aquilo bastava para nos desviarem do nosso propósito. Porém, vendo que nós não voltávamos o rosto como lhes pareceu, ou porventura desejavam, se ajuntaram todos num corpo, e assim juntos e mal concertados se detiveram um pouco sem virem mais por diante. O nosso capitão, vendo-os daquela maneira, mandou disparar a espingardaria toda junta, a qual até então estivera sempre quieta. E prouve a Deus que se empregou tão bem que dos de cavalo, que estavam na dianteira, mais de metade vieram logo ao chão. Nós, com este bom prognóstico, arremetemos todos a eles, bradando sempre pelo nome de Jesus, e quis Ele por sua misericórdia que os inimigos nos largaram o campo, fugindo tão desatinadamente que uns caíam por cima dos outros, e chegando a uma ponte que atravessava a cava, se embaraçaram de maneira que nem podiam ir para trás nem para diante. Nesta conjunção chegou a eles o corpo da nossa gente, e os trataram de maneira que mais de trezentos ficaram logo ali deitados uns sobre os outros – coisa lastimosa de ver – porque não houve nenhum que arrancasse espada. Nós, com o fervor desta vitória arremetemos logo à porta, e nela achámos o mandarim com obra de seiscentos homens consigo, o qual estava em cima de um bom cavalo, com umas couraças de veludo roxo de cravação dourada do tempo antigo, as quais depois soubemos que foram de um Tomé Pires que El-rei dom Manuel, da gloriosa memória, mandara por embaixador da China, na nau de Fernão Peres de Andrade, governando o estado da Índia Lopo Soares de Albergaria. O mandarim, com a gente que tinha consigo, nos quis fazer rosto ao entrar da porta, com que entre eles e nós se travou uma cruel briga, em que por espaço de quatro ou cinco credos se iam eles já metendo connosco com muito menos medo que os outros da ponte, se um moço nosso não derrubara o mandarim do cavalo abaixo com uma espingardada que lhe deu pelos peitos. Com que os chineses ficaram tão assombrados que todos juntamente voltaram logo as costas, e se começaram a recolher sem nenhuma ordem pelas portas dentro, e nós todos, de volta com eles, derrubando-os às lançadas, sem nenhum ter acordo de fechar as portas. E levando-os assim, como a gado, por uma rua muito comprida, vazaram por outra porta que ia para o sertão, pelo qual se acolheram todos sem ficar nem um só. António de Faria, recolhendo então a si toda a gente, por não haver algum desmancho, se fez todo num corpo, e se foi com ela à chifanga, que era a prisão onde os nossos estavam (cinco portugueses e oito moços cristãos), que em nos vendo deram uma tamanha grita de – – que fazia tremer as carnes. E mandou logo com machados quebrar as portas e as grades, e como o desejo e o fervor disto era grande, em um momento foi tudo feito em pedaços, e os ferros com que os cativos estavam presos logo tirados, de maneira que em muito breve espaço os companheiros todos estavam soltos e livres. E foi mandado aos soldados e à mais gente da nossa companhia que cada um por si apanhasse o que pudesse, porque não havia de haver repartição nenhuma, senão que o que cada um levasse havia de ser tudo seu, mas que lhes rogava que fosse muito depressa, porque lhes não dava mais espaço que só meia hora muito pequena. A que todos responderam que eram muito contentes. Então se começaram logo uns e outros a meter pelas casas, e António de Faria se foi às do mandarim, que quis por seu quinhão, onde achou oito mil taéis de prata somente, e cinco boiões grandes de almíscar, que mandou recolher. E o mais largou aos moços que iam com ele, que foi muita seda, retrós, cetins, damascos e barças de porcelanas finas, em que todos carregaram até mais não poderem, de maneira que as quatro barcas e as três champanas em que a gente desembarcara por quatro vezes se carregaram e descarregaram nos juncos, em tanto que não houve moço nem marinheiro que não falasse por caixão e caixões de peças, afora o secreto com que cada um se calou. Vendo António de Faria que era já passada mais de hora e meia, mandou com muita pressa recolher a gente, a qual não havia coisa que a pudesse desapegar da presa em que andava (e na gente de mais conta se enxergava inda isto muito mais). Pelo qual, receoso ele de lhe acontecer algum desastre, por se já vir chegando a noite, mandou pôr fogo à cidade por dez ou doze partes, e como a maior parte dela era de tabuado de pinho e de outra madeira, em menos de um quarto de hora ardeu tão bravamente que parecia coisa do inferno. E retirando-se com toda a gente para a praia se embarcou sem contradição nenhuma, e todos muito ricos e muito contentes, e com muitas moças muito formosas que era lástima vê-las ir atadas com os murrões dos arcabuzes, de quatro em quatro e de cinco em cinco, e todas chorando, e os nossos rindo e cantando.” Texto da Peregrinação. Fernão Mendes Pinto, que tinha chegado à Índia em 1537, durante a sua estadia no Oriente esteve desde 1541 e durante dois anos, a viver como alevantado em Martabão, no reino de Pegu, onde serviu no exército do Rei da Birmânia. Ora como se pode constatar, não terá sido Mendes Pinto a assistir ao episódio narrado por ele na primeira pessoa, pois só em 1543 consta ter entrado pela primeira vez na China. Mas tal data é desfeita pois Fernão Mendes Pinto e seus companheiros em 1542, após o barco naufragar na enseada de Nanquim e de muitas peripécias, seguiam pelo interior até Pequim fazendo-se passar por mercadores do Sião, mas acabaram presos. É o problema das datas, esse que prejudica a credibilidade da Peregrinação. Proibidos de entrar em território chinês, os mercadores portugueses aventuravam-se agora pelo Mar do Leste da China a fazer comércio e a percorrer os seus portos clandestinos escondidos nas recortadas costas das províncias de Zhejiang e Fuquiam. Período de uma intensa pirataria pelas costas chinesas, pois a China contava com uma diminuta armada de guerra para o mar que tinha. Estava-se a meio da governação da dinastia Ming e os efeitos das sete viagens marítimas do Almirante Zheng He, que trouxera um desgaste económico ao país, ainda se faziam sentir. Dinheiro do comércio era o que a China precisava para pagar aos seus funcionários.
Anabela Canas de tudo e de nadaCartografia da memória [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]contece por vezes um isolamento completo e agudo no momento que passa de mansinho e quereríamos parar indefinidamente. Ou nele afinal e simplesmente voar sem escolhos. Num pequeno vôo planado. Uma alameda pontiaguda de acácias amarelas. Muitas florinhas miúdas e ainda frescas, já a atapetar o chão como uma neve fofa. Aquela luz fortíssima do meio da manhã ou do início da tarde, filtrada pela folhagem abundante, fina, alta, transparente quase. Confundindo-se as partes lá mais acima num todo rendilhado de luz e sombra. Árvores antigas, ou simplesmente maduras e pujantes. Bancos de uma pasta cimentada quase a parecer pedra orientados no sentido privilegiado do olhar. Coisa incomum. Uma frescura branda. Um chocolate quente de máquina, miserável a parecer de festa. Há uma- várias- esperas nisto, mas o momento breve contém a eternidade e o esquecimento. Como se todos os poros se dilatassem de prazer e algo nisso se apaziguasse. Como se para sempre. Encontra-se um lugar uma vez por outra se não caminharmos de olhos fechados. Ou então pelo contrário. E é possível repetir aquele chocolate de máquina, e com ele o mesmo banco de quase pedra, e ali a mesma vontade de olhar profundamente para cima e em frente no mesmo deslumbramento da rara perfeição do lugar e do tempo com ele. E ser esse o momento que a idade sentida parece ser a maior de todas alguma vez alcançadas. Por excesso, mas simultaneamente leve e redimida de todas as mágoas sentadas no outro banco lá atrás. Essa luz a lembrar os pinhais da infância naqueles intervalos de almoço. De praia. Pesados de uma sonolência boa e incontornavelmente a desembocar numa sesta quase mais ligeira do que ela própria. Algo ensurdecedor nisso. Talvez os insectos, o calor, o ardor da pele e o cheiro do sal, que deixava linhas de secagem a desenhar formas imprecisas. O cabelo empastado de mar. O sono perfeito que ficou lá atrás. Esse. Muito mais esvaziado de monstros e fantasmas. Que por vezes crescem e proliferam com a vida adulta ao invés do que se esperava. A natureza viva e inconsciente de que nela já existe um momento futuro em que já não será. Vivo rodeada de naturezas-mortas. Tudo o que produzo. Tudo o que me cerca como olhares devolvidos ou pistas para o deslindar de um qualquer crime existencial. Sempre dei esse valor de eleição a coisas mbuídas de capacidade invocativa. Memórias que queria deixar inscritas para sempre. Angústia de não as poder querer ver diluídas pelo excesso de outros dias. Espio-os por vezes, muitas vezes, questionando a validade dessas memórias ali presas às vezes por um fio ténue. Deixar um objecto inocente, um copo, uma chávena, uma caneca, por cem dias. A fingir-se esquecido. Num primeiro momento só por incapacidade de tocar e remover o vestígio sacro de um fragmento de tempo. De vida morta. Ou cento e sessenta. E ir medindo ao longo dos dias, numa espécie de estudo diacrónico. Uma cartografia do sentir, não esse, mas a capacidade que emana do objecto de reter com igual ênfase, a persistência da memória. Perscrutar num olhar intencional ou furtivo, o vacilar das recordações que dele se vão desprendendo. A morte indecisa delas. O falecer daquele sopro sobre um chá ou um café escaldante, ou do respirar sobre o aroma de um vinho. A falta de intensidade que se instala. Que era já, à partida uma natureza sem vida. Quando o tacto se desvaneceu. Parou o seu movimento no ar. Estacou num ponto preciso da mesa. Podia ser para sempre. Até àquele dia em que alguém por engano deslocou numa pequeníssima rotação depois de erguido o objecto. Misturou vestígios dos seus dedos talvez invisivelmente a substituir, sobrepondo-se-lhes, os outros. E tudo transtornou a experiência do fenómeno. Delicado, impermanente fora do ângulo do olhar. Quando mesmo a semana passada parece ter sido há uma eternidade de que ainda não limpei os cinzeiros, e duas canecas, um copo ou outra coisa qualquer, jazem sobre a mesa em memória de um momento numa outra vida. Roupas revolvidas e num momento único misturadas sobre uma cadeira, no chão, e já memória. O tempo é uma coisa estranha e a vida é de uma preciosidade esquiva, complexa e arrepiante. Não acredito no destino porque não acredito em nada. Mas talvez seja por isso que acho que tudo é possível. Mesmo quando envolto numa estranha névoa de irrealidade. E o que jaz na memória é irreal. Por isso e pela minha paixão por mapas, sigo com os dedos arrastando neles os olhos, essas linhas. Cartografia da memória. Percorrer-lhe mentalmente o desenho, as imprecisões os relevos, as linhas de cota negativa, ou não. As manchas de vinho ou de água, lugares