Kaifeng e dez metros abaixo

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ituada na província de Henan, setenta quilómetros a Leste da capital Zhengzhou, Kaifeng, a Sul do Rio Amarelo, tem uma longa História, encontrando-se no grupo das sete cidades que foram capitais da China.
A chegada a Kaifeng é no mínimo estranha. Apanho um táxi, na parte Sul da cidade onde a estação dos caminhos-de-ferro e o terminal Sul dos autocarros se encontram. Perguntando a tarifa para chegar ao hotel que trago referenciado, o motorista responde seis yuan. Lá partimos e de facto, ao chegarmos é a quantia que marca no taxímetro. Pára e quando me preparo para pagar, diz-me que o hotel está fechado. O cordão que se encontra na porta giratória leva-me a pensar que é realmente verdade, mas fico intrigado porque é que não me tinha dito mais cedo. Depois, propõe-me um hotel que é da mesma categoria e para lá nos dirigimos, tendo o complemento da viagem custado apenas mais um yuan. Até aqui tudo normal; apenas poderia ter-me avisado antes que o hotel estava fechado. Em comparação ao hotel que eu tinha indicado, cuja fachada muito rococó continha altas colunas, este onde me hospedo, apesar de ser da mesma categoria e mais discreto, é ainda mais barato, tendo um quarto de banho do tamanho do quarto. Para mais, só o soube depois, encontra-se na rua onde à noite decorre um extenso mercado, com grande quantidade de cozinhas ambulantes, que cria um espectáculo a não perder. Mais tarde, volto a passar pelo anterior hotel e percebo que tinha sido enganado pois, quando por lá chegámos, encontrava-se ele apenas em limpezas.
Enfim, tenho um quarto onde dormir e o assunto está arrumado, não fosse a tentativa que faço em perceber o porquê. Talvez o taxista tivesse comissão!
No dia seguinte comprovo essa real conclusão quando, após um novo turista ser conduzido ao quarto, o taxista sai do carro e dirige-se à recepção onde recebe uma nota de dez yuan por ali colocar mais um hóspede.
Kaifeng é uma cidade plana e por isso, interessante para ser explorada de bicicleta. A parte antiga encontra-se circundada pela muralha e espanta, pois não tem edifícios altos, sendo a maior parte das casas de dois andares. Ainda por cima as ruas e avenidas são largas, o que lhe dá um imenso Céu. Tal amplia a dimensão da sua luminosidade, o que permite à visão agarrar os edifícios escuros de madeira, que na maior parte das cidades passam despercebidos pois, ficam escondidos pela força do labor humano, que absorve toda a atenção. Assim, a cidade com um ar lavado e fresco, tornou-se um lugar muito agradável nos dias que por aqui permaneço.

Memórias dos sabores

Após percorrer para Norte metade da Rua Jiefang, com inúmeras lojas de antiguidades e livrarias, decido caminhar pelas travessas e seguir o quotidiano viver da cidade, em lugares que não se mostram aos turistas.
Abre-se Kaifeng nas suas provincianas características. O leiteiro percorre as ruas anunciado pela monocórdica sonoridade que vai repetidamente saindo de um primitivo aparelho colocado no guiador do triciclo. Na parte traseira deste, transporta as vasilhas de alumínio. É ver o rodopio das pessoas a sair apressadamente de casa, muitas vestidas como se acabassem de saltar da cama e com os jarros já cheios e o leite pago, espreitam para o fundo da travessa contígua para perscrutar se a senhora que vende o tofu se encontra por perto. Com uma imagem a lembrar as leiteiras que durante a nossa infância se colocavam na esquina da rua com o mesmo tipo de vasilhame e aí esperavam os quotidianos clientes, recordamos só faltar o padeiro na sua distribuição de casa a casa, onde colocava o pão nas sacas dependuradas na porta. E não é que poucos metros a seguir, ao olhar pela vidraça vemos sair do forno de lenha uma fornada de bolos de arroz. O aspecto é exactamente como o que tenho do tempo de criança e que desapareceu com o querer requintá-lo para melhor atrair os clientes. Como há muito não provo aquela guloseima e ainda por cima, desde que estou em viagem pela China, pão fermentado e crocante, ou bolos, é algo que não ponho a vista em cima, logo radiosamente entro pelas portadas abertas de uma casa de madeira, sem nenhum placar a indicar ser ali uma loja. Quero um bolo para comer ali e outro para levar. Dizem-me para esperar. Estranho, pois basta entregar-me o bolo; ainda por cima quentinho, que contrabalança com o vento gelado que fora sopra. Volto a pedir para me darem já um para comer e é quando recebo a explicação que falta colocar-lhe a gema por cima. Alto aí, não me vão estragar o que colocou a salivar o meu imaginário de infância, para me trazer à realidade actual. Espantada, a senhora de meia-idade tenta de novo convencer-me que o bolo fica muito melhor com a gema mas, perante a minha sofreguidão em tê-lo nas mãos, logo, ainda contrariada me o entrega. É assim que consigo de novo provar, algo que há muitos anos não tenho acesso. Foi o melhor bolo de arroz que comi!

Os judeus de Kaifeng

Sabemos estar a cidade referenciada como tendo uma população de judeus. Quando a dinastia Song do Norte (960-1127) fez de Kaifeng a sua capital, havia aqui já uma comunidade de judeus com um rabi, que segundo se crê chegaram à China como mercadores durante a dinastia Tang. Em 1163 construíram uma sinagoga em terreno oferecido pelo Imperador Xiao Zong (Zhao Shen 1162-89) que ficou conhecida como Templo da Pureza e Verdade. Foi ela destruída durante as conquistas dos mongóis e voltou a ser reconstruída em 1279, tendo em 1421 sido reparada. O número destas famílias era de dezassete, como consta numa pedra gravada em 1489 que se encontra no museu da cidade e tinham como apelidos Ai, Jin, Lao, Li, Shi, Zhang e Zao. Se no século XIII contavam com quatro mil pessoas, diminuíram para metade passados três séculos. O missionário jesuíta Mateus Ricci relatou que, quando vinha de viagem desde Beijing, tivera como companhia um judeu de Kaifeng, o que muito o admirou e por isso pediu a um seu, da Companhia de Jesus, que aí se deslocasse para averiguar.
Muitos foram os judeus que ocuparam altos cargos no exército e se distinguiram como oficiais civis, estudiosos e físicos. Em 1642 o major Zhao Chengji foi um deles, que ao comando de tropas defendeu Kaifeng do exército de Li Zicheng. Nesse ano, Li tinha-se autoproclamado Rei de Xinshun e continuava a lutar contra a dinastia Ming.
Em 1866, a comunidade não tinha rabi e as famílias judias eram muito pobres, tal como a sinagoga estava em ruínas, devido às constantes inundações. Pelos casamentos com chineses, dissolveram-se na comunidade e já no princípio do século XX tinham perdido as suas tradições e ligações religiosas. Agora, apesar de aproximadamente duzentos dos actuais habitantes ainda serem descendentes de judeus, mas não praticantes, são por vezes confundidos com muçulmanos e cristãos, que também existem em certa quantidade em Kaifeng.
Na Rua Beitu, no lugar onde se encontrava a sinagoga, está hoje o Hospital do Povo número 4.

O Parque Tei Ta

As muralhas, com que a parte antiga da cidade está cercada, foram construídas pela dinastia Song do Norte (960-1127), que fez Kaifeng a sua capital. Se junto à parte Noroeste das muralhas encontro na borda do lago Xibei uma réplica da porta Tiannan de Beijing, onde não falta o retrato de Mao Zedong por cima da encerrada entrada, tudo com um ar muito abandonado, já no canto Nordeste visito o Parque do Pagode de Ferro (Tei Ta). Aí o Pavilhão Jieyin com a estátua em bronze do Buda do Futuro feita no século V e uma pedra de Taihu enquadram-se no cenário com o alto pagode, que em descampado domina a paisagem. Construído em 1049, com uma forma esguia e octogonal, tem cinquenta e cinco metros de altura e treze andares, apresentando-se feito em tijolo vidrado com uma cor de ferro e por isso, recebeu o nome de Pagode de Ferro. Já a sua decoração, feita toda com uma graciosa figuração variada em baixos-relevos nos tijolos, contraste com o interior do pagode. Extremamente difícil de subir e só até meio, dá acesso apenas a dois postigos abertos para o exterior, de onde se pode apenas ver uma pobre paisagem, que não vale o esforço.
Regresso para o centro da cidade e primeiro vou ao Templo taoista de Yanqing, que data de 1233 e tem o Pavilhão do Imperador do Jade com um invulgar estilo de arquitectura. Depois sigo para Leste e encontro o Templo do Primeiro-Ministro (Da Xiangguo), construído em 555 e que atingiu o seu apogeu durante a dinastia Song do Norte. Com a inundação ocorrida em 1642 ficou destruído pelas águas do Rio Amarelo e só foi reconstruído em 1766. No templo, a peça que mais surpreende encontra-se num pavilhão octogonal por detrás do salão principal e é uma enorme estátua dourada da Deusa Guanyin dos mil braços.
Extenuado de um dia a percorrer a cidade, sigo para o hotel para tomar um banho e pelo caminho vou atento, para encontrar um restaurante que sorrisse aos meus olhos. Não sei se é pelo cansaço, ou não ter passado na rua certa, estou a chegar e nada registo. Ao virar para a rua do hotel, a grande animação de luzes a ocupá-la permite ver cozinhas ambulantes, umas a seguir às outras, com mesas e cadeiras onde, sentadas, muitas pessoas comem e bebem. Está encontrado o local para a refeição do dia!
Após refrescado de um dia intenso, volto ao mercado nocturno de comida e percorro as várias tendas com rodas, escolhendo umas quantas espetadas de carneiro e um pão achatado com carne dentro. Para retirar a muita poeira da garganta, uma cerveja de produção local.

Enterrado pelas inundações

Kaifeng, situada a alguns quilómetros da margem Sul do Rio Amarelo, durante a sua existência teve uma série de grandes e graves inundações. Tal levou os governantes da dinastia Ming a construírem um sistema de diques para a proteger, o que teve resultados eficazes. Mas não foi somente a vontade da Natureza que as provocou. Em 1642, encontrando-se há seis meses a cidade cercada por tropas de camponesas revoltados e liderados por Li Zicheng, na esperança de conseguir afastar os sitiantes, o governador Ming de Kaifeng ordenou a destruição das secções dos diques que a resguardavam das cheias do Rio Amarelo. Como resultado, as tumultuosas águas rapidamente avançaram sobre a cidade e perto de um quarto dos 380 mil habitantes morreram. A cidade ficou abandonada e só passados vinte anos foi mandada reconstruir pelo Imperador Kangxi.
O Rio Amarelo continuou a ser o grande problema de Kaifeng. Em 1849, a cidade, que fora capital da dinastia Song do Norte, ficou enterrada aproximadamente dez metros. Devido a isso, não existem altas construções pois, há o medo de destruir muitos dos vestígios dessa época. Apenas dois ou três edifícios públicos, como bancos e hospital, sobressaem do casario térreo.
Após voltar a passear pela Rua das Livrarias, onde muitos edifícios da dinastia Qing existem e continuam a ser preservados, alguns ainda em madeira com paredes muito ornamentadas e onde se encontram lojas de antiguidades e umas tantas livrarias, deixo o interior da parte muralhada da cidade e sigo para Sudeste, à procura do pagode Po.
Perguntando a sua localização, estranho em encontrar muitos habitantes que, apesar de não saberem falar inglês, sabem-no ler; e não são só jovens!
Como a cidade foi constantemente destruída pelas inúmeras inundações, raros são os monumentos que sobreviveram, sendo o Pagode Po talvez o único que resta da antiga cidade. O nome do pagode vinha do apelido Po, que muita gente por aqui tinha e encontrava-se este inserido no templo Tianqing.
Construído o pagode em 977, no período da dinastia Song do Norte, com uma forma octogonal teve nove andares e a altura de 73 metros. Mas o que venho encontrar é algo muito diferente. O pagode Fan, como aparece referenciado, colapsou no início da dinastia Yuan, talvez devido a mãos humanas. Está reduzido a três andares, encimado por um terraço com um pequeno pináculo, tendo as suas paredes completamente revestidas com tijolos e cada um dos quase nove mil, com uma diferente imagem budista em baixo-relevo.
Daí sigo para a estação de comboio, que se encontra próximo.

11 Dez 2015

Meios tempos. Meios-tons

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ermelho. Por alguma razão se lhe chama encarnado. Cor visceral. Turbulenta, apaixonada com violência bélica.
Falar um pouco do prazer. Do prazer daquilo a que chamaria o registo. Como de um sismógrafo, o das sensações. Do prazer da cor. Puras sensações de prazer ilusório. A percepção é pouco fútil. Por muito que se desenvolva a capacidade de concentração, é atraída pelo que é dinâmico. O movimento atrai mais do que o prazer que uma forma estática. O ruído impõe-se à apreciação subtil do silêncio. Pedra, tesoura, papel. A cor. A cor é pura sensação, não tem forma, não tem volume, não representa nada em si que não a si própria, mas ela ilude, também ela, a nossa percepção pulsando ou retraindo-se, parecendo expansiva ou reentrante. Faz-se maior ou menor, que o puramente determinável. A exaltação. O corrupio do sangue a acelerar. O prazer da cor, das cores puras, saturadas e vibrantes. Quando muitas, são demais. Anulam-se. Mas em certos dias, a minha alma pede que todas sejam diluídas no branco. Amortecidas e suavizadas.
Como as palavras. Escolher as palavras. Vasculhar no baú à procura daquelas…as palavras são tão importantes. No que dizem e no que não dizem. No que dizem sem dizer, e no que não dizem parecendo fazê-lo. No que dizem sem querer. Sem querer não dizer. Mas sobretudo no tom na cor, na qualidade do brilho. As pesadas e as leves. As que se enrolam na língua e tropeçam, e as que arrastam uma sensação tépida. Arredondadas, macias, aveludadas e suaves.

A premência da expressão, é um inferno cansativo. Sinal de falta de habilidade para o diálogo com a existência, de necessidade de tempo, de reflexão. Sinal de caos e desassossego interior aos olhos ao sorriso e às mãos, dia após dia, reprimidos. A pulsão da morte, o desespero de finitude, o isolamento inerente à entidade do ser em si, o excesso de sentir, o deslumbre do ver, o êxtase do admirar, a dor de ser ferido, a solidão do amor, dia após dia. Haverá por ventura ego ou nem sempre, como certeza de relevância, no amor à escrita, à arte. Simplesmente solidão. Veloz e inultrapassável. Essencial. Demencial. Sem alvo definido. Sem reparação. Sem remédio. Não há restauro possível ao facto de sermos sós, cada um em si. Nos seus mistérios. Nas suas preces e nas suas loucuras. É cansativo entrar e sair permanentemente de uma concha. E mesmo esta é, como um búzio, amplificadora de sons. Ensurdecedores por vezes, mas confusos. Mesmo os silêncios com uma dominante contínua de um timbre particular.
E depois o amor. Claro, o amor é um lugar de não solidão. O amor claro. O próprio privilégio de amar claramente alguém. Mesmo em segredo. Enche e acompanha a alma. A parte possível. Mesmo sem posse nem espera. Um paradigma. É eventualmente um sentir delicado como a luz da madrugada, com os seus altos e baixos sensitivos. Como uma luz de fim de tarde, momento de passagem e como tal angustiante, mas por um ínfimo intervalo de minutos serena e confortável. De uma beleza maior do que a da tórrida luz do meio-dia, impossível de olhar de frente. Que cega. Como a luz desse mesmo meio-dia, coada de uma folhagem leve, intermitências de calor e alívio, de brilho e cinza no intervalo. A combinação perfeita. Porque amarelo é a cor que as crianças usam para pintar o sol. Elas lá sabem. Que da luz branca, completa, do sol, composta de todas as outras, não poderia resultar o neutro do branco puro. Branca é a luz do sol na teoria da cor. Branco é a cor que não é. Como o negro. Amarelo é o aproximado colorir do sol. Pura emoção, a da luz. A cor que seria a mais bela se não amasse as outras duas também. A do sol, a da luz. Real ou não. Que vive no azul do céu mesmo quando cinzento. Tão distantes, tão distantes entre si também, mas são irremediavelmente parte da etérea construção do mundo. Do visível e do invisível.

E não há rigor possível na expressão. Com quanto mais perfecionismo o perseguir, mais se acentuam múltiplas as camadas de sentido. Não há rigor absoluto. Burilar uma frase até à exaustão e entender depois que pode ser lida de través. Como um sorriso de deslumbre pode ser confundido com troça, ironia, ou desdém, uma frase no plural pode ser lida como desabafo do próprio ou partilha de um crime de pensar ou sentir. De um crime ou de uma paixão. Se é que não podem ser uma mesma face de duas moedas. Depois há a qualidade, o som, o timbre, o colorido, com que se diz o que se diz. Querer encontrar, como uma tradução em tons aveludados e suaves, um tom particular para falar dessa imensa solidão que é ter a alma cheia de palavras, que nem sequer se quer proferir, senão a sós. Dizer de outra maneira e com outra cor. Queria aplainar cada fragmento de dizer até ao tom quente e dormente que entrasse como uma carícia na alma de quem lê para que lesse com amor. Se de amor se tratasse. Porque ler também deveria ser feito do mesmo ramo de cheiros, sabores e sentimentos com que se escreve. Senão para quê…uma e outra coisa. Quando o que se quer por vezes, é transmitir sem chegar a lado nenhum ou a ninguém. E tudo parecer contraditório, quando só o desconforto não o é. O desconforto de abrir a alma às palavras traiçoeiras. Ou, de outro modo, gostar de estender um tule de sensações, um perfume, um gesto, e ansiar que quem o colhe, sinta no rosto ao de leve uma onda cálida da ternura que só pode ser de uns, não de outros. Mas ninguém saber. E ser universal a possibilidade de amansar almas em turbulência de igual sinal. Que as há, e muitas. Mas somos tão selectivos que não é isso só e sempre o que queremos. Para cada um, uma camada diferente. Para musgo, tule e veludo, quanto da faca, a lâmina e o gume. Quanto de canela para o ácido do limão.

Como a delicadeza. Nem sequer é das palavras mais belas, melhor do que o adjectivo, sim. Mas por oposição à vocação vulcânica e viciante que é a torrente da expressão. Por vezes uma lava que incinera sem retorno. Compulsiva. A estilizada, calma, controlada e codificada arte da conversação ou do chá. Perdidas para sempre. Um refúgio intemporal das agruras intempestivas de ser rigoroso na expressão do sentir e sem medida, por vezes dizer o que não deveria caber nas margens de subjectividade do texto. Às vezes vasculhar penosamente esta língua à procura das palavras mais doces, mais perfumadas, mais macias ou embaladoras. E a luz não é macia senão ao entardecer. Ou à aurora. De resto é penetrante. Inquietante.
Delicadeza. O que é a delicadeza num território de inseguranças e de idiossincrasias. Um porto seguro para dois. Quaisquer dois. Um conjunto de indicações. De regras que suavizam o caminhar como sapatos de bom corte. A uns e a outros. Será o tempo? Será o vento que afasta de uma delicada expressão de existência mutuamente observada, para o não tempo de inúmeras questões a que dar tempo… O que é a delicadeza senão menorizar o não querer emoções que seriam demais. O que é a falta dela é mais fácil de dizer e mais conhecido. É só o desleixo existencial ou o ego numa espécie de terapia de choque. Só falta de jeito, só deixar cair como se nada fosse. Isto num mundo de demasiada comunicação. Demasiadas vozes, metade delas por motivos insólitos silenciadas sem resposta. Ignoradas. Sabe-se lá porquê. Somos assim cada vez mais. Por vezes sem querer. Por vezes sem termos de comunicação.

Por isso o território do excesso a querer derrama-se como uma higiene diária da alma.
Mas, sinto por vezes, uma enorme agonia de toda esta necessidade de expressão. Deste afogamento em pensamentos repetitivos, sempre em formas ligeiramente diferentes, insistentes, embaraçosos, impúdicos até. Que se sucedem em camadas de tonalidades que vão variando na definição dos mesmos padrões. Saltos no vazio sem rede. Escritos e pensamentos secretos de um enorme rigor momentâneo e que me aterrorizam mesmo no seu recato privado. E é então que tenho enormes reservas de silêncio exterior. Aparente, só. Solitário silêncio que não se redime das enormes quantidades de palavras que continuam a fluir por detrás dele. E a desarrumar-se sempre nos eternos papéis e pastas em word. A precisar de arrumação para sempre. E para sempre a precisar de arrumação, porque se desmultiplicam sem piedade. E no dia em que eu tiver tempo para todas essas palavras, talvez já não lhes entenda e sinta o tom. Por demais inúteis. Como tudo o que é demais. E em ciclos regulares aquela disposição a tender para a paragem, o abrandamento, o retomar tudo num tom mais suave, mais delicado. Surdos rumores a substituir avalanches emotivas. O prazer de nada ser preciso explicar, o culto do indolor. Da ordem. Do vazio. Da ordem do vazio. Do atenuar sentidos trágicos com uma camada leve de meios-tons. Tons degradados com o branco. Suavizados e quase indiferenciados. Calmos, apaziguados. Por oposição ao tumulto de demasiadas camadas de realidade, demasiadas vidas a viver todos os dias, demasiadas dependências da alma a visitar e a arejar, a necessitar de expressão. E o constatar que, na realidade nada de essencial se altera por magia da comunicação. Deste paradigma de clarificação da alma. Se esta é clara nada mais há a fazer do que viver. Por oposição a dizer. Talvez seja também isto que me situa em alguma da tristeza. A exaustão. O desalento de tudo parecer uma batalha sem quartel. A melancolia é um refúgio bom. No vermelho o fogo de uns dias, cinzas os outros.
Gosto das plantas lentas. Como a orquídea. Leva anos até sentir-se em casa. Custa anos a desenvolver-se. Morre muito devagar. As flores, quando começam a insinuar-se, são meses de crescimento lento. Um dia de súbito, abrem no seu esplendor inacreditável a partir de um pequeno botão. E ficam ali por largas semanas, inalteradas na cor na textura no porte. Belas, estruturadas e rigorosas como o são muitas flores. Mas mais lentas. Entes não significantes.

E o culto do chá. A estilização, o ritual, a delicadeza e o protocolo. Ou um outro culto, do estar, do permanecer do conversar fluido, sério. Do revelar. Do parar, do pensar como dizer. A arte do chá como a perdida arte da conversação. A codificação dos gestos ou a descodificação possível a partir do olhar, do medir, do interpretar escolas e mestres. Wenceslau de Moraes abordou pela tonalidade poética, a frescura lírica das coisas relacionadas com o chá no yo. Outras formas de tomar chá. Menos codificadas. À partida não codificadas. Menos significantes também. Mas esta, ainda por ora parece saída do tempo. Fora do tempo. Protegida em pavilhões edílicos, em recantos de jardim.

Gosto de pensar na cerimónia estilizada do chá. O rigor até hoje no Japão. Os princípios da harmonia (wa), do respeito (kei), da pureza (Sei), e da tranquilidade (Jyaku). Os quatro princípios que estruturam o ritual. O caminho do chá, como é designada a cerimónia, e dos vários nomes, aquele de que mais gosto, ou encontro para o chá, ou ainda, quando mais formal e longo o encontro, assuntos do chá. Dominados todos por uma enorme simplicidade, depuração e elegância de gestos. Medidos, aprendidos, perfeitos, apurados até ao limite. As formas mais sofisticadas do ritual podem durar quatro horas, e envolver muitos gestos, muitos utensílios, muitas regras. Como tudo o que é complexo susceptível do erro. Mesmo o chá, não pode dizer-se existencialmente de uma temperatura ideal. Idealizada. Na cerimónia do chá, no entanto, esse é um dos parâmetros codificados. Parte de um ideal a cumprir para regozijo de convivas perfeccionistas. Uma cerimónia em que se busca a harmonia e a serenidade. Gosto de pensar numa síntese das fórmulas básicas deste cerimonial. Na beleza construída para tal e que o enquadra. A natureza em redor, a construção de uma ordem que a envolve também. Uma ordem total. E formas simples. Cores claras. A pureza das taças. Ruídos calculados. Gestos. Fórmulas de delicadeza.

E face a este cenário de perfeição todo um outro quadro de emoções em permanente desajuste e reajuste, parece excessivo. E a violência crua da expressão. Como se fôssemos monstros que na intermitência dos dias levantam narinas fumegantes, fitam o olhar ígneo em redor, fincam garras num lado qualquer da vida e aí mesmo a incineram. E pensando bem, inútil. Ilusória sensação de comunicar e assim aproximar algo ou alguém a uma solidão indelével, pela magia da linguagem. Sem se saber de que serve ser-se transparente. Aparentemente mais reconhecível. Mais claro. E por vezes, sem se querer, o tal monstro terrível por ser enorme e enorme por ser terrível. E mais nada.

Mesmo aquém de um universo tão idealizado, a delicadeza é um conjunto de regras que atenua a dor. Que reserva e defende sem aproximação demasiada. Que não impõe. Que não oprime. Que no fundo deveria seguir os mesmos princípios definidos para o chá.
Mas gosto de pensar em rotinas ainda mais depuradas e idealizadas. Com mais silêncio e mais solidão. A harmonia da solidão e dos gestos simples longe do olhar.
Esta minha vida de partir todos os dias como um caixeiro-viajante com pedaços da vida na mala. Quando o que queria era estar aqui. Ficar por uns tempos num só lugar e numa só vida. Descer numa estação e ficar por uns tempos. E depois não ter nada para dizer. Como se fosse da inevitável imperfeição que se desenrolasse o discurso possível. O relato imparável. Tremendo engano. A solidão, aquela essencial, não passa de um comboio diário de que só nos apeamos pontualmente. Há uma reserva que todos os dias circula nele sem apelo. Talvez a mesma que faz extravasar emoções, incontidas tentativas de chegar a outros e de os trazer a nós. Excesso de vulnerabilidade, instabilidade, construção e destruição de modelos…Um colorido saturado, intenso e corrosivo. Ilusão de encontro. Cumes e baixios a percorrer alternadamente. Uma viagem imparável. Parar.

Planear voltar a um lugar. O mesmo. A única diferença o tempo. Agora. E a quantidade de tempo. Temer que a meio algo se esvazie. Para além de uma mala cheia de vida para arrumar e cadernos a repensar. O mesmo lugar, o mesmo hotel a mesma varanda. E tempo. E ausência, e fim, e silêncio. Mas só uma paragem, um intervalo, aquele entretanto, entre dois tempos.
Chegada a Saigão. O cansaço, a humidade, o sono subliminar e frustrado de muitas horas. O suor, o peso das malas. O choque do ar em fogo nos pulmões. A expectativa do reencontro com a saudade da viagem e de Saigão. Tudo envolvido numa toada de desconforto máximo. Por agora. O olhar fixo num ponto e num momento. Aquele preciso quarto de hotel. Aquele rigoroso momento depois de tudo entretanto, e do banho de todas as sensações dominantes por agora. E do banho que as lava e leva para o fundo do esquecimento. O momento de chegar à janela depois, fresca, apaziguada, perfumada no ar quente e sempre húmido, envolto em cheiros demasiado pesados, os tons lamacentos do rio, a sujidade. Momento perfeito de chegar à janela com uma chávena de chá. Recuar de novo para o cadeirão de rota por detrás do sombreado da persiana de vime. Sombreado com riscas muito juntas e que cobre de tons mais neutros ainda todo o exterior visível. E ouvir o bracejar lento e ineficaz da ventoinha no tecto. E sentir voltar a humidade na pele, de novo o calor imenso sem tréguas. Mas novo. Todas as outras sensações diluídas no banho demorado. Voltar ao momento da partida e chegar, enfim. Finalmente estar. Ali.

