O primeiro Grande Prémio de Macau

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]or iniciativa de três residentes de Macau, Fernando de Macedo Pinto, Carlos Humberto da Silva e Pires Antas, na Primavera de 1954 ficou resolvido realizar-se uma corrida entre amigos. Mas à ideia inicial de uma prova de regularidade-velocidade veio-se juntar, pelo entusiasmo de Paul du Toit ao ver a qualidade do traçado do circuito e a parecença com o do Mónaco, a realização de uma corrida de velocidade. Colocada como primeira hipótese, uma prova de resistência de 24 horas, tipo Le Mans, mas por não haver carros suficientes, pensou-se depois numa corrida de duas horas, o que não despertava grande interesse devido às grandes despesas na vinda dos carros de Hong Kong. Paul du Toit conseguiu convencer a organização a pensar na realização de um Grande Prémio de carros e garantiu que, caso viesse a materializar-se esse projecto, só de Hong Kong viriam pelo menos vinte concorrentes com os seus respectivos carros. Carro vencedor de Ed Carvalho Museu GP
O programa foi apresentado por Carlos H. da Silva em 17 de Julho de 1954, na conferência de imprensa no café do Hotel Riviera. Além de falar na prova de regularidade-velocidade para comemorar a criação da Delegação de Macau do Automóvel Clube de Portugal, foi ainda referida a realização do Grande Prémio de Macau. Na reunião encontravam-se ainda outros quatro entusiastas do automobilismo, Srs. Capitão Júlio Augusto da Cruz, Capitão-Tenente Pires Antas, Agente Técnico Macedo Pinto e Dr. António Nolasco da Silva, os fundadores da Delegação de Macau do A.C.P.
Uma semana depois, já se explicitava ser uma corrida de velocidade, tipo Le Mans reduzido e o vencedor absoluto era quem fizesse o maior número de voltas ao circuito, durante quatro horas consecutivas. A corrida, denominada Grande Prémio de Macau, realizar-se-ia a 31 de Outubro, sendo o circuito, então descrito com 3,9 milhas, denominado Circuito da Guia. Como estes cinco organizadores não poderiam, só por si, dar conta do recado, solicitava-se aos desportistas e entusiastas por automobilismo, que viessem colaborar para as funções de juízes, fiscais, directores, adjuntos, etc..

Regulamentos para a corrida

De tal maneira foi grande a receptividade a nível regional que, todos os quartos dos hotéis da cidade nos finais de Setembro estavam já reservados para o fim-de-semana das corridas. Por isso, no início de Outubro, apareceram nos jornais de Macau anúncios solicitando a quem tivesse quartos de casal e singulares para alugar nos dias 29, 20 e 31, que contactasse com o Dr. António Nolasco.
Os regulamentos da prova, divulgados no princípio de Outono, referiam que para a prova do Grande Prémio poderia participar qualquer Carro de Turismo, de fabrico corrente, ou qualquer carro de desporto ou especial, entendendo-se por carro de desporto, o que é vendido pela fábrica sob tal rubrica, com ou sem modificações introduzidas pela mesma fábrica e por carro especial, um carro de fabrico corrente modificado pelo concorrente da forma que melhor entender para melhorar o seu rendimento. As viaturas seriam divididas pela sua cilindrada. As inscrições gratuitas para o Grande Prémio deveriam dar entrada até ao dia 11 de Setembro, mas de 12 a 22 de Setembro seria de $50,00. Só era permitido usar gasolina 85/90 octanas.
Os condutores eram prevenidos de que lhes estava vedado qualquer auxílio prestado por estranhos, sob pena de desclassificação. As viaturas seriam devidamente inspeccionadas pelo Clube, podendo exigir aos concorrentes que obedecessem aos requisitos julgados indispensáveis, sendo excluído das provas quem não obedecesse. Seriam permitidos dois corredores por cada viatura.
O percurso com partida do Porto Exterior, frente à Ponde N.º 2 da Capitania dos Portos, seguia pela Estrada de S. Francisco, Estrada dos Parses, Cacilhas, Ramal dos Mouros, D.ª Maria, Rua dos Pescadores, Macau-Seac, vindo a acabar na Avenida Oliveira Salazar, no ponto da partida.