esfumados nas dobras de muito tempo ou o rendilhado de bichos famintos do papel. Deixar coisas pousadas num lugar preciso, mas como o parêntesis sólido entre o já nunca acontecido e o nunca mais, e lentamente ao longo dos dias, sem data prevista para um fim, observar aquela disposição da memória, esquiva a ser transportada para detrás de uma estranha poalha de inexistência. Sentir obscurecer aquele já de si vago fulgor de apego a um momento do real. Ver, com intermitência desaparecer o poder mágico das coisas. De refazer a materialidade de um gesto no tempo. Numa rota pontualmente paralela à do sentir, mas que um dia diverge lentamente da deste. Para não mais se cruzarem facilmente. Excepto porque ocorrem curvas e bifurcações que podem fazê-los cruzar em zigzags. A arte perdida da natureza-morta quando lidamos com demasiados registos virtuais. Coisas e pessoas. Da natureza da memória, na verdade. Lembrei-me de Morandi e das suas naturezas-mortas depois da metafísica. Os seus objectos subterrados em esquecimento e pó. Em tempo e vestígios dessa poeira cósmica que tudo anula, tudo ataca de uma uniformização que é talvez afinal harmonia com o todo universal. Atenuadas todas as particularidades e infrutíferas tentativas de individualização numa identidade única. Uma camada que suaviza e dilui contrastes. O tempo que pára ou que percorre ao seu ritmo as formas, transportando em si e sobre elas esse desaparecimento que é morte ou familiaridade harmónica. Vindas do pó para ao pó retornar. Quando se rendeu ao puro lado físico das coisas comuns, num discurso poético da simplicidade, humildade e elegância intelectual. De uma subtiliza silenciadora e algo surreal. O uso de muito pouco, em termos de cores, formas, estrutura compositiva. E embora não os particularizando, estes objectos não perdiam o realismo. Voltar sempre, de novo e de novo aos mesmos objectos que morriam uma e outra vez arrumados ou esquecidos no atelier. Omnia mors æquat. Talvez. Envoltos em silêncio como foi a sua vida e a sua obra, e numa luminosidade angustiante. Ocorre-me Adorno quando defende uma arte radical, talvez num outro sentido completamente divergente deste, austera o bastante para não se comprazer com o seu próprio espaço de encantamento mágico. E quando afirma que as obras de arte vivem da morte. Se nutrem dela. Morte e silêncio que se transmutam em reconciliação. Recorrendo ainda às palavras de Adorno, deslocando-as do contexto vasto e complexo da sua teoria estética, que importa até se adulterando-as – a linguagem produz como mata sentidos – relembra-se como este considerou as montagens surrealistas, colagens ou simples associações de ideias, associações livres, a essência das verdadeiras naturezas mortas. A reconstituição do real, salvando-o e recompondo-o da obsolescência original e inevitavelmente corrosiva de qualquer apropriação do natural. Cria a verdadeira natureza-morta. Assim, se do olhar de um personagem retratado emergir um teclado de piano, a salvação da realidade dá-se na introdução de um novo conteúdo, como uma longa cicatriz transversal. Também à consciência. Também marca de dor na carne, nos olhos. Rasgão irremediável. Salva-se o tempo. Então. Talvez na metafísica. Mas só assim. Mas pensar que seria então a natureza-morta para além de coisas inanimadas ou de que a vida se desprendeu, mesmo o retrato de alguém. Obsoleto por natureza a partir do doloroso constatar de como foi paralisado abusivamente num tempo que de imediato deixou de existir. Como uma espécie de nó, no fluir do tempo. Mas esse gracioso texto: Do tirar polo natural, com as palavras de Francisco de Holanda sobre o retratar ao natural, significando de observação e não de memória, enfatiza a qualidade evocativa do mesmo. É o que faço. Tirar respeitosamente do natural. Inúmeras vezes do natural da memória, se isso existe. Ou fazer disso um espelho abusivo. Ou num acto de inveja. Para ver sempre. Nada tão real como o que naturalmente se apresenta. Esse real tão animal e tão mineral. Tão fluido e orgânico ou cristalizado, incorruptível ou inalcançável. Perdido na estrutura cristalina da imagem-morte- que encontrou em definitivo um dia. Como somatório de todos os outros. De todas as pressões, tensões, das infernais temperaturas e da movimentação das placas tectónicas a ajeitarem em si o universo por uns tempos. Tão lá atrás. Ou um referente finalmente liberto. Nas palavras de Hegel: “A única obra, o único acto de liberdade universal é, então, a morte, uma morte que carece de dimensão e de realização interiores”. Essa morte de que sofrem os que se vêem retratados e que faz tantas vezes temer o olho vítreo de uma câmara. Olho de novo para cima. Vem a memória de outras acácias. Mas essas rubras. Olho para estas árvores. Gosto tanto das árvores. E no entanto parecia talvez que falava de uma outra coisa. Há qualquer coisa naquele imparável e subtil movimento das folhas, que se propaga e agita o universo até longe. Como aquelas cadeias absurdas de acontecimentos irrelevantes em si, mas que deslocaram o curso das coisas imperceptivelmente. Exponencialmente. Um segundo em que se fez ou pelo contrário se hesitou numa acção, desmultiplicado a partir daí todas as possibilidades de divergência. Ínfimas. Radicais. O que somos como produto de pequenas irrelevâncias. Também físicas e químicas. Sim acredito que há uma química que se altera por acção de determinadas lágrimas na sua específica composição que difere de outras lágrimas e que reacomoda o universo microcosmicamente falando. E uma longa expiração agita a folhagem, faz baloiçar subitamente um passarito nos ramos que talvez não pensasse levantar vôo naquele momento mas o faz. Uma reacção em cadeia. O início de uma corrente que, se estende sei lá de que maneira e até onde. Aquela leveza com que a folhagem se agita, num marulho quase indistinto. Eu sopraria uma delas no desvelo de a adivinhar levando para longe uma espécie de beijo, como aqueles selos do cavalinho com a sua delicadeza de folhas. E estas com a possibilidade deles, de guiar cartas. Voltar ali por razões que não são as deste sentir. Mas acontecer de novo. Como uma peça bem ensaiada. Levar-me até ali. Sentar-me no mesmo banco. Olhar para cima e fechar os olhos a ver. Uma disposição boa. Mais centrada, intensa e límpida do que a da própria alegria. Ou olhar para baixo, para a textura ínfima deste banco, cheio de vidros ou cristais ou de minérios inidentificáveis. Cores e brilhos que aparecem e desaparecem na oscilação do olhar. Tão desprezáveis na sua escala pequeníssima que se furtam à sua vocação de espelhos e pacificam a tentativa ou a irreprimível tentação de um olhar sobre si. Liberta-me da eminência de me encontrar por reflexo. Na pequenez destas luzes. De nelas ver. De soslaio ou intensamente. Os vários infernos. E um desses dias um pequeno papel. Colado ao banco talvez por alguma humidade nocturna. Como uma mensagem desesperada e amante. Um escrito com algumas florinhas amarelas poisadas. Podia ser eu. Podia ser. Essa pretensão de nos encontrarmos nos outros quando nos excluem por ser outros. Por natureza de alteridade. Posso até ter sido eu. Eu já tive vinte anos. Por vezes.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA morte saiu à rua num dia assim Federico Garcia Lorca (5 de Junho de 1898 — 18 de Agosto de 1936) [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ezanove de Agosto de mil novecentos e trinta e seis. E, naquela noite de Estio, cumprir-se-ia um destino singular às margens do Guadalquivir: Federico Garcia Lorca assassinado pela corrente Falangista na sua Granada natal onde se havia refugiado, cede ao cansaço de estar fechado em casa e passeia-se na noite luarenta, alguém o reconhecera -volta a casa – e não tarda a baterem para o irem buscar, naquilo que foi talvez aquele instante: estou pronto e só. Porém, ele aninhara-se no seu berço para fugir ao perigo que a partir de Julho se afigurara real, fugiu para a sua terra onde politicamente tinha amigos das duas facções rivais, certo estando que nada aí lhe poderia acontecer. E, mais uma vez, se estende a questão: ninguém deve abrigar-se na sua terra em caso de perigo, é aí que estão os delatores, os algozes, talvez até entre insuspeitos que secretamente jamais perdoaram a vitória de alguns. Este erro, aliás, é cometido por todos. E todos aí encontram o mesmo fim. Lorca seguiu sempre o trilho da sua própria universalidade não estando filiado em nenhuma das correntes que fizeram a guerra. Exigir tais coisas a personalidades assim seria o mesmo que amputá-las. Garcia Lorca devia ter o encanto das crianças e a natureza brutal dos homens era-lhe talvez intimamente desconhecida, pois que não se pode ter feito aquela obra com noções estreitas de razão e de vontade. Tudo nele pertence a outros interiores, onde não raro o trágico habita, mas sempre pleno de focos redentores. Com uma aturada atenção dei-me conta o quanto a sua morte está cravejada na sua poesia: uma noção visionária, um destino irredutível, uma visão soberana plasmada nele como uma certeza. Os poetas sabem tudo do futuro das coisas, não sabendo contudo que já sabem, mas uma grande obra poética revela esse assombro para lá das incertezas humanas e das perguntas sem sentido. Ela dá-se onde os outros não têm voz, ela exercita-se nos canais subtis de um mecanismo de sonda que é raro acontecer. Mas está lá, como uma certeza toda de dimensão precisa, outra, inquietante. Este homem tão regional, foi também um grande cosmopolita, um ser que viajou, desde a sua bolsa em Nova Iorque, passando pela América Latina, Europa, Venezuela, conheceu escritores da sua têmpera, recitou, tocou, conferenciou mundo fora. Grande parte da sua obra foi compilada, revista, nas alturas que antecediam as viagens. Depois, ele tinha um enorme encanto pessoal, era imensamente sedutor criando uma aura quase hipnótica, reportando-nos às palavras de Alberti. Existe mesmo na sua morte uma nuvem de enigma tipo “Salieri-Mozart” com o poeta Luís Sales, que se tornaria o poeta do regime franquista, mais tarde, e a quem Lorca propôs o Hino Falangista conjunto, dúvidas que nunca vieram à luz do dia. Ele estava perto e teria podido intervir na sua libertação, teria sido muito fácil intervir…. mas é um assunto controverso. Eles adormecem, com o vinho da noite quando os amigos são condenados à morte, já tinha sido assim com alguém que nos é familiar. O facto de ser seu amigo não excluía que o fosse de todos os vanguardistas como Fernando Del Rio, republicano e fundador do Partido Socialista, onde fizeram parte dos grupos de vanguarda formados por Alberti, Guillin e Salinas, o chamado grupo dos «Poetas de Vanguarda». Não nos esqueçamos que foi ele o fundador da «Barraca» teatro ambulante destinado a educar as massas nas cidades e nos campos (não como a nossa Cilampus) e que em plena ditadura de Primo de Rivera pôs em palco « Bernarda Alba», um hino libertador. Por tudo isto e por muito menos são os homens abatidos e hoje, dezanove de Agosto, nunca é demais lembrar que aquilo que um poeta avança numa geração precisam os homens por vezes de séculos. Claro que fora descuidado e confiante, claro que facilitou a vista ao algoz, mas porquê matar um homem assim?! «Romanceiro Gitano» é das obras mais belas do mundo, todo um poder regional condensado a obra universal, pois que ainda agora quando desejo o cheiro das laranjas, meninos a correr, ciganos, pombos, burros e cães procuro-os nestas páginas de um chão transfigurado em Poema, tão sagrado como a Galileia, tão divina Granada como Jerusalém. O seu corpo nunca foi encontrado, para que serve um corpo, quando se é Lorca? Talvez para amar e morrer de amor, estes corpos têm coisas estranhas por dentro. Mas morto, é a universalidade que o instala sem sombras no nosso espectro de luzes. 