11 Dez 2015

Se nasce morre nasce… desmorre… desnasce

No dia da morte de Oscar Wilde e Fernando Pessoa

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omeçar com uma frase do belo poema visual de Haroldo Campos na rítmica compreensão do tempo cíclico, que é um mantra belíssimo na linguagem, na arquitectura métrica, para falar do dia 30 de Novembro, dia de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, que morrem por razões naturais, no mesmo dia, num mundo, que nem sempre para eles, pareceu muito óbvio.

Se
Nasce
Morre nasce
Morre nasce morre
Renasce remorre renasce.
Re
Desnasce
Nascemorrenasce
Morrenasce.
Morre.
Se.

Sim! Este ir e vir, este vai e vem, que morre, que nasce, que desmorre… remorre… é uma dança tão bonita que podemos ficar nela pendurados até aos quadris da eternidade, se para os mais optimistas e vivificantes hiperbólicos «Tudo é vida», já para os tristes tudo «É morte», mas nada é do que se supõe de tão definitivo, nada mesmo nada se encontra de um lado só, e nada melhor que a frase de Pessoa: “morrer é só não ser visto”. Também não temos a certeza se vivos o somos… Daí que, na vasta perspectiva das sombras, estar vivo é uma função sombreada e estar morto é ser-se talvez um fantasma; e, como bem se sabe, eles são brancos.
Há dias inscritos como sombras florestais no seio de uma aritmética gigante, coisas dos fundos que os acompanham a compasso, estes dois poetas, escritores, foram desaguar no seu Sargaço no mesmo dia frio em que o Inverno assoma. Nem um nem outro se conheceram, obviamente, mas ainda tiveram vivos no mesmo tempo físico, breves anos é certo, o que dá uma ligeira intimidade contemporânea, mas com as diferenças típicas dos seus respectivos meios ambientes e educações.
Se o véu da possível homossexualidade de Pessoa se levanta indelével, já Wilde a tocou, sim, de modo trágico. Pessoa era um judeu em fuga às quiméricas Inquisições e por isso havia que inventar nomes, desviar, mitigar, perder o rasto, multiplicar…. aluarar…. pé ligeiro e alma ao vento.
Wilde era um «dandy» exibicionista, muito irónico, cosmopolita e perdulário. O mundo para eles era um palco de nações perdidas e de actos que não chegavam jamais à transcendência. Nisto pareciam semelhantes, na causticidade de um destino, onde Deus no último instante e cansado de os inspirar os abandonava, e eles se abandonavam a um nada que sempre pressentiram, em última instância, existir.
Se Wilde estava mergulhado na Inglaterra vitoriana que não lhe perdoa ousadias, nem prevaricações, Pessoa enublou-se de uma Lisboa cinzenta de tal ordem ofensiva que ele “desmorreu”. O traquejo dos sub-reptícios súbditos de sua Majestade não gostam desta gente: Wilde é mesmo condenado sem apelo nem agravo por todas as luxúrias que o seu apetite não ousou disfarçar e Paris, que nem sempre é uma festa, vai dar-lhe a mais assombrosa das experiências.
Escreve então a obra redentora para depois morrer na sua miséria e indignado por causa de um papel de parede: «De Profundis» uma obra epistolar onde as «Cartas de amor» de Pessoa parecem coisas anormais de caricatas. Wilde sabia de qualquer coisa… outra… grandiosa… essa, sim, redentora. Sofreu mais! Quando leio esta obra, peço-lhe sempre desculpa, pois que para isso acontecer está subjacente um drama imenso, uma náusea severa, um destino fabuloso. Dirigia-a a Lord Douglas mas, tanto faz, ele é um arquétipo de toda a mediocridade malévola que povoa o Mundo.
Por isso, creio, que entre cartas e fenómenos vários, ambos devem ter morrido, de fome ou coisa parecida, assunto de somenos, dado que no estádio adiantando de grande depuração comer é até perigoso, mas que se morre, morre. Tanto que comiam, que viveram alguns anos, um quarenta e outro quarenta e sete… um até bebeu mais do que comeu, suponho.
Por isso eu creio que a data “papoilita” do 21 de Março não corresponde à “coisa”, que esta coisa não é simples, nem fresca, nem florida, embora creio que eles tenham feito do Mundo uma espécie de «Jogos Florais»: sabemos que se morre no Inverno, morre-nasce na Primavera. Pés de Cereja para drenar o cérebro e os rins, pouco afoitos a datas eram eles, um disse mesmo: só ficam com o dia do meu nascimento e da minha morte, de resto, todos os dias são meus. O nascimento é outra história e não vamos falar dele se não o fantasma branco de Pessoa começa a fazer horóscopos. Por um triz que não bateu certo! Mas ele não era de coisas e disse logo: não morri naquele dia porque seis meses correspondem a dois minutos na carta do céu. Uma carta que era diferente do autor do «De Profundis» mas que ele explicaria muito bem, caso a tivesse averiguado. oscar-wilde
– Para histórias da carochinha, já bastam os dramas cómicos. Tu, Fernando, não sabes escrever cartas; tu, Óscar, fizeste a melhor do mundo. Achou-vos graça Deus, levando-os a 30, uma espécie de 125-Azul. –
Ambos gostavam de jovens, o Fernando era de crianças, mas, de forma exemplar.
– Oscar, não te devias ter metido com aquele rapaz!
Mas se não te tivesses metido com aquele rapaz tinha-se perdido o testamento que faz com que tudo na vida, afinal (e só depois o averiguarmos) fique tão certo, a matemática do destino que vos empurra para um mesmo número. Sabemos nós destas coisas, nós os “descamisados”, sabemos muito de números, e o mundo é irregular dado que quem toca neles não entende da sua aritmética.
Por mim, que vos amo, não me foi difícil, esta manifestação que embora estranha é à medida daquilo que sois. Estamos cansados de ouvir “palrar” coisas sem sentido da parte de uns e de outros, que até de vós fujo quando por eles pronunciadas… pois que quando nasce… morre… agora que ao desmorrermos iremos brincar, dado que a nossa tarefa no mundo também passa por essa linda experiência. Já encomendei uma morte para o mesmo dia. Vejam lá se aparecem, pois que não estive a fazer este texto por acaso.
E assim, na trágica composição do elemento que transforma palavras em coisas, se desmorre sempre para o infinito instante de nós mesmos.
Se um tinha amigos imaginários e outro escrevia cartas para o «boneco», eu não só tenho amigos fantasmas como escrevo missivas para os espectros. Não me assombrem mais, que tenho que vos ler e olhar por vezes o quanto as chuvas são oblíquas e tirar retratos sempre jovem.
O que mais me aprazaria era ser Salomé e que me desassossegassem sem ver de quê . Não digo o que fizemos no dia de finados porque já não nos acreditariam. Não me esqueço das más companhias como a do Alexey Crowley… de ti Fernando… e essas coisas que só o éter digere. Quanto ao querido Oscar deves ter ido mesmo para um local qualquer… passaste a fronteira, não foi? E repetiste a gracinha quando te perguntaram: que tem a declarar nesta alfândega?! «Nada mais que o meu génio». Pois claro.

10 Dez 2015

Da Modernidade

Giddens , Anthony, Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta, 1995.
Descritores: Modernidade, História, Holismo, Capitalismo Tardio, 148 p., ISBN: 972-8027-27-3

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odas as obras sobre a problemática da Modernidade me interessam. A minha posição é de defesa quase incondicional da Modernidade, ou seja, reconheço as perversidades inerentes ao progresso mas não as atribuo à Filosofia das Luzes e portanto também não à Modernidade como a concebo, mas a uma contrafacção da Modernidade engendrada pelos seus detractores.
Convém distinguir três variantes na análise da crise da Modernidade.
Uma perspectiva centra-se na ideia de que a Modernidade já acabou e que vivemos agora segundo um outro paradigma, o da Pós – Modernidade.
Outra perspectiva, enfatiza a ideia de que a Modernidade é um projecto falhado para a humanidade, um caminho mal escolhido e aí se defende um regresso ao passado, digamos assim, assinalando uma espécie de nostalgia pelas sociedades pré-modernas. Ora não me parece que assim seja. Nem num caso nem noutro.
Finalmente muitos sustentam que a Modernidade é um projecto incompleto e que interessa continuar, como é o caso de Habermas.
Em síntese a Modernidade é considerada como a crença na Verdade, alcançável pela Razão, e na linearidade histórica rumo ao progresso. Eu destacaria ainda a predominância do Paradigma Sociológico. Mas isso é muito discutível, pois as filosofias do sujeito contêm em si a possibilidade de um paradigma antropológico de orientação humanista.
Dentro do leque de autores pós – modernos eu salientaria Jean François Lyotard, Gianni Vattimo, Richard Rorty, Jean Baudrillard, e talvez Michel Foucault.
Comecemos pelos pós-modernos: Segundo Gellner “O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em certas ocasiões até a repudia abertamente… A influência do movimento pode ser discernida na Antropologia, nos estudos literários, na filosofia… etc. As noções de que tudo é um “texto”, que o material básico de textos, sociedades e quase tudo, é significado, que significados estão aí para serem descodificados ou “desconstruídos”, que a noção de realidade objectiva é suspeita – tudo isto parece ser parte da atmosfera, ou nevoeiro, no qual o pós-modernismo floresce, ou que o pós-modernismo ajuda a espalhar. O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, tanto quanto ele é capaz de claridade alguma, e hostil à ideia de uma verdade única, exclusiva, objectiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjectiva … e provavelmente algumas outras coisas também. Simples é que ela não é… Tudo é significado e significado é tudo e a hermenêutica o seu profeta. Qualquer coisa que seja, é feita pelo significado, conferido a ela…”
Para o crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, a Pós-Modernidade é a “lógica cultural do capitalismo tardio”, correspondente à terceira fase do capitalismo, conforme o esquema proposto por Ernest Mandel.
O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, um dos principais popularizadores do termo Pós- Modernidade no sentido de forma póstuma da modernidade, prefere contudo usar a expressão “Modernidade líquida” para designar este tempo apelidado de Pós-Modernidade uma realidade ambígua, multiforme, na qual, como na clássica expressão do manifesto comunista, tudo o que é sólido se desmancha no ar. Zygmunt Bauman é essencialmente um crítico da Modernidade, mais do que um teorizador da Pós-Modernidade. Mais próximo de uma teorização da Pós-Modernidade e segundo uma perspectiva original encontra-se Gianni Vattimo que a partir do conceito de Aufbhung dialéctica hegeliana, procura conceber o fim da Modernidade e a sua não superação, pois essa seria, embora com outra designação ainda, da ordem da Modernidade. Lipovetsky, como sabemos, embora identificado com a Pós- Modernidade, prefere usar o conceito de Hiper-Modernidade para identificar os tempos actuais.
No âmbito dos nostálgicos eu identificaria sobretudo Leo Strauss, Eric Voegelin, Charles Taylor (Mal Estar na Modernidade), Alisdair MacIntyre (After Virtue), enfim entre outros. O mal-estar na Modernidade cola com facilidade a um mal-estar na Democracia e isso leva-nos naturalmente a uma crise reconhecida da Representação, que é em si considerada Pós- Moderna. Mas a crise da representação atravessa todas as formas da vida social desde as políticas às formas da representação no domínio da Arte. Há episódios e opiniões que possuem um valor inestimável. Leo Strauss considerava Cassirer, que o orientou em sede de doutoramento, um anão quando comparado com Heidegger. Percebe-se a influência nefasta que Heidegger desempenhou junto dele e de onde é que virá o seu reaccionarismo radical. A posição de Leo Strauss é a todos os títulos anti moderna. Dele se disse e com propriedade: “While modern liberalism had stressed the pursuit of individual liberty as its highest goal, Strauss felt that there should be a greater interest in the problem of human excellence and political virtue”. Conheço não só estas posições como conheço também as suas consequências. A sua posição de fundo propõe um regresso a perspectivas holistas, como se a mistura explosiva entre o holismo e o sagrado não estivesse intimamente associada, às hierarquias, às castas, isto é à desigualdade. E tudo isto significa aquilo contra o qual o Iluminismo se bateu. E tudo fica muito claro se atendermos às seguintes afirmações produzidas por Strauss:

“Strauss taught that liberalism in its modern form contained within it an intrinsic tendency towards extreme relativism, which in turn led to two types of nihilism: The first was a “brutal” nihilism, expressed in Nazi and Marxist regimes. In On Tyranny, he wrote that these ideologies, both descendants of Enlightenment thought, tried to destroy all traditions, history, ethics, and moral standards and replace them by force under which nature and mankind are subjugated and conquered. The second type — the “gentle” nihilism expressed in Western liberal democracies — was a kind of value-free aimlessness and a hedonistic “permissive egalitarianism”, which he saw as permeating the fabric of contemporary American society. In the belief that 20th century relativism, scientism, historicism, and nihilism were all implicated in the deterioration of modern society and philosophy, Strauss sought to uncover the philosophical pathways that had led to this situation. The resultant study led him to advocate a tentative return to classical political philosophy as a starting point for judging political action”.

Enfim, Leo Strauss justifica uma abordagem específica e sistemática, tal como Eric Voegelin.
No âmbito dos que defendem a tradição da Aufklarung e da Modernidade saliento Habermas. O filósofo alemão Jürgen Habermas relaciona o conceito de Pós-Modernidade a tendências políticas e culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais iluministas. E é no essencial o que eu próprio penso. Mas eu contextualizo essa reacção no quadro de um equívoco estrutural que identifica mal o Iluminismo.
Trata-se portanto de um conjunto inarticulado:
Segundo o francês Jean-François Lyotard, a «condição pós-moderna» caracteriza-se pelo fim das metanarrativas. E o fim das matanarrativas resulta do desmentido brutal que Auschwitz representa para as ilusões da Modernidade. Como pensar o progresso e o seu programa emancipador depois da calamidade moral do nazismo?
Para Lyotard a pós-modernidade implica o abandono da crença num fundamento seguro do saber, e a renúncia à fé no progresso tecnológico da humanidade. Ela caracteriza-se pela falência das metanarrativas que nos permitiam situar dentro do processo histórico (A História), no qual o futuro é dotado de sentido e ainda de uma história em que nós nos encontramos num tempo que se situa entre um passado inteligível e um futuro previsível.
A visão pós-moderna distingue uma pluralidade de saberes homogéneos onde a ciência não ocupa já o primeiro lugar.
Para Giddens não estamos na perspectiva de entrar numa época pós-moderna mas antes num tempo de radicalização e extensão das consequências da modernidade.
As doutrinas evolucionistas impediram-nos uma visão onde se deveria salientar o carácter descontínuo da modernidade. Mesmo o marxismo apesar de privilegiar as ideias de corte e de ruptura e das consequentes descontinuidades (revolucionárias) acabou por salientar a perspectiva de que a história possui uma direcção de conjunto governada por princípios dinâmicos gerais.

CONTRARIEDADES

Max Weber foi um dos primeiros grandes sociólogos a entrever os aspectos negativos da modernidade. Centrado na ideia de desenvolvimento burocrático (consequências da utilização da razão instrumental), que afecta a criatividade individual e a autonomia individual, como contraponto ao progresso material. Salientando que não se percebeu atempadamente, por exemplo, que o avanço das forças produtivas produziu um efeito destruidor sobre a natureza.
Por outro lado evidenciou também que o reforço do poder político conduziu ao advento do totalitarismo e que esses fenómenos não seriam alheios à modernidade; tudo isto associado também à estreita ligação quase congénita entre a inovação e a organização industrial por um lado e o poder militar por outro lado, que é coetâneo das origens da industrialização.
O que cintila no horizonte da modernidade é o sentimento de fim da fé no progresso, o abandono de uma historicidade ingénua, de um inevitável futuro mais feliz e seguro, etc. O sentimento de que a História não vai a parte nenhuma.
Os elementos dinâmicos da modernidade:
O capitalismo que justifica a emergência do fenómeno Marx…
A divisão complexa do trabalho e o seu dinamismo próprio. A industrialização.
A racionalização que contudo se metamorfoseia em burocracia, tanto no domínio tecnológico quanto no domínio da organização das actividades humanas.
Mas para Giddens a modernidade é multidimensional. Não é possível reduzir a sua dinâmica a qualquer item em particular.
Para ele
De onde vem o dinamismo da modernidade:
Dissociação do tempo e do espaço.
Deslocalização dos sistemas sociais.
Organização e reorganização reflexivas das relações sociais à luz dos implementos trazidos pelo conhecimento que entretanto afectam as acções dos indivíduos e dos grupos.

PÓS-MODERNIDADE

Tanto Nietzsche quanto Heidegger, a despeito das diferenças, possuem dois elementos em comum:
Ambos ligam a modernidade à ideia segundo a qual a História se pode identificar a uma apropriação progressiva dos fundamentos racionais do saber. (p. 53)
Cada um deles é atraído pela necessidade de se distanciar das fontes de legitimação das Luzes mas sem o poder fazer a partir de formas de legitimidade superior ou melhor fundadas. Eles abandonaram a noção de ultrapassagem crítica, o que de algum modo os manteria ainda dentro do quadro das Luzes.
A verdade é que Giddens toca na ferida ao considerar que este tipo de posições se aparenta mais à perspectiva da compreensão da modernidade enquanto tal. Mas também diz que o triunfo da razão das Luzes se assemelha a uma recaída da Providência. A apologia da razão é homóloga da apologia da Providência. A razão recoloca a Providência. Não a substitui. Ela é providencial.

10 Dez 2015

Tentativa inglesa de ocupar Macau

macau-antigo-av-almeida-ribeiro-ii[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] pelos documentos chineses, as chapas, trocados entre mandarins chineses e a resposta do Imperador Jiaqing durante a invasão inglesa de Macau em 1808, que Marques Pereira nos apresenta a visão oficial da China sobre os invasores.

No princípio do século XIX, por três vezes a Inglaterra tentou tomar Macau, sempre com o pretexto de vir ajudar os portugueses de uma hipotética invasão dos franceses. Mas, tal como os portugueses se opunham a tal ajuda, também os chineses não viam com bons olhos esse auxílio. A 21 de Setembro de 1808, os ingleses aqui desembarcaram e os mandarins de Guangdong enviaram vários recados contra essa estadia, só entendidos quando os chineses cessaram o comércio com a Companhia Inglesa das Índias Orientais e por isso, para conseguir reatar o comércio em Cantão, os britânicos retiraram de Macau.

A 12 de Outubro de 1808, a chapa dirigida pelo mandarim da Casa Branca ao Vice-Rei de Cantão diz:

Ao presente os ingleses têm vinte e tantos navios, ou mais, bloqueando Manila, que fica distante da ilha do Ladrão quarenta e oito kings (1440 km). Portanto o expediente de cortar os víveres a Macau não é suficiente para obrigar os ingleses a ceder. Os soldados ingleses em terra são muito fracos, nada podem, mas as suas armas de fogo são em verdade terríveis. As suas bombas de ferro, de dez, três e duas mil libras de peso, são inumeráveis. Têm também muitas de bronze, e algumas montadas em carretas de rodas com seus aparelhos completos, e podem cursar até à distância de dez, a vinte lis (5 a 10 km). Além disto trazem eles espingardas, que por si mesmas dão fogo, sem ser necessário aplicar-lhes o morrão. Têm igualmente máquinas de fogo e água, e as suas bombas para acudir a incêndios podem alcançar a cem e a duzentos côvados de distância. Também trouxeram morteiros para arremessar bombas e expugnar cidades. Conduziram mais de trezentas tendas de campanha, que armaram desde S. Paulo até Patane, de sorte que estão resolvidos a não sair de Macau, e têm já segurado todos os lugares, guarnecendo-os com soldados e armas de fogo.

Além do sobredito, também tenho sido informado de como catorze reinos, que os ingleses antecedentemente dominavam, quase todos têm seguido o partido da França, e agora só restam debaixo do seu governo Malaca, Pinão e Tipú. Madrasta e Bengala, que são as duas terras principais escolhidas pelo seu rei para capitães, são comunicáveis por terra. (Archivo da Procuratura.)

Segundo Gonzaga Gomes, a 16 de Outubro, “as autoridades chinesas pediram, com insistência, ao Governo de Macau, que fizesse sair da cidade as tropas inglesas que aqui haviam desembarcado”. Cinco dias depois, “principiaram os distúrbios entre os chineses e os soldados da força inglesa. O Procurador Manuel Pereira oficiou aos mandarins de Hèong-sán e Casa Branca, pedindo providências para a repressão dos chineses. Os mandarins responderam que não eram precisas leis para castigar crimes que não deviam existir no império, que embarcassem os ingleses e tudo ficaria remediado”. Mas só a 23 de Outubro, “o Vice-Rei Chiun-Kuan, em seu nome e das mais autoridades superiores de Cantão, participou ao Imperador o desembarque das tropas inglesas em Macau, dando também conta das providências que tomara, sem resultado, para constranger o almirante Drury a pôr termo a essa ocupação.”

Pedido aos ingleses para abandonar Macau

Segundo refere Marques Pereira, cada dia que passava desde a permanência das tropas ingleses em Macau, cresciam as dificuldades e por isso, os sobrecargas da companhia inglesa (Roberts, Patle, Brameston, Helphinstone e Baring) escreveram em 29 de Outubro ao Governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria, queixando-se que ele não promovia entre os habitantes de Macau a simpatia que era devida ao auxílio britânico, nem expunha às autoridades chinesas os justos motivos da ocupação. No dia 30, respondeu-lhes Bernardo Aleixo: «Entre as difculdades que vos fiz antever, citei a inevitável complicação com os chineses. Tenho conhecimento do sistema do seu governo por longa experiência adquirida na prática; sei os vínculos que os unem a esta cidade e por isso previ o mau resultado da vossa empresa. Falei-vos com franqueza, e fui considerado como desafecto aos vossos projectos. (…) O senado trabalha para que não sejam reputados sinistros os fins da vossa expedição. Se tem havido desconfiança nos mandarins, não é motivada por este governo, pois tem patenteado com franqueza a sua correspondência.»

Os sobrecargas replicaram a 31 de Outubro: «A carta de V. Ex.a encheu de mágoa os nossos corações pelas circunstâncias em que se acham os habitantes de Macau. Tudo nasceu do comportamento do Senado. Se adoptasse o nosso sistema não teria agora de ver essas lástimas. (…) Em verdade dissemos que o almirante removeria todos os obstáculos em Cantão. Assim aconteceria se o governo de Macau se unisse cordialmente com o almirante. Os esforços que V. Ex.a promete empregar em suas representações ao governo chinês são para nós de grande valor. Sabemos que hão-de produzir bom efeito. Estamos persuadidos de que só o governo de Macau pode remover as presentes dificuldades e misérias.»

Retirada inglesa

A chapa de 4 de Dezembro de 1808, enviada pelo Vice-Rei das duas províncias do Guangdong e do Guangxi ao Almirante inglês William Drury e ao primeiro sobrecarga da Companhia Inglesa, refere o despacho do Imperador Jiaqing (1796-1820) que está concebida nos termos seguintes:

«Eu o mandarim Vú, (…) por esta declaro e faço saber a todos que, constando- -me haverem entrado em Macau tropas inglesas, dei parte desse acontecimen- to a sua majestade o imperador, cujo despacho, ou decreto, que ao presente recebi, é do teor que vai ler-se: O sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão me deram parte de haverem as tropas inglesas entrado sem permissão em Macau. Esses ingleses, pretextando haverem os franceses invadido e senhoreado o reino de Portugal, seu íntimo aliado, dizem que, receando que os portugueses residentes em Macau sejam atacados pelos franceses e que o seu comércio seja embaraçado, enviaram um chefe conduzindo soldados da sua nação e navios de guerra para os ajudarem a defender-se, e também para protegerem o seu próprio comércio. Nenhuma destas palavras se pode acreditar, pois nunca houve tal costume.

A tal respeito ordeno por tanto que, se os ditos soldados e navios estrangeiros tiverem já ao presente evacuado Macau, esta pendência se haja por nda; mas, se ainda não tiverem saído, logo se expeça ordem ao sun-tó Vú-chiung-kuang e mandarins de Cantão, para que enviem escolhidos mandarins de letras e de armas, que irão como delegados a Macau intimar este decreto, e os mesmos delegados rigorosamente repreendam e castiguem, segundo as leis proibitivas da celestial dinastia, com suma severidade e sem indulgência, para com este exemplo se evitarem semelhantes atentados.

Na ocorrência de inimizade entre os portugueses e franceses, ainda que eles se combatam e matem, como isto acontece fora dos limites do império, não se intromete este nas suas contendas, nem lhes vai perguntar o motivo delas. Como porém nestes anos os estrangeiros de remotas regiões andam em guerras, se os de dois reinos entre si inimigos, combatendo-se e matando-se reciprocamente, chegarem às portas deste império e solicitarem algum adjutório, ou alívio, prestar-lho-ei sem dúvida, conforme a minha costumada piedade, mas sem a menor paixão por nenhuma das partes contendentes.

O império da China, como os demais reinos estrangeiros, todos têm marcados os seus limites de território. Devem lembrar-se de que os navios da China jamais sulcam os mares em distância, desde que foram aos países estrangeiros demarcar os respectivos limites, ao passo que os navios europeus de guerra têm ousado aproximar-se a Macau, desembarcando ai os seus soldados, o que é uma ambição e cegueira extrema.

Em quanto a alegarem que vieram para auxiliar os portugueses de Macau, receando que eles sejam atacados pelos franceses, – porventura ignoram que, habitando esses portugueses o território do império, nunca os franceses se os mesmos franceses tentassem ofender as leis da celestial dinastia, nunca as mesmas leis lho perdoariam? E que não haveria indulgência alguma para com eles, antes, pelo contrário, seriam logo destacados robustos e valorosos soldados para os combater, devastar e matar? – Sabendo-se isto, por que razão se enviaram soldados para virem prestar semelhante auxílio e protecção?

Pelo que respeita ao outro motivo alegado de se achar a costa infestada por piratas, e assim desejarem fazer serviços a este império, – devem saber que a celestial dinastia não carece de tal adjutório…

Que necessidade temos pois do seu pretendido auxilio? É manifesto que a razão da sua vinda é que, tendo visto o comércio que fazem os portugueses residentes em Macau, querem aproveitar a oportunidade que lhes oferecem as suas débeis forças, e pretendem, a título de protecção, apoderar-se de aquele território, – o que é contra as leis da celeste dinastia.

Os embaixadores da Inglaterra têm trazido presentes ao imperador celeste, e sempre se têm portado com todo o respeito e veneração. Desta vez porem os ingleses tem-se comportado nesciamente, infringindo ao mesmo tempo e gravemente as ordenações.

