Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasDa notável arquitectura existencial Faria, Almeida, Paixão, Lisboa: Caminho, 1991. Descritores: Romance, Tetralogia Lusitana, Identidade, Memória, 972-21-0237-0, 199 p.:21 cm, Almeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra Em primeiro lugar dizer que Paixão é o primeiro da Tetralogia Lusitana. Enfim, no início era uma trilogia: Paixão, Cortes e Lusitânia; mas quando o Cavaleiro Andante chegou por fim e se juntou à tríade, achou-se e bem que ele por chegar atrasado, não deveria ficar excluído da família. Ele pertencia àquela saga, àquela família e ao seu destino sacro e profano. Tudo começa numa Sexta Feira Santa em plena Paixão. A Sexta-Feira Santa, ou ‘Sexta-Feira da Paixão’, é a Sexta-Feira antes do Domingo de Páscoa. É a data em que os cristãos “comemoram” a paixão, crucificação e morte de Jesus Cristo. Almeida Faria faz o que não sendo novo é revelador, estabelece uma homologia entre a vida de Cristo e a vida de qualquer cristão, pois a uma certa luz seremos todos cristos e em todos ocorre mais tarde ou mais cedo esta sequência paixão, sacrifício e morte. Evitei naturalmente a palavra crucificação, por modéstia. Contudo a Paixão de Cristo é exemplar, porque também os homens quiseram que assim fosse. Falar da Paixão de Almeida Faria é penoso, pois se há livros que leremos sempre são estes quatro livros da Tetralogia Lusitana, e é penoso falar ou escrever sobre livros que já lemos mas que ainda não lemos em definitivo, que ainda não colocámos de lado, com aquela satisfação de dizer, está lido. Almeida Faria escolheu bem o registo da sequência de monólogos interiores das personagens, pois confere à narrativa uma espécie de pudor narrativo e mais do que isso uma sacralização dos trabalhos, dos afazeres, das tarefas, um pouco à semelhança dos Trabalhos e os Dias mas em registo acentuadamente mais ontológico-metafísico. Nesse sentido também as personagens são paradigmas de simples formas de ser. Todos sabemos que o sagrado pré-existe às religiões, desconfiamos até que as religiões são formas históricas que há muito começaram a desgastar o universo do sagrado e nesse sentido acontece que é nos rituais profanos que de súbito podemos viver a epifania do sagrado na sua plenitude. Isso é o que a meu ver Almeida Faria pretende e julgo que muitas vezes o consegue. Pedro Sepúlveda fala assim: “Estes monólogos são interrompidos por breves diálogos e por intervenções de um narrador que se imiscui no universo da consciência das personagens. Descrito com recurso a uma imagética religiosa e mítica, neste universo perpassa o sentimento de um sofrimento sem redenção, repetido num ciclo temporal expresso na própria estrutura do livro: Manhã, Tarde e Noite desse dia que só sabemos ser de sexta-feira santa”. E eu permito-me estar em acordo com quase tudo, menos com isto: A imagética é profana e não religiosa e portanto é sobretudo mítica. É profana, mas não desligada do sagrado. O sagrado como disse permanece na vida quotidiana e em muitos dos nosso gestos, as referências ao cristianismo são contudo inevitáveis, pois para nós a cultura cristã, através de uma referencialidade litúrgica, é aquela em que o sagrado se reconhece, ou melhor é onde as criaturas reconhecem as homologias com o sagrado. Uma ceia sempre fará pensar na Última Ceia, uma mesa, como o lugar em que nos damos aos outros como banquete e se sagram os alimentos. Os próprios alimentos significam mais do que são: o pão e o vinho serão sempre o sangue e o corpo de Cristo e o cordeiro será sempre pascal e exprimirá sempre também a inocência e o sacrifício. Não existe uma memória dos gestos anteriores ou dos vocábulos, ou dos rituais, quando o sagrado ainda não era nomeado através de uma imagética religiosa, positiva e empiricamente determinada. Por outro lado, não perpassa no texto uma ideia de um sentimento de sofrimento sem redenção, mas bem pelo contrário um sentimento de redenção através do sofrimento. Porém esta redenção não busca legitimar-se de uma forma gloriosa, mas na linha das correntes mais radicais assenta numa resignação à imagem e semelhança de Job. Pedro Sepúlveda remete para um texto de Óscar Lopes. Talvez que as coordenadas ideológicas onde seguramente persiste uma certa ansiedade escatológica preferissem através da secularização do sagrado o triunfo da utopia. Almeida Faria contudo não professa um optimismo ontológico pois a sua posição, pelo contrário, é sobretudo pessimista. Na maior parte dos casos a narrativa prefere o neutro, aparentemente neutro deva dizer-se, pois o exercício reiterado do neutro deixa entrever justamente a necessidade do sagrado. O sagrado evidencia-se nas coisas mínimas, nas tarefas repetidas até à náusea, nas banalidades existenciais desprovidas de fulgor ou sucesso, onde tudo falta menos o mistério: “de madrugada ainda levantar-se, descer para a cozinha e enregar o trabalho reacendendo lume no fogão, lavar a louça que ficou da véspera com sobejos de comida, em monte sobre a pia (durante o inverno a água gela, corta os ossos da gente, faz doer às vezes até pelo braço acima — deve ser reumático — mesmo ao cotovelo) e só depois sair para o quintal em que os pardais já cantam sobre o carrapateiro, filhar da vassoura e, com ela, varrer a capoeira e aos bichos dar farelos e mais reção avondo (de manhã as capoeiras têm sempre um certo cheiro azedo como alguns quartos de homem) e também ao pintassilgo mudar a água para beber, pôr a tina do banho, dar-lhe ou alpista ou uma folha de alface ou atão ambas, retirar o papel que, ao fundo da gaiola, se enche de cagadelas dia a dia e de casca de alpista, (…)”. É manhã e é Piedade, seguramente Piedade não por acaso: “voltar depois ao quarto, lá em cima, a fim de pentear-se, pintar-se se ele espera, pôr arrelicas e se aparelhar do casaco comprido, cinzento e desbotado de dez anos, meter a carteira na algibeira, descer de novo a escada em caracol para a cozinha, botar a água ao lume já pegado, pegar na alcofa dentre cestos e cabanejos, bilhas, tarefas, potes grandes de azeite ou azeitona e alguidares com todos os tamanhos, vermelhos e vidrados, largos para a matança e para o sangue, tachos de cobre, fulvos, em pé contra a parede de fumo nunca escura, branca, branca, caiada e mais caiada, em seguida descer por vez segunda os degraus do quintal, abrir o pesado portão fechado à chave, soltar os cães esquentados da noite para a rua, ir pela rua velha e árida à derêtura caminho da praça do mercado, comprar o que de véspera a senhora, a cuja obediência ela está, com letra grossa na lista de papel pardo assentara: carne de vaca ou vitela para bifes, hortaliça, pescados o que houver, etc., o costume, comprar sem muito ou sequer nada refilar, porque não vale a pena, não lhe pagam palavras (trabalho tão-somente), meter dois dedos de paleio com esta e com aquela, mais apaniguadas, com o conversado se o tem pela altura (nos dois últimos anos teve vários, a frescura já foge) ou um outro algum pretendente que por acaso apareça a cheirá-la, cheira-lhe a carne forte, mamas fortes, voltar ao fim de meia hora, o máximo uma hora para casa, pousar as compras no portal de mármore, o peixe, as couves, latão, os alhos, ferver o leite e entrementes fazer torradas para os meninos (no tempo das laranjas espremer aí uma dúzia delas — os meninos são cinco), preparar caldo de maizena e vianda de leite, e os flocos de aveia, migar o pão prás sopas dos mais novos, esfregar chão de pedra da cozinha e a mesa da cozinha, antes de pôr a toalha aos quadrados azuis para o pequeno–almoço, tirar o grão e o bacalhau que ficaram de molho desde a véspera ou ir ao quintal uma vez mais, no qual agora o gato, estático, silencioso e muito atento, caça infrutiferamente borboletas, ir de faca em punho e debaixo do braço o alguidar (é preciso sempre ter cuidado, não bater com ele no corrimão da escada, assim partiu dois que teve de pagar e uma porrada de massa lhe custaram e este está rachado, talvez da água quente, com dois gatos grandes ali ao pé da borda), voltar com a galinha morta ou ferida de morte dentro do alguidar, a cabeça entre as asas como um sono, deitar-lhe água a ferver, tirar do lume leite, o caldo de maizena, guardar a louça que quase já secou, servir o dejejum aos meninos que gritam, depois de no quintal terem jogado um bocado ao botão ao berlinde, à pancada, ao pião, conforme a época do ano, ficando com feridas negras ou feridas de sangue nos joelhos, ou atão depois de serralha ao grilo cantarista terem dado, se em tempo deles é, que quer tanto dizer como na primavera, e quando finalmente eles se vão, meter mais louça suja na pia da lavagem, depenar a galinha, pô-la ao lume porque às vezes é dura, sentar-se enfim no banco de pedra ao canto da janela de guilhotina aberta, mastigando uma bucha de pão com queijo ou chouriço ou farinheira ou banha (o que houver) e entre os dedos húmidos um púcaro de lata com café de soja e com isto tudo hão-de ser dez horas e estômago a dar-lhe horas desde as seis, por isso anda largando o osso nesta bruta labuta todo o santo dia que inda vai no começo mas que um dia, espera, talvez quando