19 de Agosto de 2015 Amo a Federico, nada me poderia ser mais amante, mais tocante, mais rasante a todas as lágrimas de agradecimento que o seu luminoso exemplo de Poeta. O amor vive-se a muitos níveis – sabem-no eles – e, mesmo que os corações sejam de lama e carne, existirá um reduto de outros elementos que batem por este belo ser em uníssono, sem tempo, nem distância. Mais meridional que os seus imensos olhos castanhos, nem as fogueiras de Saloon, mais passivo que o seu semblante, nem as impressões de Cristo, e mais belo que o seu saber, nem mesmo Salomão. Os políticos hão-de todos morrer, os homens fortes e os fracos, as coisas boas e más, mas o que fica (recorro agora à bela frase de Holderlin)« o que fica, os poetas o fundam». “Do Oriente ao Ocidente Levo tua luz redonda. Tua grande luz que sustém Minha alma, em tensão aguda. Do Oriente ao Ocidente. Que trabalho me dá. Levar-te com teus pássaros. E teus braços de vento!”
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA conquista de Ceuta foi há 600 anos [dropcap style=’circle]P[/dropcap]assam hoje seiscentos anos da conquista de Ceuta pelos portugueses, que ocorreu a 21 de Agosto de 1415 e poucos dias após essa vitória sobre os mouros, o Rei D. João I aí armou cavaleiros os seus filhos, o príncipe herdeiro D. Duarte e os infantes D. Pedro e D. Henrique. Esta conquista foi considerada por Joaquim Veríssimo Serrão e muitos outros historiadores como o primeiro marco da expansão portuguesa. Ceuta situada entre dois mares, olhando de frente para Gibraltar, segundo Gomes Eanes de Zurara era a chave de todo o Mediterrâneo. À entrada do Mar Mediterrâneo, era “ponto de confluência das rotas das caravanas no Saará Ocidental, na Baixa Idade Média e urbe vigilante da mais importante rota marítima da Europa de então, a que ligava o Mediterrâneo às costas atlânticas, que conduziam ao canal da Mancha e ao Mar do Norte” como nos foi apresentada na Exposição Temporária na cidade do Porto ‘Ontem Ceuta – 600 Anos de Encontro de Culturas entre Atlântico e Mediterrâneo’. Já Luís Filipe Thomaz, referenciando Jaime Cortesão no livro ‘De Ceuta a Timor’ escreve: “a chave de dois universos mercantis, o mediterrâneo e levantino e o magrebino e sudanês. Para além do seu valor como escala de comércio há, porém, que não esquecer o seu valor estratégico, como testa de ponte para a conquista de Marrocos, ou mesmo para a de Granada e como base o corso marítimo”. Afastada a guerra com Castela, após a vitória em Aljubarrota a 1385 e o Tratado de Paz de Ayllón em 1411, ficavam os nobres e as classes emergentes portuguesas sem lugar para mostrar a sua valentia e por actos heróicos ganhar acesso a terras e títulos e assim serem armados cavaleiros, num acto medieval da nobreza. Precisavam de guerras, onde se enriquecia pelas pilhagens, ou despojos e se adquiriam títulos de cavaleiros. Já com o território possível conquistado, a Portugal só sobrava o mar. Por isso, nada melhor que ir ao terreno muçulmano, no outro lado da entrada do Mediterrâneo, conquistar as praças marroquinas do Norte de África. Essas conquistas por parte dos portugueses, indirectamente desanuviariam o Reino de Castela da pressão que lhe fazia o islâmico Reino de Granada, ainda no interior da Península Ibérica. D. João I, o Rei de Boa Memória, reinou desde 6 de Abril de 1385 a 14 de Agosto de 1433 e foi o primeiro de uma nova dinastia, a de Avis, em que a família real portuguesa se ligava à da realeza inglesa. Do casamento entre D. João I e Dona Filipa de Lencastre nasceu a Ínclita Geração, com novos horizontes e atenta ao que se passava pelo mundo, sendo com ela que se deu o início da expansão marítima portuguesa. Ceuta de portas abertas Em 1410, Portugal encontrava-se próximo de celebrar um tratado de paz com Castela e nesse ano “teve D. João I o propósito de organizar umas festas reais para armar cavaleiros os três filhos mais velhos: o príncipe herdeiro D. Duarte, com 19 anos, e os infantes D. Pedro e D. Henrique que contavam, respectivamente, as idades de 18 anos e 16 anos.” E continuando com Veríssimo Serrão: “Mas tendo notícia do projecto objectaram os infantes que não queriam aceitar o grau de cavalaria numa cerimónia festiva, mas em luta contra os Mouros em África.” Com a Paz de Ayllon de 1411, segundo Veríssimo Serrão, os portugueses prestaram ajuda militar à coroa de Castela, em guerra contra Granada e D. João I teve a garantia de poder organizar a expedição a Marrocos, sem receios de uma invasão de Castela. A empresa de conquistar Ceuta começou a ser planeada em 1409 e “Pressionado pelos seus filhos e pelo vedor da sua fazenda João Afonso, D. João I, que aspirava desde algum tempo a realizar uma expedição a Marrocos, voltou então os olhos para a cidade de Ceuta. Mais arriscada do que a de Granada, porque cortada da retaguarda cristã, a conquista de Marrocos servia melhor (…) a política de afirmação e de prestígio dinástico que a nova casa real, maculada de bastardia, projectava conduzir; para ali se poderia exportar também a nobreza excedentária, conservando-a muito embora sob a suserania portuguesa. Aparentemente a maioria dos membros desta preferia o empreendimento de Granada; mas a recusa castelhana não lhe deixava outra alternativa”, como refere Luís Filipe Thomaz na sua obra ‘De Ceuta a Timor’. Só foi comunicada à Alta Nobreza do Reino a empresa de conquistar Ceuta no Conselho Régio de Torres Vedras em 1414. Informação do Guia da Exposição Temporária na cidade do Porto ‘Ontem Ceuta – 600 Anos de Encontro de Culturas entre Atlântico e Mediterrâneo’ e com a qual seguirei para relatar esse episódio, descrito por Gomes Eanes de Zurara na ‘Crónica da Tomada de Ceuta’. Em Lisboa, a Peste Negra em 19 de Julho de 1415 levava deste mundo a Rainha Dona Filipa de Lencastre, o que devido ao luto fez adiar o início da empresa para a qual chegavam barcos e homens de Castela, da Biscaia, da Flandres, da Alemanha, da Bretanha e da Inglaterra. Os preparativos no Porto desenvolveram-se sob a orientação do Infante D. Henrique, aí nascido há vinte anos e devido ao seu sucesso no desempenho conseguido com o envio para Lisboa de mais de setenta naus e barcas, “uma frota bem preparada, como por homens que tem vontade de me servir” segundo palavras de D. João I, terá desde logo se posicionado como um excelente dinamizador de uma empresa maior já planeada pelo menos desde D. Dinis, quando este rei da primeira dinastia mandou plantar pinhais de verde pinho, investiu na construção naval, abriu a Universidade e transformou os Templários na Ordem de Cristo. A 25 de Julho partiu de Lisboa a galera real com D. João I e a fina flor portuguesa, onde não faltavam Nuno Álvares Pereira e os três filhos mais velhos do rei, incluindo o próprio príncipe herdeiro, D. Duarte. A armada tinha aproximadamente duzentos barcos (cinquenta e nove galés, trinta e três naus e cento e vinte pequenas embarcações) e cerca de vinte mil homens. Foi só na escala em Lagos que “numa solene pregação é dado conhecimento público do destino da empresa”. Navegando pelas águas do Atlântico, fazendo escala em Faro e em Tarifa, a frota ficou dispersa ao ser atingida por um temporal e veio a reunir-se na Baía de Algeciras. A 13 de Agosto tem à vista a península de Ceuta e o Mediterrâneo para Leste. Todas as embarcações sob o comando de D. João I e D. Pedro colocaram-se em frente à Praia de Santo Amaro, onde no dia 21 fundearam. Tal levou a população da cidade a correr para esse lado, enquanto do lado oposto, pela ainda aberta porta de Fuente Cabalo conseguiram entrar, sem grande resistência para o interior da fortaleza, os que vinham com D. Henrique e D. Duarte. “Logo no instante em que Vaz de Almada hasteou a bandeira de São Vicente na Torre da Vela, nos arredores do que é hoje a Porta Califal, os assaltantes tomaram posse da cidade” como refere Gabriel Fernandez Ahumada em ‘Desembarque dos Príncipes’. A Mesquita Alhama passa a igreja Nesse próprio dia, 21 de Agosto de 1415, os portugueses sem dificuldade submeteram a praça marroquina de Ceuta, abrindo assim no Norte de África, um novo destino para Portugal. “Poucos dias depois, na antiga mesquita, já consagrada como templo cristão, o rei arma cavaleiros os seus filhos e, sucessivamente, também vários participantes na empresa. Nomeado capitão da praça D. Pedro de Meneses, o monarca regressa à Península a 2 de Setembro”, segundo Luís Adão da Fonseca, Comissário da Exposição Temporária ‘Ontem Ceuta – 600 Anos de Encontro de Culturas entre Atlântico e Mediterrâneo’. E continuando com Gabriel Fernandez Ahumada, no Guia da Exposição Temporária: “Os dias 22 e 23 de Agosto foram dedicados à consolidação e limpeza dos subúrbios que havia dentro da zona conquistada, isto é, estes foram saqueados e os habitantes que ainda restavam foram expulsos; tudo isto foi feito com uma grande violência, espalhafato e falta de previsão, uma vez que foram destruídas casas e foram derramados grão, azeite e outros produtos que teriam dado muito jeito às tropas que ficaram a proteger a cidade. No dia 24 procedeu-se à limpeza da Mesquita Alhama, foram pendurados dois sinos que tinham sido subtraídos numa razia que teve lugar na vila de Lagos e foi transportado da Galera Real um altar para a solene cerimónia de armar os Infantes cavaleiros no dia seguinte.” E recorrendo ainda à informação dos textos da exposição, no dia seguinte, domingo, dia 25 de Agosto, o monarca mandou aí colocar a imagem que trouxera de Nossa Senhora do Vale e celebrar uma missa solene, tendo feito o Frei João Xira um longo sermão. Finda a “cerimónia religiosa, foram armados cavaleiros os três Infantes e o conde de Barcelos, e muitos outros. Vale a pena recordar o comentário de Zurara a respeito do monarca: “. “Todos (em palavras de Zurara) vestidos mui ricamente por honra de tamanha festa.” E regressando a Gabriel Fernandez Ahumada: “entre os dias 26 a 31, após