Na verdade excederam os limites da razão. Convém portanto fazer-se-lhes saber que se arrependidos souberem temer e retirarem com a maior brevidade os seus soldados, enviando-os para a sua terra, ainda poderá ser relevada a culpa e admitir-se a continuação do comércio. Porem, se persistirem na demora, sem obediência às leis, não só continuarão a ser-lhes fechadas as escotilhas dos seus navios, mas também se lhes mandará fechar entrada de Macau, privando-os de mantimentos. Enviar-se-ão além disto numerosas tropas para os cercar e prender. Então se arrependerão sem remédio. (…)

Se vós, os chefes dos ditos estrangeiros souberdes temer e vos arrependerdes, mandando sair os soldados, poderei então dar parte ao meu grande imperador, rogando-lhe que, por muito especial graça, vos permita a continuação do vosso comércio. Mas se, pertinazes e obcecados, não mudardes de sentimentos e insistirdes na demora, não me restará então outro expediente mais do que, obedecendo ao imperial decreto, dispor e ajuntar um numeroso exército, com o qual vos mandarei cercar e prender a todos. Obedecei pois prontamente, para não vos arrependerdes depois.»

Marques Pereira refere ter achado esta tradução numa colecção particular de manuscritos, que “hoje me pertence. Ai se diz que a foi entregue em mão própria, neste mesmo dia 4 de Dezembro, em uma das ilhas deste arquipélago, vizinha de Hang-fui, ao primeiro sobrecarga da Companhia, Roberts, pelo governador da cidade de Cantão e por um mandarim militar de graduação superior, os quais todos se reuniram ali para o acto, achando-se presentes os capitães dos navios da Companhia.”

Gonzaga Gomes adita que a 17 de Dezembro o Ouvidor Arriaga conseguiu fazer reembarcar o corpo expedicionário inglês do almirante Drury. Mas segundo Montalto de Jesus: “A 18 de Dezembro o mandarim de Heangshan informou o procurador de que se à meia-noite ainda lá estivessem as tropas inglesas, o exército chinês entraria em Macau, em conformidade com o decreto imperial. O embarque, que estava então a ser feito, completou-se a 19, para alívio e alegria da cidade. Então, o mandarim insistiu na imediata partida do esquadrão. Antes de partir o contra-almirante Drury manifestou o seu reconhecimento a Lemos Faria, cujas declarações, admitia ele agora, eram verdadeiras e justas.”

A 1 de Janeiro de 1809, o Vice-Rei de Cantão fez “saber a todos os europeus que, por desembarcarem soldados ingleses em Macau, jamais se lhes devia permitir comerciar neste império. Contudo, lembrando-nos que o seu rei oferecera tributo ao nosso imperador, relevamos a ofensa que nos fizeram pela sua entrada em Macau. Agora, depois de enviarem os soldados às suas terras, pedem os sobrecargas, arrependidos, perdão com muita humildade, afim de se lhes permitir comerciar neste império. Conhecendo a misericórdia do nosso imperador, cedemos às repetidas súplicas das sobrecargas, deixando que desembarquem as suas mercadorias e possam vende-las nesta cidade. Devem receber esta graça como um benefício extraordinário. Vê-se que as leis chinesas têm enfraquecido com o tempo; mas no futuro haverá mais rigor. De aqui em diante, se algum europeu se atrever a quebrar as leis do império, será expulso para sempre.”

Quarenta anos após este episódio, os ingleses vieram fazer guerra à China, ficando ela conhecida pela I Guerra do Ópio.

4 Dez 2015

O cume ou o passo

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]oite alta. Há um ponto preciso na noite. Como na escalada de uma montanha, o cume, ou o passo. Era um facto indiscutível, o de que ela pisava cautelosa, todos aqueles corredores labirínticos, um cuidado furtivo para não mover um só grão de poeira, desarrumar a poalha invisível sabida por ali. Mesmo um reflexo ténue de luz, que não poderia agitar-se. Ou mesmo o ar. Havia que deixá-lo intacto à passagem. Sem correntes. Abri-lo lenta e estruturadamente num rasgo certo, delicado, cirúrgico e à medida, sem perturbação maior que o impedisse de se fechar perfeito sobre si, sem cicatriz visível. Mas mil cuidados eram poucos. A atenção dividia-se lenta e alternadamente entre um olhar em torno, circunscrito ao ouvido. Às cegas, fixo. O corpo todo em espera, imóvel até ao insuportável e repensado, estendido o tempo por mais um pouco necessário. Um olhar girando lentamente no escuro, para posicionar o ouvido. Ora um, ora outro. O ouvido-guia. Só a imobilidade total para distinguir cada pequena palpitação naquele universo sombrio, espaço abstracto, quase. Vivo. E a outra atenção ao corpo, como uma arma ou instrumento de precisão, a exigir a concentração máxima. O apuro rigoroso do gesto. O tempo. A resistência. O equilíbrio.

A medida exacta do movimento. E as dúvidas centravam-se numa sensação precisa de como cada pé se erguia com lentidão, descolando do soalho que inesperadamente poderia lançar um rangido lancinante na noite. Sempre imprevisto e situado como um animal escondido em qualquer das tábuas corridas do pinho, a envelhecer com os gemidos de dor que a certa altura começaram a fazer-se ouvir. Uma certa altura da sua existência de madeira morta, ou a certa altura da noite. Das muitas noites que correram sobre este cuidado. Sobre este soalho. Decolava um pé lento e preciso, sentindo-o curvar-se progressivamente até que só a ponta leve e milimétrica, ainda sobrasse em contacto. E abruptamente elevava esse pé num arco medido pelo ar, voltando a poisá-lo mais à frente. Primeiro a ponta, o arco a desfazer lento, e finalmente a planta. Os joelhos meio flectidos como na dança, a acrescentar fluidez à passada, e o poisar era em tudo inverso ao movimento anterior. Em tudo medido, aferido na memória do movimento anterior. Primeiro a ponta leve e depois, progressivamente a planta inteira a colar-se ao soalho, em silêncio total e diminuindo o peso a pouco e pouco, centrado no joelho, difundindo-se pela coluna elevando-se aos ombros e diluindo-se no ar acima deles. Sem agitação. Um movimento elevatório no momento de poisar o pé. Na eminência de sempre aí surgir o rangido escondido naquele ponto, à espreita, à espera. Estridente no resto do silêncio. Como um lamento de dor. Por isso deixar o chão devolver na medida da suavidade com que se pisa, o peso. Não pisar. Pousar e sem peso. E assim sucessivamente, como sobre papel de arroz, tentando não deixar marcas de gordura, que significariam trazer a superfície delicada atrás. Um movimento ponderado em tudo, quase felino, aprendido num velho filme de Kung Fu na infância. Diria o mestre que era a prova final. Décadas. E ainda não apurado na perfeição. O papel rasgado por vezes. Colado ao pé. O grito do chão. Os puxadores de latão a vibrar sonoros. A respiração pesada interrompida no sono. Mau sinal. Aquele sono a velar para que qualquer intervalo não fosse aquilo que não podia ser. Escuros corredores no início, mais tarde tinham que ter uma luz que afastasse as sombras pesadas, o vazio do chão, na noite. Guiar caminhos. Da memória, até. Mas difícil pedir a uma luz que ilumine até tão longe.
De resto, havia ainda a tensão de todo o corpo centrado nesse gesto repetido. Como se dele, no momento estranhamente estendido, divergissem mil possibilidades, como se nele se concentrassem todos os sentidos e nada mais fosse importante. Quanto mais, existente. Ela não podia acordar. Só isso. Impossível por vezes adivinhar pesadelos que valessem o rangido inesperado da madeira. E por vezes, também, aqueles antecipavam-se a estes. Ou então os monólogos murmurados e sibilinos na noite. Calma. De uma forma intocável também.
E havia ainda o labirinto a resolver temporariamente. Mil tábuas. Um dia haveria que contá-las. Mais que mil, seguramente. Mais que muitas a cobrir aquele chão de que eram face e todo. Contá-las com amor porque eram o chão a percorrer todos os dias. A querer percorrer para sempre, todos os dias. A casa. O labirinto diáfano e mutável a cobrir o chão de desconhecido, de um jogo de regras estranhas a descobrir nos próprios troços do mesmo. Sem ter um olhar longitudinal possível a garantir que essas se mantivessem ao longo de cada caminhada. Visto de dentro, é assim. Visto com o olhar de gigante será tudo óbvio. Seria. Mas não é. Não é fora do tempo e não é uma casa de bonecas. Onde guiar um carrinho minúsculo com prazer de brincar. Há que percorrê-lo na penumbra, com pontos de luz baixos localizados. E pontas de pés. Zonas de escuridão maior do que a vista alcança, mas o olhar a saber que já a seguir há um outro ponto de luz. Sempre insuficiente mas a poder guiar a inércia dos passos, mesmo fora do seu alcance. Como a necessidade de um pequeno mergulho, em que, passada a confusão, o choque com a água e retorno da respiração, se começa a nadar. Recomeça a seguir na direcção pensada. O labirinto a desfiar-se. Em dados momentos, não se sabe o que é cima e baixo, direita ou esquerda, num primeiro momento de desorientação num meio de diferente gravidade. Procurar pistas. Saber que provavelmente estão lá como pontos cardeais. Procurar, por entre a espessura da água, que se esvai entre os dedos. Contínua. E o olhar cai sobre uma pequena pedra no fundo, com um sinal de direcção. Em que se pega amorosamente, a reter a respiração. Mas retirada do fundo perde-se a possibilidade de ler o sinal, a pequena seta torna-se genérica aponta para onde a apontar a mão. Sem querer. Melhor deixá-la onde estava. Teria sido melhor. Olhar com cuidado. Largá-la então e ver rapidamente retomar o lugar meio enterrada na areia do fundo. Mas, numa reviravolta virada ao contrário. Como um bicho recolhido na sua concha porque se ensaiou um gesto.
Estacar, paralisar todo o metabolismo por instantes depois do lancinante turbilhão de sensações desarrumadas e do guincho estridente que a madeira lança. Para todo o possível e sem pés nem sentidos mais do que o ouvido. Esperar que o silêncio se reacomode depois da agitação momentânea. Escutar. A respiração, lá ao fundo, volta. Ou esteve sempre lá sem ser interrompida. Abrandar o ritmo cardíaco, estancar a sudação. Retomar a caminhada pelo labirinto dos corredores cobertos a mapas esfumados aqui e ali. Minto, é papel de arroz limpo e novo como só pode ser, para fazer o teste fulcral. Aquele passo complicado em que o pé volteia no ar para poisar atrás. De costas para o outro, obrigando o corpo a girar. Mudando o sentido. Tudo com os joelhos flectidos e a noção do eixo. Do centro de gravidade a exercer sobre os joelhos – flectidos – a pressão de uma mola. Retirando peso. Elevando até quase não restar um grama. E por vezes demais, mesmo assim. Um ínfimo pressionar em excesso enruga o papel arrasta-o fora dos limites possíveis do labirinto.
Nas extremidades as janelas da frente e das traseiras. Às vezes uma corrente de ar excessiva percorre-as. Às vezes é preciso fechar uma ou outra. Outras vezes, não. A frescura que sabe bem. Mas quando a torrente é forte, as palavras se chocam, sem querer, ou sem tempo de prevenir o estrondo, bate uma janela. Voam papéis de cima da mesa. Saem da ordem. Misturam tempos e histórias que não são de misturar. Uma confusão. Caminhos diferentes esboçados por ordem da desordem do acaso. Do vento que encetou caminhos, só porque pôde ser.
Voltar a percorrer a faixa de papel sobre o labiríntico corredor. Os ângulos do corredor sobre o mapa labiríntico de papel. Qualquer pedra que surja é de desconfiar. Parecendo segurar o papel naquele ponto, está ali por uma outra razão. Qualquer. Olhar simplesmente e não deslocar do sítio. Reter o sentido da seta. Voltar lá sem rasgar o papel. Olhar de novo. Tentar a saída. Saber que são múltiplas. Voltar para a luz clara do candeeiro amigo sobre a mesa. A cadeira confortável e o conforto da mesa para pousar a cabeça. Nos braços. Fechar os olhos. Dormitar. E cinco, sete passos para a porta. De caminho uma espreitadela ao espelho do corredor, o carrancudo. O melancólico. Pelo canto do olho. Chora. Passo sem poder fazer nada que não fosse limpar dedicadamente a superfície gelada de vidro, das manchas eventuais. Algumas evaporadas já. Tocar com um dedo terno ao de leve, e sentir-lhes o sal. E um dedo estendido mas sem olhar, a colar-se ao meu por detrás do gelo. Mas sem olhar. Sempre. Não sei se finge. Nunca sei. Esperar que durma. Voltar lá a ver se já dorme. A espreitar se serenou. Com os braços sobre a mesa. A cabeça pousada nos braços. No sono denso e turbulento. Palavras soltas e doces a dizer no pântano do sono, vem cá. Por vezes foi-se. E aos outros. Aquele da avó, no seu lado austero e a abanar o pé com impaciência, com severidade e com razão, sentada muito direita para não enrugar o saia-casaco. Mesmo o do roupeiro do quarto, de toda a meia vida, o mais cheio de marcas, de manchas da idade e de deformações incontornáveis da superfície antiga de vidro irregular. O que repete baixinho, enervante, just dream. Não é fiável. O do guarda-vestidos. Mas guarda segredos. E o outro, dream don’t dream, desamizades angulares, não se olham também. O das gavetas revira o olhar desdenhoso para o tecto e o pequenino sempre escondido atrás da porta. Feitios… Àquela hora, cada um faz o que lhe apetece. Custo a estabelecer contacto visual e nem tento. Não me entendo neles.
Ou. O casulo, que é o contrário. Casulo que o meu outro, o outro eu, gostaria de tecer. Numa malha feita de arabescos, de seda. Delicada e repetidamente colada em torno de um espaço definido e oval, repetidamente curvada, enrolada e enovelada sobre si e sobre os mesmos percursos incertos, mas num fim previsto e completo de preenchimento leitoso, amarelado e translúcido. Quente, confortável. Desfiável. A desenrolar. Como o fio de Ariadne.
Ou a resolução indutiva do labirinto, ponderando todas as soluções possíveis – A saída do lado do mar. O penhasco vertiginoso. O beco escuro. O cão. A luz incendiada. Apagada – Tantos caminhos. Mil e um cuidados. Cem mil erros. Possíveis. O fio de Ariadne, confundido às vezes com a tentativa e erro, que pelo contrário persegue a solução perfeita. Única. Mil metros, pode ter o fio único e contínuo de seda que compõe o casulo. De quinhentos a mil. Insuficiente para, fiado, ser um tecido relevante mas talvez suficiente para guiar a procura de uma saída, ou de todas as saídas possíveis. Se não quebrar. De tão ténue que desfiado necessita de várias fibras para, enrolado, produzir um fio. De seda. Fina e delicada mesmo assim. Mas voltar ao fino filamento único e ininterrupto. Quase invisível. Desconstruir o casulo e desenrolar como guia. Sempre me fascinou o rigor. Como paradigma. Mas divido-me tantas vezes entre uma coisa e a sua contrária. Como entre o niilismo do casulo e a sua desconstrução para vencer o enigma. Sem a apologia do homem sublime heróico que ignora o enigma dele próprio.
O enigma de um espelho, o espelho possível do enigma de outro. Volto lá como um criminoso. Ao espelho do corredor. Acordado, apanhado de surpresa, olha-me de lado, naquele seu jeito de olhar oblongo.
Queria sorrir-lhe de passagem, enigmática. Faites vos jeux – Mas sorrio só – De passagem. Todas as noites obscuras. Da montanha, a pensar o cume. E ser o passo.

4 Dez 2015

Susana e os velhos

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] passagem mais emblemática que nos fala da concupiscente idade tardia talvez seja esta: Uma bela e jovem esposa é apanhada nas armadilhas de dois patriarcas que conspiram um plano de aniquilamento quando os seus desejos são gorados. Juízes do povo, anciãos respeitados, visitas da casa de Joaquim, seu marido, estes homens que há muito tinham passado a idade de se fazerem amar pelo corpo, encetam um plano, que dir-se-ia de vingança contra o tempo que passa, vingança contra uma mulher que era a imagem da sua impotência e do seu rancor, de entes a quem a vida abandonara para o grande festim dos belos encontros.
Talvez que, de tempos a tempos, seja bom não esquecermos toda este conhecimento herdado, que tenhamos em conta que o mais velho livro contém as mais intemporais questões. Efectivamente, dois velhos são uma imagem carregada de maus presságios… dois homens velhos subitamente despertos pela recordação de um Eros esmagado por carnes que definham e vontades que não se erguem… por uma raiva surda de um desejo esquecido. Nesta passagem, eles culpam um jovem a quem imputam culpas, um jovem imaginário, projectam a culpa numa virilidade normal e boa dos amantes. Para eles, o amor e a libido não são contemplações saudosas, mas raivas surdas, recalcadas. Impotentes, lançam blasfémias, sacrificam o objecto de desejo, incriminam uma inocente. Estes anciãos eram, no entanto, os sábios de uma tribo.
Pois bem, a sábia e respeitada velhice nem sempre é tão isenta de trama e perfídia quanto a julgamos e, num mundo envelhecido como o que nos foi dado viver, as sociedades requintaram a sua perversa dose de ignaras abominações. Tudo parece mais calmo, mais ordeiro e racional. Parece, porque, efectivamente, por debaixo deste glaciar, há uma antiga máquina de seres em desgaste que atemorizam e condenam a vida, pelo escape rasgado da esperança. Um velho, mesmo que seja Papa, lá no fundo, já nem acredita em Deus. Há um enorme despeito agreste que o tempo dá, como se enferruja o pouco de grande que uma alma contém. Porém, nós fomos apanhados na razão inversa da imagem do sábio.
Toda a trama ardilosa da matéria de facto, toda a clandestina tendência para o vício, a ocultação, o dolo e a má-fé se encontram neste tempo que passa, como uma vitória de que afinal o Homem não é passível de redenção. Conquistados os direitos fundamentais é com eles que devemos agir e é com eles que estamos seguros, jamais com a sabedoria dos outros que envelhecem e nos dizem que são a confiança melhorada.
A astúcia dos sobreviventes pode ser algo com que a soberana natureza dos fortes não contava, um dado demasiado agreste para os seus sentidos… uma erosão na incapacidade de lidar com o ambíguo. Nem sempre se deve deixar os mais velhos por aí, entregues a quaisquer uns ou a si mesmos, podem provocar reacções instintivas estranhas e o Homem não difere muito dos leões em matéria de macho dominante. As vítimas nem todas são biblícas… nem Deus se revela sempre para escorraçar os capciosos e o julgamento destes dois não deixa de ser uma nobre lição.
Nas nossas sociedades tão arrastadas no tempo, convém não esquecer componentes e factos. A geriatria é sem dúvida a mais honorável profissão do mundo, é uma missão quase superior. Vamos precisar de muitos e de uma competência sempre e mais actualizada. A fragilidade com que se revestem aqueles a quem o tempo esqueceu, a usura da sua mórbida sensibilidade, a reserva com que olham a vida, é já de si, e em muitos casos nos parece, um maligno olhar. Uma sociedade, que sexualizou as pessoas até à caricatura, pede para que se entre de novo nos sonhos de Daniel. Os anciãos de Susana existem. O tráfico e abuso sobre aqueles que são a denúncia a algo que morreu continua a ser o mais forte objecto de punição. Se consentirmos, eles não terão piedade, e a mentira das bocas desdentadas terá uma abjecta e tocante má fé que convém estar atento, para não nos abeirar-mos de uma monstruosidade.
Os velhos precisam de protecção, mas os novos também. Dir-se-ia que precisamos de estar salvaguardados da punição do ódio torpe, de um desvio da libido, de tramas subreptícias e da manipulação psíquica de que sempre deram provas. Pode ser duro o que se diz… mas mais duro é o que eles não dizem, inventam e conspiram nas costas das Susanas, dos mundos e das sociedades.
Vivemos em ciclos que não se preparam para questionar e abordar os ângulos das situações, vivemos quase que vinculados a estereótipos que nos impedem de ser defensivos e atentos, remetendo para um corpo colectivo, algo que o nosso não sabe explicar: o corpo, aliás, é um bem que permanece pouco falante… alguns apenas lhe vêem a nudez, a carnação, a gula onanista…. para nós, ele está parado a banhar-se no Jardim.
Mas o corpo pensa e informa-nos. O corpo pensa muito antes da nossa consciência. É um sinal de alerta máximo e não gostamos que nos espreitem sem a devida noção da medida. O corpo não gosta que os velhos olhares sabotem nele o novo, o improvável, o que inspira.
Uma advertência a todos nós que por avançados estados de desenvolvimento nos vamos tornando cada vez mais velhos: transformemo-nos! Nada mais velho, de facto, que uma juventude que se prolonga. Pensemos no bem que é estar perto de outra coisa, do quão difícil é ser jovem, do bem que deixámos de fazer-lhes e quanto isso é mais temível que a morte. Um pouco de afinidade com os que vão na mesma caminhada – um pouco mais de além – mesmo que já não sejam brasa, nem nunca tivéssem sido sóis.
Aquém disto é perigoso ficar. A alma dos anciãos é matéria esquecida pelas formas nascentes que amam os ciclos transformados.

3 Dez 2015

Raymond Aron: Um clássico contemporâneo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s Etapas do Pensamento Sociológico é um verdadeiro clássico da Sociologia contemporânea. Constituído por sete estudos sobre os fundadores da Sociologia – Montesquieu, Comte, Marx e Tocqueville – e sobre a geração da viragem do século XX, Durkheim, Pareto e Weber, procura investigar as origens da Sociologia moderna através da elaboração de uma galeria de retratos intelectuais. «Estes retratos são de sociólogos ou de filósofos? Não o discutirei», explica o autor: «Digamos que se trata de uma Filosofia social de um tipo relativamente novo, de um modo de pensar sociológico, caracterizado pela intenção de ciência e pelo visar do social, modo de pensar que desabrocha neste último terço do século XX. O homo sociologicus está em vias de substituir o homo oeconomicus. (…) Os sociólogos reclamam-se de métodos empíricos, praticam inquéritos por meio de sondagens, empregam um sistema conceptual que lhes é próprio, interrogam a realidade social de um certo ângulo, têm uma óptica específica. Este modo de pensar alimenta-se de uma tradição cujas origens esta galeria de retratos procura descobrir».
Na impossibilidade de dar um resumo do pensamento de Raymon Aron sobre tantos autores incluídos nesta obra volumosa, destaco o que aqui se considera sobre um dos mais relevantes sociólogos contemporâneos, Max Weber.

As grandes linhas compreensivas do pensamento de Max Weber, por Raymond Aron
A citação (epígrafe) de entrada é desde logo muito compreensiva do sentimento de crítica da modernidade do autor:

“A racionalização da actividade social não tem como consequência, de modo nenhum, uma universalização do conhecimento relativamente às condições a às relações desta actividade e conduz pelo contrário, muitas vezes ao efeito oposto. O selvagem (primitivo) conhece infinitamente mais e melhor, na maior parte dos casos, as condições económicas e sociais da sua própria existência, que o civilizado”. [Weber, Ensaios sobre a Teoria da Ciência, página 397 (A Sociologia Compreensiva), em Aron 1967 : 497].

Passo a referir-me aos Ensaios Sobre a Teoria da Ciência ( Gesammelte Aufsatze zur Wissensschaftlehre).
Em Teoria da Ciência Weber distingue quatro tipos de acções:
A acção racional relativamente a um fim (zweckrational);
A acção racional relativamente a um valor (wertrational);
A acção afectiva ou emotiva;
e
A acção tradicional.
Evidenciam-se os radicais, Zweck que quer dizer finalidade, propósito e Wert que significa valor. Ora um dos problemas do nosso tempo resulta do facto de que praticamente todas as acções estão subordinadas a uma lógica Zweckrational. A racionalização deixa pouca margem de manobra para acções de outro tipo. A organização zweckrational criou um problema que é de tipo existencial, e que consiste em delimitar o sector da sociedade em que subsiste e deve subsistir uma acção de um outro tipo (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 501).
Para Weber a pesquisa científica é ao mesmo tempo zwertrational e wertrational, na medida em que a acção é racional relativamente ao seu fim ou objectivo, mas sendo esse o objectivo, a verdade também é racional relativamente a um valor, o valor da verdade.
Ora, pelo exposto, pode concluir-se que a ciência é assim um dos aspectos da racionalização característica das sociedades ocidentais modernas. As ciências históricas e as ciências sociológicas representam antes de mais um elevado esforço de racionalização, quer dizer de compreensão racionalizada do funcionamento e do devir das sociedades. E isto é uma preocupação genuinamente ocidental.
Para Weber, e esse é um traço da sua modernidade, a ciência será sempre uma actividade inacabada, assim como o conhecimento que resulta dessa actividade. Inacabamento e objectividade são os dois traços por excelência da ciência ocidental. E caracterizam também o processo de racionalização.
A ciência antiga visava os princípios das coisas e do Ser. Nesse sentido ela podia conceber-se como acabada ou visar esse objectivo. A ciência moderna ignora as proposições relativas ao sentido último das coisas. Ela está sempre em devir e sempre incompleta e inacabada. O reconhecimento desta condição precária do conhecimento é homóloga da descoberta da finitude do ser e da incompletude e precariedade ontológica e existencial. É, parece-me, uma atitude intelectual mais lúcida, mais conforme à realidade da natureza das coisas.
Muito importante é ter em conta que nas ciências (humanas) sociais (históricas, culturais ou outras) o conhecimento depende ainda das questões que se podem colocar à realidade. Ora o progresso implica uma mutação constante e permanente dessa mesma realidade, logo a possibilidade de que novas questões possam ser colocadas e assim até ao infinito. O autor explora o carácter aberto do conhecimento, mas também a sua progressiva relativazação.
Quais as grandes características (distintivas) das ciências (ditas) sociais (históricas e sociológicas)?
São três: São compreensivas (Verstehen = Compreensão); são históricas e são conduzidas (ao mesmo tempo que incidem sobre) à cultura.
O facto de os comportamentos humanos apresentarem uma inteligibilidade intrínseca (intrínseca mas não imediata), devido ao facto de os seres humanos serem dotados de consciência (e razão, diria eu), não legitima a crença ingénua numa compreensão imediata. O facto de os comportamentos sociais comportarem uma textura inteligível que as ciências da realidade humana são capazes de captar não desobriga o investigador social de todo o trabalho de investigação e estudo. Esta compreensão não é intuitiva mas elaborada. É sempre uma reconstrução. Quer dizer, o sentido subjectivo é sempre captável mas ao mesmo tempo equívoco.
Weber deve muito a Karl Jaspers, o conhecido filósofo do existencialismo alemão, à sua psicopatologia, a ideia de compreensão. Jaspers considera que há uma clara diferença entre explicação e compreensão. De resto tal como Dilthey. Há um momento em que a inteligibilidade desaparece por exemplo dos fenómenos patológicos. Aí deve entrar a explicação.

Importante: “Desse facto, o facto de que somos capazes de compreender, resulta que podemos ter consciencia dos fenómenos singulares (particulares) sem necessariamente termos de recorrer às proposições gerais (universais), (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 505). 
Há uma relação entre a inteligibilidade intrínseca dos fenómenos humanos e a orientação histórica destas ciências sociais (baseadas nos comportamentos humanos).
As considerações de Weber sobre a historicidade e sobre a dimensão sociológica está errada como a escola dos Annales muito bem veio a demonstrar. Mas é importante reflectir sobre este tipo de erros. (Aron 1967: 506)

“As ciências que incidem sobre a realidade humana são enfim ciências da cultura (Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 1967: 506), se entendermos por cultura, não apenas a arte ou a literatura, mas também as leis, as instituições, os regimes políticos, as experiências religiosas, as teorias científicas. Portanto a ciência weberiana significa o esforço para compreender e explicar os valores aos quais os homens aderiram assim como as obras que foram por eles edificadas”.