casar, ou talvez não, há-de acabar; batem as sete; tem os olhos cerrados e, cansadamente, reconstitui os gestos gastos a fazer; o dia que se segue é-lhe memória negra; assim o percorreu: envolta em trevas, por semanas santas que duraram séculos e agora sabe apenas que no quarto existe alguma pouca claridade; entra pela fresta da janela o frio do sol nascendo; não há sombra de dúvida, isto tem de acabar; horas de pôr-se a pé; horas de início, horas de começar; são mais que horas”. Procurei debalde cortar tão longa citação. Cortar onde? Não fui capaz. É neste fluxo tão quotidiano de tarefas que se ilumina a existência e lhe é conferida a espessura de Ser, a soberana consciência dela. Para lá de qualquer exercício de consciência social, de aquiescência ou revolta são estes trabalhos de Hércules e de Sísifo que nos permitem aceder ao essencial das personagens. Elas, as personagens, são as suas tarefas, os seus pequenos projectos, as suas pequenas intrigas. Quando a arte de um romance consegue isso, consegue o que lhe é próprio, como disse Milan Kundera, consegue fazer aceder a uma certa dimensão da existência que mais nenhuma forma de arte consegue. Eu diria que esta dimensão é o lugar onde o sagrado e o profano se encontram. Algumas artes são da ordem do sagrado, outras da ordem do profano, a arte do romance é da ordem desta união das duas dimensões existenciais, união à qual se acede por caminhos simples, quotidianos, banais mesmo segundo uma leitura sem retórica. Mas isto só está ao alcance do génio: Dar, sem porém explicitar o achado e o seu modo de achar, a dramaticidade senão o próprio trágico que se esconde nesta rotina assustadora. Dizer assustadora neste momento é uma traição, pois ela é simples e lógica, e simplesmente decorre no caudal em que tudo decorre, vai na corrente sempre imparável, só mesmo o génio para nos mostrar o quanto ela é assustadora, na sua fatalidade inelutável comum a todos. Depois segue-se João Carlos e Arminda e Mãe e André e Tiago e Francisco e etc, todas as personagens com as suas cruzes, e as suas ilusões e mazelas e os seus sonhos e suas outras coisas e depois de novo Piedade e depois de novo, … até que a manhã chega ao fim. O autor consegue estruturar o enredo e dar a ilusão de continuidade narrativa usando por vezes diálogos acidentais e a erupção de um narrador que está sempre implícito nos solilóquios que só na aparência são monólogos. É um trabalho literário notável de arquitectura existencial. Não é a primeira vez que em sede de romance se usa um expediente semelhante, também Faulkner o usou no texto intitulado Na Minha Morte, mas atrevo-me a considerar que Faulkner dispõe desde o início de um elemento que subjaz à narrativa, que é justamente a pressuposição da sua morte e, como se estivesse morto e ao mesmo tempo não, visse e ouvisse as várias personagens contudo animadas na sua movimentação por um facto motor, justamente a morte daquela personagem a todos os títulos central. O texto irradia desse centro. Neste exercício de estilo, Almeida Faria não conta com um centro emissor, de onde as parcelas da narrativa descolem. Não há nenhum ponto de ancoragem. Pelo contrário as parcelas reúnem-se mais tarde e só no fim todas fazem sentido. Verdadeiramente só mesmo no fim do Cavaleiro Andante, quer dizer no fim da tetralogia. Notável! Finalmente uma última questão. No prefácio à 1ª edição de 1965, escrito por Óscar Lopes, e que prefácio brilhante, este autor alude a uma proximidade com o método fenomenológico à maneira de Husserl, o que Sepúlveda nega categoricamente. Para tanto Sepúlveda esclarece que “a fenomenologia está preocupada em revelar as estruturas essenciais da experiência humana, (enquanto) Almeida Faria descreve uma vivência, ou melhor, a consciência dessa mesma vivência. Essa descrição articula o singular e o universal de um modo que coloca o segundo ao serviço do primeiro. É por isso que o sentido simbólico de algumas descrições, assim como a imagética religiosa ou sociopolítica nelas contida, nunca as condiciona, porque essa descrição do humano que tanto tem de poético quanto de narrativo é o objecto primeiro e único do livro. Sinceramente não me parece acertado, pois se Husserl procura de facto, e é esse é o maior problema da fenomenologia plenamente desenvolvida, as estruturas essenciais da experiência humana, antes disso eu diria que ele procura recuperar uma experiência perdida, a experiência de uma relação não mediatizada pelos arquétipos conceptuais, de modo a permitir o trabalho imediato da consciência. Há assim uma fase em que a fenomenologia ainda não é uma fenomenologia transcendental e é apenas uma fenomenologia psicológica descritiva; e portanto, nesta fase, a fenomenologia ainda não pretende ser a ciência da essência do conhecimento, ou doutrina universal das essências. É só segundo esta perspectiva que a posição de Sepúlveda não está correcta, ele não teve em conta a evolução histórica da fenomenologia. Mas, é verdade, que no seu processo evolutivo Husserl passou das Investigações Lógicas (1900-1901) em que predominava uma ideia de fenomenologia empírica ligada às vivências, segundo o seu conteúdo, ou seja às vivências do eu que vive, para uma fenomenologia transcendental. É relativamente a essa fase que Sepúlveda tem razão. Porque é verdade que, a partir de certa altura, Husserl falará cada vez mais de uma consciência constituinte e transcendental. Isso será sobretudo a partir dos trabalhos de 1907 e de uma forma plenamente sedimentada sobretudo nas Ideen de 1913. Mas este foi a meu ver o passo fatal dado por Husserl, o que o afastou de uma fenomenologia para um idealismo transcendental. O que me permite continuar a falar da presença de Husserl na obra de Almeida Faria reside no facto de que para mim o essencial de Husserl reside nas suas intuições iniciais, no regresso às coisas, na epoché fenomenológica, além de que a própria redução fenomenológica promove um retorno à consciência e desse modo se preocupa com a revelação das estruturas essenciais da experiência humana, contudo não na perspectiva da constituição de uma ciência mas de facto de uma experiência. Eu penso ainda que mesmo nos seus piores momentos a fenomenologia mantém sempre alguma coisa das suas intuições originais.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUrbi et Orbi Os povos cansaram-se das eleições um pouco por todo o lado na Europa numa massiva desconsideração pela forma de se fazerem representar. Isto quer dizer que os actuais sistemas estão disfuncionais face à sua razão de existir e que o facto de estarem a colapsar não vai assegurar, como é óbvio, a sua legitimidade: não sabemos para onde se dirige a marcha mas à medida que a farsa se contempla a si mesma, intuímos o fim dela, e esta sensação não é boa. Há uma manutenção de moribundo que culmina com a saúde do morto no dia das eleições. O que falhou? Isso são abordagens mais amplas, como as sociológicas, históricas, filosóficas , mesmo, para as pessoas, neste estado ainda do seu desenvolvimento, elas apenas processam a auto-sustentação das suas vidas intranquilas que as impede de indagar o seu instante como um argumento urgente para a sua continuidade. Também não creio que estejamos em processo reformativo, tudo o que foi mudando, talvez seja tanto, que o que ficou não possa ser reformulado… Os fluxos migratórios parecem diques… inundações, toda esta geopolítica é muito fluída e não temos uma ideia clara do que venha a ser o futuro imediato. Os problemas ambientais só agora se sentem, os reflexos, as mutações… Estamos num Inverno quente e cinzento… o calor é tão estranho quanto a nossa impreparação orgânica. Lidamos quotidianamente com uma dimensão pouco habitável, difícil, onde temos de adaptar os nossos organismos à imprevisibilidade reinante como jamais nos fora exigido no vasto programa das idiossincrasias cósmicas e naturais. Estamos naturalmente acossados dentro de um prisma que sentimos irrespirável, pondo a funcionar o sentido de uma “guelra” antiga pois não tarda a emagrecerem as costas e a subirem os mares numa conquista que tanto pode ser continuada como abrupta. O ciclo luarento que ditou a ganância, a usura, a fome contínua, essa febre do útero infernal, está como paralisado ou então a fome mudou. Nem tudo é já para “comer”; rodamos esta ampulheta e nada, quase, já se pode comer. Ou a fome é mesmo outra coisa que já não quer dizer nada acerca dos fundamentos do ciclo alimentício do passado ou tudo isto poderá, como disse, acabar de vez de forma abrupta ou descontinuada, como agora está tão em voga quando querem acabar com um produto, deixando-o existir até à sua falência. Estas designações verbais, aliás, também não são inocentes, já que como todos sabemos não há signos assim e a linguagem é a sinalética menos inocente que temos. Olhar agora para o mundo com as prerrogativas artesanais do ciclo da grande voragem é, quanto a isso sim, um estado de inocência, é uma mansidão que já não se coordena com a radicalidade atmosférica. Estamos dessincronizados do “habitat” em cada vez maior escala, obviamente que isto dará toda a espécie de psicoses e até de más formações