a demolição das casas anexas à muralha do Frente de Terra, que estavam a obstaculizar a visão do inimigo, o Rei iniciou a fase de consultas para designar um capitão de praça que ficasse em Ceuta à frente das forças militares, constituídas por dois mil e setecentos homens e duas embarcações que deveriam ser capazes de resistir a qualquer ataque por terra e por mar.” Dom Pedro de Meneses era Alferes do Infante D. Duarte e ofereceu-se como voluntário para ser Governador, cargo que ocupou durante vinte e dois anos, até à sua morte, a 22 de Setembro de 1437. Ainda em 1415, ligado à empresa de tomar o lugar dos muçulmanos, dá-se o início do Padroado, que foi confiado à Ordem de Cristo e não a Portugal, sendo o Vigário de Tomar, Prior-mor da Ordem de Cristo, o primeiro a dirigir o Padroado. Logo a seguir à conquista, o Rei D. João I solicitou ao Papa a criação em Ceuta de um bispado, o que foi aceite em 1420, altura em que se ergueu a Sé, ficando como primeiro bispo, o Frei Aimaro de Aurillac, franciscano inglês trazida pela Rainha Dona Filipa de Lencastre. “De facto, (já) em 1299, o papa criava, simbolicamente, um bispado em Marrocos, atribuindo o direito da apresentação alternativamente aos reis de Castela e Portugal” de Filipe Thomaz como informação de A. Dias Dinis. Um flash ao momento Com a tomada de Ceuta dava-se o primeiro passo para encontrar um caminho alternativo à rota do Mediterrâneo, controlada pelos mamelucos que governavam o Egipto e venezianos, que iam buscar as mercadorias a Alexandria e as distribuíam pela Europa. Ao Egipto chegavam os apetecíveis produtos da Ásia, via Mar Vermelho, vindos pelo Oceano Índico. No outro lado do mundo, na China durante esse período, o Imperador Yongle (1403-1424) enviara o Almirante Zheng He para divulgar, aos países tributários e amigos, a chegada ao Trono do Dragão da nova dinastia Ming. Essas embaixadas chinesas foram realizadas de 1405 a 1433, em sete expedições marítimas ao Sudeste Asiático, à África Oriental e ao Mar Vermelho. Só para se ter uma noção, quando ocorreu a conquista de Ceuta, acabava de chegar a Nanjing a quarta viagem, realizada desde Dezembro de 1413 até Julho de 1415 e que vinha de Mogadíscio, na África Oriental. “A afirmação política da dinastia de Avis, junta ao ideal da Cruzada, foi determinante no objectivo da empresa. Mas outras causas, sociais, económicas e marítimas, têm sido apontadas na génese da Expansão: a posse de Ceuta como zona cerealífera, para ocorrer aos défices frumentários da Metrópole; a conquista de uma base naval para impedir os ataques da pirataria mourisca ao Algarve; a aproximação, por meio de Ceuta, Argel e Tunes, das fontes auríferas do Sudão; e a necessidade de obter um campo de luta em Marrocos, para ocupar a nobreza ociosa desde a paz com Castela”, segundo refere Joaquim Veríssimo Serrão. Com a conquista de Ceuta em 1415, o Infante D. Henrique, já armado cavaleiro, dava início à empresa de tomar o lugar dos muçulmanos no Norte de África, em território marroquino, ficando “desde 1416 encarregue da defesa e provimentos de Ceuta, o que implicava o controlo da actividade corsária portuguesa na área do Estreito.” E continuando com Luís Filipe Thomaz: “De 1415 a 1422, (…) a armada tem por base Ceuta e actua (provavelmente com galés) na zona nevrálgica do Estreito, fazendo guerra do corso à navegação muçulmana e provavelmente periódicos ataques às costas de Granada e da Barbaria.” Ceuta só deixou de ser portuguesa pois a Espanha não a entregou após o Tratado de Lisboa de 1668, que reconhecia aos portugueses a sua independência perdida em 1580.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasDo horizonte, quase nada [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u nasci no mês de Agosto. À noite, quase num dia de semana mas ainda nos restos nocturnos de domingo. Quase em noite de lua cheia. Tudo isto deve ter moldado a minha alma melancólica mas tão precisada de luz e calor. E da liberdade que, veio a verificar-se, só me espera neste mês do ano. O mês cheio de dias que rondam o dia em que nasci, desarrumação que, embora só a mim, ainda hoje me perturba. Esta é a semana do meu aniversário, rodeada para trás e para a frente do mês que sempre me remete para o lado tormentoso que me caracteriza. Vim à luz com um barómetro e um termómetro e vários outros instrumentos de medida exorbitantes para os quais passei todo este tempo, a ganhar aptidão para gerir os dados. Que me dão a percepção do facto de ter nascido, como um enorme turbilhão da natureza, uma tormenta de vagas alterosas da qual só eu sinto os efeitos e em particular nesta altura do ano. Abala-me, desorienta-me, derruba-me a partir do interior mas como se de forças naturais e com base nos elementos exteriores a mim, se tratasse. E ainda estivessem em rebuliço. Quando é que isto começou, lembro-me muito bem. Quatro décadas lá atrás. Numa noite em que depois de uma festa familiar improvisada para celebrar o meu dia, deitada na cama me desfiz em lágrimas. E foi a primeira vez. E entendi. A falta de sentido que me iria assolar para sempre, como a muitos outros, e que se torna sempre presente infalível e pontualmente pela aproximação daquele dia. A angústia da vida a termo indefinido. Rilke disse que só a consciência da morte nos permite valorizar as coisas da vida, o amor. Terá razão em muitos dias do ano. Nos outros, será sempre every other day. Neste, muitas vezes ou sempre, só o atordoamento torna suportável o paradoxo por definição que é a vida. Em que existimos realmente e apenas no momento presente, não quantificável em qualquer tipo de duração. E para morrer. Vivemos no nada e partiremos para um nada mais denso que o nada. Não conhecendo então o paradoxo do niilismo universal, esforço inglório, foi o que pensei já nessa altura, em desalento. A diferença é que, nessa altura e provavelmente sem o saber, eu me sentia o rio. Enquanto hoje, muitas vezes sou mais a margem e sento-me muitas vezes simplesmente na margem. Deste Tejo enorme que banha a cidade e desagua mais à frente. E de outras, acompanho-lhe o caminho final até à foz, e nela antevejo o que me espera. De diluição. Ou fixo-me na linha do horizonte a mais circunstancial de todas, intangível e fugidia. A fuga para a frente. E a maior crueldade ou partida da memória, reside no facto de nunca se poder voltar ao lugar de onde nunca se partiu. Mesmo querendo desesperantemente. Não parti daquele ser que nasci, mas também não posso voltar a ele. Como se nunca tivesse existido. Tudo tão fragmentado neste meio da vida. Meio como possibilidade teórica. Terei sempre que reconhecer que pelo menos um terço desse todo, será improvável. Um século de vida, é o limite daquilo a que na melhor das hipóteses, mas assustadoramente também por vezes na pior delas, um ser humano pode aspirar. Na verdade, as probabilidades estatísticas dizem-me que terei vivido já dois dos terços da vida. E naqueles dias em que o maior anseio de alma é mergulhar sem retorno nas profundezas escuras do oceano, poisar no fundo e encalhar aí como um velho galeão, o único cuidado a ter é mantermo-nos cuidadosamente nas margens. De tudo. Não vá o elástico que nos catapulta e reenvia ao lugar soltar-se. A corda em que caminhamos em pontas, quebrar. E o abismo que visitamos, guardar-nos para sempre. O abismo a simbolizar a profundidade interior do homem, a sua apetência e medo do conhecimento de si, em quem se reconhece uma necessidade de transcendência e em que se auto-representa por vezes como imenso, o que leva a uma outra consequência simbólica quase simétrica – O ser como símbolo de abismo. E a partir deste, a possível validade das formas enquanto símbolos do ser – presente na contemplação – do seu dinamismo psíquico, ou ainda do abismo como projecção ou símbolo deste. E porque o ser é redondo, redondas são por vezes as formas de lugares abismais… O lugar sem fundo ou o não lugar. Ou o vazio como lugar do todo em devaneios de infinito…Tantas citações de Nietzsche possíveis tantas páginas depois e vejo-me de novo à beira dele, de tão vasto e já escrito. Sinónimo de voragem, se se lhe der o poder da vertigem. Mas tirando os grandes abismos da terra, geologicamente falando, é sempre do ser que parte a inevitabilidade da formulação do abismo. Na sua irreprimível dimensão psíquica, e no seu alternado dinamismo no sentido do longínquo aparentemente exterior, reverso das profundezas íntimas de penoso acesso. Como sempre chega-se à ambiguidade inter-permutável dos opostos. O que é amplo e o que é confinado. O que é exterior e o que é profundamente interior e se vê no entanto de fora, à imagem de tantas metáforas nietzschianas. O que é o centro, a forma redonda centrada e centrífuga, e o que é a transcendência de si. E a instabilidade destas dinâmicas. Ou ambos nas duas extremidades de um elástico. O permanente desenvolvimento de um dinamismo psíquico inerente ao estado de consciência à imagem do movimento de um elástico em diferentes graus de tensão. Concentrado e identificável à forma circular. A imagem do elástico ou a vocação pendular da introspecção. O retorno como reflexo, e o retorno para detrás do olhar. Um sentimento de que inevitavelmente o ser se confronta com uma dimensão interior de si que é abismal, em paralelo com uma visão do que é exterior a si – o universo – igualmente abismal, e como tal assustadora, a atracção para mergulhar nessas dimensões que o transcendem, e que é compulsiva, parece espelhar a absoluta consciência da sua finitude. Mas a finitude pode ser apresentada como um sentimento incontornável enquanto contingência existencial embora não desesperado, na medida em promete o mesmo infinito que recusa. Assim, se por um lado o saber revela ao homem dados que lhe são de algum modo exteriores e anteriores, que o parecem situar como nada mais do que um “objecto da natureza” ou “um rasto que deve desvanecer-se na história”, por outro lado é no conjunto das positividades empíricas do homem e limitações concretas à existência humana – o corpo na sua espacialidade, como modo de ser da vida, o desejo enquanto “abertura” como modo de ser da produção, e a linguagem, veículo do pensamento suportada no tempo – que simultaneamente se revela a sua finitude mas também a esperança ou a superação desta mesma finitude. O corpo, porque na sua inexorável relação diária com a morte, que imperceptivelmente o consome, precisamente se apresenta como o veículo para a vida empírica, o desejo porque através dele o homem se relaciona com os outros e com sistemas de produção, mas também é através dele que as coisas se tornam desejáveis, a linguagem, porque é suportada pelo tempo, que simultaneamente a corrói e desgasta, mas também a estende para lá do dominável. Nestes fundamentos enraíza-se o sentimento de finitude, mas é também neles que o homem se transcende. Por que terá o