Ora as obras humanas são criadoras de valores ou são definidas, elas mesmas, através da referência a valores. Como é que pode haver uma ciência objectiva, isto é não falseada por juízos de valor (es), quando as obras sobre as quais a ciência incide, estão elas próprias carregadas de valor(es)? Se as obras são criadoras de valores, elas são assim criadoras de algo que as inviabiliza como possibilidade de que sobre elas possa incidir a elaboração de juízos de facto universalmente válidos.
Ciências da cultura é assim uma contradição nos termos. Não pode haver ciência onde reina justamente a falta de universalidade… objectividade onde reina a subjectividade, etc. Os juízos de valor falseiam. Uma coisa é a relação aos valores (Wertbeziehung) que é constitutiva das ciências sociais e o juízo de valor (Wertuteil) que é antinómico do juízo científico, uma vez que é sempre pessoal e subjectivo.

Raymond Aron

nasceu em 1905 em Paris oriundo de uma família judia e burguesa da Lorena. Foi normalien, o que é um título de nobreza intelectual em França. Na École Normal Supériur de Paris, conviveu com Sartre, Marrou, Nizan, Canguillem, entre muitos outros espíritos brilhantes. Colaborou com Braudel na Escola de Altos Estudos e realizou cursos no Colégio de França. No domínio da política foi próximo de Malraux e De Gaulle. Faleceu em Paris em 1983. Além das Etapas do Pensamento Sociológico, Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto, Weberm eu destacaria O Ópio dos Intelectuais de 1955 – Livro dedicado ao Marxismo e as 18 Lições Sobre a Sociedade Industrial de 1964.

3 Dez 2015

Naruse Mikio na Cinemateca de Macau

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]aruse Mikio não será o realizador japonês mais excitante. Mas depois de alguns dos realizadores com nomes mais sonantes e estridentes será dos mais interessantes pela fibra que demonstram os seus shomingeki.
Shomingeki é um tipo de filme, de imensa popularidade no Japão, que narra a vida de pessoas comuns, o constante esforço para arranjar dinheiro, o endividamento, a falta de comida ou de meios que permitam o avanço social, a vergonha, a perda de face, o desprezo pelos mais desfavorecidos, os casamentos por interesse, a inveja e a extrema abnegação de algumas das suas figuras, muitas vezes femininas. São alguns shomingeki que a nova Cinemateca. Paixão nos mostra.
A tendência para o retrato das classes comuns é uma tendência que no cinema japonês aparece nos anos 20 (com Shimazu e Gosho Heinosuke, por exemplo, o primeiro hoje em dia relativamente conhecido fora do Japão) e que se estende praticamente aos dias de hoje, mas que teve particular sucesso antes e depois da segunda grande guerra. Rapidamente o público de menos meios favoreceu a ideia de se ver retratado no ecrã.
Depois da Guerra, praticamente todos os filmes são shomingeki. A maior parte da população passava por muitas dificuldades e o cinema espelhava-o perfeitamente. É, aliás, um filme de Naruse, um dos primeiros tsuma-mono (filmes sobre esposas), Repast/Meshi, de 1951, baseado no último romance de Hayashi Fumiko, o filme que é considerado como o que relançou o género depois da Guerra.
Não é um mundo ideal, antes um registo cru e fatalista da realidade a que se acrescenta, por vezes, uma vaga tonalidade poética e uma forte ciência da transitoriedade da vida (como em Ozu, o realizador do Nada).
Pode ser, para algumas sensibilidades, um cinema repetitivo e envergonhado mas Naruse pratica-o, como Ozu, com elegância, sem excessos melodramáticos e por vezes com um forte poder evocativo. Se Naruse foi acusado de manter um estilo demasiadamente monótono, sem altos e baixos, por outro lado a sua monotonia é de uma firmeza que se torna atraente.
Nesta página, onde se contam já 64 artigos sobre cinema japonês, mais de 20 dos quais sobre filmes dos anos 60, nem um se dedicara a Naruse.
(Estas considerações tecem-se com base num universo de 8 a 10 filmes dos anos 50 e 60 de entre uma filmografia de 89 – em que 21, maioritariamente dos anos 30, se perderam. Fala-se de alguns dos mais famosos mas este é um corpus reduzido, para além de que no ciclo em questão figura apenas um dos seus conhecidos filmes dos anos 50, década em que realizou filmes que se distinguiram).
Floating Clouds/Ukigumo (1955) é, talvez a par de A Woman Ascending the Stairs, o filme mais interessante dos que se mostram na nova Cinematheque. Passion. É o mais antigo deles mas talvez um dos dois que conseguem um fôlego quase épico e será esta elevação que o tem distinguido. É uma história de Hayashi Fumiko, que cedo ganha uma tonalidade fatalista.
Começa no Vietname, durante a Guerra, onde dois amantes se conhecem. De regresso ao Japão, estes retomam o romance (mesmo que o homem seja casado) e o mais interessante é a incapacidade de reproduzir os momentos de felicidade que haviam conhecido durante a Guerra. O filme é uma longa lista de tentativas falhadas enquadradas na deprimente envolvência do Japão do pós-guerra onde não falta o envolvimento com um soldado americano.
A sua curva indica desde cedo a impossibilidade da felicidade, uma impossibilidade que se torna dolorosa porque Naruse consegue rapidamente dar-nos a perceber que os dois protagonistas da história estão irremediavelmente condenados um ao outro. Ela é a brilhante Takamine Hideko.
A Woman Ascending the Stairs/Onna ga kaidano agaru toki (1960) é talvez o mais conhecido filme deste autor. Retrata os esforços de uma mulher de 30 anos recentemente enviuvada (de novo Takamine Hideko) para sobreviver e manter a sua honra intacta num mundo materialista e masculino. Própria é a sedução que se desprende do mundo dos bares de Ginza onde se vê forçada a trabalhar, uma sedução que lhe dá um ar menos popular e menos dependente de cenas domésticas. É o mais urban cool de todos estes seis filmes.
O plano de Keiko de abrir o seu próprio bar atrasa-se sucessivamente devido a problemas de família, o habitual desfile de endividamentos, falta de dinheiro e familiares doentes dependentes de apenas uma pessoa.
A dolorosa cena final, de Keiko a subir as escadas que dão acesso a um bar que não é dela, mantêm a narrativa aberta para uma história cuja conclusão dificilmente seria eufórica.
Daughters, Wives and a Mother/Musume tsuma haha (1960) é, desta selecção, o filme que mais semelhanças tem com os filmes de Ozu mais conhecidos. Nesse género, mesmo sob a ameaça da inevitável com comparação Ozu, não desilude. A presença de Setsuko Hara, a Eterna Virgem, impede-nos de esquecê-lo.*
Os admiradores de Nakadai Tatsuya devem evitar ver este filme. O actor japonês, que nos habituou a presenças intensas como feroz guerreiro, capaz de artes marciais inultrapassáveis, parece, em Musume tsuma haha, um completo palerma.
Nesta história de inúmeras implicações familiares repete-se o tema da abnegação pessoal perante os imperativos familiares que encontramos em tantos outros filmes da época. A abnegada é Setsuko Hara. Takamine Hideko participa mas, desta feita, num papel mais secundário. Quem toma o papel de mulher independente e ocidentalizada é uma outra personagem, interpretada por Reiko Dan, mas com um relevo pouco significativo. Naruse escolheu sublinhar o elogio da abnegação a sublinhar a afirmação da independência – que nestes filmes tantas vezes vem associada à ocidentalização. **
Her Lonely Lane/Horoki (1962). À habitual exposição da vida das camadas mais destituídas, uma verdadeira obsessão do cinema dos anos 40 aos anos 60, acrescenta-se o interesse de se tratar da vida de uma escritora, Hayashi Fumiko.
Foram vários os livros de Hayashi de que Naruse se serviu para os seus filmes mas o que nos é mostrado é essencialmente a parte da sua vida anterior à consagração, um período de extrema pobreza e sucessivas histórias amorosas desastrosas.
Yearning/Midareru (1964) é uma agradável surpresa, uma história de problemática familiar que se transforma numa intensa história de amor. De repente começa a desenhar-se um improvável desenvolvimento e as cenas que se passam na viagem de comboio ganham uma independência original. Tal como acontece em Floating Clouds, o espectador, que se espera bondoso, é levado a pensar que no final da viagem se encontra a felicidade. A última imagem do rosto de Takamine Hideko, é tão emblemática como a imagem final da subida das escadas em A Woman Ascending the Stairs. Yearning é, com Floating Clouds, o mais intenso dos filmes em exibição.
Scattered Clouds/Midaregumo (1967) é uma história sentimental que se distingue pela justeza da sua realização. Não há um cabelo fora do lugar, pode falar-se de um sentimentalismo mecânico. O seu último filme é também centrado, como acontece em tantos outros (todos os que se mostram) numa figura feminina.
A trama é sedutora: uma mulher apaixona-se pelo homem que acidentalmente matara o seu amado marido.
Naruse manteve-se, mesmo no final dos anos 60, afastado de usos praticados por outros autores mais ousados como Oshima, Wakamatsu Koji, Suzuki, Nakagawa Nobuo ou Teshigahara, tendo escolhido continuar a fazer o mesmo tipo de retratos de gente comum.
Sem que se retire mérito à selecção de filmes de Naruse mostrados este Novembro, é pena que se não tenha conseguido mostrar um dos seus filmes mais conhecidos, Mother/Okaasan, de 1952. Este é o filme que Naruse considerava como o mais feliz dos seus filmes, verdadeiramente um rio tranquilo em que a consciência da fugacidade de tudo se exprime com uma sinceridade inultrapassável.
De 1952 é Lightning/Inazuma (um dos meus preferidos, que não faz parte deste ciclo). Também uma adaptação de um livro de Hayashi Fumiko e também com Takamine Hideko, é uma história comovente vista, mais uma vez, através dos olhos femininos de uma guia turística em idade de casar. Praticamente tudo anda à volta do pouco dinheiro de um seguro de vida de uma sua meia irmã. É um filme pouco conhecido e simples, que nada acrescenta às muitas manifestações do género, mas é um bom exemplo de outro filme em que não há falhas, em que no seu simples desenvolvimento há uma firmeza narrativa impecável.
Lightning é interessante em que, ao contrário do que acontece com os filmes deste ciclo, termina numa linha narrativa muito aberta em que se percebem vários traços de optimismo, o menor dos quais não será a confiança de uma mulher solteira de construir o seu próprio futuro. ***
Kyioko é o exemplo perfeito (e lembre-se que Lightning é de 1952) de uma heroína determinada e com ideias próprias que não receia fazer face a ideias ultrapassadas e que expressa um optimismo que não é comum em Naruse.
Por fim, como o título deste artigo sugere, faça-se um grande elogio à abertura, na Travessa da Paixão, n.13, junto das ruínas de São Paulo, da Cinemateca .Paixão., cujos desígnios são ainda vagos mas que desejam auspiciosos. Oferece uma atraente sala de 60 lugares e, por agora, um pequeno átrio na porta contígua.
Ao pequeno ciclo Naruse junta-se, até dia 8 de Dezembro, a mostra de 3 filmes do realizador formosino Edward Yang a serem vistos no C.C.M., de um filme de 2015 de Du Hai Bin, e vários filmes de Macau e Hong Kong.
Para lá da exibição de filmes que se distingam dos que habitualmente se mostram nas salas tradicionais, conta-se acrescentar uma videoteca e um arquivo e a promoção de seminários pertinentes à área do cinema e do vídeo. Este poderia vir a ser um local muito útil. O edifício em si é de uma justeza inultrapassável.

* Setsuko Hara, que fez 6 filmes com Ozu e ganhou desse modo uma fama que se internacionalizou, morreu com 95 anos no passado dia 5 de Setembro. O desejo de levar uma vida recatada, desde que se retirou em 1962, levou a que a notícia do seu falecimento tenha sido apenas tornada pública a semana passada.
** Para tudo isto poderá ver-se Russell, Catherine, The Cinema of Naruse Mikio. Women and Japanese Modernity, 2008.
*** Takamine Hideko tem, aliás, um tipo de rosto que inspira confiança no futuro e não o típico rosto sofredor de algumas das heroínas dos shomingeki como Setsuko Hara ou a mãe em Okaasan – a enternecedora Tanaka Kinuyo.

1 Dez 2015

Cidade Ligada ao Grande Canal

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Jiangsu, numa viagem de uma hora de autocarro desde Suzhou, chego a Wuxi. A noite já tomava conta da cidade, quando procurei um hotel nas imediações da praça onde se encontra a estação de autocarros e do comboio, ambas próximas uma da outra. Questionando sobre alojamento ali próximo, falam-me de uma pensão para a juventude, o que até então nunca tinha experimentado, já que estas, só apareceram na China nos finais do século XX. Pouco andei para aí chegar. O quarto é rudimentar, mas resolvi ficar, apesar de por aquele dinheiro poder usufruir de um bom quarto, num normal hotel e por um pouco mais, ter quarto de banho no quarto. Estou na avenida principal da cidade de Wuxi e para além de muitos centros comerciais com lojas de roupa de marca estrangeira, apenas encontro dois locais de comida rápida, muito plastificada no seu aspecto. Como mau sinal, à entrada de um deles, alguém tinha “deitado carga ao mar”, o que me retira logo a vontade de comer, apesar de prontamente ter sido limpo o chão. Assim, procuro uma pastelaria e após comprar algo para afagar o estômago, recolho à pensão. Sentado na sala de convívio onde a televisão se encontra ligada, na companhia de outro hóspede, empurro umas buchas com água quente enquanto converso com esse jovem chinês, que ali vive há um mês. Tinha arranjado trabalho na cidade, depois de formado em Engenharia nos Estados Unidos da América e agora ganha currículo e dinheiro, enquanto tenta perceber qual será o negócio a investir. Sugiro-lhe pensar em algo ligado ao ambiente, como reciclagem do lixo ou limpeza de água, já que olhando os últimos anos, por aí será seguramente uma das necessidades básicas e um negócio promissor.
A noite foi de um longo pesadelo, muito devido aos mosquitos e só com a luz acesa consigo ter sossego. Às seis e meia da manhã deixo um dos locais de hospedagem onde passei uma das piores noites de sono que tenho memória. Com a mochila às costas, algo que deixou de estar em moda, mas que dá muito jeito pois, deixa-nos as mãos livres, sigo caminho para a estação. A vontade é de apanhar um transporte e prosseguir viagem para outra cidade, de tão mal-humorados que estou. Mas pensando a razão da visita, que traz o lago Tai como um dos lugares a não perder, deixo a mochila guardada na estação dos caminhos-de-ferro.
Partir ou ficar mais uma noite, só terá resposta depois, pois aguardo que a cidade me surpreenda e traga vontade para a explorar. Agora quero saber como chegar ao Lago Tai. A sorte parece estar do meu lado. Há um autocarro directo para o Taihu (hu=lago) a partir da praça defronte à estação. O preço do bilhete é de dois yuan para fazer os cinco ou seis quilómetros de viagem. Rumando para Sudoeste, o autocarro atravessa as pontes sobre os canais e é quando percebo a razão de tantos mosquitos.

Uma viagem pela memória

Na primeira estadia em Wuxi, fora-me indicado para pernoitar o hotel da Universidade, situado junto ao lago Tai, pois decorria um período de festas e não havia um só quarto livre na cidade.
Enquanto vamos torneando, recordo a viagem no autocarro número 2 feita há dez anos a caminho da Universidade. Wuxi converteu-se numa pretensa cidade moderna, cheia de prédios e centros comerciais, perdendo o cariz que tinha outrora com a sua atraente e antiga arquitectura. Poderia compreender que nessa altura muitas das casas não tinham condições de habitabilidade mas, poder-se-ia ter recuperado Wuxi com outro tipo de matriz. Agora a cidade está igual a tantas outras espalhadas pela China. Atravessando pontes, revejo os canais anteriormente visitados e constato terem perdido a sua grande animação. As margens estão agora limpas dos barcos que ali estiveram estacionados durante anos a servir de habitações e armazéns. Actualmente, pelos canais apenas navegam alguns cargueiros e a vida nos canais já não se distingue da existente em outras partes do Grande Canal.
Fora próximo da Universidade que, de barco, dera uma pequena volta pelos recantos do lago Tai, quando o turismo ainda estava maioritariamente virado para os estrangeiros e poucos eram os chineses que tinham hipóteses de usufruir o encanto das paisagens do seu país. Tivera a companhia de um grupo de reformados chineses e deliciosamente o pequeno barco foi passando tranquilamente por campos de milho, arrozais e fábricas, muitas delas abandonadas, talvez para serem reestruturadas pois, nessa altura, começava a reforma industrial com a vinda de muitas empresas de Singapura e de Hong Kong. Poderia ser também para as retirar daquele idílico local e assim vocacioná-lo para o turismo.
Connosco viajou um professor de História que se tinha reformado e me foi contando as origens da cidade.
Estava-se no século XI a.n.E., quando, nos finais da dinastia Shang (1600-1046 a.n.E.), Tai Bo e Zhong Yong, dois príncipes irmãos do Rei Tai (Gugong Tanfu) do reino de Zhou, ao emigrarem do Noroeste da China para junto do Rio Yangtzé, fundaram Gouwu, ou simplesmente reino Wu. Já com a dinastia Zhou no poder, fizeram do local de Wuxi a sua capital, com o nome de Youxi, que significava local com estanho. Zhong Yong encontra-se sepultado no monte Yu, junto ao lago Shang, em Changshu, a Norte de Suzhou, que nessa altura se chamava Wu. Já Tai Bo tem um pavilhão em sua honra, próximo da cidade, em Meicun, local onde se fez a cidade, cujo nome de então era Meili.
A cidade ganhou tanta projecção que mais tarde, no Período dos Reinos Combatentes, aqui aconteceram muitas batalhas entre os reinos de Yue e Wu.
Em 584 a.n.E., o reino de Wu, aprendendo a atirar com o arco e a usar cavalos e carroças para a guerra com o reino Jin, foi construindo aos poucos a sua força, ao mesmo tempo que entrava em contacto com os reinos do Norte. Wu era um pequeno reino em Jiangnan em torno da capital Youxi (Wuxi), mas em 514 a.n.E., Wu, a actual Suzhou mudou o nome para Helu e após grandes obras, mandadas fazer por ordem do Rei He Lu, tornou-se capital do reino.
Um general do reino Chu, Huang Xie, foi enviado para reconstruir a cidade de Youxi, destruída pelas constantes batalhas. O nome de Wuxi (sem estanho) aparece na dinastia Han, quando o país estava reunificado e significa que o estanho tinha acabado. Ganhou importância na dinastia Tang devido à existência de Jiangyin, um porto fluvial do Grande Canal, ficando desde então ligada a este enorme corredor de água.
Na vizinhança de Wuxi e Suzhou, o grande lago Tai (Taihu), um dos cinco, talvez o terceiro maior lago de água doce da China, com uma área de 2400 m², uma profundidade de dois metros e quarenta e oito ilhas, estava já ligado no século V a.n.E. ao Changjiang, como os chineses chamam ao Rio Yangtzé.
As duas horas de passeio pelo lago Tai tinham deixado na memória a vontade de voltar e saber o que aí tinha sido realizado.

O Lago Tai

Agora aqui estou, seguindo no autocarro número 1, atravessando extensos lençóis de água para ser depositado à entrada de um parque de estacionamento onde, mudando para o autocarro do recinto, sou levado ao Parque da Cabeça de Tartaruga. Pelo número de autocarros com excursões e de pessoas que esperam em fila para comprar o bilhete de entrada, percebo que as memórias que trago estão muito longe do tempo.
Nestes últimos vinte anos, o turismo foi uma das indústrias que mais rapidamente se desenvolveu na China, sendo actualmente o primeiro país da Ásia em número de visitantes. Os chineses tornaram-se turistas no seu próprio país e têm vindo exponencialmente a aumentar. A China está a renovar as suas estruturas turísticas e a diversificá-las e por todo o lado se percebe a atenção que está a ser dada a esse sector, ligando-a com a renovação dos transportes, da parte hoteleira, dos templos e parques.
Pago a entrada para ter acesso a uma península, onde como Paraíso se esquece o mundo deixado para trás, que foi local visitado por imperadores e desde 1918 criado como parque. Encontro-me no Promontório da Cabeça de Tartaruga (Yuantou Zhu) aberto todos os dias das sete da manhã às cinco da tarde.
Os pessegueiros e ameixoeiras floridos com brancas e lilases flores envolvem pontes e rochas numa formação de jardim natural onde não falta a criação humana entrosada na natureza, assim como um templo budista.
Os barcos que antigamente enchiam as águas do lago começaram a rarear e agora, com as antigas velas em leque e feitas com bambu, poucos são os que ainda aqui navegam. Logo à entrada de Yuantou Zhu, um estaleiro prepara uma nova embarcação a imitar as antigas, mas transformada para acolher os turistas que se deliciam pelas águas do lago e vão em visita à Ilha de Sanshan.
Uma pequena embarcação a remos aproxima-se da margem do cais e um casal idoso tenta vender o peixe fresco, acabado de pescar.
Taihu é famoso pelas esculturas naturais de pedra, que nas suas águas longamente foram esculpindo. Actualmente, nas margens do lago encontram-se muitos depósitos dessas pedras que são colocadas dentro da água para serem corroídas e ganharem as formas abstractas com que são reconhecidas.
Após horas pelas margens do lago, resolvo sair por outra das pontes, que me leva até onde na primeira vez andei.
Falam-me numa plantação de amoreiras na parte Nordeste do lago, que é fertilizada com os excrementos dos peixes e caranguejo. Passeando, chego a uma parte lodosa, devido à descida do nível das águas e me deixa muito longe dela. Já os velhos barcos de recreio, agora encalhados, indicam terem as águas do lago recuado muito. Estátuas gigantes de caranguejos estão dispostas num relvado envolto por árvores. Não são as amoreiras que pretendia encontrar, mas o terreno serve na perfeição como habitat dos caranguejos.
Parece prepara-se aí já algo, pois está a ser dragada o terreno agora seco junto a alguns restaurantes, também a serem remodelados. Lembro-me de ter provado há dez anos esses famosos caranguejos, que fazem as delícias nos restaurantes de Shanghai.
Ao fim da tarde volto a Wuxi e com a cidade sem o antigo carisma, sobretudo vivido ao longo do Grande Canal, recolho a bagagem e sigo viagem a caminho de Yixing, no outro lado do lago Tai e famoso por ser um local de artistas que trabalham o barro fazendo artísticos bules de chá.

