Índia

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Uma das prendas que o cinema, como arte simples e acessível, oferece a um público largo, é a possibilidade de aceder a impressões profundas de países e lugares não visitados ou pouco conhecidos.
Um admirador de Bergman conhece, sem nunca ter ido à Suécia, o efeito que uma brisa de fim de uma tarde de Verão provoca como anunciadora do Outono assim como um seguidor de Ozu sentirá sem dificuldade, sem nunca ter estado no Japão, o odor húmido de um jardim, também no Verão, e a resignação no olhar das suas personagens simples e em geral boas. O cinema condenou-se desde cedo a ser uma arte sensual.
Poder-se-iam acrescentar muitos outros exemplos de como o cinema nos permite entrar facilmente na casa de um parvenu senegalês ou num bordel do Arkansas. Wadjad, de Haifaa al-Mansour (2012) mostra que as ruas de Riyadh não estão pavimentadas a ouro mas demonstram uma inesperada pobreza urbana. Bastam 20 minutos para que se alterem ideias sobre um país.
Um dos países que melhor conheço, sem nunca lá ter estado, é a Índia, uma Índia que se começou a insinuar suavemente em mim através dos filmes de Satyajit Ray e que com o concurso de outros autores é uma referência cinematográfica e civilizacional fundamental.
Satyajit Ray cumpriu, junto de um público mundial, o mesmo papel que Kurosawa (especialmente através de Rashomon) preenchera como foco de atenção para com o cinema japonês. Mas se no Japão Mizoguchi e Ozu se insinuaram também como responsáveis por esta onda de interesse, não se pode dizer que Ritwik Ghatak, Mehboob Khan, Raj Kapoor ou Mrinal Sen tenham ultrapassado, como aconteceu com os dois autores japoneses acima indicados, um injusto anonimato internacional.*
No que pertence ao cinema, em particular, a Índia – como a Rússia, o Japão, os Estados Unidos ou a Itália – tem filmes cujo desconhecimento impossibilita qualquer tentativa de perceber minimamente esta popular forma de entretenimento (assim como um desconhecimento do cinema mudo o provoca).
Nesta página só se falou de filmes de Ray, provavelmente porque o cinema indiano provoca em mim um desfalecimento iluminado que o tem impedido e porque o acesso a outros filmes deste país nem sempre é fácil. O cinema indiano provoca um conhecimento do mundo que previne que se descorra sobre ele.
Subarnarekha é um filme em bengali, de Ritwik Ghatak, realizado durante uma das épocas de ouro do cinema indiano, os anos 60.** Nele se discorre sobre a prepotência exercida pelos poderosos sobre os desprotegidos e a perda de inocência dos sonhadores. Como acontece com alguns filmes de Ray, Subarnarekha tem o poder de, subitamente, no meio do abandono a que nos deixara, nos espantar com uma revelação. O crescimento de Sita, de uma pequena criança para uma jovem mulher é um pequeno milagre, como milagre é o equilíbrio que tantas vezes neste cinema se consegue entre o filme de denúncia social e o de uma poderosa força poética.
Parte do encanto desta cinematografia vem sua da música e é difícil não lembrar Bruce Chatwin (mesmo que esteja errado, Chatwin tem o poder de nos convencer ou de nos deixar seduzir por algo em que não acreditamos) quando este argumenta que as línguas nasceram da canção, assim como é indispensável, ao receber o cinema indiano, deixarmo-nos arrastar pela força fluvial da sua música.
Como por milagre, a história de Sita e Abhiram transforma-se numa história de amor. Talvez seja melhor nunca ir à Índia.
O Rio Subarnarekha não podia levar-nos senão na direcção de uma outra transformação, esta trágica. Uma pequena revelação e o sistema de castas toma conta de todo o filme.*** Esta é a história de Sita mas também a história do irmão, Ishwar Chakraborty, e o comércio que faz da sua integridade revolucionária por uma vida de conforto e sucesso material. Nenhuma delas se conta aqui com pormenor, mas avisa-se que os indianos têm uma capacidade firme para transformar uma história quase banal numa de pertinência universal. O modo como as curvas do rio (que aqui não é um rio sedutor e solar mas, ao invés, agreste) se definem é o modo como se vão mostrando as curvas da vida de Sita e do irmão Ishwar.
Seria útil, e não muito difícil, fazer um trabalho em que se explicasse com detalhe como o cinema indiano e o cinema japonês dedicam uma atenção persistente à glorificação da mulher e das suas conquistas. Lembro poucos filmes indianos onde a sua presença não seja determinante.

* Pather Panchali, de S. Ray, é de 1955. Foi visto, e nunca mais esquecido, no Festival de Cannes de 1956. Rashomon, de Kurosawa, que o Festival de Veneza lançou internacionalmente, é de 1950.
** dois dos filmes de Ray de que aqui já se falou são dos anos 60, Charulata e Mahanagar. Outro, Jalsaghar, é de 1958. São os três em bengali (Ray tem apenas um filme em hindi, Sadgati/The Deliverance e um outro, o exemplar Ghare Baire/The Home and the World, falado em hindi, urdu e inglês. Todos os outros são em bengali ou, três deles, em inglês).
*** desde cedo que o cinema indiano tomou o tema das castas como assunto. É um exemplo de como esta cinematografia se debruça sobre a força do preconceito e a persistência de certo tipo de interditos cuja quebra promove a queda, a glória ou o martírio. É preciso, no entanto, lembrar que sendo a Índia o país que mais filmes produz anualmente, estes assumem expressões muito diversificadas.

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