congénitas. Atravessamos um deserto imenso onde cada um tem de levar a sua lanterna, porque a visão do grupo não é condutora de nenhum caminho. Encaminhados para o leve, falemos um pouco de «Massa e Poder», o livro de Elias Canetti, que dá bem a dimensão de um mundo a ir, sem uma plataforma de devir muito clara e cujo poder se chama outra coisa. Acerca desta obra se diz: – Canetti ensina-nos que a massa não se reduz a ser um simples aspecto característico das sociedades modernas, mas que foi e continua a ser muitas outras coisas; que pode matar e ao mesmo tempo atrair; e, sobretudo, que não existe sem o seu contrapeso: o poder. À proliferação da primeira corresponde a solidão e paranóia do segundo. Há um longo epílogo no livro que se chama muito exemplificativamente «A dissolução do sobrevivente». Fronteiras que tecem territórios móveis são sempre inquietantes. Mas não duvido que tenhamos todos que pegar em duas ou três verdades tidas por conhecidas e avançar, dado que nada se resolve voltando para trás. Como vimos, há um sistema gasto, ou cansado de ser, uma caricatura da participação, dado que metade das populações dos países se demite da sua liberdade de a usar o que não tardará a criar desconforto e ilegitimidade aos próprios eleitos. É certo que cada vez mais os seres se agrupam tentando ser eles a criar as soluções dos seus destinos, que gerir bem o mais perto é a vantagem de se conhecer o terreno e que os tratados e códigos se acham atolados de inoperância fase à magnitude da necessidade humana. Que mesmo que queiramos ver intentos passadistas nas intenções, eles também já são feitos de outra maneira e com outros pressupostos, que começa a haver um hiato entre aquilo que os mais velhos estipularam e a surpresa de não conseguirem com as mesmas práticas os mesmos resultados. A noção da equidade talvez esteja a ser sobreposta pela da igualdade, que a contempla, num justo processo acelerativo, o que faz de cada um de nós, indivíduos despertos para sair da manada ou da alcateia, sem com isso ter de ser ostracizado pelo ritual da partilha que é ainda a forma primitiva de distribuição em série. São as leis laborais que vão ordenar o nosso espaço ambiental e fazer que tenhamos uma noção individual não programática, mas com reparações em cada novo ano. Não sei que ruptura se dará perante o estado de coisas em voga, já tão generalista quanto impróprio para se fazer ouvir. Há momentos muito reveladores que parecem não serem apenas tristes acasos, mas sim , algo de muito mais profundo que vai ser preciso abordar. Escuso-me a qualquer pergunta dado que esta é sempre uma intromissão, mas gostaria de indagar este estado de coisas a partir desta altura que me parece tão charneira. Como se fossemos todos encetar uma longa viagem por caminhos muito pouco programáticos e que nos dissessem que é neste estado de coisas que não nos podemos esquecemos de salvar o Homem mais como acto poético do que como resolução objectiva. Há dias duros na Terra e ela muda tão rapidamente… e toda a estrutura fixa da nossa dor não passa de um acaso não visitado pela nossa inteligência que só agora irrompe em buscas de outras Catedrais. Ao nosso redor a mudança vária, mas uma estrutura que tende a parar para a sua própria compressão num imobilismo muito denso, tal se nos apresentam agora as sociedades que num labor insuficiente procuram desesperadamente auscultar o que se passa nos interstícios daquilo que afinal obedece também ao fascínio Humano: o não saber prever o ângulo de acção mais directa.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasA propósito de águas Após semanas de angustiante espera saíram as listas da Drinks International dos melhores e mais trocados – nos melhores bares – espíritos, cervejas e águas do ano. Uísques, gins, vodkas, águas tónicas e não, até champagnes e cervejas merecem atenção. Interessam-nos de sobremaneira as águas porque uma leitura das escolhas do ano revela vários nomes que se encontram com facilidade no território. Infelizmente o mesmo não se pode dizer das águas tónicas, uma vez que em supermercados e outras lojas do território se continua a encontrar apenas uma ou duas marcas aborrecidas. O Relatório Anual oferece dois tipos de consideração por cada bebida: Best Selling Brands e Top Trending Brands, a primeira baseada no número de garrafas vendidas (repito, nos melhores bares de acordo com a D.I.) e a segunda baseada em nomes que estão na moda e que têm sido muito pedidos. Marcas da moda numa altura em que tudo está na moda. A Fever-Tree é não só a mais vendida das águas tónicas como é a mais encomendada. Está na moda, não há nada a fazer. A Schweppes é a segunda mais vendida e a Fentiman’s a terceira (considerada por alguns como tendo um sabor intenso que interfere demasiado com os espíritos a que se adiciona). As mais in-fashion são a Fever-Tree, a Fentiman’s e a Schweppes. A Q Tonic, menos doce e menos calórica, (é uma questão de gosto) também está muito bem classificada. Em Macau há Fever-Tree no bar do Ritz-Carlton, pelo menos. Na minha opinião, insisto em afirmar que o Gin Tónico é uma bebida muito simples e que se alcança domesticamente com facilidade. Basta o Gin de que se gosta, uma confecção correcta do gelo feito no dia com uma água pouco mineralizada, água tónica com bom gás, bom limão e uma disposição positiva. A escolha das águas minerais espelha também (como aliás as escolhas de todas as bebidas) o poder das grandes marcas internacionais, a sua capacidade publicitária e de distribuição, um capitalismo aquífero. A marca mais vendida e mais in-trend é a San Pellegrino. Nada tenho contra a San Pellegrino e o seu alto teor de sulfatos, uns brutais 549 mg por litro (por exemplo: Badoit 40; San Benedetto 5) ajudam a combater excessos alcoólicos ou gastronómicos, um auxílio de alto preço. Mas é pena que da Itália, onde existem, caso inultrapassável, mais de 600 marcas de água – para além de ser o país que mais a consome – não cheguem aos bares e mesas domésticas muito mais marcas para além desta vencedora, da Acqua Panna (a minha água lisa preferida) e a San Benedetto. No Japão existem mais de 450 marcas de água mas não há nenhuma que se tenha imposto no mercado, possivelmente porque não é bebida que seja reconhecida no próprio país como importante.* As mais vendidas nos melhores bares do mundo, segundo a Drinks International são: 1. San Pellegrino, 2. Acqua Panna, 3. Perrier, 4. Evian, 5. Vichy, 6. Fiji, 7. Mountain Valley, 8. Hildon, 9. Antipodes e 10. Strathmore. Destas apenas a 7 e a 10 tenho a certeza de nunca ter visto em Macau. O mercado é muito flutuante. Há muito que não vejo à venda duas das minhas águas preferidas, ambas alemãs, a Gerolsteiner e a Apollinaris. A Antipodes existia no O.T.T. mas não sei se permanece. Nota importante: Como já aqui foi dito em artigo exclusivamente dedicado a águas a propósito de livro de Mascha: “no território(…)vivemos abençoados, protegidos, pela presença de um número decente de excelentes águas portuguesas, da das Pedras à Vidago ou à Carvalhelhos”. Águas lisas há muitas. As águas no topo da moda são: 1. San Pellegrino, 2. Perrier, 3. Acqua Panna, 4. Antipodes, 5. Fiji, 6. Mountain Valley, 7. Topo Chico 8. Vichy 9. Hildon e 10. Evian. Outras notícias: 1. Dos Champagnes indicados como os mais vendidos e mais requisitados do ano praticamente todos se encontram com facilidade em Macau, marca da eficácia da distribuição e garantia de alegrias vastas. Esta categoria ilustra à perfeição a diferença entre marcas mais vendidas e marcas na moda, up-trending em bares do momento: A mais vendida, a Moët & Chandon, não figura sequer no grupo das 10 mais requisitadas nos bares mais na moda. Na cerveja a Carlsberg é a terceira mais vendida mas nem aparece na segunda lista. A Peroni é a primeira das duas listas. As escolhas de cerveja espelham a predominância (ainda) das lagers, uma tendência com uma história relativamente curta, modelo perfeito de como 2 ou 3 marcas conseguiram impor a nível mundial uma preferência por um tipo de cerveja muitas vezes desinteressante. Como é que alguém pode beber Carlsberg ou Heineken é um profundo mistério. As japonesas estão bem representadas e aproveite-se para lembrar que não há cervejas japonesas más. Os 3 Top-trending uísques são japoneses, um exemplo revelador de como uma boa distribuição, alta qualidade e paciência transformam o mercado. Ketel One, Grey Goose, Absolut, Stolichnaya, Belvedere, Aylesbury Duck, Zubrowka, Beluga e Ciroc são os vodkas que figuram nas 2 listas. Apenas grandes marcas internacionais. 2. A D.I. apresenta igualmente a lista dos melhores cocktails clássicos do ano, o primeiro dos quais é um Old Fashioned, seguido do Negroni, Manhattan, Daiquiri, Dry Martini, etc., até ao número 50, um tiki com rum e cognac. Os mais atentos terão reparado que se deslocaram a Macau, ao bar do Hotel Mandarin, num fim de tarde, 2 mixordeiros conhecidos do bar Please Don’t Tell de Nova Iorque, figurante da lista dos melhores bares da D.I., já aqui também apreciada. Apresentaram 6 cocktails clássicos que não desiludiram. 