Locais para assistir às provas

Ao longo do mês de Novembro, nos jornais apareceram avisos a proibir as pessoas de atravessarem a pista do circuito durante as horas de treino e das corridas, a não ser pelas pontes. Pedia-se a quem tivesse cães, porcos, cabritos, para evitarem a todo o transe que os mesmos atravessassem a pista, porque poderiam ser igualmente a causa de desastres de funestas consequências. A entrada dos espectadores far-se-ia por uma única via, situada junto da Calçada de S. Francisco onde funcionariam as bilheteiras, devendo os espectadores atravessar uma ponte dupla construída para esse fim. Havia duas outras pontes mais pequenas, uma junto do Ramal dos Mouros, para uso da unidade militar ali aquartelada e outra, junto do posto central, para uso dos comissários e director de corrida. Na Avenida Dr. Rodrigo Rodrigues, já dentro da pista e sem perturbar o movimento no circuito, circulariam cem triciclos para uso exclusivo dos espectadores.
Em frente ao posto náutico (antigo pavilhão da Pan-Americana, hoje ao lado do Hotel Casino Waldo) foram construídas quatro bancadas, cada uma para quinhentas pessoas, sendo duas delas pagas pelo Sr. Ho Yin. Os bilhetes começaram a ser vendidos no dia 25 de Outubro na Firma H. Nolasco & Cia., Hotel Riviera e Pousada Macau. Na bancada central, o preço era de $7,50 e nas laterais de $5,00. Havia ainda, no recinto do Clube Náutico, por acordo com a Comissão do G.P., cadeiras a $2,50 cada uma, com mesa e $1,50 sem mesa, tendo os sócios entrada livre no Clube. Em toda a extensão dos terrenos conquistados ao mar no Porto Exterior, desde S. Francisco até as bancadas, havia lugares para peões, ao preço de $0,50 por pessoa. Junto das bancadas vendia-se farnéis com sanduíches, bolos, fruta e bebidas, a preço acessível.
Entre a bancada central e a primeira bancada lateral funcionavam os poços dos automóveis, para os mecânicos ali fazerem os consertos, colocar combustível e outras beneficiações nos carros das provas durante as corridas. Para os representantes da Imprensa estavam reservados lugares junto ao Posto Central, podendo eles e os fotógrafos, quando munidos dos emblemas, servir-se da ponte levantada junto do posto e destinada aos juízes das provas. O posto central, instalado junto do local da partida, era onde os locutores davam ao público todos os pormenores segundo o andamento das corridas, existindo aí o quadro com a classificação dos corredores. À volta de todo o circuito havia ainda quatro postos de ambulância, nove de remoções, quatro de socorros (incêndio), dez postos sinaleiros e treze de telecomunicações, ligando estes directamente ao posto central, onde se encontravam os comissários, o director de corrida e outros juízes de provas.
No dia 28 de Outubro, chegaram de Hong Kong os primeiros cinco carros participantes nas corridas e os restantes vieram no dia seguinte.