29 Nov 2015

Cartas sem envelope – Cartas sem sê-lo

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo um oráculo. O desconhecido de todas as manhãs. Às vezes, eu. Porque uma mágoa se diluiu subitamente desde a véspera. Porque uma inquietação nova se instalou sub-reptícia pela noite nos meus ombros. Porque o céu está de uma cor diferente. Ou simplesmente o desconhecido com prazo de validade de um dia. A dar-se a conhecer. A levar-me a desfiá-lo pelas horas de um dia. A perscrutá-lo desconfiada ou iludida. O desconhecido de todos os dias. Que só posso reinventar na medida em lá está. Num ângulo particular. Não sei se sou eu, ou o desconhecido que me arrasta no desconhecimento de todos os dias.
Ou como o carteiro que sempre espero que traga alguma carta com o meu nome. É sempre possível que isso um dia me apanhe na esquina em que menos o espero. O dia em que me dirá aquele antiquado Está entregue, e em que vou pegar nela atemorizada e expectante como sempre. Revirar nas mãos longamente o envelope fechado, tentando fixar cada pequeno detalhe. Uma dedada, um ponto fora das linhas previsíveis, uma inclinação desusual da caligrafia, uma paragem nas letras do meio, na qual eu própria paro intrigada e desconfiada. Espiando as curvas das maiúsculas e o travamento dos ts. Pequenas inflecções no lançamento das sílabas. Espiando hesitações, ou uma expiração longa na orla da última letra. Uma pressão maior no início da primeira como a firmar-se a caneta para percorrer um atalho difícil. Uma pastosidade na última. Um desleixo revelador. Um ponto quase a ferir o papel. Um aroma. Inesperadamente. Depois ansiosa e apressada mas temerosa, mas a prolongar o momento, ainda escolher a maneira de a abrir. Que tem que ser perfeita e sem estragar. Descolar cautelosamente se possível pela fragilidade da cola. Senão, cortar com a tesoura a fímbria lateral. Qualquer milímetro a mais como um enorme desperdício. Ou rasgar, daquela forma com que se rasga um papel bom de desenho.
E um dia não pude deixar de lhe perguntar se tinha uma carta para mim. Ele olhou-me com um olhar confuso, ou talvez míope. E disse-me, claro, há muito tempo, mas não sabia que era para si. O mundo caiu-me aos pés mas sem humildade. Desmanchou-se simplesmente por um longo minuto, em que na minha pressa o arrumei mal e desleixadamente, a cabeça num vórtice e o coração a bater para o outro lado. Não sei que fiz de tudo isso. Vi-me num armazém interior no fundo da estação dos correios. Devo ter-lhe perguntado onde está, e num tom aflito ou mesmo aflitivo como está. E ele deve ter-me dito que não sabia. Vi-me ali. Umas lâmpadas fluorescentes, de uma luz ácida e crua que não ia ajudar. Perguntei se podia apaga-las. Que sim. Restou uma lâmpada pendurada lá no canto mais distante da porta. Lúgubre, talvez. Não sei. Não podia acontecer eu não a encontrar por suficiência da luz. Crua. Pilhas intermináveis de cartas. Ele disse se estiver, está aqui. Eu respondi claro, compenetrada e grata. Não lembro como os dias passaram a partir de aí. Sentada no chão por ser mais vasto, tentando dar-lhes uma ordem digna da minha procura, da minha desilusão e do meu reconhecimento por cada uma que li. Cartas sem envelope. Sem selo. Perdidos que ficaram em barcos de mares que vieram distantes. Descolados pela maresia. Cartas despidas de vestes esfarrapadas. Meio rasgadas de algum encontrão da vida. Desbotadas. Dobradas, desdobradas ou mal dobradas. Sem nome. Sem dono. Cartas sem sê-lo. Já. Devolvidas a vermelho num wrong adress, ou, this person doesn’t live here anymore. Com palavras intrigantes. Declarações urgentes de vida e morte. Palavras rudes mas bem intencionadas. Outras pungentes, fundas. Tantas de amor e nenhuma a minha. Ali, por encontrar. Desfazia molhos delas à pressa e por não ver a minha detinha-me sem querer na curiosidade das outras. Chorava, emocionava-me com um nó tenso na garganta com um desabafo que podia ser meu não o sendo. Tantas palavras perdidas e sem dono. Algumas a querê-las minhas. Caligrafias conhecidas. Quase conhecidas. Separava num molhinho menor as que precisavam de ser urgentemente entregues. Não sabia a quem pelo nome mas sabia pela vida delas. Acumulava o desespero de não poder fazê-lo e não conseguia desistir. Depois verifiquei que já havia molhos distintos em função de diferentes emoções. A fazê-las minhas. Sem o serem. O meu destino a forjar diferentes tarefas que nunca cumpriria. Por vezes esquecia-me do que me levara ali. Ao fim de algum tempo já não se me esvaia da cabeça a ideia de como poderia abandonar as outras ao seu destino solitário, quando a minha aparecesse.
Aí, ela interrompeu-me com um gesto no ar daquela mão fina e branca, crivada de veias muito azuis e bem desenhadas na pele magra e sem rugas, só um pouco fina demais, transparente quase, de unhas cor de pérola e anel de platina com uma bela pedra simples e incolor. Contemplei-a em silêncio o que era um enorme prazer. Ficaria bem no mais belo filme de Visconti. Com o cabelo de um cinza prateado, impecável, o roupão de veludo pesado debruado a seda. Coisa de outro tempo. Os tornozelos finos de sempre, e aqueles olhos que poderiam parecer frios na expressão e na transparência, não fosse a voz quente, muito rouca com os anos, muito lenta. E as poucas palavras sempre certeiras à alma ou ao coração. Perspicaz. Atenta e curiosa. Por isso lhe contava coisas da vida que não era a dela. Tudo. Pela noite fora, cansada ela, mas sempre sem sono para as suas quatro horas de repouso nocturno. Rodeada de um luxo pesado e só muito imperceptivelmente decadente. Chamava-lhe signora como todos os outros e nunca tinha o tempo de lhe perguntar sobre si. Ela escapava-se ágil e algo trocista. Mas de uma enorme gentileza. Não dava tempo. O seu silêncio tinha o peso e a densidade intransponível carregado de tudo como se proferido. E quando eu quase conseguia a coragem de o cortar, ela arguta fazia-me, ela sim, uma pergunta delicada, subtil, irresistível. Acho que me estudava nesse silêncio e jogava a sua carta por antecipação. Por isso dela, só o mistério quase nada explícito, quase invenção minha. Era como se não houvesse. E no entanto nunca nada me disse. Eu a ela tudo. Tinha uma maneira de perguntar como se já soubesse meia resposta por premonição, mas sempre com uma pequena rasteira deliciosa em que caía inevitavelmente. Suponho que essa era a parte mais elaborada. A pergunta dentro da pergunta em forma de desafio benévolo. E eu saltava directamente para qualquer pormenor encravado no fundo de cada questão. Era aí que eu caia e já me acostumara a observá-la mesmo no meio da minha abstracção em torno do que se me colocava, gostava de não me perder naquelas armadilhas meigas, mas sobretudo não perder aquele instante ínfimo, que lhe passava pelos olhos como uma luz transversal e fugaz, um pequeno brilho de victória, quando eu, sem responder directamente à pergunta aparente, inevitavelmente lhe fornecia a história que ela queria sem o querer dizer. Dava-me também a mim uma alegria secreta, deixá-la saborear essa conquista. Laboriosamente planeada nesses intervalos de silêncio. Entre frescos desmaiados e adormecidos nas paredes em redor. A melhor das ouvintes que alguma vez conheci. Inventei muitas coisas para seu deleite, não para esconder a alma mas para tornar mais rica a história que lhe oferecia. O seu imenso espírito analítico, a curiosidade humana e delicada, merecia as melhores. E aquele seu jeito hábil de perguntar sem reconhecer na pergunta o móbil da mesma, torneado como num penteado barroco de inúmeras tranças que seria divertido desfiar à posteriori. Mas havia sempre um novo assunto. E pelo meio silêncios enormes e cheios. Difíceis de quebrar. Tudo sereno, as janelas sempre abertas sobre o canal. Os brilhos da água e os brilhos dos reposteiros adamascados. Quase confundíveis. E os copos de um cristal rosado em que beberricávamos um vinho. Apenas a ela falei dele plenamente. Só ela sabia falar dele, também. Talvez porque quase não o referisse mas aceitasse com uma enorme complacência tudo o que lhe confessei. Sem juízos e sem reprovação. Parece-me que chegou a conhecê-lo enormemente, o que quase me fazia ciúme. Oitenta anos, ou talvez muito mais, mas uma enorme memória do amor.
Flávia. Chamava-se assim, disse-me um dia mais inspirado. E um dia chamei-lhe assim pela primeira vez. Intencional, premeditadamente. E, como desconfiei, vi-lhe passar como sempre aquela luz trocista e breve, que logo serenava em delicadeza e ternura. Uma ternura sóbria. Eu sabia que ninguém tinha coragem de a tratar pelo nome. E que ela nunca o propunha. Esperava dos outros essa iniciativa. Suponho que ficou contente. Não deu mostras de notar a diferença, mas mais tarde disse que lhe devia uma história maior naquela noite…Disse ela. Ou talvez eu. De que vamos falar?
Ela agitou os dedos como se regesse uma orquestra nos últimos dos últimos acordes. Precisas de fumar um pouco e pensar. Nele. Eu descanso entretanto. Aí reparei que os olhos eram mais brilhantes, as olheiras mais fundas e a pele em torno destas mais transparente do que sempre. Com um rendilhado fino de rugas e veias quase invisíveis mas acentuadas por vezes. Deslizou com aquela elegância sem idade os pés para o lado e recostou a cabeça no almofadão a seu lado no sofá. Sentia-a triste. Talvez fosse ela a precisar ainda mais de fumar um pouco. E pensar nele. Esperei que fechasse os olhos, não queria ser indelicada na minha pressa de sair para o balcão da janela. Mas isso não aconteceu. O olhar era lento de mim para outra coisa que não via. Aproximei-me e estendi-lhe a cigarreira. Olhou-me longamente. Tudo parecia possível como resposta. Disse simplesmente, sim. Nada me daria de facto mais prazer neste momento. Há muitos anos que ninguém me oferece um cigarro. Esqueceram quanto eu gostava. Mas sei que não era isso. Era algo na memória a precisar de companhia. Pegou num dos longos e acendi o isqueiro. Ela disse não. Ali, naquela gaveta está um esquecido há séculos. Fui abrir respeitosamente e a medo a gaveta, imaginando talvez ver também um revólver de ouro, e outras coisas. Quando o experimentei na dúvida, funcionou. Mãos amorosas o alimentaram pelos séculos. Sorri para dentro. Acendi-lhe então o cigarro que aspirou com uma volúpia de prazer invejável. O da distância da saudade. Conte-me. Tu sabes a minha história. Pensa em cada detalhe do teu amor. Entendi subitamente todo o artifícios das suas questões elaboradas. A luminosidade de desafio que lhe perpassava nos olhos. Ela conduzia a história dela na minha e deliciava-se na mais ínfima coincidência. Contas-ma noite após noite há anos. Mesmo as partes verdadeiras que inventaste. Emudeci atemorizada naquela espécie de vislumbre da visita de um tempo futuro, como um espelho em perspectiva, com a distância também que só se pode ter depois. A lucidez.
E muda a querer perguntar sem o chegar a fazer, sem saber se houve um depois, foi feliz? Ela olhou-me de revés, Amar. Sim…é ser, e como arrependida a fechar o rosto cansado: Tu me dirás mais tarde. Um meio sorriso impenetrável, agora. Se tivermos tempo.
Fechou os olhos, mas tornou a olhar-me com um sorriso, e com aquele sotaque cerrado e inconfundível: “It is love, and not German philosophy that is the explanation of this world, whatever may be the explanation of the next.” . Sabes quem disse?

29 Nov 2015

Itzhak Perlman dá recital em Hong Kong

*Por Michel Reis

[dropcap style=’circle’]I[/dropcap]tzhak Perlman, um dos mais conceituados e virtuosos violinistas dos séculos XX e XXI, deu um raro recital em Hong Kong no passado dia 8 de Novembro, no Concert Hall do Centro Cultural de Hong Kong, no âmbito do Ciclo Encore do Leisure and Cultural Services Department do Governo da R.A.E. de Hong Kong. Perlman foi acompanhado pelo pianista cingalês Rohan de Silva, seu parceiro habitual. Este recital está inserido numa digressão asiática dos artistas que os leva ainda durante todo o mês de Novembro a Pequim, Xangai, Daejeon, Seul, Tóquio, Osaka e Nagoya.
Neste extraordinário concerto, Perlman, que celebrou o seu 70º aniversário no passado dia 31 de Agosto, e de Silva, executaram obras de Jean-Marie Leclair, Johannes Brahms, César Franck e Igor Stravinsky, e vários encores, entre os quais o Tema da Lista de Schindler, de John Williams, Sevilla de Isaac Albéniz e a Dança Húngara No 1 em Sol menor de Johannes Brahms, entre outras peças.
Inegavelmente o virtuoso reinante do violino, Itzhak Perlman goza de um estatuto de super-estrela raramente concedido a um músico clássico. Amado pelo seu charme e humanismo, bem como pelo seu talento, é estimado pelo público em todo o mundo, que responde não só ao seu notável talento artístico, mas também à sua alegria irreprimível de fazer música.
Nascido em Tel Aviv em 1945, Perlman teve poliomielite aos quatro anos de idade, com graves sequelas, razão pela qual utiliza muletas ou uma scooter eléctrica para se deslocar e toca sempre sentado. Os seus pais, Chaim e Shoshana Perlman, oriundos da Polónia, haviam emigrado independentemente para o Mandato Britânico da Palestina (actualmente Israel) em meados dos anos 30 antes de se conhecerem e casarem. Ao ouvir na rádio um trecho de música clássica, o pequeno Itzhak interessou-se pelo violino mas a sua entrada no Conservatório Shulamit, em Tel Aviv, aos 3 anos de idade, foi recusada por ser pequeno demais para segurar um violino. Assim, aprendeu a tocar sozinho usando um violino de brinquedo até ter idade suficiente para entrar no Conservatório, onde estudou com Rivka Goldgart, e na Academia de Música de Tel Aviv, onde deu o seu primeiro recital aos 10 anos de idade, antes de partir para os Estados Unidos para estudar na The Juilliard School, em Nova Iorque, com os célebres professores do instrumento Ivan Galamian e Dorothy Delay. Aos 13 anos de idade ficou famoso pela sua interpretação do Concerto para Violino de Beethoven com a Orquestra Filarmónica de Berlim.
Perlman foi apresentado ao grande público americano quando apareceu no “The Ed Sullivan Show” duas vezes em 1958. Pouco depois, iniciou digressões por todo o mundo. Fez a sua estreia no Carnegie Hall em 1963 e ganhou o altamente prestigiado Concurso Internacional Leventritt (hoje extinto) em 1964. Também em 1964, volta a participar no The Ed Sullivan Show, no mesmo programa em que participam os Rolling Stones. Além de inúmeras gravações começa a aparecer em emissões televisivas tais como “The Tonight Show” e “Sesame Street” e actua muitas vezes na Casa Branca.
Em 1986, tocou no centésimo tributo da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque à Estátua da Liberdade, no Central Park, dirigido pelo maestro Zubin Mehta e emitido ao vivo pela estação de televisão ABC. Em 1987 colaborou com a Orquestra Filarmónica de Israel (IPO) em concertos em Varsóvia e Budapeste, assim como noutros países de leste. Participou na “tournée” da IPO na Primavera de 1990, a sua primeira actuação na União Soviética, com concertos em Moscovo e Leningrado. Ainda com a IPO, actuou na China e na Índia em 1994.
Sendo sobretudo um violinista solista, Perlman, para além da sua actividade como maestro e professor, tem actuado com muitos outros músicos notáveis, entre os quais Yo-Yo Ma, Jessye Norman, Isaac Stern e Yuri Temirkanov. Também actuou e gravou com o seu amigo violinista israelita Pinchas Zukerman em inúmeras ocasiões ao longo dos anos. Além de música clássica, Perlman também toca jazz, sendo de mencionar um álbum com o pianista de jazz Oscar Peterson. Perlman tem actuado como solista em muitos filmes, com destaque para “A Lista de Schindler” em 1993, com música de John Williams, premiado pela Academia de Cinema Americana. Mais recentemente foi o violinista solista do filme “Memórias de uma Gueisha” em 2005, juntamente com Yo-Yo Ma. Em 2009 interpretou Air and Simple Gifts, de John Williams, na cerimónia de inauguração presidencial de Barack Obama, juntamente com o violoncelista Yo-Yo Ma, a pianista Gabriela Montero e o clainetista Anthony McGill.
No princípio da sua carreira usou um violino Carlo Bergonzi. Posteriormente comprou o Stradivarius “General Kid” de 1714, que vendeu em meados de 1980, tendo adquirido o violino de Yehudi Menuhin, o famoso Stradivarius “Soil” de 1714, considerado um dos melhores Stradivarius. Passado algum tempo também adquiriu o “Sauret” Guarneri ‘del Gesù’ de 1740-1744.
Desde 2003 Perlman ocupa o lugar que pertenceu à sua professora Dorothy DeLay (já falecida), na Escola de Música Juilliard, como detentor da cátedra de Estudos de Volino da Fundação Dorothy Richard Starling. Dá aulas privadas no Perlman Music Program (Programa de Música Perlman), em Long Island, Nova Iorque. Também deu aulas no Centro Comunitário de Be’er Sheba, em Israel, partilhando generosamente o seu saber com o público fora das aulas formais. O Programa de Música Perlman foi fundado pela sua mulher, Toby Perlman, também violinista e por Suki Sandler, em 1995. Este programa permite aos estudantes serem treinados por Itzhak Perlman antes de se apresentarem em audições em locais como o Sutton Place Synagogue e escolas públicas. Também permite que os estudantes se encontrem e desenvolvam uma rede de amigos e colegas de profissão.
Itzahk Perlman recebeu vários prémios e distinções, entre os quais 16 Prémios Grammy e 4 Prémios Emmy e ainda a Medalha da Liberdade atribuída pelo Presidente Reagan em 1986; a National Medal of Arts atribuída pelo Presidente Clinton em 2000, Kennedy Center Honors em 2003 e títulos honoríficos pelas Universidades de Harvard, Yale, Brandeis, Roosevelt, the Cleveland Institute of Music, Yeshiva e Hebrew.
Itzhak Perlman deu um recital em Macau no âmbito do XXV Festival Internacional de Música de Macau, em 2011.

26 Nov 2015

Novembro ou o mundo mutantis

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascidos das trevas e do breu, formamos pactos com a luz, pois que toda a estrutura é sombra ainda de outros reflexos, prostrados em cada mancha que o movimento cobre. É uma impudência este cerco com um imenso campo de probabilidades, que tanto prendem como libertam da imensa, e ainda, escuridão. Podemos ser aqueles que ansiaram a cólera e a tragédia como reflexo da origem, plasmadas em vício e trauma, como escamas antigas de um reino morto. Tudo aquilo que os lassos sentidos não firmaram, arrancados nos são em Novembro, quando o tempo se abre para a ranhura inescrutável do abismo.
A Festa dos Mortos, esse paradoxo, um Verão de noites que não são pequenas, um afundar na beberragem gratuita e fausta antes de se fechar o grande postigo do tempo cíclico: avança então para os úteros infernais de onde sairá a dois de Fevereiro, Festa da Candelária, Senhora da Purificação, cruzando com os mitos Eulesianos, mas de carácter judaico-cristão, a contar depois do Natal: (trinta e nove dias as mulheres seriam purificadas do nascimento de um menino). Mas Novembro era em si tão grande, que Outubro não tinha casa zodiacal, acabando por ficar subdividido com o símbolo da Balança as qualidades de César. Novembro começava em Setembro e tudo era outro tempo na roda das Estações.
Novembro hoje, agora, este ano foi todo ele o mês do breu. E se existe de facto uma hora propícia para as acções devastadoras, essa hora é a das manhãs, este Novembro adensou a escuridão, a mudança do paradigma; treze de Novembro, Lua-Nova e sexta-feira, a escuridão foi um selo que nos sitiou. Até os antigos condenados sabem bem do ar da Alba… dos amanheceres. Mundo-Mutandis.
Esta noite, este Novembro, este sangue, este medo, esta contaminação do terror em nossas praças, estas mandíbulas de cercos que avançam como se fossemos a Jibóia engolida pelo ventre da Baleia, faz mais escuros os dias que nos cercam. Vivemos sem pensar que a melhor herança da Liberdade, fora afinal a confiança no outro, e, sem pensar, o nosso tempo, não sendo o melhor, tinha tido esse alto grau da consciência humana; neste Novembro, vemos com a perplexidade dos que acordam no meio dos pesadelos, o que quer dizer a falta dela. Sitiados, os nossos sentidos estão cautelosos, em alerta.
São jovens a maior parte dos assassinos e também as suas vítimas. O sangue jovem sempre foi aquele que os deuses gostaram mais para saciar as suas sedes, como se um lado sacrificial do Novilho ainda fosse a condição «Tão jovem! Que idade tem? Jaz morto e arrefece o menino de sua mãe».
Novembro nove, novo, é sempre o que restou das noites muito curtas do Verão. Disse Flaubert: “Felizes aqueles que comem demoradamente… afastam convivas insaciáveis que os importunam com pedidos e que, no último dia, à sobremesa, quando uns dormem e outros se foram embora doentes, podem beber finalmente os vinhos mais finos, saborear os frutos maduros, gozar os últimos fins da orgia, esvaziar o que restou, de um grande trago, apagar as velas e morrer!”
O ciclo das coisas alterou-se, e até quem gostava das brisas da manhã para as ideias irrigadas de fresco oxigénio, até elas, entram agora pela noite no transbordo de um ciclo transformado.
Que as trevas não nos vejam chorar que lágrimas nos caem sem sentido aparente na nebulosa Estação vivente, e que um Mundo tão mudado não nos tire uma certa claridade a que nos agarrámos como últimos sobreviventes. Ainda temos Goethe que às portas da morte exclamava com transcendente apelo….«Luz, mais Luz…». Mas os poetas morreram há muito neste mundo que se foi mudando sem eles, e quando morrem os poetas, levantam-se agrestes, as trevas. Eles estavam anulados mas ainda equilibravam o mundo nas coisas mais funestas tal como as sentinelas nos seus postes, seria preciso uma quase imolação para salvarem o que tanto se perdeu.
Novembro tirou-me a tranquilidade para amanhã pensar que a noite pode ser como os «Hinos de Novalis» e entrar nela cantando. Já não há Cânticos que apaziguem as feras, nem cítaras para que elas fiquem em paz. As flautas de Pan estão partidas nestes caminhos e os Concertos, a alegria, o som que se produz, parece até enraivece-las um pouco mais. Flautistas de Hamelin procuram-se para afugentar as pragas.
Uma música concertada que dê rumo aos que não sabem que o som pode vir dos acordes e dos acordos mais bonitos.
Talvez compor um Hino e pô-lo a cantar no Coração das Nações.

26 Nov 2015

Ethos, Pathos, Logos – Da monstruosidade

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]esta hora, em que tento pôr ordem nas palavras, noite já feita, inúmeras traças esvoaçam por aqui. Olho-as com o olhar desumanizado ou simplesmente alheado – e uma palmada rápida e seca seria suficiente – de quem encontra ali a pequena metáfora caseira, vinda ao encontro de outras perplexidades. Porque elas têm que se alimentar, as traças, não as preocupações. Mas eu não gosto. Mais esse olhar, do que o de qualquer respeito pela sua essência, até mesmo em termos cromossomáticos, tão próxima da minha.
E tudo o que a natureza produz é natural. Já a razão é a coisa mais artificial que há. A ética, a moral, a estética, a filosofia, a religião, a costura, a geometria, a arte, a linguagem, o estado, a comunicação. Construções. É aí que se situa toda a monstruosidade e não ali. A natureza, à luz de muitas elaborações normativas, também produz monstros, aberrações, raridades ou anomalias. Mas também estas, fruto dos mesmos mecanismos, os do crescimento, da oxidação, da morte celular, da recombinação de genes, de sinapses que dão o impulso químico ou elétrico certo. Ou errado. Nem sempre se sabe qual seria o impulso certo. Em que se fazem ou desfazem pensamentos, registos da memória, funções, sensações. Do descontrole sei lá de que momento da pré-disposição genética. São fugas à norma, e essas expressões com que as designam, limitadas a critérios nada rigorosos, pouco além, por vezes, de uma dimensão estatística. Ou uma motivação vinda da clausura em padrões de segurança e normalidade, de que muitos necessitam na sua definição de si por oposição aos outros. Uma oposição bélica.
Todas as fugas provocam instabilidade no outro porque abalam as suas frágeis seguranças. O que é diferente parece contestar aquilo de que é diferente. E aquilo de que é diferente, reage com agressividade fulminante da auto-preservação de normalidade, como se esta fosse minada. E é. Mas de dentro e não de fora. O espelho que muitas vezes não sabe que é. No corpo do que é natural, nascem disparates da natureza, ou lirismos ou violências em vários graus. Mesmo aí, onde, para lá de determinados limites se define o território da doença, há fronteiras por definir. Entra-se no domínio da construção, do que é normal e do que é tratável, do que a sociedade, o estado reconhece, e do que não. Mas, se também de corpo se trata, mais ainda do domínio equívoco das ideias, emoções, pulsões, da construção de si enquanto ser no mundo e ser para a morte. E para a vida. Entretanto. E aí, então se situa o pântano maior em que se afundam ou batalham as grandes dúvidas sobre as fronteiras. As da doença e da sanidade. As da diferença e da normalidade. Da legitimidade ou da criminalidade. Em que se debatem uns e outros, curiosamente. Onde a criminalidade se define a partir do mal causado ao outro. Tal como a doença é por definição o território do sofrimento em si. Em última análise sofre-se da existência total e sem tréguas, nas suas agressões e vazios. E a cura é radical para alguns. A desistência desesperada ou lúcida, sem o céu como limite para o espírito. Mas as profundezas da terra, com os seus vermes a concluir a obra no corpo.
E a identidade. O corpo como lugar da identidade, também. O ser como construção e os seus contornos de inevitabilidade. E os direitos do Homem. Voltando ao que é natural e ao que é desenhado. A questão maior, com redutos intransponíveis. Os do sentir. Mesmo esses pontualmente redesenháveis, mas não sempre. Os de ser. Para além de toda a vontade construída, de todas as estruturas tradicionais e sociais. O território do pensar, quantas vezes fora dos padrões e diabolizado mesmo que inócuo. O delito de pensar ou de acreditar, como crime a punir. O da liberdade de ter direitos. O delito de ser, só porque diferente. O corpo-delito. A alma a olhar o corpo.
Poderia estar a pensar nas grandes questões dos direitos humanos, naqueles aspectos políticos que geram grandes tragédias. A guerra. Todas as guerras, todos os tipos de guerra, as violações de direitos, as grandes questões políticas. Bens e territórios. Mas é do espaço do privado que quero falar, o pequeno grande drama que é o desrespeito pela identidade. O monstruoso e arrogante violentar o direito básico à individualidade, à especificidade do ser. Sem crime. Sem ofensa ao outro.
Usar critérios de gosto para qualificar a identidade. Usar a moral, a tradição. Arquitecturas com paredes de vidro. Por detrás está visível aquele que faz o juízo. A qualificar-se em cada valor que proclama. A maior das enormidades de mau gosto do universo é a sua própria natureza de fenómeno com princípio e a inevitabilidade de um fim. Assim, ainda maior o dramatismo de haver sido criada uma espécie cuja razão a confronta com a noção do seu próprio fim. Fim do indivíduo e eventualmente da própria espécie. E com a noção de que contribui ela própria para a possibilidade de extinção. Para a mente humana, talvez a maior fonte de consternação, essa. Muitas horas de existência dedicadas, embora com a marca de inevitabilidade, à tentativa de encontrar sentido ou fórmula de conforto. Ou então é essa paisagem que Rilke lhe viu. Em que, só assim, podemos apreciar no seu esplendor máximo a vida, e nela o amor.
Ainda da noção de naturalidade, ou não. Tão natural um bicho-da-seda, macio, branco, com ou sem riscas desenhadas a negro, que laboriosamente constrói o casulo em que se esconde para um dia dele fugir, já com asas para voar, como um ser humano cuja identidade não se reconhece no corpo sexuado com que nasceu. E a transforma. E ao corpo.
O exemplo da pérola. Um dos mais belos tumores da natureza, um acto de pânico de um ser vivo. Destituído de intenção estética. Age por medo. Dor. A sua produção de nácar é doméstica, é para tornar a sua casa confortável. Quando invadido na sua intimidade por organismos parasitas ou dejectos nocivos, isola o invasor agressivo com camadas desse nácar, a madrepérola. Quando produz uma esfera perfeita vêm os critérios humanos dizer da perfeição geométrica, da beleza e do valor comercial. Hoje também os órgãos humanos, mesmo de humanos vivos, têm valor comercial e são objecto de venda, de oferta, de roubo. No último caso dizemos ser crime. E é. Hediondo como outros. À luz da ética que nós próprios criámos. Mas mesmo os moluscos têm sistema nervoso, e, mesmo sendo este muito simples, acontece terem estruturas sensoriais, visuais, tácteis, de equilíbrio. Outras.
Na dor, também o ser humano, como a ostra, produz coisas belas. Ou não produz. Ou não são belas. Nada é belo simplesmente por inerência de um estatuto, de uma espécie, de uma raça, de um género. Ou pela naturalidade com que o é. Só por si. Podemos usar critérios que nos levam a achar que um tigre é um animal lindo, enquanto um crocodilo ou um pterodáctilo, não o é. Mas serão de outra natureza do gosto, ou do afecto. Pintainhos e filhotes de mamífero inspiram uma ternura intensa a muitos. Tantos outros bichos causam repugnâncias várias, culturais ou traumáticas. E o patinho feio, que afinal era um cisne. Estava fora do contexto naquele rancho de outros filhotes. Conchita Wurst, com os seus cabelos estonteantes, barba e vestido de lamé. Um modelo estético estranho. A pensar. Mas só isso. Estranho porque invulgar. Menos belo cada detalhe só porque num conjunto inesperado, ou não, é a questão que se me coloca. Mas por cima dessa, a de que não prejudica ninguém. E mais acima ainda, um valor que ligado ao anterior eu venero. A coragem. Eventualmente da solidão. Será menos bela, belo, do que Cronos comendo os seus filhos, o de Goya? Também me pergunto se este é um belo quadro. Ou terrífico. O que, para lá do sentido, não importa afinal.
Como se uns fossem mais naturais do que outros. Os bichos. Os cânones. Como a natureza humana, a homossexualidade humana, a transexualidade humana. A partir de que grau de idoneidade ou legitimidade é que se está protegido pela ética – já que a moral é essa parente pobre, conceito adulterado da tradução do grego de ethos – da agressão do outro, é uma coisa que me faz pensar. Para muitos, do humano para cima. O humano como início da escala de valores a proteger, mas acima dele ainda Deus, que a muitos confunde ligeiramente na sua fórmula egocêntrica. Para outros a escala começa um pouco mais abaixo incluindo os animais domésticos, domesticados. Os animais amigos do homem. Para outros os mamíferos em geral, porque detêm um olhar quase humano. Alguns, e alguns mais do que alguns humanos. Para outros, o reino animal em geral, desprezando o mundo vegetal. Para outros ainda, os seres vivos em geral. Para estes é um dilema de vida, conviver no respeito absoluto e coerente com esse princípio, o mais respeitável de todos. É o que eu sinto. Não é o que pratico e mesmo assim o meu inferno é vasto. Culpada pela minha natureza de elemento privilegiado nesta cadeia alimentar. A cidadania, como valor de responsabilidade dá trabalho. E cadeias alimentares entre elementos da mesma espécie, a nossa. Quem engole quem. Quem mata, quem anula, quem destrói quem. Quem se defende de fantasmas, ferindo pessoas. Quem cataloga pessoas. Quem, pela sobrevivência do seu ego e da sua identidade gera a ilusão de moinhos de vento e activamente lança as suas flechas mortíferas. Deixámos historicamente para trás tanto preconceito, tanta caça às bruxas, tanta ignorância, tanta descriminação, se pensamos no sítio do mundo onde temos a sorte de viver como novos- ricos. Deixámos?
Tenho pensado tanto na questão da monstruosidade. Sobretudo aquela que se gera a partir da diabolização deslocada do verdadeiro foco. Porque ela existe. Que tantos dias me entra pelos olhos adentro. Mas quanto às grandes expressões desta, a minha impotência é enorme e sobra dela uma agonia indefinida de asco e revolta. Mas é também, e aí mais ao nível do meu pequeno mundo, a questão das pequeninas, ínfimas monstruosidades, que me perturba, porque estão, cotovelo com cotovelo, mesmo ali.
E por vezes as pessoas mentem. É assim muitas vezes. Tem que ser. As pessoas encerram-se em quartos escuros em cantos remotos fora da féerie das luzes. Sobem ao sótão de si mesmas e escondem-se. Escondem-se, mas por vezes querem ser encontradas e deixam pistas laboriosas. Labirínticas. Pistas a dizer, não quero que me vejam, vem daí se tens verdadeiro interesse, mas que estão ali com um sinal. Talvez esteja certo assim.
E ele, esse aluno menor ainda, pouco mais que criança, como tive outros, que se prepara para que ao longo da vida, muitos pensem e digam, e lhe digam de maneiras indirectas ou por lapso e desadequação de linguagem que a monstruosidade está do lado dele. Falo sobre isto porque não é secreto. É meio secreto. Ele já começou a luta. Mas ele, que mentiu no primeiro momento, apesar da coragem imensa que constitui dizer voluntariamente a uma desconhecida que não se identifica com nenhum género, e que intuí recobrir uma coragem maior que ainda não teve, anseia por ser entendido. Sobretudo aceite. Porque talvez pense por defeito, que nunca se há- de entender a sua questão. Já vi tantas vezes isto. Naquele cadinho em que mergulho todos os dias. E com um mau fim, tantas vezes. Injusto. Porque há um silêncio, uma reserva do lado de lá e do lado do outro. Uma ausência de caminhos que não envoltos em clandestinidade, sofrimento, marginalidade, sofrimento, ignorância. Dor. Dor de ser. E dor dos outros. Porque são esses que doem mais. E depois há as questões legais. Moral e direito são controlados socialmente e entregues a muito atraso inexplicável. Insensibilidade, ignorância.
E dói-me ver-me envolvida nesse complexo vórtice, sério, importante, que é demasiado confuso da forma em que ele, ela o vê. De ética, moral, direito, direitos, e colocada num ponto muito definido que é o da discriminação. Porque uso um pronome e não outro e o olho nos olhos no acaso do meu olhar pela turma a quem me dirijo. Porque acho ridículo o nome que ele quer que use para lhe falar. Logo um nome de deus….Um deus que simboliza transformação, é certo…E porque me rebelo de o ver incluir-me por defeito nos seus alvos de luta, quando o que lhe quero ensinar, é, para começar, que nenhum género é melhor ou pior. Que a identidade dele, em curso é íntima e deve ter um reflexo consistente legalmente. E é por isso que deve lutar. Não pela rejeição de uma fórmula para que não me dá alternativas por agora. Um discurso difícil.
As pessoas têm o direito de se transformar, física e psiquicamente. Por efeito da vontade de verdade de identificação. De mudar. De mudar de nome. A inoculação de vírus na forma benéfica de vacinas, a reconstrução de uma perna esfacelada num acidente, a colocação de seios de silicone, um transplante, ou a mudança dos órgãos genitais não são vistos com a mesma forma de legitimidade. E nas causas, nas razões de ser está sempre a saúde. Queremos morrer saudáveis, belos, jovens para lá do possível. E da mente. Como tentativa de anulação do sofrimento. Implantar uns seios que são aquele paradigma de feminilidade que sempre se sonhou quando o corpo se definiu noutra direcção, recortar as pálpebras que descaem com a idade. Artificial…O que é que em nós não o é, para além dos sentimentos ou dos sentidos que compulsivamente nos transmitem sensações tão definidas por vezes? Quando mesmo esses enganam. Perseguir paradigmas quando a noção de liberdade se instala. Paradigmas de identificação. Somos únicos, por mais que irrelevantes, na única possibilidade de existência que uma vida sem fervor metafísico, ou religioso, nos reserva. Porque não reelaborar o género nas suas especificidades estéticas, sexuais e existenciais. Mas nestas questões que têm também a ver com o amor ou com o desejo puro e simples, puro e duro, não se sabe sempre se a resolução do corpo é o ponto de partida ou o ponto de chegada. É quem se é, ou aquilo que se sente por alguém que é o outro, e ponto de chegada de um valor. Eu tenho uma noção estranhamente imprecisa da minha identidade de género. Sempre tive. Tenho a sorte de me sentir confortável na minha pele, no meu corpo específico e feminino e na tradição em que cresci. Mas sei que me sentiria muito parecida com o que sou, num corpo de homem. Parece-me. Talvez porque nunca se sobrepõe a tudo o resto que me define, essa, para mim pequena questão do género. Mas, noutro corpo eu seria gay. Disso não tenho dúvida. Mas só atendendo a tudo o que senti até hoje. Serei portanto, eventualmente um homem, gay, que nasceu num corpo de mulher mas não se importa com isso. Ou uma mulher, heterossexual, que poderia ter caído por acaso do destino, num corpo de homem. E se quisesse afinal ser vista pelo olhar de um homem, como mulher, sujeitar-me- ia àquelas duras terapias hormonais e psicológicas, e a complexas cirurgias para surgir, como um cisne do patinho feio, mulher plena. Com um bilhete de identidade a dizer-me do sexo masculino. Há no entanto complicações maiores, outras recombinações e outras possibilidades de identidade entre um corpo e um intelecto. Onde toda esta realidade emperra é nos preceitos legais. Lentos, amórficos, alheados do muito que se sabe da natureza humana. Cruéis e ignorantes. Apoiados pela opinião pública, cada vez mais visível e opiniosa, a dedicar fel e vinagre a estes assuntos à falta de maiores preocupações humanas. Mas as questões de orientação sexual, que para mim são da natureza privada e um direito inalienável ao respeito, são também aquelas em que as pessoas tendem a defender, começando por se resguardar definindo-se de acordo com a norma. Tenho sorte, portanto.
As questões que a ética deveria proteger da moral e das insuficiências do direito, camadas sucessivas de elaboração. São as questões da identidade. E do direito à identidade. Todos nós as temos. E das monstruosidades. Aí também posso dizer que todos nós as temos. Sei de que falo quando falo de mim. Também. E aprender os pequenos troços a percorrer de cada vez para conquistar a liberdade.
Uma escola é um cadinho. Tantos e tão diferentes, por serem muitos ao longo dos anos é possível vê-los em perspectiva. Senão uns, outros. Não é assim tão diferente. Há um padrão. Gosto de lhes ensinar a solidão. A solidão mas não a clandestinidade, a fuga. O silêncio e a solidão. A terem a coragem de não se esconder. A falar de si a reflectir em si. Nos outros, mas não como elemento repressivo. A transportar a sua própria gaiola. E a sair dela sempre que for preciso. Diz Schopenhauer que quem não sabe apreciar a solidão, também não sabe apreciar a liberdade. Qualquer coisa como isto. E é aí que quero chegar. À alma desse meu aluno, aluna, ou o que quer que se encontre válido na língua portuguesa para me dirigir a ele. Estar só, se necessário. Contra o olhar dos outros. Contra os outros, só se necessário. Com a mesma falta de preconceitos de sempre, excepto o de que legalmente ele tem um nome e um género, e este último é uma referência de reconhecimento discutível e que o não obrigaria a vestir-se de acordo com este, o que tornaria inútil como elemento constante no documento de identificação. E que olhando para ele por agora, reconheço os paradigmas estéticos comuns ao género que ele repudia.
Esta é uma história no seu início. Para mim – ainda temos muito a conversar. Para ele vem seguramente dos confins da infância em dor e sofrimento solitário. Com os seus monstros por companhia. Mas mais ainda com os monstros dos outros. A preparar-se estes para, nas suas, lhe apontar monstruosidades e outros mimos.