3. Abriu recentemente, para lá do bar do Hotel Ritz-Carlton e do bar do Hotel-Residências Ascott, ambos aqui descritos, um bar no Hotel St.Regis, não revisto ainda. As fotografias prometem um bom sítio. * Michael Mascha, autor do atraente livro sobre águas Fine Waters, já aqui revisto, estima existirem umas três mil marcas de água, 50% das quais italianas, japonesas, alemãs ou francesas.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasUma travessia do Delta Literário de Macau Não deixando de referir e correlacionar textos tributários de códigos de género híbridos – memórias, diário, epistolografia, narrativa biográfica e autobiografia, relatos de viagens e testemunhos históricos, reconto etnográfico e, em especial, crónica –, nesta nossa cartografia de O Delta Literário de Macau, primeiro volante de um políptico a completar, consideramos a “literatura” no sentido específico de criação imaginativa em arte verbal. Tomamos, assim, por “literatura de Macau em língua portuguesa” a criação estético-literária de autores que em Macau se descobrem ou afirmam escritores, que em Macau são editados e/ou criticados, reconhecidos e avaliados como escritores – acrescendo que, não em todos os casos mas em grande parte deles, não figuram no cânone da literatura portuguesa de acordo com os meios de reconhecimento, legitimação e valorização do seu funcionamento institucional (editores e críticos, professores e conferencistas, júris e associações, manuais e programas escolares, etc.). Nesta literatura de Macau em língua portuguesa podemos ver confirmado e ilustrado que toda a escrita é, de algum modo, registo de certo momento de uma identidade em processo, num devir de estabilização ou de crise. Como ao longo dos séculos e em todas as latitudes, a escrita literária que agora estudamos revela-se em Macau um modo especial de dizer esse momento; e revela-se também um fazer ou refazer da sua contingência em processo de comunicação (e de autocomunicação). Quer nos géneros da “escrita do eu” (diário e memórias íntimas, epistolografia e narrativa autobiográfica, etc), quer no endosso ficcional a personagens romanescas ou dramáticas, a literatura desde sempre figurou e reconfigurou trajectos de formação de identidades – individuais e comunitárias, grupais e nacionais -, fazendo sentir que isso envolve muito de história das relações da subjectividade ou da entidade colectiva com o seu mundo próprio e com o universo espacial e temporal dos outros seres e das outras comunidades. Todas as individualidades e todas as comunidades vivem aí a passagem da ordem da natureza para a ordem da cultura; todas vão modelando o real de acordo com suas línguas e demais sistemas de signos, com a historicidade das mundividências, dos horizontes de saber e de crença, dos sistemas de valores e de comportamento; e todas prosseguem a redefinição das fronteiras do corpo ou território próprio e das interdependências existenciais, com um sentimento de continuidade temporal. Este sentimento radica na memória singular e colectiva de um património de experiências e ideais, exige empenhamento nas tarefas do presente, gera expectativas e pede projectos para o futuro. Embora o cuidado de definir conceitos de identidade e o interesse em explorá-los no jogo de forças dos indivíduos e das comunidades seja típica da modernidade, a vivência dessas identidades e o confronto com outras identidades atravessa toda a história do humano, sofrendo metamorfoses no processo de permanências e mudanças que lhe é inerente. Talvez também se deva pensar o mesmo em relação a outro aspecto que, no entanto, se foi tornando mais forte e mais consciencializado na era contemporânea: deu-se a erosão dos modelos identitários tradicionais e do seu discurso monológico com suposta base numa essência, e, em contrapartida, vem prevalecendo a convicção da relatividade histórica e contextual das identidades, da sua natureza pluridimensional e da sua interdependência de outras identidades. Assim, sendo inegável que continua a fazer-se sentir a necessidade de “reconhecimento” em que se joga uma função identitária, confirma-se hoje o que talvez já pudéssemos ter lido nas representações e figurações literárias do passado, isto é, que o humano individual e colectivo, interpessoal e inter-nacional, deriva sempre numa dialéctica de identidade e alteridade, de inclusão e exclusão, de estranhamento e acolhimento. Mas a literatura, e em particular a literatura de autores ocidentais portugueses cujos caminhos e descaminhos da vida passaram pelo Oriente, mostra-nos mais: é nesse processo do confronto com o outro e com a sua diferença étnico-cultural e é no debate sobre a exclusão ou o acolhimento dessa alteridade que o sujeito da identidade em causa se pode conhecer melhor. Reconhece-se então com outros contornos e profundezas, sente o apelo de outra autenticidade, transforma enfim a sua identidade em função do confronto ou encontro com o outro. Além disso, lendo sob nova luz essa literatura, daí ressalta que muitas vezes se trata da descoberta do “outro de si mesmo”: o abalo ou perturbação, que a aparente hiperidentidade do eu ou da comunidade sofre no encontro ou no confronto com o outro, gera condições propícias para aquela revelação do “outro de si mesmo”. Convém lembrar agora que, pensando que a subjectividade se funda na distância da consciência de si, Levinas dizia: «o sujeito é hóspede e hospedeiro»; o sujeito há-de acolher o outro, porque desde logo tem de se acolher a si mesmo com um outro. Por isso, certa linha actual de renovação da leitura literária centra-se nessa relação de hospitalidade que abre a perspectiva da diferença e da sua compreensão vivencial. Partindo dos próprios géneros tradicionais da “escrita do eu”, essa interpretação da escrita como hospitalidade e como auto-hospitalidade estende-se depois a todas as realizações da lírica, da narrativa e da dramática. Não tem dificuldade em se ilustrar na análise de diários e memórias íntimas, de obras de epistolografia e de autobiografia, etc; mas, ao mesmo tempo que vai evidenciando como todas essas modalidades de escrita do eu se tecem numa tensão entre o sonho impossível de plena fusão em si mesmo e de consciência das reservas de alteridade que em si se escondem, também não tem dificuldade em descobrir a urgência de introspecção e auto-retrato em autores de memórias histórico-sociais (caso de Raul Brandão e tantos outros), de ensaios (afinal, desde a matriz em Montaigne…), de escritos aforísticos (caso de escrita hospitaleira dos pensamentos singulares), de biografias (a tal ponto era pressionante a emergência de traços idiossincráticos e existenciais do autor por detrás da história do biografado, que hoje entrou em voga o romance do biógrafo…), etc. Esta orientação de leitura traz assim nova valorização do alcance antropológico da literatura como auto-interpretação e imaginação simbólica do humano. Essa valência da antropologia literária reforça-se ainda porque muitos textos comprovam que os gestos e movimentos de reconhecimento e de hospitalidade buscam e motivam gestos e movimentos de reciprocidade. E comprovam que, mesmo quando falta essa reciprocidade, os ganhos de autoconhecimento e auto-acolhimento podem proporcionar e acalentar processos de resiliência das identidades fragilizadas, feridas, prostradas. Podem motivar recuperações de autoconfiança e superar situações adversas à realização das potencialidades de cada homem ou de cada povo. A refracção poliédrica que o humano encontrou na literatura de todos os tempos, e com especial acuidade na literatura moderna, traz-nos sem dúvida a contraface dessa hospitalidade na escrita e dessa resiliência pela escrita, isto é, não deixa de patentear tendências de repúdio da hospitalidade (e até da auto-hospitalidade, como se vê, por exemplo, em Rimbaud) e de exclusão violenta, com regressões do humano à cruel bestialidade (como se vê em Conrad, por exemplo). Mas essa contraface não exclui a outra face da natureza humana nas contingências da historicidade – facto de que temos a contraprova irónica na retórica da alteridade que durante muito tempo estruturou, de forma mais ostensiva ou mais subtil, o discurso da novidade trazida pela viagem (como no caso português muito bem exemplifica a escrita da famosa Carta do Achamento do Brasil, por Pêro Vaz de Caminha). Ora, um tipo de literatura onde o entrechoque de tais tendências melhor se manifesta é precisamente o que incide na viagem – quer pensemos no sentido genológico do que habitualmente se designa por “literatura de viagens” (e já aí deparamos com enorme variedade de motivações, de características temáticas e formais, de efeitos pragmáticos), quer alarguemos a nossa visão para todas as modalidades de figuração da vida e da morte como viagem (outra valência antropológica da literatura, na medida em que representa ou imagina a condição do ser como Homo viator, em religiosa peregrinação para a Transcendência celeste ou por deslocação agnóstica na imanência terrena), quer tentemos actualizar o tópico da obra ou da escrita como viagem – viagem que é significado e metonímia, viagem que é significante e metáfora. Depois, a modernidade literária trouxe uma melancólica