O Primeiro Grande Prémio de Macau

Chegava o tão desejado 31 de Outubro de 1954. Os treinos tinham-se efectuado no dia anterior, pela manhã entre as 8 horas e as 9:30, pois foram adiados uma hora, e na parte da tarde, quinze minutos após terminada a prova de regularidade-velocidade, realizaram-se durante mais uma hora e meia. Dos vinte e cinco concorrentes que se tinham inscrito, três tinham desistido, um outro encontrava-se em Inglaterra e o quinto, de Hong Kong, sofrera um grave desastre. Assim, no primeiro dia de treinos, no sábado 30 de Outubro, estiveram vinte pilotos mas, devido a três deles sofrerem acidentes, ficaram dezassete para realizar os treinos do dia seguinte. Eram eles, conforme a ordem que observariam na partida, na categoria de carros de desporto ou especiais: Pennels, número 9, num Austin Healy 100; com o n.° 7, Bell num Morgan; seguiam-se os concorrentes a pilotar um Triumph TR2: Reginaldo Rocha n.° 14, Lauder n.° 10, Paul du Toit n.° 8 e Eduardo de Carvalho n.° 5; a correr num M.G. Special, Macedo Pinto n.° 11. Já na categoria de carros de turismo: White n.° 25 e Wilson n.° 2 pilotavam um Riley 2 ½; a conduzir um Ford Zephyr estavam Ferry n.° 18, Roseveare n.° 12 e Fong n.° 3; Reynolds n.° 17 guiava um Citroën e Rediern Steane n.° 26 um Hilman; Astwood n.° 20, Robert Ritchie n.° 19 e Wen Lenard n.° 4, conduziam um Fiat 1100. Todos os corredores tinham que completar pelo menos uma volta em treino oficial, conduzindo o carro da prova em que se inscreveram. Já nos treinos dessa manhã, realizados das 8 às 9 horas, mais dois carros ficavam pelo caminho. gp1954
A prova, anunciada para começar ao meio-dia, era aguardada com enorme interesse por milhares de espectadores. Meia hora antes de começar, estavam pilotos e viaturas no parque automóvel e por ordem do juiz de partida, foram colocados os quinze carros nas suas posições. Primeiro os carros de desporto e depois os carros de turismo, seguindo a ordem da cilindrada, mas todos paralelos uns aos outros e com a frente voltada para o mar.
Com os concorrentes de pé em frente aos carros respectivos, pois a largada era tipo Le Mans onde todos partiriam em simultâneo, após os intervalados três sinais, de minuto a minuto, dados pela sereia para iniciar a prova de quatro horas o Governador baixou a Bandeira Nacional, dando a partida.
O vibrante relato foi narrado no Clarim de 4 de Novembro por S.F.: “Ao sinal de largar, correram todos para os carros, uns saltando para dentro destes, outros, abrindo rapidamente a portinhola ao mesmo tempo que punham o motor a funcionar. Esta emocionante partida valeu por todo o resto da prova.”
Com uma rapidez de relâmpago, o corredor G. J. Bell, num Morgan de 2088 c.c., em menos de 30s já se encontrava no circuito. A seguir, largaram dois carros de turismo, depois o Triumph de Carvalho, seguido de mais dois outros da mesma marca. O Austin conduzido por R. Pennels, o carro mais potente da prova, com 2660 c.c., perdeu imenso tempo na largada, assim como o M. G. Special do único corredor de Macau, Macedo Pinto, que, segundo contou depois, no meio da excitação se esquecera de destravar o carro.
O Morgan, rapidíssimo, tomou logo a dianteira, fechando a primeira volta com quase um terço do percurso de avanço sobre o segundo. Porém, antes de fechar a 5.ª volta, ao passar junto da guarita que fica na curva do reservatório de água, saiu-lhe uma roda ao carro, vindo a ficar inutilizado para o resto da prova. Bell, contudo, nada sofreu pois, a viatura, apesar da velocidade que trazia, vinha encostada ao muro do Porto Exterior, tendo o condutor a presença de espírito de não largar o volante e conduzir o carro travado até parar completamente, mas já na rampa que desce para a água. Numa excelente prova de desportivismo e cavalheirismo, Paul du Toit, ao passar junto da bancada central, antes da sua 5.ª volta, abrandou a marcha para dizer à esposa de Bell que estava tudo bem e nada acontecera ao marido. Com isto, Toit perdeu uns quarenta segundos e para a sua frente passaram alguns concorrentes.
A prova continuou com o Austin de Pennels na dianteira, seguido dos Triumph. Atrás vinham os carros de turismo comandados por Ritchie e entre eles, o MG de Macedo Pinto. Contudo, à 8.ª volta Pinto achava-se à frente de todos os carros de turismo. À 11.ª volta, Pennels parou o Austin junto dos poços, para substituir uma roda. Passou então a comandar o Triumph n.° 5 de Carvalho, seguido por Toit n.° 8 e Rocha n.° 14. Atrás, vinha Pinto n.° 11 e Ritchie n.° 19, estando os restantes mais atrasados, com Lenard n.° 4 na cauda.
Tendo completado a 14.ª volta, o Austin de Pennels sofreu um acidente perto da ponte em frente ao Quartel de S. Francisco e ficou inutilizado para o resto da prova. Valeu a perícia do condutor que, com presença de espírito conseguiu, após manobras dificílimas, tirar o carro da direcção da área onde se encontravam dezenas de espectadores, acabando por embater contra um poste.
No circuito havia agora treze carros. Entre o n.° 5 de Carvalho e o n.° 8 de Toit travava-se luta tremenda para conquistar o comando. O n.° 5, não largava a dianteira, nem o n.° 8 o seu intento de o ultrapassar. Luta que manteve a assistência emocionada. Entretanto, Pinto, n.° 11, prosseguia na prova com uma grande regularidade e perdendo sempre terreno seguia o Triumph de Rocha n.° 14. Atrás, vinha Ritchie sempre fugindo dos restantes. Entre estes, salientam-se o Fiat 1100 de Astwood e o Hillman de Steane n.° 26.
A cerca de duas horas da prova, o efectivo dos carros em competição baixou para doze, em virtude da desistência do n.° 25, um Riley conduzido por A. White, o qual teve uma avaria mecânica, depois de completadas vinte voltas.
Até ao fim da prova não se registou mais nenhuma desistência nem acidente. Digna de menção foi a perícia do Capitão J. Ferry, n.° 18, num Ford Zephyr, que fez as últimas trinta voltas sem travões no carro, continuando a prova sempre na mesma cadência. De todos os carros, os únicos que não pararam nenhuma vez junto dos poços foram os três conduzidos pelos portugueses, Eduardo de Carvalho, Reginaldo da Rocha e Macedo Pinto.
Esta descrição foi baseada, com ligeiras diferenças, do que o repórter S.F. fez da prova e seria uma falta ficar esquecida, de tão viva é a sua narração.
Ao fim de 4 horas 3 minutos e 19,1 segundos de prova, a bandeira de xadrez foi mostrada à passagem do Triumph TR 2, n.° 5, conduzido pelo português Eduardo de Carvalho. Estava encontrado o vencedor absoluto do 1.° Grande Prémio de Macau, que, após a volta de consagração, recebeu a taça das mãos de Sua Exa. o Governador, que a mandara fazer em Lisboa e custara cerca de $1200. Já a casa “Omega”, ofereceu-lhe um relógio de mesa. Tinha sido esta marca a emprestar os cronómetros usados nas provas.