homem atracção pelo que é profundo, imenso ou mesmo infinito, a simbologia do abismo como estrutura de localização do eu individual, ou uma espécie de topografia do ser auto-consciente, o desconforto ontológico face às coordenadas espaço-tempo com que o ser se debate: onde habitar, como se situar, onde se refugiar, são as questões que se colocam neste trabalho. Porque, no que é profundo dentro de si, no que é imenso dentro e fora de si, encontra os fundamentos da sua angústia fundamental, da sua finitude. E porque no que é assustador encontra também a única via de superação da angústia. Mascarada de domínio, coragem, ou somente de inevitabilidade, a apetência pelo abismo manifesta a possibilidade do homem, através dos seus mecanismos conscientes ou inconscientes, de se esquecer momentaneamente os seus limites e pela mesma lógica com que os apercebe, deles se libertar. Tal como tem consciência da finitude, possui também uma enorme vontade de a superar ou, de se superar nessa finitude, mesmo que seja através do discurso, de qualquer discurso como alienação. Parece fazer parte da sua natureza sensível e intelectual exprimir e partilhar esses sentimentos traduzindo-os em diferentes linguagens, imbuindo-os de uma forma que os torna parcialmente comunicáveis. Onde se funda afinal a mais simples razão deste labor da escrita. Aqui, todas as semanas a mesma coisa. Deveria escrever talvez mil palavras e começo por escrever duas mil. Repesco umas quinhentas daqui e dali. Recomeço noutro ângulo e são mais três mil. Das quais retiro mil e avanço até às quatro mil. Das quais recuo por excessivas. E apagando sucedem muitas outras. Até se definir o caminho que quero. Indecisa e insegura da pertinência de tudo. Vou percorrendo ao longo de um ou dois dias uma espécie de labirinto de fragmentos de textos, de lugares. Até ao momento em que lhe encontro a saída. Há luz do lado de fora. É luz natural, mas nem sempre sei em que país me encontro. Sei sempre, no entanto, em que casa estou. Tantas coisas a dizer. Vivo cercada de pequenos papelinhos, cadernos bonitos e confortáveis, diários gráficos, documentos word abertos para apontar a vida. Palavras sempre a mais porque não há tempo de as completar a todas. E sempre a menos na sua imperfeição, comparando com as que me assolam a qualquer momento. Acabo por fazer proliferar cada vez mais papéis soltos, pedaços de folhas, cantos de listas da vida, envelopes de contas da casa. Contas da vida. Porque não lhes quero assumir algum carácter definitivo de importância. Essas palavras que caiem ali como lágrimas pontuais. Como suspiros. Como perguntas para pensar mais tarde. Perplexidades ou pretensões. Tudo com o mesmo valor à partida. Adiado. E há um propósito com que as desarrumo. Uma rejeição qualquer. São exponenciais como gavetas dentro de gavetas, dentro de gavetas. Ou dentro de mesas, de casas, de prédios, de cidades, de continentes. De… Outras vezes uma emergência. E essas presenças imperfeitas e condicionais, angustiam-me. A sua inutilidade. A sua fragmentação e nela a da minha vida, do meu dia. São esperas que se desmultiplicam. Mente-se tanto. Mesmo quem tenha esta compulsão da sinceridade. Tudo o que se revela é insuficiente e carecia de um ‘mas’, a articular com a outra ou as outras faces de uma mesma lua. Quantas coisas que digo seriam igualmente rigorosas se pelo meio houvesse a palavra quase. Aquela que sendo a antecâmara de uma sala, seja qual fôr, é porventura em certos lugares capaz de mudar em tudo um sentido. Inverter mesmo. Quando se diz: esqueci, antecedido de um quase, produz-se aquela alquimia de passar a dizer que se recusa o esquecimento que está já ali. Que se tentou mas foi uma disposição fraca para tanto que a recordação evoca. Que se mudou a vontade de querer. Que não se conseguiu. E no entanto, ‘quase’ é aquele não chegar a ser. É o nada que não chegando a ser algo, reforça o seu oposto. Nada definitivo, nada eventualmente perfeito, não conclusivo, mas tudo no estado de absoluta confusão ou arrumação possível para o momento da estreia. Quer-se o melhor, a perfeição dos meios, o apuro da expressão do sentido, mas o que está ao nosso alcance é justamente e só, o ponto a que se chegou no momento. Humildemente mas com as tripas na mão e o coração em desalinho, as roupas a maquilhagem os cabelos, todos os adereços de cena a postos para o ensaio geral. Mas a estreia sempre adiada. No último minuto. Estes são dias em que me revolvo por dentro. Assaltada de todos os lados por recordações. Perdas. Pelo passado todo e pelo futuro tão pouco. Pela falta de sentido de tudo. Em que perco o equilíbrio. Em que o procuro apurar o segundo que passa, imparável, e divisível em três. Cada parte dessas igualmente divisível por três. E sempre cada uma das partes, passado presente e futuro. Em que o presente se vai substituindo ao futuro. Um comboio fantasma em movimento. O nada que não existe. Desfoco. E procuro no meio de tanta tralha e lastro existencial, alguma coisa. Indefinida. Sei que procuro. Sei que nunca encontrei. Mas não sei o quê…
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA oscilação das conjunturas Cortesão, Jaime, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração, Lisboa, Seara Nova, 1940 [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om este autor e com este livro e finalmente com este texto sinóptico e analítico dou início a um conjunto de fichas de leitura subordinadas à ampla temática da cultura portuguesa entendida de uma forma ela mesma muito ampla, pois nela caberão textos de vária proveniência das ciências sociais com predominância da história da civilização. Começo assim com um autor que no quadro das discussões em torno da originalidade e autonomia de Portugal concebeu justamente uma tese complexa e com contornos eclécticos, carreando para a sua teoria materiais de vária ordem disciplinar e temática. Mas hoje não é esse o livro de Jaime Cortesão que trago aqui. Ele virá na altura própria. Hoje aborda-se um dos episódios mais dramáticos da vida nacional, o momento da perda e sobretudo recuperação da independência nacional. Nesta obra A Geografia e a Economia da Restauração Jaime Cortesão desenvolve uma das mais interessantes interpretações construídas em torno da perda da independência de Portugal em 1580 e da sua recuperação em 1640. Jaime Cortesão estabelece uma interdependência entre a história política e a história económica e social, e para esse efeito associa o período da História de Portugal do Antigo Regime, onde se integra a União Dinástica, aos ciclos coloniais da economia nacional sabendo que os ciclos económicos tiveram repercussões nos fenómenos de configuração e reconfiguração social. Quando a questão da independência se coloca em 1580, a sociedade portuguesa está exaurida e a classe média que tão importante tinha sido em 1383-1385 durante a revolução, quase tinha desaparecido, como resultado da proeminência do comércio das especiarias no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Índico. Este comércio, concentrado em Lisboa e na Casa da Índia tinha provocado a anemia dos portos de menor escala, assim como do comércio que os dinamizava. O resultado teve consequências graves pois faltava na sociedade portuguesa uma burguesia patriótica capaz de se opor às pretensões castelhanas. Depois em 1640 tudo se tinha alterado, uma vez que o comércio do tabaco e do açúcar com o Brasil no contexto do Complexo Histórico-Geográfico do Atlântico, pela sua natureza, tinha permitido a reanimação da classe média assim como das cidades (portos de pesca) de escala intermédia. Esta classe média patriótica começa a ameaçar o equilíbrio da União dinástica do qual foram expressão as Alterações de Évora em 1637, o Manuelinho de Évora, mas também as profecias do Bandarra, que agitava as consciências a Norte. As classes nobiliárquicas pressentindo o perigo de uma nova revolução à imagem e semelhança de 1383, resolveram agir patrioticamente. É esta pelo menos a interpretação de Jaime Cortesão, neste notável livro em que ele articula economia, sociedade e destino político.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs que vão morrer te saúdam [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]audar a morte é talvez a mais conseguida expressão de uma vida lúcida. Nem todos têm este maravilhoso privilégio e as nossas sociedades nada preparam de filosófico e religioso que inaugure o ciclo desta realidade, entretida que anda em ser eterna. Agora que sabemos que o Universo lentamente se apaga, ou seja, também morre, algumas lembranças dos Homens que não a sentiam como horror ou tabu, pois que ilustres são todos aqueles que a esperam de pé — “de pé, como um Poeta ou um Cavalo, de pé, como quem deve estar quem é!” Há uma bela frase talmúdica que diz: – o último instante de vida ainda é vida –: o que fez que muitos rabis, numa fila esperando pela morte, corrigissem os últimos textos, limassem os seus “metais”, depois depusessem o livro, o lápis e partissem. Não muito diferente dos gladiadores romanos que na arena saudaram a César a sua última batalha, Buda foi saudar a Lua de Maio e sorriu, Zaratustra subiu à montanha e esperou o Sol, e aqueles que subiam também às neves para o último suspiro em provas ritualísticas como Otto Rahn, o cátaro dos Pirenéus. Aliás, os últimos Cátaros não ofereceram resistência nenhuma, descendo uma montanha para o seu sopé, onde lhes esperava a fogueira. Há muitos seres que entram nos abismos a sorrir. Que terão eles mais do que nós, os parasitas do medo, os grandes prazenteiros? Creio que eles têm mais do que nós, uma educada consciência da fragilidade e da insignificância de tudo, mas ao mesmo tempo uma forte noção da sacralidade da vida. Certas mortes rituais não são bem-vindas, fazem parte de um espectro primitivo muito agudo, como aquele onde fazer correr sangue acalma a divindade. O Templo de Salomão tinha essa prática, pela primeira vez com sangue animal. Daí Abraão ter sido tão importante dado que põe fim ao infanticídio das sociedades pré-agrárias, aquele Anjo que impediu o Holocausto é a consciência de um novo patamar humano. Mas a saga não acaba aqui, como reminiscência ainda aparece Cristo, que vem lembrar que o Pai mata o Filho e que nessa morte o filho se Abandona. Ele não pode lutar, nem sabe, perante esse Saturno mau que engole a progenitura e, num abandono tocante e grandioso, ele quase agradece a sua sorte tão ditosa como a de um outro qualquer eleito, pois que nesses instantes que se percorre o “fio de prata” estamos cosmicamente sós, mais sós do que a nossa solidão alguma vez pôde pensar. Aqui, nem amigos, nem pai, nem família, nem povo, nem tribo… Só uma mãe alquímica e suave como a luz de Deus chora um ser que é seu, não somos amados por mais ninguém, ninguém nos viu, ninguém nos sonha, ninguém sabe dessa dor. Há inclusive uma bela passagem do Purgatório de Dante canto XXVII que explica talvez isto: Chegados ao grau último da escada Disse Virgílio, olhando-me nos olhos, Com voz firme suave e sossegada. Do lugar onde toda a alma chora E dos duros caminhos já liberto. Para ti, finalmente, chegou a hora. A ajudar-te, deixa-te andar….pois não ouvirás mais os meus conselhos. Conselhos de pai sábio ao seu menino. A tua vontade é livre, inteira e pura. Constituo-te senhor do teu destino. O que pode acontecer nas várias saídas de todos nós, é nem ouvirmos o que algo nos tem para dizer, e nem sempre o suicídio parece calmo ou aceitável, afinal, não se resolve morrer: morremos. Antero faz-me sempre uma dura impressão pela forma dolorosa da sua longa agonia, ele não merecia este esgotar-se de si mesmo, este estertor, esta lancinante dor, ele que era “santo” acabou por se diluir no seu espectro mais carregado. E também os pequenos suicídios que ao longo da jornada infringimos parecem actos de impaciência e de curiosidade, mas não lhe apanhamos o sentido, já que tantos precisam de nós….. “Fazes falta? Não fazes falta a ninguém”. Pessoa assim o afirmava, mas podemos fazer-nos falta a nós como agentes que somos de habitantes de um deus desconhecido e isso é a mais faltosa de todas as faltas. Há quem nos procure ainda por telepatia, por puro orquestrar de factos maiores… há aqueles que prolongam os nossos segundos antes do desconhecido….