auto-reflexão – uma melancolia que, no fundo, está relacionada com a incerteza que o sujeito passa a sentir acerca de si mesmo, tanto quanto passa a pensar-se não como um dado determinado e estabelecido a priori, mas sim como uma possibilidade que tem de ser constituída no texto… e que nunca lhe garantirá uma identidade definida e definitiva. E tudo isto tem muito a ver com a obra de tantos escritores portugueses que aportaram ao Oriente, alguns a Macau, e praticaram a arte literária “das lonjuras” (como diria Jean-Marc Moura) nem sempre hipotecada à construção do “orientalismo” como modo de discurso colaço da estratégia imperialista do Ocidente – desde Camões e Fernão Mendes Pinto até Ruy Cinatti e Maria Ondina Braga, passando por Bocage e Tomás Ribeiro, por Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, por Alberto Osório de Castro e António Patrício. Quanto até aqui ponderámos sobre a experiência literária da problemática de identidade e alteridade e sobre as condições de uma escrita da hospitalidade, mormente num contexto de “viagem” a Oriente, ganha particular acuidade e, ao mesmo tempo, feição diversa na leitura dos autores da literatura de Macau em língua portuguesa – bom exemplo de valência da literatura como espaço de aprendizagem da alteridade. Assim é desde logo pela condição alocêntrica que lhe reconhecemos, em relação quer à China quer ao Ocidente português, e pelo substrato genotextual que por isso pressupomos perante as suas criações estético-literárias, mas também pela condição peculiar do contexto macaense. Com efeito, Macau distingue-se como espaço histórico de multiculturalismo, primeiro na coabitação desigual das comunidades portuguesa e chinesa e no alheamento ou desdém preconceituoso perante as respectivas culturas, mais tarde em progressiva diluição das fronteiras entre “cidade cristã” e “cidade china” e com avanços e recuos na atenção mútua aos traços peculiares das ancestrais tradições socioculturais, aliás refractárias a movimentos de hibridização. Com raras quebras dessa ausência de interacção de culturas ao longo dos séculos, é recente o pendor de práticas verdadeiramente interculturais, peculiares da contemporaneidade – sem rasurar as incompreensões, patentes ou veladas, que são afinal inerentes aos fenómenos de contacto entre culturas e povos (como oportunamente alegoriza Ana Maria Amaro na última narrativa, «Aves de arribação», das Aguarelas de Macau). Gradativamente caldeada no crisol da “estética do diverso” (na acepção poetológica do poliglotismo cultural, trabalhada pelo com conhecimento de causa pelo escritor e pensador antilhano Édouard Glissant), a literatura de Macau foi despertando primeiro para o pitoresco de usos e costumes chineses ou a “cor local” do espaço macaense de multiculturalismo, sobretudo através do etnografismo lírico e romanesco. Só hodiernamente vem reflectindo (e desse modo reforçando) a interculturalidade, com o jogo de relações intertextuais, de traduções e recriações, de citações e empréstimos linguísticos, de apropriação de símbolos e mitos, etc. Se Macau se distingue por esse processo faseado de estádios de multiculturalismo e diferentes estádios de interculturalidade, a literatura de Macau em língua portuguesa também se distingue pela comparticipação faseada nesse processo, ao mesmo tempo reflectindo e promovendo a componente intercultural da identidade plural e aberta de Macau. * Não escasseiam oportunidades e razões para evidenciarmos como no delta literário de Macau é recorrente a exploração ficcional e lírica da geografia física e humana do território, não já como mera manifestação epigonal de intuitos naturalistas ou realistas, mas sim segundo uma geopoética que – como sabemos melhor desde Bachelard até à Escola de Limoges – modeliza relações criativas entre as figurações formais e semânticas dos espaços macaenses, mas subentendendo que esses espaços geofísicos são indissociáveis dos processos históricos e das dinâmicas sociais e culturais que neles ocorrem e do imaginário que neles se projecta e se sedimenta. Eis aí mais uma vertente do delta literário de Macau, às vezes polarizada pelo apelo mitográfico em torno do que Luís Sá Cunha chamou o topos sagrado de Macau, e cuja exploração deixamos in progress, no âmbito aliás de implicações mais problemáticas de outra questão que a literatura como conhecimento nos chama a dilucidar – a dos traços identitários da literatura de Macau. Não se justifica que nos continuemos a enredar excessivamente na reconsideração do problema do exotismo e do orientalismo. Todavia, não merecem ser descurados os elementos exóticos de uma literatura situada a Oriente, mas criada em óptica variável por escritores de origem ou de formação ocidental, deslocados e radicados em Macau ou filhos da terra com padrões axiológicos e culturais da portugalidade em diáspora (imperial ou pós-imperial). A literatura estudada n’O Delta Literário de Macau confirma que os intelectuais macaenses se mantiveram apegados (com orgulho patente, ou com vinculação velada, ou até à contre coeur) às marcas históricas e culturais de identidade lusíada, como meio aliás de preservação da sua identidade comunitária (sino-lusa, não chinesa), sobretudo enquanto a própria aspiração de autonomia podia ser paradoxalmente sentida como interdependente da associação política com Portugal. Mas, mesmo enquanto tal, a mais genuína literatura de Macau em língua portuguesa deve também ser encarada como processo de legitimação da auto-imagem de uma “periferia” lusíada, mais do que como profissão do olhar imperial de um “centro” remoto (como diria a Mary Louise Pratt de Imperial Eyes. Travel Writing and Transculturation). Importa, porém, chamar a atenção para a emergência de um orientalismo literário mais profundo do que os estereótipos que é costume patentear. Em nosso entender, Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes, Maria Anna Accaioli Tamagnini e Fernando Sales Lopes, mais alguns outros aparentados, vieram descobrir e assediar no Oriente, via Macau, um magistério esotérico, sempre com indefinido horizonte de sentido e com alcance prometido mas diferido, que vinha ao encontro de uma das mais subtis e sortílegas tendências da literatura ocidental: aquele sentido divinatório da vida analógica dos seres e das coisas, movida pela energia empática remanescente da unidade e da harmonia primigénias, e em que o poeta anseia iniciar-se para superar a cisão monádica dos entes e a dor da impossibilidade de comunicação plena e de plena comunhão no conhecimento e no amor. * O trajecto que conduzimos através d’O Delta Literário de Macau permite uma percepção mais forte e mais esclarecida do devir dos centros de interesse e das motivações que de época para época foram movendo os seus escritores, das características temático-formais que subsequentemente adquiriram os seus textos, dos padrões por que se regeram, da cultura estética que a tudo isso foi subjazendo. A esse propósito, achamos pertinente evocar certo passo, de reacção satírica e de auto-ironização local, em conto de Senna Fernandes («Ódio velho não dorme», texto notável de ilustração memorial ou ficcional do lema contido no título). Aí – já após a charneira do século XX, mas em paralelo com o que ocorrera em períodos precedentes – torna-se ficcionadamente notória a desactualização da cultura literária em Macau e a relação tardia ou frouxa com os estilos epocais euro-americanos e sua presença sincrónica na literatura portuguesa. Tal como surge apresentado, em ambíguo radical de comunicação, só o protocolo de leitura que se estabelecer com o texto poderá determinar o seu estatuto discursivo. De qualquer modo, esse texto explora abundantes dados sobre vida em Macau durante décadas e abundantes coincidências com trajectória biográfica do autor (infância e juventude nas escolas de Macau, ida para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, exercício da advocacia em Macau, idas a férias a Portugal, etc.); e depõe sobre a cartografia das correntes contemporâneas da literatura portuguesa, entre sátira (ao que de bluff e moda ideológico-cultural representa neste lance o pretensiosismo de Heitor, antigo amigo do liceu macaense agora lisboetamente distanciado) e auto-ironia (ao que de efectivamente retardatário, pouco informado ou pouco actualizado, terá tido a cultura literária do autor ou dos meios intelectuais de Macau): «Entre duas cervejas e debicando tremoços, estalando de superioridade intelectual, os dedos a aparar o bigodinho irritante, perguntou-me de chofre, sempre com o odioso “você” para trás e para diante, que opinião tinha eu do movimento neo-realista português. Volvi modestamente que não sabia de nada, só lera uma ligeiríssima referência num jornal de Macau. Teve claramente pena de mim e teimou no assunto. // E, na poesia, que opinião fazia de José Régio, Mário de Sá-Carneiro, Torga e Fernando Pessoa? Redargui esmagado que eram apenas nomes e não os estudara. E o movimento da Presença, o Orfeu? Nada, foi a triste resposta. Abanou a cabeça com dureza de quem está a perder tempo com um analfabeto.» O nosso trabalho sobre o delta literário de