24 Nov 2015

As longas metragens de Jean Eustache, La Maman et la Putain e Mes Petites Amoureuses

[dropcap style=’circle’]L[/dropcap]a Maman et la Putain traz sobretudo a lembrança de uma era que passou, o início do nosso tempo, um em que as mulheres já se não deixam seduzir pelos soldados, um tempo em que o uniforme militar perdeu o seu charme para se ver substituído pelo prestígio do homem de sucesso, os seus carros e o seu emprego fixo.
Quando o nosso herói, Alexandre, no início do filme, pede emprestado um carro a uma vizinha esta diz-lhe, aproximadamente, que o carro não tem o pisca do lado esquerdo e que, para contornar esta falha, inventou um pequeno truque – evitar virar à esquerda. É aí que o filme de Eustache nos convence. Um homem de sucesso não conduziria um carro sem indicador de mudança de direcção, acho eu. Alexandre não tem direcção e esse é o seu segredo e o seu charme.
O que em La Maman et la Putain causa uma nostalgia paralisante é o modo como é usado o tempo. Como pode aquele que era o tempo do ócio e da largueza ter-se transformado, hoje, num tempo dedicado todo ele à utilidade?
Este filme não precisava, além disso, de ter 3 horas para se explicar, mas, no fim, percebemos que a ele se poderiam generosamente juntar mais 3 horas e meia porque esta história, autorizada já longe dos primeiros entusiasmos da nouvelle vague, faz parte de uma fase de confirmação, de uma fase em que se perdeu a necessidade de anunciar um cinema novo com estridência e em que se pode permitir uma auto satisfação.
Os temas, longamente debatidos, são os do costume, o amor, o ciúme e a frequência da cidade, neste caso, como em tantos outros filmes da época, Paris, e, sobretudo, a necessidade imperiosa da liberdade. Aqui a liberdade é a do amor e a do usufruto do ócio.
A imagem é a dos cafés, a dos cigarros constantes, da música e das referências ao cinema e, mais escassamente, ao sistema político. O que mais perturba é a incontornável instalação do tempo burguês, a instalação do tempo comercial e o tópico da pressão social em direcção ao conformismo – que levou à ditadura actual dos produtos gourmet, do design, da correcção política e do desporto.
Por isso este filme teria de ser longo e extremamente palratório, para lembrar como a conversa e os cigarros são essenciais à felicidade. Num dos seus primeiros filmes curtos, Le Père Noël a les yeux bleus, um dos personagens fala de um outro referindo-se-lhe nestes termos: não me consigo lembrar dele senão com um cigarro na ponta dos lábios. Hoje ele serve para percebermos que nos roubaram o tempo.
Não é, como se poderia esperar, mais um filme francês de conversa, mas não é fácil de isolar de onde é que vem a sedução que o envolve.

Jean Eustache realizou, para lá de várias curtas metragens, apenas duas longas, La Maman et la Putain e Mes Petites Amoureuses, respectivamente em 1973 e 1974. Não viveu muitos anos, escolheu suicidar-se com um tiro. Não conheço muitos cineastas que se tenham suicidado com um tiro. Talvez o cinema não seja uma actividade muito séria.

O mes petites amoureuses,
Que je vous hais!
Plaquez de fouffes douloureuses
Vos tétons laids! (Rimbaud)

Mes Petites Amoureuses é menos urbano e menos cool. Não tem jovens de cachecol e o centro das atenções não é um jovem urbano, intelectual e irritante mas um pré-adolescente de cidade de província, acólito de igreja e de ideias fortes.
Pode ser uma história autobiográfica de Eustache mas se não o for sê-lo-á de muitos outros jovens pré-adolescentes de cidade de província. Seja como for, uma infância na província, com os seus odores fortes e uma imobilidade húmida, marca mais que a juventude na grande cidade. É emblema da sua cruel intenção o início irónico do filme, uma canção: (. . .) douce France, cher pays de mon enfance (. . .) mon village (. . .) où les enfants de mon âge/on partagé mon bonheur/oui je t’aime . . . douce France. Será tudo menos doce esta França estática, monótona e triste e é difícil, dado o título do filme, não pensar na infância difícil e cheia de peculiares agressividades do autor do poema que o informa, Rimbaud.
Quando o pobre rapaz é obrigado a deixar a avó e a escola para ir viver com a mãe e um espanhol de semblante duro e sofredor com quem mantém uma relação ainda meio escondida da sociedade local, dá-se o começo do incómodo (a mãe distante) e do fascínio que algumas mulheres lhe causam. O crescimento de Daniel far-se-á de silêncios e de faltas de oportunidade, estas inevitáveis a partir da altura em que a mãe o retira da escola para o pôr a trabalhar.
Se o protagonista de La Maman et la Putain praticamente não se cala durante todo o filme, em redor do jovem Daniel permanece um silêncio que o distingue dos que o rodeiam.
A sentença a que não poderá fugir é declarada por um amigo (Maurice Pialat) do mecânico de motas para onde a mãe o envia para trabalhar: nunca serás mais que um pobre diabo como nós.
Em Mes Petites Amoureuses (muito mais do que em La Maman et la Putain) há uma imensa capacidade de nos dar a ver os perigos que o futuro nos pode reservar, uma imensa capacidade de nos dar a ver como se instala em torno de um jovem talentoso, apodrecenta, uma inevitável desilusão.

24 Nov 2015

Entre o seio e céu

«Sei os teus seios… sei-os de cor»

Alexandre O´Neill

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap] um imenso instante do saber do que a língua tem de fruto, de nascimento, de acrescento, de volúpia e de bem-dizer. É para isso que os poetas eram feitos, trabalhados, identificados, respeitados e quase sempre consentidos na grande esteira da transformação. Para saberem do seio que sabe e ao que sabe o seio, que sabe a algo mais além do que sabor e saber.

Nesse céu límpido das formas que se jogavam em saberes e que nós nos deleitávamos pelo seu amplo sabor, estão inscritos os homens da linguagem, aqueles que fizeram o mais que admirável trabalho de escribas, escritores e professores de uma matéria quase gasosa, quase em éter. Alexandre, o Grande.

Toda a métrica deixada pelos poetas é uma quase noção de firmamento, teciam a metalinguagem e um metadiscurso, uma melodia plena de inventividade rítmica. O aparelho fonador é tão complexo, que para imitir sons coordenados precisamos de um enorme manancial de signos escritos e, depois, adaptá-los com tanta beleza que ficamos atónitos, mas produzir no cérebro os filamentos associativos das fórmulas e signos conhecidos formando outros é sem dúvida o mais maravilhoso.

Um seio amado desta maneira nunca cancerígena, não fica com metástases, não se inunda de vazio… pois que é “tocado” com saber que só o amor consegue. A sexualidade bravia deve ter provocado na anatomia feminina uma tormenta enorme, dado que não há razões aparentes para tanta coisa malsã. Claro que não há poetas em cada quarteirão que façam dos seios cânticos, nem que saibam deles assim, mas deve haver quem os encante, na medida em que são berço longo do mundo.

Há a síndrome do corpo vazio, daquele que fica triste e não responde à sua fórmula natural, que se deixa invadir e matar por exércitos de doenças quantas vezes requisitadas inconscientemente para pôr fim a outra doença que se transformou o viver: não é fácil estar em pé, nem andar de pé, nem amar, nem nascer, nem morrer. Um organismo só está apto quando o cérebro fez bem as suas associações e transmitiu ao todo o poema da vida. Antes disso, há uma imensa falta de coordenação motora e desordem sem fim naquilo que deve ser uma leveza a transpor.

Inundamos os afectos de coisas pragmáticas e tudo o que ficou por escutar nos mata de repente… não gosta a vida de ser desvivida nos seus círculos sacrais… e faz bem. De tanto andarmos podemos ficar insensíveis a uma maré que corre mesmo a nossos pés. Quando tudo gelar estaremos a pensar em brasas acesas num território que não tem fogo, e a memória que estava bem estruturada pode transformar-se em pequenos elencos sem sentido na mente ordenada , que não desarrumando, não gere mais memória do que aquela que armazena de fora, pela sua cabeça adentro.

Estamos numa enorme transformação linguística, mas os meios telepáticos não se equilibram nas orelhas estranhas dos homens… os amplexos laterais são para pendurar fios eléctricos, e fazer de cada orelha um suporte cujo descanso, serve apenas a surdez . Surdo, mas não fechado, nós vamos tendo coisas anatomicamente diferentes… Pensamos é que são doenças e combatemo-las… são doenças, mas não são mortais, nós ainda morremos por outras invasões. Por que temos as narinas dilatadas, por exemplo, e há oxigénio a mais… por que não sabemos ouvir o corpo… daí a raiva incontida contra as cabeças. Se não serve para o resto não tem espaço para o que quer… qualquer coisa assim de brutal ditou a raiva ofensiva contra elas.

Dizer que ainda aqui vamos é admitir uma fraca transformação, mas ela pode até não ser passível de mais metamorfoses. Nós podemos muito bem ter chegar ao máximo possível e a partir daqui haver um ser feito à nossa própria imagem e semelhança. Se, como bem disse Pessoa, «Deus é um Deus de um Deus maior», nós podemos ser os Homens médios de um maior, também. Impressiona-me o grau de atavismo de alguns médicos, ainda… como se fossem uma panaceia do tempo da «Morgadinha dos Canaviais» estão compelidos a uma técnica grosseira da anatomia, mas a felicidade é que vão aparecendo novas gerações que se sente fazerem o melhor de forma completamente nova.

Onde colocar esta medicina portuguesa com botas cardadas de doutores e mãos pesadas de curandeiros? Clínicas onde eles se entretenham a fazer “trabalhos manuais” . Não se podem deitar pessoas fora e temos de aproveitar o que sabem, mas não devemos estar sujeitos a saberes que não foram continuamente actualizados numa prática exigida pelas instituições que representam.

É muito penoso ver-se desaparecer gerações, mas elas, de facto, já não estão disponíveis para nada a não ser aos vínculos que têm e manter uma natureza enraizada a práticas desgastadas. Confrontamo-nos com multidões de paralíticos que não actualizam as fórmulas nem são permissivos a discursos outros. Há gente assim ao pé de nós, que caso estejamos mal , nos podem literalmente deixar morrer. Já não é um problema de liberdade individual, mas de consciência pública. Portugal deve ser o local do mundo onde mais gente se empata uma à outra, dado que quase todos fazem o mesmo, ou seja, optam pelas mesmas profissões.

A matéria “gorda” do entupimento colectivo é uma banha da cobra de tão difícil remoção que se morre sem que o próprio por vezes saiba de quê. Isto também é político, dado que se não fosse um martírio de governações dolosas e impertinentes nas chancelas, não havia tanta miséria e queda, que podem enfraquecer um país até à sua própria diluição.

Egos de gentes que vêm da Covilhã, do Minho, de Loulé, de Valado dos Frades… Gente que não tem a menor formação humanista: engenheiros, técnicos… (a Filosofia desapareceu dos currículos nacionais), toda esta tralha mecanicista ou economicista invadiu os pólos da Governação. E advogados? Há um em cada esquina. Vejamos o resultado prático desta “coisa”.

Claro que é preciso analisar o mercado e mais uma perspectiva sociológica, as leis laborais e governativas, pois que tudo é afinal muito difícil e temos de perder muitas horas a treinar nuns cursos fantasmas leccionados por inaptos, mas as sociedades estão em grande derrocada e todos estes aparentes saberes não dão para a vida das pessoas. As pessoas são, como começamos a ver, o que menos importa às outras pessoas, pois que se não houvesse uma mão cheia de códigos civilizacionais de base nem elas já existiriam.

A fome salva e a fome mata. De tanto laborarmos para a destreza dos bens para alguns o mundo corre agora o perigo de implosão a nível do seu próprio potencial humano, feito a duras penas por épocas e épocas de conquistas. Se a juntar a isto a crise energética vacilar, quem seremos nós, parados, num instante em que estar vivo é o mesmo que nos mexermos desgovernadamente todos os dias?

Lembremo-nos sempre da velha frase Romana «Os deuses enlouquecem aqueles que desejam perder». Pois nunca estiveram tantos condenados à espera da trombeta real!

E nós, os dos seios e os dos saberes, mesmo nus, não somos capazes de fazer enamorar as trevas. Com trevos se fazem as festas e os dons maiores, a nossa vida é uma peça gigantesca do próprio teatro do absurdo e nem Ionesco conseguiria agora descrever a peça inteira deste “puzzle”. Vivemos num conto fantástico para além de Kafka que, ao lado disto tudo, era apenas ilusionista de um imaginário saudável.

Atravessamos como os doidos as Praças, estamos a ir para o lado onde a força se faz e se fizerem mais força ainda nem memória teremos do que pode vir a acontecer. Tecemos o jeito gregário do mal adaptados, mudamos as coisas, mas as coisas não nos mudam mais do que a resistência de a elas nos adaptarmos de olhos vazios face aos abismos reais.
Entre os seios dos Cânticos e dos Poemas de Amor temos um abismo onde já não cabe a nossa anatomia. Já não sabemos o que de cor e de olhos fechados tocamos ….a nossa matéria não é a forma esperada nem a Humanidade sabe disso. Sem os «colos de garça» e os nossos sonhos somos agora, também, matéria apetecida por fomes que não esperámos. A fúria dos comedores de pedras.

20 Nov 2015

Dois pontos

[dropcap style=’circle’]1.[/dropcap] Dei umas voltas por várias cidades da Ásia, grandes e pequenas, mais ou menos modernas. Depois voltei a Macau. E, ao olhar à volta, cheguei a uma conclusão: por aqui não existem turistas. As estatísticas bem me podem gritar que entram 15 milhões por ano. Eu não acredito. E não acredito porque sou como São Tomé. E a verdade é que não os vejo.

É bem possível que Macau provoque nas pessoas estranhos comportamentos. Até aí ainda vou. Mas que os turistas aqui entrem e não vão a lado nenhum, não passeiem, não estejam nos restaurantes, não saiam à noite, desculpem mas isso não engulo. Quero ver os turistas, quero vê-los nas esplanadas, nas lojas, nos restaurantes e nos bares. Como acontece em todas as cidades do mundo.

Logo, quem são os 15 milhões que entram pelas fronteiras? Fácil: alguns são jogadores – a maior parte vem, como sempre veio, de jet foil; outros são uns senhores que têm um comportamento bizarro que consiste em desenvolver uma fixação/paixão por passar fronteiras para lá e para cá. Quem sou eu para julgar as obsessões alheias? Cada um faz o que quer com o seu tempo e se em Macau existe tanta gente a atingir o clímax ao mostrar o passaporte na fronteira, porque não aceitar tão deslocada mas inofensiva mania? A mim só me prejudica na medida em que alonga a fila do lado da China. Mas… nada de grave. Dá para aguentar com um mandarínico sibilar nos lábios.

Aliás, o turismo bem que podia fomentar uma daquelas campanhas que dá prémios, mas desta vez à própria população. Quem encontrar um turista fora das hordas e o apresentar na Praça do Senado, tem direito a uma ida à Torre (de Pisa). Enfim.

[dropcap style=’circle’]2.[/dropcap] Vi num filme um rapazito que mordiscava uma maçã acabada de arrancar de sua original árvore. Não se tratava de um pomar mas de uma dessas árvores semi-selvagens, que se esforçam por crescer e cujos frutos exalam o olor inexcedível desse trabalho. Pensei então que cada vez menos crianças terão acesso a este deleite, simplesmente porque essas árvores são cada vez mais raras. Basta tentar comprar fruta verdadeira em Macau para compreender esta situação. As maçãs não têm sabor, as peras são aguadas. Quanto a pêssegos, uma verdadeira desgraça. Onde estão aqueles exemplares a desfazerem de sumo e vibrantes odores nas nossas bocas? Algures no mundo, talvez, mas não nos escaparates locais. E o que aqui é verdade repete-se em quase todas as cidades do mundo, mantendo a garotalha na mais perfeita ignorância das coisas boas e simples do mundo.

Pensei depois que as gentes de antigamente, as que iam ao mercado e tinham dinheiro para pagar a boa fruta se calhar nem lhe davam valor. Estas coisas são assim. Provavelmente, sou eu e outros que, na falta, gabamos as suas qualidades que qualificamos de excelsas, quando para os antigos não passavam de uma banalidade. Não deixemos, portanto, de apreciar com reverência as nossas actuais banalidades. O seu destino é fazer as delícias dos vindouros. Quando faltarem, sobretudo.

20 Nov 2015

Salvo pela estrutura

(Como seguir a estrutura na hora de escrever um guião é importante)

Thomas Lim

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á uma piada no meio da indústria do cinema sobre guionismo que diz que muita gente assume que, só porque tem alguma experiência de vida e sabe escrever num computador, pode ser um escritor. Bem, ponhamos isto desta maneira: se tiver uma dor de dentes vai arrancar o seu próprio dente? Não. Vai a um dentista que considera bem treinado e experiente e, logo, qualificado para tirar o seu dente. Então, porque é que muitos de nós não pensamos que guionismo pode ser tão complicado quanto tirar o nosso próprio dente? Ambos precisam mais ou menos do mesmo número de anos de estudo na universidade para serem aperfeiçoados.
Nos muitos anos em que trabalho na indústria do cinema descobrir duas formas como as pessoas escrevem um guião para uma primeira longa-metragem. Uma delas é estudar e aprender sobre a estrutura normal de um guião e a segunda é ignorar precisamente essa estrutura e escrever com base na “inspiração”, apenas para criar histórias sem qualquer direcção e com personagens que vagueiam sem objectivo, fazendo coisas sem razão.
Depois de dois anos a escrever em círculos, as pessoas que escolhem a segunda opção normalmente voltam à estaca zero e optam, então, por estudar sobre as estruturas do guionismo. Ou então desistem de vez. O pior é que talvez nunca começaram a escrever porque a sua “inspiração” não foi sequer o suficiente para passarem da inútil acção de falar para realmente porem as palavras no papel.
Há muitos anos eu próprio optei pela segunda forma. Honestamente, preferia ter sido menos rebelde. Quem me dera ter percebido que, só porque me sentia uma “artista”, isso não me dava o direito de escrever apenas com base na “inspiração”. Se soubesse isso, tinha-me armado com mais alguns guiões completos, pronto a mergulhar em reuniões com os produtores e investidores de Hollywood.
Posto isto, vamos concentrar-nos no conceito de fazer as coisas com base numa “estrutura”. Atrevo-me a dizer que pouca gente (se calhar ninguém) à minha volta leva uma vida com menos estrutura do que eu. Nunca tive um rendimento estável na minha vida – desde o início da carreira como actor de teatro quando tinha 21 anos até me tornar realizador. Não só não ganhei dinheiro, como fui mudando de país nos últimos 14 anos.
Comecei a representação em teatro em Singapura em 1999, antes de mudar para Londres em 2002 para frequentar as aulas de representação na universidade. Depois disso, fiquei algum tempo em Pequim (em 2004) para me tornar um actor de televisão e filmes na China. Depois, mudei-me de novo, para Macau, onde em 2008 fiz a minha primeira longa-metragem, “Roulette City”. Como o “Roulette City” teve o seu primeiro lançamento commercial no Japão, comecei a viver em Tóquio em 2012, antes de me mudar para Los Angeles este ano. Um círculo completo, já que isto me faz aperceber que consegui realizar o meu sonho de me mudar para Hollywood antes de ter completado 40 anos.

Nos últimos 14 anos, recusei-me a viver a minha vida com base em qualquer estrutura particular. Mas, no que toca a escrever um guião, a minha attitude é precisamente a contrária: obedeço à estrutura e vou-vos dar exemplos pessoais para perceberem por quê…
A estrutura salvou-me de perder oportunidades.