é bom?! É doce, no entanto. Nós, gladiadores de todas as batalhas diremos no Portal: Nós te saudamos! Tudo o mais foi acaso e ter nascido.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasEnsaio sobre o lugar [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste seria o momento em que, à luz daquela estética dos salões do século dezanove, os cavalheiros se retiravam com os seus conhaques e os seus whiskies, para falar dos assuntos sérios da cousa pública, deixando as senhoras libertas, para repôr um pouco de pó de arroz no rosto, e partilhar a dimensão do comezinho da via privada. Os desconfortos dos dias difíceis do mês ou os mistérios da mudança de idade. Receitas da vida e também da dos outros. Os assuntos domésticos e os do amor. Tudo muito filtrado, muito metafórico, muito cheio de alusões e reticências, e muito púdico, a fazer medrar nas mais jovens neste ambiente de gineceu, aquela curiosa qualidade mítica para muitos, atávica, senão mesmo estruturalmente ancorada no código genético, que é a intuição. Feminina. Mas este seria um outro tópico de conversa. Do amor, poderia dizer que é como um hotel de cinco estrelas. É preciso um bom lugar, mas também bons costumers. Como juntar matérias inflamáveis e uma boa dose de piromania. E pega fogo em combustão espontânea. Mas, diria antes: é como um hotel de charme. Actores, cenários e palco, produção atenta, uma realização sensível. Para além de uma espécie de moral estética que induziria no erro de se esperar a teatralização do sentir, há o fascínio real do estar. Gostar de estar, indissociável do gostar de se ver estar. Não, no meu ponto de vista como atitude narcísica, mas como reflexo de estar no lugar certo do mundo. No amor há o fenómeno do espelho. Há a necessidade de identificação com o caracter desenhado no olhar do outro. Com o lugar. Os actores gostam de se ver no papel, ou não. Um bom amante seria então simultaneamente um bom lugar e um bom hóspede. Descer a rua. Uma rua das muitas que levam ao rio. Lugar, antigamente de chegadas e partidas. De marinheiros. Ao lado direito, antes de desembocar na margem, e um pouco desnivelado aquele toldo com nuvens a sombrear o pavimento em mosaicos de arabescos azuis, evocativos de um médio oriente onde a sabedoria ainda protege do calor tórrido sem recursos contra a natureza das estações. Um desvão, pequeno e sombrio relativamente à rua, tanto quanto o sol ainda a escaldar, faz desejar um abrigo. Mesas redondas num amarelado de fórmica debruada a latão, e cadeiras que arredondam nas costas, convidativas ao repouso de toda a coluna em paz. O entrançado numa matéria colorida e variados matizes, como se nelas, entretecidos nas cores, se misturassem tempos, memórias e paradigmas apetecidos. Tudo de um outro tempo, de facto. E é aí que quero estar. Mas primeiro à beira- rio, amigos esperam-me num lugar mais juvenil, impessoal, amplo. Deixei para trás aquele vislumbre de interiores voluptuosos e entorpecentes, para além das janelas de guilhotina, mistura de cores aveludadas e tactilmente apetecíveis, veludos azuis ou tintos como o vinho, sedas ocre dourado, um barroco aconchegante, em contrastes semi-exóticos. Objectos confortáveis do passado, sofás e poltronas macias, quebra-luzes époque, imagens e esculturas românticas. Pensei. Tenho um encontro para mais tarde. Marquei-o ali mesmo. Por agora, esperam-me mais abaixo. Depois volto a subir a rua. Do outro lado da estrada, a memória de um enorme grafismo rigoroso, meses atrás, no prédio devoluto, que dizia: ± SILÊNCIO ±. Como se a cidade falasse comigo por enigmas. O céu de um azul prússia, intenso embora já a escurecer, naquele dilema entre uma luminosidade feérica e fortemente colorida, e a noite quase, quase a instalar-se de vez. Mas é, perto do rio, um momento que se prolonga num resplendor estóico, resistindo às luzes da cidade ainda, e competindo com elas. Espreito de novo aquele cenário em desvão, os mosaicos, as três mesas e as cadeiras coloridas e, surpreendentemente, uma única ocupada por um grupo. Desço, contente com o inesperado sossego em contraponto ao exterior, para o meu encontro e sento-me na mais distante. Um pouco mais tarde uma rapariga tão silenciosa como eu sentou-se na do meio. E, abalado o grupo conversador, um homem ocupou a primeira mesa. Ficou tudo certo, sereno e bem. Os três em linha, quietos, silenciosos e ensimesmados. A música, no volume certo, entre um estilo pop de fusão, aquelas coisas difíceis de situar, uns blues a ressoar talvez a Nova Orleães, e outras fusões um pouco lounge que não reconheço. Entendi contudo uma mão de mestre na articulação progressiva de sons, numa espécie de viajem nas horas… A mesa para dois, livre. E pareceu-me perfeito. Sentei-me só, e pensei na importância daquela outra cadeira ali, precisamente para lembrar que não era uma cadeira com o vazio de alguém mas uma simples cadeira em si. Um lugar. Não o espaço preenchido de uma ausência. Uma espécie de nada por oposição ao vazio. Um lugar, é isso. E, como qualquer lugar, uma entidade suficiente em si. Sem a necessidade de ser validado como lugar de algo ou alguém. O lugar puro. E eu nunca trago para um encontro destes alguém à revelia da sua vontade ou consciência. Tento. Nem memórias nem sonhos. Sequer os meus anjos têm lugar nestes encontros. Comigo só, mas inteiramente só em mim e não, como relativamente à cadeira, só, pela ausência de alguém. Só pela natural solidão imanente da matéria. Só, naturalmente e sem a veemente ausência de outrem. Esta é uma disposição que me ajuda a situar, mesmo para me lembrar de que, tal como não sou uma daquelas pessoas que preferem os bichos às pessoas – eu que os adoro – não finjo que não gosto da sua presença. Ou prefiro, às vezes. Mas tento não transportar a sua falta. O problema das pessoas, é serem afectadas. Literalmente. Afectadas pela vida, as inseguranças, as megalomanias, as mágoas, as frustrações. E sobretudo os medos. E que se deixam envelhecer mais do que os bichos e sobretudo, que se deixam estragar mais do que eles. Transcendendo em muito os incontornáveis limites da biologia. Nunca falho estes encontros. Já falhei outros, embora nunca pela acção voluntária da minha vontade, passe a redundância. Este é também um dos verdadeiros encontros a dois. O de uma pessoa, com a não ausência da outra. De uma certa forma, uma ausência a que se nega a imperatividade e a extensão. A que não se permite a presença. Sim. Há encontros perfeitos. Aqueles que preenchem de uma forma densa e sem margens ou folgas um pedaço, seja de que dimensão fôr, de existência. Não porque nos façam felizes, mas porque são absolutamente justos, verdadeiros e confortáveis. O que é bom. Verdadeiros mas talvez não reais. Vistos de outro ângulo. Há outros encontros, esses realmente perfeitos. Com o outro, que não eu. Mas tão raros. Pode-se passar uma vida ao lado da possibilidade de um. Por falta de jeito, de charme, de segurança, de vista. E esperar. Que as probabilidades, no seu cálculo imperscrutável, não forjem o encontro no dia seguinte àquele em que já lá não estaríamos. Encontros daqueles a que não se vê o fim. E o homem é raro na perfeição, por isso deve estar sempre em guarda. Circunscritos num pedaço de eternidade. Mesmo quando esta se desfaz logo a seguir. E a que não se admite a presença de terceiros. E, de entre os mais temíveis intrusos, o tempo, a distância, o esquecimento, ou o desencontro, é o medo aquele cuja manifestação se revela verdadeiramente terrível. E quando isso acontece, quase impossível de erradicar. Suponho que é a esta hecatombe, que Alain Badiou se refere com o seu conceito de “encontro”, como uma grandiosa descoberta do outro e de si: “For it to be a genuine encounter, we must always be able to assume that it is the beginning of a possible adventure. You cannot demand an insurance contract with whomever it is that you have encountered. Since the encounter is incalculable, if you try to reduce this insecurity then you destroy the encounter itself, that is to say, accepting someone entering into your life as a complete person.” Mergulhar nas revelações sem lei. A nudez das palavras à mistura com os beijos. Que são um extraordinário lugar físico para as palavras. O tempo anacrónico. E nunca o medo. Mas é tão perigoso isso. Tive uma amizade durante dezassete anos, pessoa singularmente amoral, ou até imoral, com quem tinha uma média de largas horas semanais ao telefone. Em que trocámos bárbaras confidências. Um dia. Uma única palavra. E acabou subitamente. Ela ofendida com um disparate que transcendeu, ocultou ou ofuscou os milhares de outras palavras usadas durante todo aquele tempo. Sim. Falar é uma coisa perigosa. Mas gosto desse desafio. Despojar a alma de qualquer artifício – o limite é a dor, ou ir além do Bojador – sem ter que ver no outro uma flor frágil. E de ver a totalidade possível do outro. Guardar alguns segredos também, evitar alguns espinhos. Sem falsidade. Eu tenho uma inconsolável nostalgia de ambientes do passado. Tão mais confortáveis e envolventes, quão desaparecidos ou em vias de extinção. Sem sequer serem substituídos por ambientes contemporâneos que consigam magicamente ter essa qualidade numa outra linguagem. Talvez afinal os objectos tenham uma alma que acumula referências e humanidade de momentos passados, de sentimentos que lhes transmitem algum calor, um acalento que a modernidade não consegue alcançar. Talvez