Macau permite dar conta dos fluxos de curto, médio ou longo curso, em que se traduz esse fenómeno de cultura literária e os efeitos de arrastamentos temático e formal a que ele dá origem ou cobertura de boa consciência estética. Mas permite também descobrir, nuns casos, e corroborar, noutros casos, que o estado de coisas na república das letras macaenses se alterou sensivelmente nas décadas mais recentes; e que aquele retardamento e seus nefastos efeitos foram em grande parte fecundamente erradicados pela nova literatura de Macau em língua portuguesa. A literatura de Macau, em especial no domínio da poesia, soube ir ultrapassando os estádios de simples concepção vivencial e de dicção elementar, caracterizado por uma ausência de construção e de densidade irónica, um derrame de cândido expressivismo com escassa “capacidade de inibição”, uma previsibilidade de temas e um gosto de estilemas estereotipados, sem rasgos de estranhamento perceptivo e expressivo – enfim, um versejar e um rimar que parecia alheado ou discordante das transformações trazidas pelo(s) Modernismo(s) de Orfeu e de Presença e pelos contrapontos do Neo-Realismo e do Neo-Modernismo nos meados do século XX, mais se mostrando temeroso dos riscos de inovação temática e de experimentação estilística. De época para época foram-se afirmando sinais iniludíveis de inconformismo com os padrões saturados e novos intuitos de expressão estética em equação com tendências literárias da Modernidade tardia. José Carlos Seabra Pereira
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAté à criação da diocese de Macau [dropcap=’circle’]A[/dropcap] 23 de Janeiro de 1576 foi criada a Diocese de Macau e quatrocentos e quarenta anos depois, em 2016 é sagrado o novo Bispo, Stephen Lee Bun-sang, que veio substituir D. José Lai Hung-seng. Macau, desligando-se da Diocese de Malaca ao qual pertenceu durante dezoito anos, ficava com jurisdição eclesiástica sobre o Extremo Oriente tornando-se a base da evangelização e o centro de divulgação da cultura ocidental na zona do Pacífico. Para entender a História que antecedeu a criação da Diocese de Macau deveremos recuar até 1415, ano do início do Padroado. A 21 de Agosto de 1415, os portugueses sem grande dificuldade submeteram a praça marroquina de Ceuta, abrindo assim no Norte de África, um novo destino para Portugal. Tinham decorrido sete séculos desde que o Islão por aí passara para a Península Ibérica e com a conquista de Ceuta, fechava-se a porta às ajudas muçulmanas a Granada, controlando-se ainda a entrada no Mediterrâneo. Segundo Veríssimo Serrão, “O feito ganhou auréola na história europeia, ficando aquela cidade como o símbolo do poderio cristão implantado em Marrocos. Como ficaria também conhecido o empreendimento de D. João I, que representava o início de um Portugal marroquino de há muito desejado pela coroa de Avis e que para muitos historiadores representa a abertura dos tempos modernos.” Assim uma nova ideia de Cruzada surgira e fora antecipada pelo Papa Bonifácio VIII, quando em 1299 criou “simbolicamente, um bispado em Marrocos, atribuindo o direito da apresentação alternativamente aos reis de Castela e Portugal”, de Filipe Thomaz como informação de A. Dias Dinis. Esse desviar do objectivo, que se virou para o combate aos muçulmanos de Espanha, deveu-se à queda em 18 de Maio de 1291 de São João d’Arce, o último reduto cristão no Oriente, terminando assim o primeiro período das Cruzadas (1096-1291). Depois da conquista de Ceuta, o Rei D. João I, após esperar pelo fim do conclave no Concílio de Constança, solicitou ao Papa Martinho V a criação em Ceuta de um bispado, abrindo assim as portas ao Padroado. Pela Bula Sane Charissimus de 4 de Abril de 1418 foi solicitada aos arcebispos de Braga e Lisboa a execução do pedido e aceite, com a sentença executória de 6 de Setembro de 1420 desta bula, ergueu-se a Sé de Ceuta. Como Frei Aimaro de Aurillac, franciscano inglês trazida para Portugal pela Rainha Dona Filipa de Lencastre, já desde 1413 era Bispo de Marrocos, ficou a ser o primeiro Bispo de Ceuta, mas nunca lá passou. Ordem de Cristo Iniciava-se assim um novo período de Cruzadas, mas estas já sem o pendor bárbaro que os Cavaleiros do Norte levaram à Palestina, quando todos os infiéis eram para matar. Abria-se um novo tipo de Cruzada, que investia na conversão, pela razão ou à força, e que rapidamente se transfigurou, virando-se para a conquista dos mares em descobrimentos de novas terras e novas gentes para o Cristianismo. Quem tomou em mãos tal obra foi o Infante Dom Henrique, o Navegador, que se propunha conquistar o território marroquino, chegar à Índia por barco e encontrar e povoar as ilhas do Atlântico. O Infante Dom Henrique tornava-se em 25 de Maio de 1420 Governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, fundada em 1315 pelo Rei D. Dinis, com os bens dos Templários portugueses. Institucionalizada a 14 de Março de 1319, pela Bula Ad ea quibus do Papa João XXII, a Ordem de Cristo tinha o Papa como Soberano e os seus Grão-Mestres, cavaleiros com votos de pobreza, eleitos pelos próprios freires, apesar de o primeiro, D. Fr. Gil Martins ter sido nomeado pelo Papa. A sede da Ordem passou em 1356 para Tomar. Quando, no ano de 1415, Portugal se expandiu para o continente africano, com a finalidade de tomar o lugar dos muçulmanos e propagar a fé cristã, deu-se início ao Padroado, que foi confiado à Ordem de Cristo e não a Portugal, sendo o Vigário de Tomar, Prior-mor da Ordem de Cristo, o primeiro a dirigir o Padroado. Para o Infante D. Henrique, filho do Rei de Portugal que não podia fazer voto de pobreza, foi criado um novo cargo na Ordem, o de Governador. Sempre com o acordo da Santa Sé, ficava assim na posse de membros da família real, mas a título pessoal, o controlo da Ordem de Cristo. Segundo Manuel Maria Variz, “A Santa Sé erigiu o Padroado, que ficou com os reis portugueses como padroeiros, com o encargo de prover todos os fundos necessários aos bispos e aos missionários das terras do Padroado, o direito de apresentar novos candidatos para as sedes que ficassem vagas, dentro do mesmo território”. Demanda do Preste João A política do Rei Afonso V, o Africano, estava virada sobretudo para as conquistas no Norte de África e mais tarde empenhou-se nas lutas contra Castela. Deixava ao seu tio, o Infante D. Henrique, o cargo de investir na navegação, tendo já Gil Eanes em 1434 dobrado o Cabo Bojador, mas traziam ambos um comum objectivo, procurar obter informações da terra de Preste João através da África Ocidental. Tal demanda vinha já de longe, mas em 1442, por se considerar ser o Rio de Ouro uma das vias que dava acesso à Abissínia foi para aí enviado Antão Gonçalves. A 18 de Junho de 1452, o Papa Nicolau V publicou a Bula Dum diversas dirigida ao Rei Afonso V concedendo-lhe plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo. As viagens marítimas portuguesas continuavam na descoberta para Sul das costas atlânticas de África, encontrando-se os navegadores sobre as ordens do Infante D. Henrique pelas ilhas de Cabo Verde e na costa do Senegal e Gâmbia. A 8 de Janeiro de 1454, o Papa Nicolau V pela Bula Romanus Pontifex confirmou ao Rei de Portugal “o direito de possessão e conquista nas terras descobertas e por descobrir, dando perpetuamente a Portugal as terras das descobertas, e as potências cristãs respeitaram o sistema de títulos definido pelo Papado e baseado na prioridade de descoberta, posse simbólica e reconhecimento pontifício” Manuel Maria Variz. Seguindo com ele, – em 13 de Março de 1456, pela Bula Inter caetera, o Papa Calisto III confirmava as concessões feitas por bula do seu antecessor, “ao mesmo tempo que concedia ao prior da Ordem de Cristo o padroado nas terras de além-mar, que ficavam sendo nullius diocesis. Concedia outrossim ao superior da dita ordem os poderes jurisdicionais que costumam exercer os ordinários dos lugares.” Tinha o Monarca o direito, assim como o dever, de enviar missionários e criar igrejas nas terras descobertas, que ficavam sobre a jurisdição da Ordem de Cristo e com a sede diocesana na Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar. Estava assim lançado o Padroado Português do Oriente.