Exemplo 1: Há uns meses, conheci uma produtora chinesa em Los Angeles. Tínhamos backgrounds semelhantes e queríamos trabalhar juntos numa longa-metragem que ela iria produzir, comigo como o realizador/roteirista. No entanto, esta produtora passou apenas algumas semanas em Los Angeles e ambos sabíamos que ia ser difícil manter o interesse se estivéssemos geograficamente separados, sem uma história ou um guião que nos fizesse sentir parte dele. Mas, como é que iríamos escrever um guião em tão pouco tempo? Aqui está a forma como a estrutura nos salvou.
Todos os cineastas no mundo sabem a estrutura geral do guionismo (que está dada como funcional quase em cem anos de excelência em Hollywood). Então, imediatamente depois de decidirmos sobre o tema e a história geral, eu e a produtora passámos imediatamente a preencher os “espaços em branco” do guião. Rapidamente conseguimos imaginar as acções que todos o ‘turning point’ ou acções precisavam – todas com base no conhecimento comum de como são construídos bons guiões.
Em três semanas, conseguimos fazer um outline completo de cada “ritmo” do filme – onde conseguimos ver, claramente, o que acontece entre os minutos 1 a 3, depois dos 4 aos 6, etc. Conseguir isto em tão pouco tempo fez-nos sentir muito bem com a nossa colaboração um com o outro e, sentir isso quando estamos na fase inicial de tranalhar com alguém que mal conhecíamos antes é uma das melhores sensações que podemos ter.
Depois deste acontecimento, olhei para trás e pensei: se um de nós não confiasse ou conhecesse na estrutura do guionismo, provavelmente estaríamos presos na fase da tal “inspiração” até ao dia em que a produtora fosse embora de Los Angeles. E seria difícil de imaginar que o nosso projecto continuasse a andar para a frente connosco a viver em continentes diferentes. Então: graças a Deus que existe uma estrutura para escrever um guião.

Exemplo 2:
Nesse mesmo período de tempo, submeti uma sinopse de um filme de terror à competição de guionismo Asian American Fellowship, do muito estimado Sundance Film Festival nos EUA. Sundance é tão conhecido que uma pessoa tem de esperar que a competição vá ser muito dura. Rumores dizem que há apenas 1% de chance para que se alguém se consiga qualificar para qualquer das competições no Sundance. Então, não pensei muito na entrega que tinha feito depois de a enviar, para evitar qualquer desapontamento que poderia surgir. Para minha surpresa, recebi um email do Sundance que me dizia que consegui entrar para a segunda ronda do festival (que é também a última!). Para isso, foi-me pedido que fizesse o upload do guião inteiro do meu filme em dez dias, que era o limite para a entrega.
Nesse momento, não soube se deveria sentir-me feliz porque entrei ou deprimido porque não tinha um guião completo! Então, aqui esteve, novamente, a estrutura para me salvar o dia. Nos dez dias seguintes, cheguei a Macau e escrevi, escrevi, escrevi furiosamente no quarto de hotel onde estava, quase nunca deixando o quarto para comer e dormindo muito pouco.
Consegui novamente ter um alinhamento completo de cada “ritmo” em dois dias e acabei um guião de 1010 páginas nos oito dias seguintes. Fiz o upload escassas horas antes do limite. Ufa!
Claro que sei que um guião escrito em cima do joelho em tão pouco tempo está longe de ser espectacular, mas ao menos consegui manter as minhas esperanças. Se o meu roteiro for seleccionado de novo, o Sundance produz o filme para mim e comigo.
Resumindo, os dois últimos meses mostraram que, se eu não soubesse da estrutura de guionismo como a palma da minha mão, teria perdido duas grandes oportunidades que surgiram do nada e que me apanharam de surpresa. E, de acordo com veteranos realizadores de Hollywood, as melhores oportunidades que podem levar a nossa carreira ao próximo nível são aquelas pelas quais não estávamos à espera.

20 Nov 2015

Heart bar e lista

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o segundo andar do Ascott, estalagem de abertura recente e causadora de fracos entusiasmos, abre-se um amplo bar de zonas diversas com balcão e espaço para multidões. Chama-se Heart.
Umas grandes portas anunciam um terraço de dimensões consideráveis, com várias zonas de sofás próprios à bebida e ao convívio em ambiente de luzes mornas, lânguidas, predisponentes a indecências.
A sua administração parece deficiente. Não houve uma abertura pública a sério. Ninguém conhece o sítio e os corredores e elevadores que nos levam ao bar parecem ter sido abandonados.
O menu tem pequenos erros e nas suas prateleiras exibem-se muitas bebidas que não constam da ementa que é, no mínimo, para um sítio desta dimensão, ridícula. Apenas contém 2 ou 3 entradas para cada categoria: cervejas (uma checa), vinho tinto ou branco, champagnes, espíritos, cocktails (muito poucos e escolhidos sem imaginação, acho que 3), e um tíbio etc.
Não há melhor sítio ao ar livre que o Heart, nem nenhum outro bar de hotel em Macau consegue receber grupos grandes como este pode vir fazê-lo. Tendo testemunhado a ineficiência do serviço estremeço, divertido, ao pensar no que aconteceria se os serviçais aqui empregados se vissem confrontados com uma invasão de massas sedentas. Aqueles não parecem perceber muito bem o que se passa à sua volta.
Há cerca de três semanas, a propósito da competição da Drinks International que elege o melhor bar do mundo, notou-se que esta eleição toma como critérios principais a qualidade dos cocktails, a sua constante re-invenção, a hospitalidade ou a oferta generosa de algum tipo particular de bebida, como acontece com o uísque no Macallan. Nenhum destes requisitos se atinge no Heart. Não há neste desaproveitado bar bebida nenhuma que se não alcance facilmente em casa, mas não existem, em Macau, sítios que possam receber ao ar livre como este poderia fazê-lo.
Sendo assim, a antiga lista de bares de hotel, conseguida nesta página em inícios de 2015, sofre ligeira alteração. Perde duas entradas e ganha outras tantas:

1. Whisky bar, Hotel Star World – balcão longo, bebidas generosas, excelente varanda, uma geografia variada, staff simpático, competente e com vários anos de serviço, dos únicos bares de Macau em que há uma clientela habitual e ruidosa – marca que o traz a primeiro lugar. Tem uns snacks muito decentes e boa localização. Há noite enche-se de clientela local. Contras: decoração de uma banalidade exemplar.
2. Ritz-Carlton bar and Lounge, Hotel Ritz-Carlton – Bom nível de bebidas mesmo que não em quantidade. Pequena especialização numa bebida, o gin, dá um rosto próprio. Os mimos que o pessoal de serviço presta demonstram dedicação séria. Design conservador mas com personalidade. Abre às 10 da manhã. Contras: é longe.
3. Macallan, Complexo Galaxy – excelente serviço e hospitalidade, boas bebidas feitas por barmen muito competentes e hospitaleiros, talvez os melhores de Macau. Balcão único, curvo e confortável. Invejável lista de mais de 400 uísques de diversas origens. Pode encomendar-se comida do restaurante italiano contíguo. Contras: temática deslocada em Macau, com lareira.
4. Lan, Hotel Crown Towers – uns janelões muito bem lançados, bom serviço, desenho cuidado, pé direito altíssimo. Por vezes tem pianistas japonesas. Generosa carta de vinhos. Contras: não tem balcão. Para algumas pessoas ou desígnios poderá ser demasiadamente aberto ao lobby do hotel. Encontra-se presentemente junto de intermináveis obras, o que lhe diminuiu consideravelmente o apelo.
5. Convívio Agradável, Hotel Sofitel, Ponte 16 – Excelente serviço e sentido de hospitalidade, bebidas de qualidade. Não é longe do centro e tem 2 mesas com vista triste para a Avenida Almeida Ribeiro. Tem comidas. Contras: coitadinho, é tão feioso que é quase cómico.
6. Bar Azul, Hotel Four Seasons – expressa desejo por um desenho próprio, boas bebidas, próprio para um encontro íntimo, injustamente desconhecido. Contras: muito vazio, ambiente triste, excepto em dias de prova de vinhos que se cumpre, habitualmente, às sextas-feiras.
7. Windsor, Hotel New Emperor – tem um longo balcão e localização imbatível, no centro da cidade. Há noite acolhe uma fauna muito local. Contras: tem 3 anos e parece que tem 13, decoração inspirada no Centro Comercial Imaviz, em Lisboa.
8. Heart, Hotel Ascott – Só figura nesta posição porque tem um terraço de sedução imbatível. Contras: ementa muito fraquinha e serviço deficiente. Não parece ter clientes.
9. Cinnebar, Hotel Wynn – tem espaço exterior, staff competentíssimo e amável, boas bebidas, excelente ginger margarita. Contras: o tipo de freguesia, demasiado aberto ao corredor do hotel que o acolhe.
10. Cristal, Hotel Wynn Encore – desenho próprio, sofás confortáveis, excelente ginger margarita (partilha lista com o Cinnebar). Tem um candelabro do século XIX. Contras: tipo de freguesia, demasiado aberto ao exterior.
11. Vida Rica, Hotel Mandarin – boa qualidade de serviço, fica num dos 2 hotéis de Macau que não é piroso, tem vista e sofás muito confortáveis. Contras: construído em profundidade torna-se desconfortável navegá-lo. É irritante, ninguém sabe porquê.
12. 38 Lounge, Hotel Altira – tem vista e varanda, exibe vontade de mostrar desenho, fica num dos 2 hotéis de Macau que não é piroso. Contras: não tem balcão, tem problemas de iluminação e uma atitude indecisa.
13. Lyon’s, Hotel MGM – pouco que se recomende para lá de ter um balcão enorme e ser relativamente central. Bom para um copo solitário de fim de tarde ao balcão. Contras: quase tudo.

Nota: O Crystal Piano bar, Galaxy – tinha balcão convidativo, vista junto dos seus janelões, staff muito acolhedor e Saketinis amorosos. Já não existe. Penso que o Jaya, no Hotel Sheraton, também já não recebe.

17 Nov 2015

Europa 2015

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s mitos são como os sonhos, no dizer de Calderon de la Barca: “eles sempre têm razão e não há maior dor que a de não poder amar”. Nós, paradoxalmente, nascemos numa cultura de Amor, na tradição judaico-cristã. O facto de parecer ter sido um insucesso deve-se mais aos novos preconceitos que ao registo da herança. Vem isto a propósito da Europa, esse continente de fronteiras fluídas e instante sombrio, da flutuação da sua deriva, do seu rápido desaparecer como modelo de uma virtude já quase esquecida: a soberania.
Os europeus já devem estar em minoria nos seus próprios territórios, com populações envelhecidas, uma decadência e esvaziamento notórios. Os europeus são, enquanto população autóctone, uma população doente. Doente animicamente, esvaziada, logo que o mito do dinheiro e da abundância para todos também se foi. Subitamente ficaram mais pobres, e tanto mais pobres porque os grandes mitos se foram, as ilusões e a sua laicidade ajudou a criar esferas de um imenso vazio onde o Catolicismo parece uma ressonância sem sentido. Ficámos mais tristes, mais pobres e não temos Deus. O Diabo em que acreditámos traiu-nos e também não quis saber de nós. Esse belo deus do Capital só quer saber de alguns e iludiu com força mortal os que esperaram o fim das provações.
As coisas parecem pacíficas, sim, mas sente-se uma estranha tensão, uma quase nuvem de bolha flutuante que poderá rebentar a um qualquer momento, aquela paz que antecede os grandes temporais. Existe efectivamente um “ vapor” escuro no ar dos céus europeus, para não falar na imensa truculência dos povos a norte, cujo louro define quantas vezes o que tão “civilizadas” estruturas são capazes nos momentos especiais de fazer e pôr em prática.
Dois mil e dezasseis vai ser o ano da reedição da tão esperada (imaginem) «Mein Kampf», o grande tratado criminal da era moderna e a negação da nossa identidade humana universal. Esta reedição não será de todo inocente, mesmo com o trabalho explicativo das notas introdutórias, nem ausente de sentido. Num instante destes era tudo o que não precisaríamos, mas a Europa ama os seus Infernos: o editor não tem dúvidas, o texto deve ser publicado – eu sou favorável à publicação de «Mein Kampf» pois é um documento histórico que influenciou milhões de pessoas.
Claro, nós nem devemos fazer juízos de valor, História é isso mesmo, e as pessoas como bem sabemos são seres influenciáveis, o que o rebanho pensa não é História, mas sim aquilo que melhor se adapta às circunstâncias de alguns. No entanto, essa pobre gente pensa que pensa, mas efectivamente há quem a pense melhor: e diz mais: « é preciso deixar algum tempo para esta iniciativa se organizar pois que não se trata de uma iniciativa de mercenários, mas de uma decisão colectiva de historiadores».
Nós, leitores, somos como bem se sabe personagens incautas, lemos o que os grandes grupos de “historiadores” acham, porque eles pensam em tudo, as notas vão ser talvez de uma incisiva e subliminar tendência a um nazismo mais limpo, menos húmido, mais seco, rápido e que se não consubstancie nas nossas células nervosas, pois há que secar os pântanos e preparar para o electrochoque de néon que as mentes não mercenárias assim desejam. Talvez que Hitler até seja demasiado grotesco face ao “inteligente” esquema historicista em curso e não passe de um palhaço amestrado e ainda cheio de vastos oceanos de emoções.
Nós vivemos nesta Europa e não na outra, aquela que nos dizem outras histórias de encantar, vivemos qualquer coisa entre o impensável fortemente provável, num espaço de tempo tão veloz que melhor será não focarmos demais as atenções: entre o mito da felicidade e as fotos bem-sucedidas, o glamour, e toda essa trapalhada e a vida dos cidadãos, há diferenças maiores que entre a água de Marte e a água da Terra, mas o Sol de facto tapa tudo.
Seria de mau gosto não relevar aqui o prazer estético que foi as cabeças com lenços das mulheres islâmicas, lindas, de calças, de tudo o mais, mas castamente e rigorosamente enleadas nas suas decentes silhuetas. Ao lado da mulher europeia, de cabelos em pé, pintados, despenteados, são figuras dignas de mulher, o não reparar o quanto me faz feliz os judeus ortodoxos passeando-se com os seus tefilins, kiipás, livros de orações, e os islâmicos rezando descalços numa qualquer praça ou estação, é uma paisagem de uma imensa civilidade ao contrário das expressões materialistas de efeito cartesiano. É uma revelação e um maravilhamento. Digo judeus e árabes, dado que não se vêem católicos, freiras, padres, monges, nem se sabe bem o que trajam, no corpo e na alma. As imponentes catedrais não tardarão a ser readaptadas para o Islão (nada que não se tivesse já feito no sentido inverso –bem pensado, aliás, a ver pelo carnaval de imagens e coisas que são típicas manifestações dos povos bárbaros cristianizados), as duas outras religiões são iconoclastas e vão partir a estatuária e deitar para um canto aquela quantidade de abominações que é a representação de Deus em fascículos. Todo o ser que ora é digno de amor.
Poder-se-ia pensar numa grande Babilónia, já que somos uma cidade única, as coisas estão unidas umas às outras formando a Cidade, todos juntos repartindo o chão, mas creio que nos abeiramos também de uma supra catástrofe humanitária cujos contornos não nos pode ser dado conhecer. Pareceu-me de uma beleza trágica!
Bela, só mesmo a exposição de Chagall, no Museu de Arte Contemporânea de Lille no primeiro dia da apresentação. Todas as mais representativas obras ali estavam à distância de um beijo, ou de uns olhos marejados de quentes lágrimas… a delícia de uma música em forma de pintura e toda a sua orquestração de maravilhoso e santo, de terno e bom, de féerico e onírico; Chagall é um menino, meio anjo, meu homem… As cartas a Man Ray, aos pais… tudo nele é absolutamente Poesia. Ele não esqueceu de reintegrar Jesus na sua tribo e fá-lo com a beleza de um grande artista: integra-o na cena ao lado dos seus. É um movimento espiritual maravilhoso que dá um efeito estético inaudito. Não estamos à espera que tudo numa tela se mova de dentro para fora e de fora para dentro de maneira tão integrada. A dança, a união, os pés sempre no ar (para quem não tem terra, os pés devem de facto ser asas) a imensa ternura do Anjo Azul, o profeta Elias num carro rumo ao céu de fogo a um cantinho da memória das coisas, o rei David, a sua harpa, tudo é música, tudo isto pertence ao sonho profundo onde brota movimento e cor.O seu olhar tão límpido, também- como um girassol- o grande plano do seu rosto iluminando o grave Outono europeu. São estes os maiores momentos.
Nada nos surpreende mais do que aquilo que conhecemos ou julgamos conhecer, pois é da intimidade que nasce a voz nascente das coisas transformadas. Se nada conhecemos, nada nos surpreende, porque o novo é em si matéria pobre, precisamos de conhecer para encontrar pontos de surpresa, tanto, que por momentos, pensamos em todas as direcções do real e o que é de facto uma realidade.
O deus cornígero que raptou Europa fê-lo por razões sem dúvida apaixonadas… disso nos dá conta a imensa arte pictórica, pondo-a numa posição de quem gosta do dorso do amante raptor. Assim ela me pareceu na sua beleza de velha matrona, ainda lúdica e robusta, mas sem a força de inspirar e de se refazer da “gordura” que foi acumulando na sua própria estrutura. É agora a deusa velha de um panteão de velhos que se entretém vagamente nos últimos deleites, nem que seja um rapto estratégico para alimentar a gula e a luxúria que por vezes ficam ridiculamente mal, mas, que há muito sabe que outras mais belas deusas a substituíram. Neste caso presente, uma ocupação sem freio nos seus domínios e salões onde diz pouco e nada sabe resolver.
Estejamos sempre atentos ao Crepúsculo dos Deuses, se o Doutor Fausto nos aparecer não tenhamos medo: ele espera como o deus das auroras, também e mais do que nunca, o seu alvorecer.

16 Nov 2015

O primeiro Grande Prémio de Macau

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or iniciativa de três residentes de Macau, Fernando de Macedo Pinto, Carlos Humberto da Silva e Pires Antas, na Primavera de 1954 ficou resolvido realizar-se uma corrida entre amigos. Mas à ideia inicial de uma prova de regularidade-velocidade veio-se juntar, pelo entusiasmo de Paul du Toit ao ver a qualidade do traçado do circuito e a parecença com o do Mónaco, a realização de uma corrida de velocidade. Colocada como primeira hipótese, uma prova de resistência de 24 horas, tipo Le Mans, mas por não haver carros suficientes, pensou-se depois numa corrida de duas horas, o que não despertava grande interesse devido às grandes despesas na vinda dos carros de Hong Kong. Paul du Toit conseguiu convencer a organização a pensar na realização de um Grande Prémio de carros e garantiu que, caso viesse a materializar-se esse projecto, só de Hong Kong viriam pelo menos vinte concorrentes com os seus respectivos carros. Carro vencedor de Ed Carvalho Museu GP
O programa foi apresentado por Carlos H. da Silva em 17 de Julho de 1954, na conferência de imprensa no café do Hotel Riviera. Além de falar na prova de regularidade-velocidade para comemorar a criação da Delegação de Macau do Automóvel Clube de Portugal, foi ainda referida a realização do Grande Prémio de Macau. Na reunião encontravam-se ainda outros quatro entusiastas do automobilismo, Srs. Capitão Júlio Augusto da Cruz, Capitão-Tenente Pires Antas, Agente Técnico Macedo Pinto e Dr. António Nolasco da Silva, os fundadores da Delegação de Macau do A.C.P.
Uma semana depois, já se explicitava ser uma corrida de velocidade, tipo Le Mans reduzido e o vencedor absoluto era quem fizesse o maior número de voltas ao circuito, durante quatro horas consecutivas. A corrida, denominada Grande Prémio de Macau, realizar-se-ia a 31 de Outubro, sendo o circuito, então descrito com 3,9 milhas, denominado Circuito da Guia. Como estes cinco organizadores não poderiam, só por si, dar conta do recado, solicitava-se aos desportistas e entusiastas por automobilismo, que viessem colaborar para as funções de juízes, fiscais, directores, adjuntos, etc..

Regulamentos para a corrida

De tal maneira foi grande a receptividade a nível regional que, todos os quartos dos hotéis da cidade nos finais de Setembro estavam já reservados para o fim-de-semana das corridas. Por isso, no início de Outubro, apareceram nos jornais de Macau anúncios solicitando a quem tivesse quartos de casal e singulares para alugar nos dias 29, 20 e 31, que contactasse com o Dr. António Nolasco.
Os regulamentos da prova, divulgados no princípio de Outono, referiam que para a prova do Grande Prémio poderia participar qualquer Carro de Turismo, de fabrico corrente, ou qualquer carro de desporto ou especial, entendendo-se por carro de desporto, o que é vendido pela fábrica sob tal rubrica, com ou sem modificações introduzidas pela mesma fábrica e por carro especial, um carro de fabrico corrente modificado pelo concorrente da forma que melhor entender para melhorar o seu rendimento. As viaturas seriam divididas pela sua cilindrada. As inscrições gratuitas para o Grande Prémio deveriam dar entrada até ao dia 11 de Setembro, mas de 12 a 22 de Setembro seria de $50,00. Só era permitido usar gasolina 85/90 octanas.
Os condutores eram prevenidos de que lhes estava vedado qualquer auxílio prestado por estranhos, sob pena de desclassificação. As viaturas seriam devidamente inspeccionadas pelo Clube, podendo exigir aos concorrentes que obedecessem aos requisitos julgados indispensáveis, sendo excluído das provas quem não obedecesse. Seriam permitidos dois corredores por cada viatura.
O percurso com partida do Porto Exterior, frente à Ponde N.º 2 da Capitania dos Portos, seguia pela Estrada de S. Francisco, Estrada dos Parses, Cacilhas, Ramal dos Mouros, D.ª Maria, Rua dos Pescadores, Macau-Seac, vindo a acabar na Avenida Oliveira Salazar, no ponto da partida.

Locais para assistir às provas

Ao longo do mês de Novembro, nos jornais apareceram avisos a proibir as pessoas de atravessarem a pista do circuito durante as horas de treino e das corridas, a não ser pelas pontes. Pedia-se a quem tivesse cães, porcos, cabritos, para evitarem a todo o transe que os mesmos atravessassem a pista, porque poderiam ser igualmente a causa de desastres de funestas consequências. A entrada dos espectadores far-se-ia por uma única via, situada junto da Calçada de S. Francisco onde funcionariam as bilheteiras, devendo os espectadores atravessar uma ponte dupla construída para esse fim. Havia duas outras pontes mais pequenas, uma junto do Ramal dos Mouros, para uso da unidade militar ali aquartelada e outra, junto do posto central, para uso dos comissários e director de corrida. Na Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, já dentro da pista e sem perturbar o movimento no circuito, circulariam cem triciclos para uso exclusivo dos espectadores.
Em frente ao posto náutico (antigo pavilhão da Pan-Americana, hoje ao lado do Hotel Casino Waldo) foram construídas quatro bancadas, cada uma para quinhentas pessoas, sendo duas delas pagas pelo Sr. Ho Yin. Os bilhetes começaram a ser vendidos no dia 25 de Outubro na Firma H. Nolasco & Cia., Hotel Riviera e Pousada Macau. Na bancada central, o preço era de $7,50 e nas laterais de $5,00. Havia ainda, no recinto do Clube Náutico, por acordo com a Comissão do G.P., cadeiras a $2,50 cada uma, com mesa e $1,50 sem mesa, tendo os sócios entrada livre no Clube. Em toda a extensão dos terrenos conquistados ao mar no Porto Exterior, desde S. Francisco até as bancadas, havia lugares para peões, ao preço de $0,50 por pessoa. Junto das bancadas vendia-se farnéis com sanduíches, bolos, fruta e bebidas, a preço acessível.
Entre a bancada central e a primeira bancada lateral funcionavam os poços dos automóveis, para os mecânicos ali fazerem os consertos, colocar combustível e outras beneficiações nos carros das provas durante as corridas. Para os representantes da Imprensa estavam reservados lugares junto ao Posto Central, podendo eles e os fotógrafos, quando munidos dos emblemas, servir-se da ponte levantada junto do posto e destinada aos juízes das provas. O posto central, instalado junto do local da partida, era onde os locutores davam ao público todos os pormenores segundo o andamento das corridas, existindo aí o quadro com a classificação dos corredores. À volta de todo o circuito havia ainda quatro postos de ambulância, nove de remoções, quatro de socorros (incêndio), dez postos sinaleiros e treze de telecomunicações, ligando estes directamente ao posto central, onde se encontravam os comissários, o director de corrida e outros juízes de provas.
No dia 28 de Outubro, chegaram de Hong Kong os primeiros cinco carros participantes nas corridas e os restantes vieram no dia seguinte.