precisem de amadurecer. Sempre gostei de ambientes vividos, objectos manuseados, marcas de vida. Das atmosferas pesadas de um luxo sensorial e decadente dos velhos cabarets. Os lugares dos espectáculos de burlesco, e dos episódios burlescos da vida. Nas zonas portuárias, com maior fascínio porque muitos estão de passagem. Vindos de longe e com destino incerto. Também eu encontrei um dia um marinheiro de águas profundas num cabaret decadente. Mas em outras longitudes. Curiosamente a primeira coisa que lhe vi foram os pés. Só depois dei com o rosto no topo de um corpo aprumado e uns ombros firmes. Um grande encontro face a tudo o que depois não teve sentido nenhum. Numa outra vida. Enfim. Pensão Amor. O lugar de que falava. Não pensão, já. É um pastiche de outros tempos, mas feito com carinho. Lugar de imitação de outros imaginários que não de hoje, mas terno e generoso para acalento de nostalgias. Um nome que se não fosse absolutamente real seria poesia pura. Há um lugar. Natural, produzido ou forjado na fantasia. Poderia ter este nome, mas seria plágio. E não precisa dele. Basta a designação plena de lugar. Como na arte, um site-specific. Lugar natural de algo. Ou desencantado da miríade de todos os outros para envolver a estrutura, a forma a instalar. Mesmo pré-existente, conceptualmente escolhido e quase produzido em função de…De liberdade. Da superação do medo. Do encontro com um eu depurado, reflectido em olhar alheio. Intemporal, eterno, indelével. Mesmo que no momento seguinte todo o referencial pudesse mudar. Mas nesse lugar tão específico, as coisas formuladas e sentidas têm alguma escala. E são eternas enquanto duram. Só depois se lhes vê o fim. Mas essa é já uma outra história. Um outro lugar. Vago. Ou não. Simplesmente lugar.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO nefasto papel das paixões Antoine François Prévost, também conhecido como Prévost d’Exiles ou Abade Prévost nasceu em Hesdin a 11 de abril de 1697 e terá falecido em Courteuil a 23 ou 25 de Novembro de 1763. Foi um escritor francês, famoso sobretudo pela Histoire du Chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, publicada em Amesterdão em 1731 como sétimo e último volume das Mémoires et aventures d’un homme de qualité qui s’est retiré du monde. A vida de Antoine François Prévost foi ela mesmo uma continuada aventura cheia de sobressaltos e momentos grandiosos. Foi noviço na Ordem dos Jesuítas, iniciou carreira militar, mais tarde depois de mais uma passagem breve pela Ordem de Jesus, ingressou na Ordem dos Beneditinos onde se tornaria Abade e finalmente padre em 1726, mas logo se fez expulsar em 1728. Em vias de ser preso fugiu para Inglaterra onde conheceu as delícias de uma paixão proibida o que o levou a fugir para a Holanda e finalmente antes de morrer subitamente voltou a França e ingressou de novo na Igreja Católica. [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]urante anos a minha imagem do Abade Prévost e da sua obra-prima Manon Lescaut esteve exclusivamente associada a um filme de 1968 com Catherine Deneuve, no papel de Manon e Jean Claude Brialy no papel de. Comete-se muitas vezes o erro de confundir a Manon Lescaut com Manon des Sources, filme sequela de Jean de Florette e que não tem nada a ver com Prévost, pois estes dois filmes baseiam-se na obra de Marcel Pagnol e toda a temática é absolutamente outra. Estes filmes são de Claude Berri, com Yves Montand, Emmanuelle Béart, Daniel Auteil e Gérard Dépardieu (le bossu), enquanto o filme baseado no romance setecentista que aborda em simultâneo a problemática do eterno feminino e o desejo de uma Vida Retirada se designa por Manon 70 e é de Jean Aurel com os actores já referidos e ainda Sami Frey. O romance do Abade Prévost é um dos muitos textos, contudo exemplar, das preocupações intelectuais típicas do século XVIII. Neste século encontramos repostas as maiores preocupações da cultura clássica, em particular o papel nefasto das paixões e encontramos também repostas as perspectivas que a cultura antiga elaborou tanto no período clássico, como no período helenístico, para tentar superar a aporia fundamental do tema: a auto reflexão sobre as paixões constitui um paradoxo, na aparência irresolúvel, pois se a paixão não existe não é possível pensá-la e quando existe e está presente, pela sua própria natureza, impede a clareza do espírito e obnubila irremediavelmente o pensamento. O pathos é inimigo da transparência a si do sujeito cognoscente. O pathos bloqueia a neutralidade crítica do espírito. É esta questão da relação entre a razão, a vontade e as paixões que atravessa grande parte do notável romance de Prévost, Mas o texto não é uma reflexão e por isso não pretende resolvê-la senão através do recurso ao retiro, o que é de todo o modo já um indício em si. Sabe-se que o tema mereceu soluções de vária ordem na antiguidade clássica, desde a metriopatia aristotélica até à solução radical dos estoicos propondo a completa extirpação dos pathe no quadro de uma apat(h)ia radical, passando pela solução, a meu ver a mais inteligente e sensata, do epicurismo que encontrava a solução através da moderação passional usando para esse efeito o papel de equilíbrio e harmonia que só a phronesis, mais tarde rebaptizada de prudência na cultura latina, pode levar a cabo, desde logo pela sua dimensão reflexiva e ponderativa mas também pela sua capacidade de iluminação transcendental. A phronesis aponta o caminho certo porque sobre ele calcula e pondera mas em boa verdade também porque antecipadamente o conhece. Não é o lugar aqui e agora para uma longa reflexão sobre as virtudes (aretai), mas percebe-se que sem o exercício delas, entregando-se o sujeito às paixões sem o auxílio do poder reflexivo do espírito e das suas faculdades práticas: a moderação, a temperança, a suspensão do juízo e da acção e finalmente a prudência; o sujeito facilmente se transvia. No século XVIII raras vezes encontramos posições ortodoxas que obedeçam a tradições intelectuais definidas. O Século XVIII é um século de síntese, de chegada e de descolagem para a modernidade e é por isso mesmo, na sua essência, marcadamente ecléctico e consequentemente o romance do Abade Prévost também o é. A própria vida do Abade exprime as contradições próprias do século e de algum modo as contradições da sua personagem, permanentemente dividida entre a embriaguez das paixões e uma vocação religiosa. No caso do romance o elemento nuclear gerador de toda a dinâmica dos acontecimentos é um encontro amoroso com todos os ingredientes de acaso e fatalidade. Os franceses exprimem este evento através da expressão afinal tão popular de “coup de foudre”. E atrevo-me a pensar que não haverá melhor expressão para caracterizar não só o facto fundador mas os desenvolvimentos inelutáveis. A personagem que sofre o efeito de um “coup de foudre”, fica como que enfeitiçado e de imediato fragilizado nas suas qualidades de resistência ao apelo tumultuoso da paixão. O narrador fará mais tarde uma análise retrospectiva procedendo a uma espécie de recuo e distanciamento, mas em boa verdade o trágico já se havia produzido e este expediente funciona apenas para salvar o romance de conotações libertinas. O romance não é uma promoção da sensualidade, da paixão e da embriaguez dionisíaca mas também está muito longe de ser um romance de promoção dos bons costumes e dos valores morais virtuosos e ascéticos. A dois tempos o romance mostra a vertigem, o apelo incondicionado da felicidade associada aos prazeres dos sentidos, mostrando a vulnerabilidade da condição humana acossada pelas paixões e ao mesmo tempo mostra a inevitabilidade funesta dessa entrega incondicional e cega. Tal como por exemplo Diderot, o Abade Prévost mostra o carácter expansivo e vital das paixões e de algum modo promove-as no sentido em que nos mostra, sob o efeito da paixão, um ser enérgico, corajoso, determinado, verdadeiramente transfigurado, como se a paixão operasse nele uma metamorfose do carácter e, da personagem pusilânime víssemos nascer uma personagem nova que entretanto passasse a ser governada por um élan vital empreendedor, gerador de poder, autenticidade e audácia. Mas é afinal tudo uma pura ilusão, pois a personagem não age no quadro das suas faculdades conscientes. Ele está como que hipnotizado, tendo sido golpeado pela fortuna e manipulado por um poder que o transcende e que ele não logra controlar. Faz sentido aqui utilizar a expressão francesa de ausência de maitrîsation. O ser não é mestre, não é senhor de si mesmo. As paixões logram essa metamorfose radical e muitas vezes trágica. Impõe-se uma pequena nota, escrupulosa, que faz toda a diferença relativamente à questão da ausência de maîtrise. Quando eu digo que a personagem não age no quadro das suas faculdades conscientes o que em última instância eu pretendo dizer é que a personagem não tem consciência da situação em que se encontra. Com este reparo eu regresso à aporia enunciada no início das minhas considerações. As paixões não podem combater-se quando não existem e não podem combater-se quando se apropriam de um ente determinado, porque a presença delas não se limita aos comportamentos que estimula e promove mas sobretudo porque provoca a obnubilação das faculdades que poderiam opor-se-lhe. Por isso no romance só mais tarde é que, depois da morte de Manon, e já, portanto, num momento de ressaca passional, a lucidez aparece. Esta lucidez aparece sempre a posteriori, ou seja, demasiado tarde. Agora, com o fogo extinto, é possível inventariar o que não devia ter acontecido, assim como a interpretação correcta do que aconteceu. Tal como na análise do processo histórico, as coisas ficam mais simples, mais fáceis e até mais compreensíveis quando sobre elas já decorreu o tempo. Apetece voltar a dizer o que eu disse em outro lugar a propósito de Marguerite Duras e citando Javier Cercas: somos sempre muito bons a prever o passado e eu acrescentaria, muito bons também a encontrar correcções retrospectivas, … ah! se eu pudesse voltar atrás e saber o que sei hoje…