[quote_box_right]O grande desenvolvimento missionário no Oriente levou, após dezoito anos, à criação da Diocese de Macau, em 23 de Janeiro de 1575, que ficou anexada ao Arcebispado de Goa[/quote_box_right] “Em 1460, à data da morte de D. Henrique, a navegação portuguesa percorria já, de uma forma rotineira, os caminhos marítimos da Madeira e dos Açores, de Arguim e da Guiné, do Cabo Verde e da Serra Leoa, e executava sem problemas a grande volta do largo, que, aproveitando o regime de ventos dominantes, trazia as nossas embarcações de regresso dos mares tropicais ao litoral português, longe da vista de terra” como refere Rui Loureiro. A 13 de Novembro de 1460 morreu o Infante D. Henrique e o Rei D. Afonso V arrendou ao comerciante de Lisboa Fernão Gomes, por um período de cinco anos, a exploração comercial da rota da Guiné. Como nos diz Vitorino Magalhães Godinho em “A Economia dos Descobrimentos Henriquinos”, “a realeza deixa aos mercadores a tarefa de devassar os mares; e durante seis anos continuam os navegadores, a cargo desse burguês, a exploração metódica da costa africana.” Mas em 1474/5 expirou o contrato e o Príncipe D. João encarregou-se dos negócios ultramarinos. D. João II, quando subiu ao trono em 1481, tentou localizar o Prestes João e retomou o plano dos Descobrimentos. Mandou Diogo Cão explorar a costa africana ao Sul do Cabo de Santa Catarina, Frei António de Lisboa e Pedro Monterroio de localizarem o Prestes João e em 1487, Afonso Paiva ir à Etiópia e Pero da Covilhã, descobrir por terra as rotas das especiarias. Em 1486, de Lisboa partiu Bartolomeu Dias com a finalidade de entrar no Oceano Índico, tendo regressado em Dezembro de 1488, com a tarefa cumprida e refutando a concepção ptolemaica de mares fechados. Em 1492, no reinado dos Reis Católicos, Granada foi conquistada aos mouros e Cristóvão Colombo partia para descobrir a rota para a Índia, mas pelo Oeste. Apareceu no ano seguinte em Espanha o Patronato regio, confirmado em 1508 pelo Papa Júlio II. O Padroado Ainda em 1493, o Papa Alexandre VI por Bula Inter caetera dava o aval ao realinhamento do meridiano estabelecido directamente entre D. João II e os Reis Católicos, que o desviava mais para Oeste, passando a 370 léguas de Cabo Verde, o suficiente para abranger no espaço português o Nordeste do Brasil. Sem ficar estabelecida a fronteira do outro lado, pois as dúvidas do diâmetro da Terra deixavam para mais tarde essa demarcação, dividia-se assim o Novo Mundo pelos dois povos peninsulares em zonas de influência. Cabia a Portugal as descobertas a Leste desse meridiano e a Castela as de Oeste. Em 1494, com esta linha divisória foi assinado o Tratado de Tordesilhas. D. Manuel era Governador da Ordem de Cristo quando em 1495 se tornou Rei e assim, pela Bula Constante File a Ordem nunca mais saiu das mãos da Coroa, ficando D. Manuel I como o primeiro Rei Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Em 1540 foi reconhecida a Companhia de Jesus pelo Papa Paulo III e logo o Padre jesuíta Francisco Xavier partiu para Lisboa, onde chegou em Junho desse ano e daí embarcava a 7 de Abril de 1541 para ir missionar no Oriente. O Papa Júlio III emitiu a Bula Praeclara charissimi in Christo em 30 de Dezembro de 1551, que retirou à Ordem de Cristo a jurisdição do Padroado, entregando-a ao Rei de Portugal, tornando-se hereditária a administração da Ordem, marcando-se assim a separação entre a Ordem e a Santa Sé” As dioceses Segundo Nuno da Silva Gonçalves, “O Padroado conferia à Coroa Portuguesa o privilégio de criara dioceses e o direito de apresentação dos candidatos ao episcopado e aos principais cargos eclesiásticos, devendo a Coroa assumir as responsabilidades” organizativas e financeiras. Para organizar a expansão portuguesa, na parte religiosa usou-se a hierarquia que existia no Continente e assim, esses novos territórios passaram a ter dioceses, paróquias e escolas para formar os locais como missionários. A pedido do Rei D. Manuel I, o Papa Leão X criou a 12 de Junho de 1514 pela Bula Pro excellenti a Diocese do Funchal, concedendo o Padroado da Sé aos Reis de Portugal. Entregando a Sé do Funchal ao Bispo D. Diogo Pinheiro, até então Vigário de Tomar, ficava sobre a sua jurisdição todas as conquistas, o chamado Ultramar. Os Reis de Portugal em 1516 ficaram com o direito de apresentar as pessoas para todas as igrejas nas terras descobertas ou conquistadas e construir edifícios religiosos. Já o Rei D. João III pediu ao Papa Clemente VII novas dioceses e este, em 31 de Janeiro de 1533 decidiu que fossem criadas a dos Açores, Cabo Verde, S. Tomé e Goa, mas sem haver bulas, só a 3 de Novembro de 1534, o Papa Paulo III as criou, ficando “sufragâneas da Sé do Funchal, à qual concedia a dignidade metropolítica”, como refere o Padre Miguel de Oliveira que adita, ter ela passado com todas as outras dioceses em 1551 para a metrópole de Lisboa, sem nunca chegar a ir à Madeira o seu único Arcebispo, D. Martinho de Portugal. Ao novo Bispado de Goa ficaram subordinadas todas as terras desde o Cabo da Boa Esperança à China. Em Macau, os portugueses estabeleceram-se pelo menos desde 1557 e com eles, os missionários, sendo o seu porto uma base necessária para os comerciantes portugueses irem negociar a seda na feira de Cantão e levá-la para o Japão. Por essa porta comercial, os padres católicos entravam para missionar, se não na China, país poderoso feito num todo e centralizado em que não se podia usar o jogo de aproveitar as desavenças para fazer alianças, no Japão, onde guerras tribais entre shoguns serviam para criar uma propícia evangelização cristã. Com uma tão rápida evangelização no Oriente, foi necessário criar aí novos bispados e assim, a 4 de Fevereiro de 1558, o Papa Paulo IV pela Bula Etsi sancta elevou o Bispado de Goa à categoria de Arcebispado metropolitano e pela Bula Pro excellenti criou dois bispados sufragâneos, o de Cochim e o de Malaca, ao qual Macau passou a pertencer. Em 1567, o Papa Pio V designou o jesuíta D. Melchior Carneiro Leitão, Bispo de Niceia, para governar as Missões da China e do Japão. Imparável, o grande desenvolvimento missionário no Oriente levou, após dezoito anos, à criação da Diocese de Macau em 23 de Janeiro de 1575, que ficou anexada ao Arcebispado de Goa. Por bula Super Specula Militantis Ecclesiae o Papa Gregório XIII declarou ainda que ninguém, nem mesmo a Sé Apostólica, poderia anular o direito do Padroado, tal qual era concedido aos Reis de Portugal, sem o consentimento formal do soberano reinante. O Papa Clemento XI, em Copiosus de 1719 reedita essa cláusula.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasNeo-realismo microscópico [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]arlos de Oliveira nasceu no Brasil em Belém do Pará a 10 de agosto de 1921 e faleceu em Lisboa no dia 1 de julho de 1981. Apesar de nascer no Brasil veio com apenas dois anos para Portugal com a família, que se instalou em Cantanhede, perto de Coimbra, onde o pai exercia medicina. A partir de 1933 instala-se em Coimbra a fim de prosseguir os estudos, primeiro secundários e depois superiores, concretamente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se formou em Ciências Histórico-Filosóficas. É em Coimbra que dá os primeiros passos na actividade literária e no comprometimento político, tendo conhecido e feito amizade com membros do grupo neorrealista de Coimbra, Joaquim Namorado, João José Cochofel e Fernando Namora. É assim que publica o primeiro livro de poesia, intitulado “Turismo”, com ilustrações de Fernando Namora e integrado na colecção poética de 10 volumes do “Novo Cancioneiro”, iniciativa colectiva que, em Coimbra, assinalava o advento do movimento neorrealista. Ao formar-se troca Coimbra por Lisboa, vindo com regularidade à Gândara, na zona de Cantanhede. Em 1943 publica o seu primeiro romance, Casa na Duna, segundo volume da colecção dos Novos Prosadores, editado pela Coimbra Editora. No ano de 1944 surge o romance Alcateia, que viria a ser apreendido pelo regime. Participa com regularidade nas revistas Seara Nova e Vértice e em 1953 publica Uma Abelha na Chuva, o seu quarto romance, unanimemente considerado, uma das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XX. Em 1968 publica dois novos livros de poesia, Sobre o Lado Esquerdo e Micropaisagem, e colabora na adaptação ao cinema de Uma Abelha na Chuva, filme realizado por Fernando Lopes. Em 1971 sai O Aprendiz de Feiticeiro, conjunto de crónicas e artigos, e Entre Duas Memórias, livro de poemas, com o qual lhe foi atribuído o Prémio da Casa da Imprensa. Finisterra, o seu último romance, sai em 1978, tendo como paisagem de fundo a sua Gândara. A obra proporciona-lhe o Prémio Cidade de Lisboa, no ano seguinte. Devo destacar ainda a publicação de os Pequeno Burgueses. Neo-realismo microscópico O romance anda à volta de duas tramas passionais, antagónicas e complementares; A relação entre Álvaro Silvestre e Maria dos Prazeres e entre Jacinto e Clara. As linhas relacionais são de vária ordem, social, mental e histórica que o autor entretece muito bem através do recurso a dois tropos apropriados porque centrados no tempo, a analepse e a prolepse. A mim porém interessa-me mais outra história que não estas de que o romance dá conta. Pessoalmente, interessa-me mais a história intelectual do autor, pois é ela que descodifica os momentos particulares. Procedo mentalmente à releitura da obra de Carlos de Oliveira, mas agora às avessas. Explico melhor. É através da leitura de Finisterra, último romance do autor, e da paixão intelectual que me suscitou que eu entrei no coração e no cérebro da obra deste muito particular romancista e poeta do neo-realismo português e que portanto encontrei a chave para ir de novo ao encontro dos seus livros mais importantes, como é o caso deste Abelha na Chuva. Portanto em resumo, eu descubro o autor em Finisterra e a partir daí sigo para a compreensão dos primeiros livros, que penso não ter compreendido na altura do meu primeiro contacto. A chave consistirá no seguinte. Há um título de um livro de