O Primeiro Grande Prémio de Macau

Chegava o tão desejado 31 de Outubro de 1954. Os treinos tinham-se efectuado no dia anterior, pela manhã entre as 8 horas e as 9:30, pois foram adiados uma hora, e na parte da tarde, quinze minutos após terminada a prova de regularidade-velocidade, realizaram-se durante mais uma hora e meia. Dos vinte e cinco concorrentes que se tinham inscrito, três tinham desistido, um outro encontrava-se em Inglaterra e o quinto, de Hong Kong, sofrera um grave desastre. Assim, no primeiro dia de treinos, no sábado 30 de Outubro, estiveram vinte pilotos mas, devido a três deles sofrerem acidentes, ficaram dezassete para realizar os treinos do dia seguinte. Eram eles, conforme a ordem que observariam na partida, na categoria de carros de desporto ou especiais: Pennels, número 9, num Austin Healy 100; com o n.° 7, Bell num Morgan; seguiam-se os concorrentes a pilotar um Triumph TR2: Reginaldo Rocha n.° 14, Lauder n.° 10, Paul du Toit n.° 8 e Eduardo de Carvalho n.° 5; a correr num M.G. Special, Macedo Pinto n.° 11. Já na categoria de carros de turismo: White n.° 25 e Wilson n.° 2 pilotavam um Riley 2 ½; a conduzir um Ford Zephyr estavam Ferry n.° 18, Roseveare n.° 12 e Fong n.° 3; Reynolds n.° 17 guiava um Citroën e Rediern Steane n.° 26 um Hilman; Astwood n.° 20, Robert Ritchie n.° 19 e Wen Lenard n.° 4, conduziam um Fiat 1100. Todos os corredores tinham que completar pelo menos uma volta em treino oficial, conduzindo o carro da prova em que se inscreveram. Já nos treinos dessa manhã, realizados das 8 às 9 horas, mais dois carros ficavam pelo caminho. gp1954
A prova, anunciada para começar ao meio-dia, era aguardada com enorme interesse por milhares de espectadores. Meia hora antes de começar, estavam pilotos e viaturas no parque automóvel e por ordem do juiz de partida, foram colocados os quinze carros nas suas posições. Primeiro os carros de desporto e depois os carros de turismo, seguindo a ordem da cilindrada, mas todos paralelos uns aos outros e com a frente voltada para o mar.
Com os concorrentes de pé em frente aos carros respectivos, pois a largada era tipo Le Mans onde todos partiriam em simultâneo, após os intervalados três sinais, de minuto a minuto, dados pela sereia para iniciar a prova de quatro horas o Governador baixou a Bandeira Nacional, dando a partida.
O vibrante relato foi narrado no Clarim de 4 de Novembro por S.F.: “Ao sinal de largar, correram todos para os carros, uns saltando para dentro destes, outros, abrindo rapidamente a portinhola ao mesmo tempo que punham o motor a funcionar. Esta emocionante partida valeu por todo o resto da prova.”
Com uma rapidez de relâmpago, o corredor G. J. Bell, num Morgan de 2088 c.c., em menos de 30s já se encontrava no circuito. A seguir, largaram dois carros de turismo, depois o Triumph de Carvalho, seguido de mais dois outros da mesma marca. O Austin conduzido por R. Pennels, o carro mais potente da prova, com 2660 c.c., perdeu imenso tempo na largada, assim como o M. G. Special do único corredor de Macau, Macedo Pinto, que, segundo contou depois, no meio da excitação se esquecera de destravar o carro.
O Morgan, rapidíssimo, tomou logo a dianteira, fechando a primeira volta com quase um terço do percurso de avanço sobre o segundo. Porém, antes de fechar a 5.ª volta, ao passar junto da guarita que fica na curva do reservatório de água, saiu-lhe uma roda ao carro, vindo a ficar inutilizado para o resto da prova. Bell, contudo, nada sofreu pois, a viatura, apesar da velocidade que trazia, vinha encostada ao muro do Porto Exterior, tendo o condutor a presença de espírito de não largar o volante e conduzir o carro travado até parar completamente, mas já na rampa que desce para a água. Numa excelente prova de desportivismo e cavalheirismo, Paul du Toit, ao passar junto da bancada central, antes da sua 5.ª volta, abrandou a marcha para dizer à esposa de Bell que estava tudo bem e nada acontecera ao marido. Com isto, Toit perdeu uns quarenta segundos e para a sua frente passaram alguns concorrentes.
A prova continuou com o Austin de Pennels na dianteira, seguido dos Triumph. Atrás vinham os carros de turismo comandados por Ritchie e entre eles, o MG de Macedo Pinto. Contudo, à 8.ª volta Pinto achava-se à frente de todos os carros de turismo. À 11.ª volta, Pennels parou o Austin junto dos poços, para substituir uma roda. Passou então a comandar o Triumph n.° 5 de Carvalho, seguido por Toit n.° 8 e Rocha n.° 14. Atrás, vinha Pinto n.° 11 e Ritchie n.° 19, estando os restantes mais atrasados, com Lenard n.° 4 na cauda.
Tendo completado a 14.ª volta, o Austin de Pennels sofreu um acidente perto da ponte em frente ao Quartel de S. Francisco e ficou inutilizado para o resto da prova. Valeu a perícia do condutor que, com presença de espírito conseguiu, após manobras dificílimas, tirar o carro da direcção da área onde se encontravam dezenas de espectadores, acabando por embater contra um poste.
No circuito havia agora treze carros. Entre o n.° 5 de Carvalho e o n.° 8 de Toit travava-se luta tremenda para conquistar o comando. O n.° 5, não largava a dianteira, nem o n.° 8 o seu intento de o ultrapassar. Luta que manteve a assistência emocionada. Entretanto, Pinto, n.° 11, prosseguia na prova com uma grande regularidade e perdendo sempre terreno seguia o Triumph de Rocha n.° 14. Atrás, vinha Ritchie sempre fugindo dos restantes. Entre estes, salientam-se o Fiat 1100 de Astwood e o Hillman de Steane n.° 26.
A cerca de duas horas da prova, o efectivo dos carros em competição baixou para doze, em virtude da desistência do n.° 25, um Riley conduzido por A. White, o qual teve uma avaria mecânica, depois de completadas vinte voltas.
Até ao fim da prova não se registou mais nenhuma desistência nem acidente. Digna de menção foi a perícia do Capitão J. Ferry, n.° 18, num Ford Zephyr, que fez as últimas trinta voltas sem travões no carro, continuando a prova sempre na mesma cadência. De todos os carros, os únicos que não pararam nenhuma vez junto dos poços foram os três conduzidos pelos portugueses, Eduardo de Carvalho, Reginaldo da Rocha e Macedo Pinto.
Esta descrição foi baseada, com ligeiras diferenças, do que o repórter S.F. fez da prova e seria uma falta ficar esquecida, de tão viva é a sua narração.
Ao fim de 4 horas 3 minutos e 19,1 segundos de prova, a bandeira de xadrez foi mostrada à passagem do Triumph TR 2, n.° 5, conduzido pelo português Eduardo de Carvalho. Estava encontrado o vencedor absoluto do 1.° Grande Prémio de Macau, que, após a volta de consagração, recebeu a taça das mãos de Sua Exa. o Governador, que a mandara fazer em Lisboa e custara cerca de $1200. Já a casa “Omega”, ofereceu-lhe um relógio de mesa. Tinha sido esta marca a emprestar os cronómetros usados nas provas.

Classificação por categorias

Assim, nos carros de desporto ou especiais, o primeiro lugar foi do português Eduardo de Carvalho que deu 51 voltas, cobrindo a distância de 319,77 km em 4 horas 3 minutos e 19,1 segundos, à velocidade média horária de 49 milhas. A velocidade máxima foi de 95 milhas atingida entre o reservatório e as bancadas e a mínima, 10 milhas, na curva entre Dona Maria e a Rua dos Pescadores.
Em segundo ficou Paul du Toit, num “Triumph TR 2”, com 51 voltas em 4 h., 4m., 46 s., à velocidade média horária de 48,8 milhas, gastando mais 1 minuto e 27 segundos que o vencedor. Em terceiro, Reginaldo da Rocha, em “Triumph TR 2”, com 50 voltas em 4 h. 1m. 55,5s., à velocidade média horária de 48,4 milhas. Em quarto lugar, o único macaense que correu no 1.º Grande Prémio de Macau, Fernando Macedo Pinto, no seu MG Special de 1100 c.c., com 48 voltas feitas em 4h. 3,4 s., à velocidade média horária de 46,8 milhas, apesar de ter um carro com muito menos potente, 47 cavalos; teve como mecânico Joaquim Vale.
Já nos Carros de Turismo, o primeiro na Classe B, para carros com cilindrada entre 750 a 1100 cc., foi Robert Ritchie em Fiat 1100, com 48 voltas, em 4h. 1m., 57,6 s., à velocidade média horária de 46,4 milhas. Na Classe D (de 1501 a 2000 cc), o primeiro foi D. N. Steane, em Hillman, com 46 voltas, em 4h. 1m. 29s. à velocidade média horária de 44,6 milhas. Na Classe E (de 2001 a 3000 cc), ficou em primeiro K.O. Mak num Ford Zodiac, com 45 voltas em 4h. 01m. 56s., à velocidade média horária de 43,5 milhas.
Foi tal o entusiasmo com estas corridas, que nunca mais se deixou de realizar o Grande Prémio de Macau.

13 Nov 2015

O guião de Hollywood VS o guião de Macau

POR THOMAS LIM

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Setembro de 2015 tive a honra de ser convidado pelo Instituto de Estudos Europeus (IEEM) e pela Creative Macau a regressar à RAEM pelo segundo ano consecutivo, para conduzir um curso de guionismo durante duas semanas. O que me deixou, contudo, ainda mais entusiasmado foi o facto das inscrições terem chegado ao limite máximo de 15 alunos dias antes do prazo final. De acordo com o IEEM, entre cinco a sete pessoas viram a sua entrada negada, infelizmente, porque não havia mais espaço. Sem dúvida que estes números – além de me fazerem sentir apreciado e feliz – provam que as pessoas de Macau percebem a importância do treino e da prática no que toca a escrever guiões de cinema. Isto é um importante e encorajador passo em frente na construção em Macau de uma indústria cinematográfica mais vibrante.

Hollywood versus Macau

Passou quase um ano desde que me mudei para Los Angeles. Naturalmente, tenho muito a dizer sobre a produção de filmes em Hollywood, especialmente quando comparado com aquela que se faz no continente de onde sou, a Ásia.
Primeiro que tudo, é preciso ver que, na Ásia, vemos muitos filmes de Hollywood, idolatramos a magnitude dos orçamentos destas películas e o poder de distribuição. Produtores e realizadores de filmes sonham em trabalhar em Hollywood, onde um orçamento de cem milhões de dólares americanos é considerado normal actualmente.
Na Ásia, contudo, a maior parte dos nossos filmes são feitos com menos de cinco milhões de dólares. De facto, muitos deles são feitos com orçamentos abaixo dos dois milhões. Uma das razões para os filmes de Hollywood precisarem de tanto dinheiro é o custo das estrelas que aparecem nos filmes – metade do orçamento vai, normalmente, para os dois principais actores, se forem, claro, considerados grandes estrelas de cinema. sept group 2
Como realizador, a maior recompensa para todo o tempo e energia dispensado em fazer um filme é vê-lo ser lançado comercialmente, em grandes salas de cinema. Os realizadores deveriam, aliás, fazer os filmes tendo sempre em consideração que o ecrã de cinema é enorme comparado ao tamanho da audiência e não esperar apenas que os seus filmes sejam vistos em DVDs ou ecrãs de computador. Esta deve ser uma parte importante na arte de fazer cinema. E é aqui que Macau pode ser um luxo tremendo.
Todos os países ou territórios no mundo têm uma certa percentagem dos seus cinemas reservados para filmes de Hollywood e outra percentagem para filmes feitos localmente. Por exemplo, no Japão, 50% dos filmes apresentados nos principais cinemas são filmes de Hollywood, enquanto a outra metade são filmes japoneses. Nos EUA, contudo, os filmes feitos localmente são os ‘blockbusters’ de Hollywood! Isso significa que um realizador americano que fez o seu filme com um milhão de dólares compete com os filmes orçados em cem milhões por um lugar no cinema. Mas, se um realizador produz um filme em Macau com esse mesmo dinheiro – um milhão de dólares – atrevo-me a dizer que conseguiria mostrar o seu filme em todos os principais cinemas de Macau e talvez até nas regiões vizinhas, como Hong Kong, Taiwan, Singapura, Malásia e até na China continental! Entretanto, o seu colega americano, que faz o seu filme com o mesmo orçamento nos EUA, tem provavelmente zero hipóteses de ver a sua obra ser apresentada nos cinemas mais ‘mainstream’.
Esta é precisamente uma das razões para que os realizadores de Macau tenham mais apoio, mais recursos para fazer os filmes e, mais importante que tudo, confiança na distribuição do filme, enquanto o realizador americano é deixado ao desespero e à depressão, questionando-se onde é que o seu filme de um milhão de dólares o vai levar.
Uma comparação como esta mostra-nos claramente as vantagens de fazer filmes na Ásia e é esta a razão por que eu continuo a focar-me em fazer filmes no Oriente, de forma a conseguir mais oportunidades para a distribuição comercial dos meus filmes.
Seja como for, não interessa se estamos em Hollywood ou em Macau, qualquer filme – ou projecto – que valha a pena começa com um bom guião…

Curso “Escrever um guião de Hollywood” 2015

O curso que leccionei em Macau foi considerado um curso de guionismo intermédio: a continuação do curso básico do ano passado “Da história ao guião”.
Desta vez, tivemos 15 participantes (o máximo permitido), sendo que metade deles eram alunos que já estiveram presentes no último curso e a outra metade eram pessoas que estavam lá pela primeira vez. O curso durou dez dias, teve lugar todas as segundas e sexta-feiras, das 19h00 e às 21h00.
Nos primeiros dois dias usei o tempo para revermos algumas das ideias mais básicas e mais importantes do que é escrever um guião de cinema, algo que foi essencial não só para os novos estudantes, como para os que já tinham feito o curso anterior.
O guionismo está vivo. É possível manter longas discussões acerca da escrita, o que é muito diferente da matemática, onde as fórmulas e os conceitos podem ser ensinados num determinado tempo. Durante o curso, examinámos as estruturas dos guiões, a forma como as personagens são desenhadas, a criação de conflitos para efeitos dramáticos e até a formatação dos guiões, entre outras coisas.
Como no curso de 2014, os participantes deste ano têm diferentes ‘backgrounds’ e idades variadíssimas: desde os vinte e tal aos cinquenta. A maioria eram trabalhadores e alguns até tinham experiência em filmagens e cinema. Todos eram bastante proactivos e tive duas semanas fantásticas enquanto partilhava as minhas experiências, não só respondendo às suas perguntas, como ouvindo as suas opiniões sobre a produção de filmes e de guiões. Foi fantástico.
Alguns dos participantes estão já a formar grupos de guionismo, para se encontrarem uma vez por mês para criticar e motivar-se uns aos outros e aos seus roteiros. É uma iniciativa fantástica.

Curso “Re-escrever para Hollywood” 2016

Uma semana depois de ter deixado Macau, no final de Outubro, recebi um email da Creative Macau a convidar-me para regressar a Macau em 2016 para conduzir a terceira parte do curso de guionismo. Em princípio, isso acontecerá entre 25 de Janeiro e 5 de Fevereiro, sendo o título do curso “Re-escrever para Hollywood”. Esta será mais uma continuação do curso anterior, mas utilizarei a primeiro semana para rever conhecimentos mais importantes para eventuais novos estudantes.
Ainda que o ponto de maior enfoque vá ser escrever uma longa-metragem, haverá alguns dias em que vamos também ter um cheirinho do que é escrever para curtas-metragens. Vamos ainda analisar as nossas oportunidades de sucesso nas indústrias cinematográficas dos EUA, Hong Kong e Macau.
As inscrições deverão abrir em meados ou finais de Novembro e, pela nossa experiência, as vagas deverão esgotar rapidamente. Por isso, se está ou conhece alguém que esteja interessado em escrever um guião, inscreva-se o mais cedo possível, para que não fique de fora.
Estou ansioso por regressar a Macau para leccionar este curso e passar momentos agradáveis com toda a gente, partilhando as alegrias e tristezas do que é escrever para Hollywood.

*realizador

13 Nov 2015

A emergência do paradigma antropológico

Touraine, Alain, Um Novo Paradigma, Piaget, Lisboa, 2006.
Descritores: Sociologia, Modernidade, Pós Modernidade, Individualismo Moderno. Paradigma Antropológico. Identidade, Actor, Sujeito, Moralidade, Subjectividade / Objectividade.
Cota: A-6-3-10 UDC

 

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]os primeiros séculos da sua modernização, o ocidente descreveu e pensou a realidade social em termos políticos: a desordem e a ordem; o rei e a nação; o povo e a revolução. Depois, com a Revolução Industrial, o capitalismo emancipou-se do poder político. Então pensou-se e agiu-se em nome de um novo paradigma, económico e social, e falou-se de classes, riquezas, desigualdades e redistribuição. Hoje, na hora da economia global e do individualismo triunfante, a mundialização estilhaçou os antigos modelos das sociedades. Cada um de nós, presos na produção e na cultura de massa, esforça-se em escapar-lhes e em construir-se como sujeito da própria vida. O novo paradigma, pelo qual damos conta destas novas preocupações, é cultural. Testemunham-no as grandes interrogações da nossa época: que lugar dar às minorias? Deve a sexualidade estar no centro de tudo? Assistimos ao retorno das religiões? Os antigos paradigmas estavam voltados para a conquista do mundo, com o novo, é de nós que se trata. Enquanto tomamos consciência da decomposição de um mundo que era dirigido por homens, entramos numa sociedade de mulheres. Como sempre, em Alain Touraine, a preocupação de dar forma teórica às nossas práticas sociais é fecundada pela vida tal como é vivida e tudo o que neste livro é pensado reenvia para a experiência mais quotidiana do universo globalizado e no qual, doravante, evoluímos.

Trata-se de uma análise da decadência e do desaparecimento do universo que chamamos de “social”, já que estamos marcados pela ruptura dos laços sociais e pela ascensão do individualismo. Sendo assim, vive-se a destruição das categorias “sociais” e passa-se a repensar as questões referentes a classes e movimentos sociais, instituições como família e escola.
Os sujeitos necessitam de um conflito para que ocorra uma acção colectiva. E que a consciência do sujeito é composta por três componentes: uma relação a si mesmo como portador de direitos fundamentais, um conflito com as forças dominantes que lhe impossibilitam o direito de agir como sujeito e, por fim, cada um como sujeito, propõe certa concepção geral do indivíduo.
O sujeito pode ser corrompido pela obsessão da identidade. Alguns problemas são sentidos pelo não-direito à diferença. A questão da limpeza étnica e religiosa é a mais comum e assustadora. O autoritarismo, a ignorância, o preconceito, o isolamento são obstáculos à produção de si mesmo como sujeito.
A ideia de uma sociedade não social é abordada com mais propriedade na segunda parte do livro, onde as categorias culturais substituem as categorias sociais, o que leva à construção de uma nova representação da vida social. O ponto central que o livro pretende discutir é justamente a mudança de paradigma em nossa representação da vida colectiva e pessoal. Passamos a perceber a passagem de uma linguagem social sobre a vida colectiva para uma linguagem cultural. O autor ressalta que as colectividades voltadas para o exterior e para a conquista do mundo estão sendo substituídas por outras voltadas para o interior de si mesmas e de todos aqueles que ali vivem.
A ideia de modernidade é definida pelo fato de dar fundamentos não sociais aos fatos sociais, de impor a submissão da sociedade a princípios ou a valores que, em si mesmos, não são sociais. A modernidade então é fundamentada em dois princípios: o primeiro é a crença na razão e na acção racional e o segundo é o reconhecimento dos direitos do indivíduo. Da análise da modernidade, conclui-se que uma sociedade moderna se funda nesses dois princípios apresentados, que não são de natureza social. Assim, a modernidade não é uma forma de vida social.
Uma das tradições que domina a tendência contemporânea para a crítica da modernidade assenta na ideia de que o individualismo moderno se torna nos seus desenvolvimentos deletério relativamente ao social. O fim do social aparece como inseparável do individualismo desorganizador. E isso propaga-se de tal modo que a sensação que provoca é a de que a modernidade produz a ruína de todo o sentido. Essa articulação só pode levar-se a cabo através da sobrevalorização das sociedades e das culturas pré-modernas. O fim do social seria afinal homólogo do fim das sociedades baseadas no político e também antes delas das sociedades baseadas no religioso. O novo paradigma (anti moderno) pressupõe uma relação directa do sujeito a si mesmo sem a mediatização dos arquétipos meta-sociais que relevam da filosofia da história. E isto enquanto reacção ao paradigma sociológico. Como eu já tinha intuído o velho paradigma sociológico deu lugar a um paradigma cultural, centrado no indivíduo e nos direitos culturais.
Mas Alain Touraine, embora referindo-se ao sujeito, é ao indivíduo que de facto se refere, pois pretende desligar a ideia de sujeito e a subjectivização que lhe é conforme de uma ideia, contudo para mim fundamental, de sujeição. Para mim só há sujeito em vez de indivíduo quando a mutação é acompanhada da ideia de sujeição. Pode pôr-se em causa a sociedade enquanto meta-estrutura que condiciona os indivíduos, mas não se pode pôr em causa a sociedade enquanto pacto originário. Logo a sujeição é transcendental à sociedade uma vez que é coetânea ao pacto.
A questão essencial regressa à problematização já clássica da dicotomia Sein /Sollen. O domínio do Sein desligado do Sollen implica uma escravização do indivíduo à tirania da realidade e isso é insuportável no quadro de sociedades propriamente humanas. A humanidade é indissociável de valores. O mundo é sempre mundo de prevalência do Sollen, ou não é um mundo humano. O princípio da sujeição é e será sempre condição a priori da existência da humanidade, dado que só há humanidade com vida sócio-cultural.
Um dos perigos do nosso tempo é a regressão a meu ver preocupante da sociedade em direcção às comunidades. O perigo da fragmentação da sociedade em comunidades é visível. Em boa verdade é por esse facto que eu rejeito liminarmente a estratégia do multiculturalismo. A própria palavra cultura é hoje para mim preocupante.
O holismo apresentou muitas vezes sinais de grande equilíbrio. Mas esse equilíbrio era um equilíbrio inquinado uma vez que se baseava na hierarquia social e política, na descriminação, na desigualdade consagrada pela tradição. Era obviamente um mundo pré-moderno, de súbditos e não de cidadãos.
Em larga medida o caos em que mergulhámos resultou da decomposição social de que já se fez menção. E é neste caos que se vai alimentando a obsessão identitária dos comunitarismos.
Neste quadro também se percebe muito bem o apelo apaixonado e básico ao individualismo e de modo nenhum à sociedade no que diz respeito à reorganização das forças de resistência.
Mas só o advento do sujeito pode ao mesmo tempo opor-se às formas impessoais da vida social que o desfiguram assim como ao individualismo que também adultera a sua intervenção cívica, cultural e política.
O actor histórico nas sociedades actuais já não é o mesmo. A centralidade das classes sociais e das questões sócio – económicas ligadas ao trabalho desaparece e dá lugar a outro tipo de actor intimamente associado a outro tipo de temáticas: o planeta, o meio ambiente, a liberdade sexual, os direitos das minorias, a pobreza à escala planetária, a dignidade individual, a diversidade étnico – cultural e claro o sujeito.
Touraine tem consciência de que a secularização foi incompleta em muitas culturas europeias da Ilustração. Aí subsistiram laços, muitas vezes fortes, entre a ideologia do estado e a moral cristã.
Nos casos mais radicais a secularização conduziu a uma consciência puramente social da sociedade, a uma auto fundação da sociedade que assim manifestava uma crença ilimitada na sua capacidade de se transformar.
Claro que este tipo de sociedades mergulha em raízes racionalistas, secularizadas não comportando nada das velhas comunidades (holistas).
Tonnies terá sido o primeiro a opor de forma consagrada a oposição entre Sociedade e Comunidade.
A ideia de modernidade proposta por Touraine opõe-se à tradicional concepção de que uma sociedade seria o fundamento da sua própria legitimidade. Pelo contrário a nova concepção reside no facto de que reconhece e defende a existência de fundamentos não sociais da ordem social (culturais, valores, princípios, o universalismo por exemplo). Ela faz apelo à universalidade da própria razão.
Isto relativamente aos mecanismos de representação (que eu chamava de relação de reversibilidade entre a sociologia e os comportamentos sociais), que estão definitivamente caducos. As forças políticas representavam os indivíduos (que não eram os verdadeiros actores sociais) que por sua vez eram representados no seio das classes sociais, que por sua vez ainda eram definidos a partir do lugar e função na complexa estrutura das relações de produção.
Ora tudo isso está ultrapassado! A concepção social da sociedade na qual todo o actor, individual ou colectivo, é definido através da sua situação social é coisa do passado. Daí o sentimento de abstracção (eu diria mesmo de artificialidade), de ausência de referências estáveis.

12 Nov 2015

The Ritz-Carlton Bar & Lounge

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]minha impressão da imagem Ritz-Carlton, em geral, não é favorável mas é baseada em escassos exemplos. Não conheço muitos. O de Cantão e o de Kuala Lumpur exploram uma propensão demasiado conservadora para o meu gosto. O de Hong Kong, de desejo amodernado, recolhe mais o meu favor, não total. O seu bar Ozone, sito no 118° andar, para além de oferecer uma vista inédita, demonstra uma dedicação generosa (mas não particularmente ousada) à bebida. O antigo hotel, em Central, era clássico e sóbrio, fininho.
O de Macau não poderia senão adaptar-se ao gosto local. Mas nada disso obsta a que, como já tantas vezes aqui foi dito, no meio das dúvidas que o gosto regente impõe, a oferta não seja de excelente qualidade.
O que me aborrece é que continue a não haver em Macau um único bar de hotel em que haja uma ousadia contemporânea que, acrescente-se, o de Hong Kong também não cumpre com distinção. Não se espere igualmente uma clientela arrojada nas suas ideias, desejos ou aparência, antes o amolecimento habitual. Hier findest du keine Anita Berber. Cumpre-se em pleno a maldição de Auden.
Este bar do Ritz-Carlton tem, no entanto, uma bondosa vantagem sobre muitos outros bares de hotel de Macau (e de repente estou a lembrar-me dos bares dos hotéis Wynn, Wynn Encore, Star World, New Emperor, Four Seasons): abre às 10 da manhã para as bebidas individuais e serve bebidas misturadas a partir das 2 da tarde. Inclino-me, contudo, a concordar parcialmente com uma das suas funcionárias que me confessou que ninguém pede cocktails às 10 da manhã.
O seu desenho, pouco aventureiro como se esperava de um Ritz-Carlton em Macau, contém algumas boas surpresas. Entra-se para um salão de pé direito muito alto e com uma iluminação sóbria situado num 51°andar. As paredes exibem revestimentos em madeira e, por trás do balcão, abre-se, com estrondo, uma grande superfície em vidro cujo efeito diurno ainda não recebi. O balcão, longo, mostra-se muito confortável, oferece um indispensável foot rail e os bancos altos têm um pequeno amparo que previne quedas para trás.
Deixo um elogio à escolha de recusar abusar da sua situação num 51° piso e de se refugiar num recolhimento que a sua banda – felizmente quase imperceptível – nunca ousa ferir.
Este bar é longe para quem parte de Macau. O mesmo acontece com, por exemplo, o Bar Azul, o Lan ou o Macallan. Mas, como acontece com este último, em que a oferta de mais de 400 whiskys e whiskeys promove deslocação própria, o bar do Ritz-Carlton merece também uma viagem particular.
O que ele introduz é uma não muito ousada mas suficiente especialização em gin: 17 marcas diferentes, provenientes da Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e Escócia. Estes podem combinar-se segundo receita do próprio cliente que tem à sua escolha 9 flores, especiarias ou frutas diferentes e 5 marcas diferentes de água tónica.
O resto do cardápio não causa grandes surpresas e é muito parecido como o do bar Ozone, a instalação de Hong Kong da mesma marca hoteleira: poucos champagnes, 11 chás diferentes, 9 cocktails de assinatura, 7 clássicos, uns 5 mocktails, os espíritos habituais, algum vinho, a habitual escolha banal de cervejas e, marca importante de intenções sérias, uma dedicação muito bem cumprida ao gelo.
Recordo que o Ozone, em Kowloon, mostrou de início uma inclinação para o gin, com cerca de 6 entradas diferentes. Desconheço se esta se mantém. Estamos num universo onde não se podem esperar grandes surpresas. Começa a ser evidente que não será em hotéis que aparecerá um bar de características excepcionais no que pertence à excepcionalidade e rotatividade das bebidas e à hodiernidade do seu desenho.
Pode dizer-se que o gin, e especialmente o gin tónico, ganhou uma fama que aborrece, que esta oferta de 17 marcas não causa grandes frissons e que um gin tónico é uma mistura que se alcança com facilidade em casa. É verdade. Mas este conjunto de marcas pode ser utilizado para martinis secos não em lista mas já intensamente desejados, ou em outras misturas.
Como seria de esperar, o nível do serviço e o sentido de hospitalidade é elevado e o bar percorre-se sem percalços com a ajuda pronta e muito profissional do pessoal de serviço (que não me parece conter staff local). Como tal, a pequena especialização gínica, o cuidado no desenho (mesmo que conservador), o serviço, a hospitalidade e a dimensão imperial das suas paredes e dos corredores que levam às casas de banho e aos elevadores e a um outro espaço de lounge a uso, aconselham visita.
Por enquanto parece que este lugar escapou à maldição que percorre a maioria dos bares das albergarias de Macau: a ausência de clientela. Resta ver se permanecerá em roteiro ou se a sua frequência não passa de uma moda.
Na próxima semana, acrescentar-se-á a estas fúteis linhas uma apreciação do bar Heart, sito no Ascott, e uma reformulação da lista de bares de hotel que se apresentara aqui há cerca de um ano. Tendo desaparecido o Crystal Piano bar e o Jaya (penso), continuamos reduzidos a 13 pobres instalações.

(continua)

10 Nov 2015