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasMendes Pinto encontra a filha de Tomé Pires [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]desajustada política de D. Manuel para os Mares da China, como ficou bem provado com Simão de Andrade “habituado ao autoritarismo com que os Portugueses se haviam imposto por todo o Índico, não se adaptou às práticas locais, nem se apercebeu de que estava num país assaz peculiar, tanto de um ponto de vista cultural como do político e, por isso mesmo, incomparável a outras regiões asiáticas onde já servira o rei” como refere João Paulo Oliveira e Costa e com ele continuando: “Assim que chegou à orla do Império do Meio, Simão de Andrade cometeu um erro que originou o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais”, “resolveu defender-se em terra: ergueu para isso um fortim na ilha de Tamau, sem que os governantes chineses fossem ouvidos. Detentor de toda a autoridade no ilhéu onde se fortificara, o capitão enforcou aí um dos seus marinheiros, facto que fez crescer ainda mais a indignação e a preocupação dos chinas. Com as relações já tensas, Simão impediu que comerciantes de outras nações vendessem as suas fazendas e autorizou os seus homens a comprar moços e moças filhos de gente honrada” e João de Barros acrescenta: “Simão de Andrade personificava as virtudes e os defeitos do optimismo manuelino”. Desmandos em Tamão e no vizinho mar de Tunmen de Simão de Andrade, aliados com o de mercadores portugueses terem batido num mandarim, foi o rastilho que estourou com Duarte Coelho a abrir fogo na batalha naval de 1521. Estas as grandes causas do malogro das duas primeiras embaixadas à China, a de Tomé Pires e a seguinte, em 1522 com Martim Afonso de Melo Coutinho como Embaixador e daí, “todas as desgraças que os portugueses sofreram na China nos mais de trinta anos seguintes, até ao aparecimento de Leonel de Sousa, que fez o assentamento de 1553-1554, em Kuóng-Hoi, com o Intendente Marítimo, Van-Pé (o haidao Wang Bo, subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira que deu uma autorização de estadia temporária) – título que nos facultou o estabelecimento em Macau” A. Cortesão. A suspensão obrigatória de todas as actividades da vida chinesa após a morte do Imperador Zhengde, não tinham sido respeitadas pelos comerciantes portugueses que se encontravam em Cantão, o que levou à expulsão dos bárbaros do país após duas batalhas navais e “como consequência, a proibição dos navios portugueses não poderem aportar em Cantão, nem estabelecer relações diplomáticas e comerciais com a China, fez os portugueses juntarem-se aos japoneses na pirataria pelas baías da costa de Fuquiam e Zhejiang, trocando a prata e outros produtos por seda com os contrabandistas chineses” A. Cortesão. Havia ainda mercadores portugueses que entravam na China disfarçados e misturados com os comerciantes das embaixadas dos países do Sudeste Asiático. Fernão Mendes Pinto e seus companheiros em 1542, após o barco naufragar na enseada de Nanquim e de muitas peripécias, seguiam pelo interior até Pequim fazendo-se passar por mercadores do Sião, mas acabaram presos. Já em 1525 um édito imperial decretara o fim da marinha mercante chinesa nos mares da China, tendo por isso alguns chineses emigrado e desrespeitando as leis tornaram-se mercadores renegados, dependendo dos portugueses para manter os contactos com os familiares e no comércio com os conterrâneos. Com estas amizades feitas, esses chineses ultramarinos forneciam aos portugueses guias e após o imbróglio com Simão de “Andrade, levaram-nos a Liampó (Ningpo), onde os mandarins, largamente subornados, faziam vista grossa ao comércio proibido, que, com o passar do tempo, se estendeu a Chincheu (Zhangzhou), chegando a restabelecer-se às próprias portas de Cantão”, como refere Montalto de Jesus citando Gaspar da Cruz. As costas passaram a estar cheias de comerciantes piratas japoneses e portugueses à procura dos apetecíveis produtos chineses, pois proibido pela dinastia Ming o comércio marítimo com outros países e a China sem esquadras para patrulhar a longa costa. Mas os lucros em prata eram muitos e estas enseadas de Fujian e Zhejiang foram bons locais para as trocas entre chineses e portugueses. Tomé Pires está morto ou vivo? Montalto de Jesus refere que as “Cartas de Cantão que chegaram, anos depois, às mãos dos portugueses revelaram os sofrimentos atrozes da embaixada na prisão, onde roubaram a Pires os presentes reais recusados, assim como uma quantidade de almíscar, ruibarbo, damasco, cetim, ouro e prata que ele trazia consigo para fins comerciais. Era crença geral que, por fim, a desgraçada embaixada teria morrido na prisão.” Armando Cortesão complementa: “A carta de (o persa convertido Cristóvão) Vieira, concluída provavelmente em Novembro de 1524, diz que, de todos os companheiros de Tomé Pires, apenas ele e Vasco Calvo se encontravam vivos, na cadeia de Cantão, e à primeira vista dá a impressão de que Pires falecera em Maio desse ano. Esta passagem, que levou Barros, e todos os que, depois dele, mais ou menos levemente se têm referido ao assunto, a declarar que de facto Pires faleceu então na cadeia, é muito confusa e susceptível de várias interpretações. E aquela não é a interpretação que se coaduna com outros elementos de informação conhecidos.” “Na verdade, Vieira não diz que Pires morreu na prisão, o que, no caso afirmativo, não deixaria de mencionar; a informação foi-lhe provavelmente dada pelos chineses, que teriam interesse em o enganar. Castanheda, que, nessa ocasião, se encontrava na Índia, diz que o Rei da China . Porém, Gaspar Correia, que, durante quase todos esses anos, também esteve na Índia, diz positivamente que o Rei da China . Isto é ainda confirmado por um antigo documento chinês, citado por W. F. Mayers, em que este assunto é referido, no qual se diz que a embaixada de Pires foi enviada sob prisão de Pequim a Cantão e os seus homens expulsos para além das fronteiras da província. Por onde andava Tomé Pires Ora, Fernão Mendes Pinto escreve, na Peregrinação, que, ao passar, em 1543, pela povoação de Sampitay, na margem do Grande Canal, quando seguia preso de Nanquim para Pequim, encontrou aí uma mulher cristã que, depois de lhe mostrar a cruz que tinha tatuada no braço e o convidar e a seus companheiros portugueses para sua casa, lhes disse “que se chamava Inês de Leiria, e que seu pai se chamara Tomé Pires,”…”E que a seu pai lhe coubera em sorte ser seu degredo para aquela terra, aonde se casara com sua mãe, por que tinha alguma coisa de seu, e a fizera cristã, e sempre em vinte e sete anos que ali estivera casado com ela, viveram ambos muito catolicamente, convertendo muitos gentios à Fé de Cristo, de que ainda naquela Cidade havia mais de trezentos, que ali em sua casa se ajuntavam sempre aos domingos a fazer doutrina” A. Cortesão. E com ele continuando, Fernão Mendes Pinto “confirmou tudo isto numa declaração escrita, ainda hoje existente, que, em 1582, fez a uns jesuítas que o visitaram em Almada”. Também Cristóvão Vieira na sua carta diz: “as mulheres dos línguas, assim as de Tomé Pires, que ficaram em esta cidade o ano presente (1524) foram vendidas como fazenda de traidores, aqui ficaram em Cantão espalhadas”. De onde A. Cortesão depreende “o facto de Pires ter, pelo menos, uma mulher chinesa, ao que parece, a mãe de Inês de Leiria, de que nos fala Fernão Mendes Pinto. Pode, pois, reconstituir-se o que provavelmente se passou. Quando Pires, viajando pelo Grande Canal, quer na ida para Pequim, quer no regresso, parou em Sampitay, conheceu a mãe de Inês de Leiria, possivelmente, dama de certos meios e categoria, como cabia a um embaixador, com quem se juntou ou casou à maneira da terra. De modo que a venda da dama “como fazenda de traidores”, em Cantão, não teria tido para ela graves consequências, se é que foi abrangida em tal operação. Pelo que dizem Castanheda e, sobretudo, Gaspar Correia e o referido documento chinês, e Mendes Pinto confirma, se vê que Pires foi desterrado de Cantão, o que Vieira e Calvo não sabiam à data das suas cartas. Talvez nessa altura Inês de Leiria já tivesse nascido, ou estivesse para nascer, e é perfeitamente natural que Pires houvesse seguido com a filha e sua mulher para Sampitay, a terra em que esta tinha casa e bens” Armando Cortesão, que identifica “a Sampitay de Fernão Mendes Pinto, que então se chamaria Hsim (ou Sun) P’ei t’ai (segundo a grafia inglesa de nomes chineses) com a moderna povoação de P’i chou, ou P’ei chou, hoje, a uns nove quilómetros a nordeste do ponto mais perto no Grande Canal (cujo curso em certos sítios também variou muito durante os séculos), em latitude 34º 25′ N e longitude 118º 6′ E.” Conhecida actualmente por Pi Zhou, 邳州, era Sampitay denominada Pi Xian (邳县) em mandarim e situa-se a Leste de Xuzhou e ao Norte da província de Jiangsu. Segue-se um elogiar de Armando Cortesão: “A descrição de Pinto carece de ajuste, num ou noutro ponto, o que não deve surpreender quando se considere que Inês de Leiria lhe falou em chinês, língua que ele decerto conhecia mal, que escreveu de memória quando, pelo menos, uns vinte e seis anos haviam já decorrido sobre os acontecimentos, e que a Peregrinação só foi publicada trinta e um anos depois da sua morte, com as introduzidas por Francisco de Andrade, para que Inquisição a deixasse dar à estampa.” O que teria sido a Suma Oriental se… Pela Peregrinação concluída em 1580, mas só editada em 1614, não se fica a conhecer o ano em que faleceu Tomé Pires, mas pela descrição que Inês de Leiria fez a Fernão Mendes Pinto se deduz ter sido por volta de 1540 e que da sua casa em Sampitay foram apreendidos papéis por ele escritos. Com os portugueses proibidos de entrarem na China, difícil terá sido a Tomé Pires em Sampitay ter feito chegar a Malaca o que escreveu nos últimos quinze anos da sua vida. Por Gaspar Correia ficamos a saber que Tomé Pires a D. Duarte de Meneses, Governador das Índias entre Janeiro de 1522 e Dezembro de 1524. Mas até esse desapareceu, tal como tudo o resto que Tomé Pires escreveu na China. Seguramente uma grande perda para a História, Geografia e Botânica do século XVI, perante o que na Suma Oriental nos é permitido imaginar poderem ter sido essas informações. “Depois duma mocidade cheia de esperança e de uma fecunda passagem de cinco anos pela Índia e Malaca – em que acumulou muito saber e não pouco cabedal, em cargos modestos mas que lhe permitiram grandes possibilidades de exploração e ao conhecimento do tão diferente e variado mundo oriental, com que os portugueses apenas vinham de entrar em contacto – o simples boticário achou-se, de repente, guindado a embaixador, para afinal vir a morrer ignoradamente, depois de tanta desilusão, ignomínia e sofrimento, perdido e esquecido numa terriola qualquer dessa China imensa, cujo mistério e riqueza tanto o haviam seduzido. O nome de Tomé Pires é mais um a inscrever entre os de tantos dos seus compatriotas que pagaram o mais alto preço pela honra de bem servir a Pátria e a Humanidade”. Londres, Abril de 1945, Armando Cortesão. Foi para comemorar os quinhentos anos do manuscrito Suma Oriental que, sobre a base do trabalho de Armando Cortesão e documentos dos arquivos chineses que têm visto tradução em português e transmitidos por muitos dos actuais historiadores de quem me socorri, fizemos esta longa viagem pelo percurso de Tomé Pires, esperando ter ficado o leitor, que acompanhou os episódios desta aventura, com uma visão sobre a acção e as dificuldades dos portugueses no primeiro período de relacionamento com a China, entre 1513 e 1522.