Classificação por categorias

Assim, nos carros de desporto ou especiais, o primeiro lugar foi do português Eduardo de Carvalho que deu 51 voltas, cobrindo a distância de 319,77 km em 4 horas 3 minutos e 19,1 segundos, à velocidade média horária de 49 milhas. A velocidade máxima foi de 95 milhas atingida entre o reservatório e as bancadas e a mínima, 10 milhas, na curva entre Dona Maria e a Rua dos Pescadores.
Em segundo ficou Paul du Toit, num “Triumph TR 2”, com 51 voltas em 4 h., 4m., 46 s., à velocidade média horária de 48,8 milhas, gastando mais 1 minuto e 27 segundos que o vencedor. Em terceiro, Reginaldo da Rocha, em “Triumph TR 2”, com 50 voltas em 4 h. 1m. 55,5s., à velocidade média horária de 48,4 milhas. Em quarto lugar, o único macaense que correu no 1.º Grande Prémio de Macau, Fernando Macedo Pinto, no seu MG Special de 1100 c.c., com 48 voltas feitas em 4h. 3,4 s., à velocidade média horária de 46,8 milhas, apesar de ter um carro com muito menos potente, 47 cavalos; teve como mecânico Joaquim Vale.
Já nos Carros de Turismo, o primeiro na Classe B, para carros com cilindrada entre 750 a 1100 cc., foi Robert Ritchie em Fiat 1100, com 48 voltas, em 4h. 1m., 57,6 s., à velocidade média horária de 46,4 milhas. Na Classe D (de 1501 a 2000 cc), o primeiro foi D. N. Steane, em Hillman, com 46 voltas, em 4h. 1m. 29s. à velocidade média horária de 44,6 milhas. Na Classe E (de 2001 a 3000 cc), ficou em primeiro K.O. Mak num Ford Zodiac, com 45 voltas em 4h. 01m. 56s., à velocidade média horária de 43,5 milhas.
Foi tal o entusiasmo com estas corridas, que nunca mais se deixou de realizar o Grande Prémio de Macau.

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