poesia de Carlos de Oliveira que me aparece como sendo o núcleo da descoberta. Aliás todos os títulos e subtítulos da poética de Carlos de Oliveira abrem pistas para a compreensão da sua obra romanesca. Agora estou contudo a referir-me ao livro intitulado Micropaisagem. De facto, o prefixo micro do vocábulo é a luz que de repente alumia o caminho. Carlos de Oliveira é um neo-realista microscópico, o que quer dizer que realiza na sua obra o abandono do neo-realismo sem a intenção de o fazer. Carlos de Oliveira é um observador que percebeu que a realidade não se deixa ver à vista desarmada. A partir daí toda a sua panóplia de recursos se centra na análise e dissecação do detalhe, provavelmente como mais nenhum outro autor português. O que acabo de dizer aparece provocatoriamente explícito em Finisterra, logo nas primeiras páginas, perturbadoras diga-se de passagem. Só depois de o ter surpreendido neste livro percebi que afinal isso, a que me refiro, estava disseminado por toda a obra. Quando digo micro estou a subentender a aplicação exaustiva deste conceito a rigorosamente tudo: os cenários (as paisagens), o tempo, as narrativas, as caracterizações das personagens e até as próprias intrigas. É tudo constituído ao microscópio. O autor não gosta de ser enganado pela ilusão das aparências, ou seja pelo que parece e geralmente não é. O neo-realismo de Carlos de Oliveira deve portanto muito já às hermenêuticas da suspeita e em particular à obra de Claude Lévy Strauss: O conhecimento da realidade só se constrói através do acesso ao que a realidade parece negar ao senso comum. Mas a abordagem do autor da Gândara não se situa no plano de uma artificialidade conceptual, mas antes, permanecendo em solo realista, apertando a malha da rede de observação, até ao limiar do invisível, ou seja do microscópico. Fazem-me sorrir as interpretações dos romances considerados neo-realistas através da metodologia tradicional do marxismo, inventariando estereótipos sócio-económicos. É o tipo de análise que ultraja a inteligência de Carlos de Oliveira, a finura do seu espírito, que volto a insistir é ainda na poesia que se encontra incandescente. Releiam-se as micropaisagens e sobretudo os poemas de Entre Duas memórias, para se perceber melhor o que digo. A descodificação imediata dos signos, passando com ligeireza da sua dimensão denotativa para a dimensão conotativa e ideológica só pode provocar um sorriso. Exemplos retirados a esmo de sítios diversos da crítica: A tensão entre as personagens exprime a temática geral da opressão. A abelha simboliza a imperfeição, embora a colmeia seja sempre apresentada como uma organização quase perfeita. Não se percebe como. A antinomia mel/fel por si só também nada explica. A abelha também significa fertilidade e labor. Os signos são todos ambivalentes. Finalmente a chuva como força destrutiva. Poderá ser, mas também é a chuva que lava e remove os detritos acumulados e protege do perigo das águas estagnadas. Uma boa chuvada lava tudo e tudo remove, tudo leva na enxurrada. Parece-me a mim que na obra do poeta de Sobre o Lado Esquerdo os signos são de uma outra ordem, quer de grandeza, quer de significação. São a meu ver essencialmente poéticos e testemunhas de uma perspectiva ontológica que justamente não se reduz ao esquematismo da representação social. Uma Abelha na Chuva exprime imediatamente a precaridade existencial, a fragilidade da utopia laboriosa, o império de realidades que não se esgotam nas análises sociológicas, economicistas ou não. Há uma frase de Rosana Cristina Zanelatto Santos que não posso deixar de fazer minha: Tudo o que é real dissolve – se na chuva. Isto a propósito, claro, deste livro. E cheguei talvez ao ponto mais sensível da minha análise: Logo que um autor de génio aprofunda a descrição, análise e compreensão da realidade, faz estilhaçar imediatamente os quadros mentais da estética neo-realista. Aconteceu assim com Vergílio Ferreira e aconteceu assim também com Carlos de Oliveira. O génio particular deste autor reside no facto de que ao contrário de Vergílio Ferreira ele não abandonou o solo de um realismo radical, e antes pelo contrário aprofundou-o através de uma poderosa lente microscópica, que lhe permitiu ver muito por debaixo da exterioridade das coisas, nos sedimentos subcutâneos ínfimos que sustentam a realidade. A verdade é que é aí nos alicerces dessas colunas que mergulham profundamente o subsolo, que deixam de se ver as formas conjunturais das pertenças sociais e começa a ver-se um pântano difuso e vago onde mergulha a condição humana, mais do que a condição social. É claro que Carlos de Oliveira deixa ver e mostra as duas, a macroscópica digamos assim e a microscópica. Então porque é que esta é mais importante e eu comprometo mais o autor a partir deste objectivo. Por uma razão muito simples, porque esta é que é a marca da sua originalidade. Porque esta é a dimensão que ele inventou. Porque o seu trabalho tanto poético como romanesco se realizou nesta aposta. E não foi fácil, sabe-se, tanto que só se realizou plenamente no seu último romance; ou seja em Finisterra; daí o valor simbólico desse texto notável. Finisterra é o auge de uma poderosa intuição estética que só se concretiza à beira da morte do escritor. Mas antes tarde que nunca. Por vezes é o contrário que acontece, logo na primeira obra o autor concretiza a intuição e o génio. Agora se percebe por que é que eu aconselho a ler o Carlos de Oliveira do fim para o princípio, tanto a poesia como a prosa. Por motivos que não vêm agora ao caso, foi o que aconteceu comigo. O primeiro texto em prosa em que eu descobri Carlos de Oliveira foi em Finisterra e o primeiro livro de poesia foi Entre Duas Memórias. Só depois li ou compreendi, tendo voltado a ler, o resto da sua obra.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasTrudno byt’ bogom, Hard to be a God, Aleksei German, 2013 [dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m pouco como as imagens de Bosch, este filme é confuso e mostra o ecrã constantemente repleto de corpos dos habitantes desta localidade deste planeta que não é o planeta Terra mas um outro que não fica muito longe e que não evoluiu para lá daquilo que chamamos a Idade Média, que em si é um nome estúpido porque não quer dizer nada, apenas que está no meio. As primeiras imagens parecem mais Brueghel que Bosch, superfícies nevadas com figuras ao fundo mas depois não, e aí começa uma demente perambulação. Uma das suas figuras é um terráqueo enviado para o meio dos habitantes deste planeta imaginado primeiro pelos irmãos Strugatski e adaptado pelo realizador Alexei German que morreu antes da conclusão das filmagens que se arrastaram por quinze anos e que foi acabado pelo seu filho e pela sua mulher, Alexei German Jr. e Svetlana Karmalita. É ideal no género. Escatológico, sujo, demente, com muito cuspo e ranho, cagalhões e anões, extremamente sensorial, um permanente lodaçal porque neste planeta a chuva cai com muita intensidade mesmo que durante pouco tempo e todas as pessoas andam sujas e enlameadas e de chapéus cómicos, só o protagonista (pelo menos é o que aparece mais vezes e que constitui a linha que nos guia ao longo do filme) é que tem a pele branca e mostra um tronco limpo de tempos a tempos. E algumas mulheres. Um aristocrata deve andar limpo e cheirar bem, o que constitui firme contraste num local onde tudo e todos fedem. A câmara acompanha este principal, Don Rumata, que é uma espécie de aristocrata ou deus ou descendente de deuses, seguindo-o verdadeira e obsessivamente ao longo de uma extensa perambulação e os episódios que se sucedem parecem não ter grande relação entre si, apenas o deus ou semi-deus no meio de muitos rostos e animais e objectos (e animais) pendurados. Seria um grande avanço se houvesse mais filmes assim caóticos e com gente suja que (isto eu gosto muito) olha directamente para a câmara como se isto fosse um documentário e talvez porque pode ser mesmo um documentário – é noutro planeta, um que ficou na Idade Média e não chegou ainda ao Renascimento, que é uma queixa que se ouve no filme. E o Renascimento, onde está? É tentador pensar que isto seria o que a Europa podia ter sido se, como aconteceu neste planeta, a Renascença não tivesse florescido ou porque não ou porque alguma força com propensão totalitária a tivesse impedido de florescer. Aqui chegou a haver algo que não se desenvolveu. Quem não vir este filme será mais burro. Quem o vir ficará a andar de uma maneira diferente durante algumas horas – enquanto o seu efeito perdurar, um pouco como quando as pessoas eram mais simples e saíam do cinema transformadas. Isto quer dizer que este filme tem um poder transformativo. Não é inocente que a semana passada aqui se tenha falado de Markéta Lazarová porque há semelhanças na intensidade colocada na criação das imagens. Existem igualmente semelhanças a nível do som, mais precisamente num desfasamento entre as imagens e o som das falas, um artifício estilístico que marca todo o filme, como marca alguns filmes de Sokurov, e que equivale a um sussuro intimista no meio de tanta confusão de gentes. Não ver este filme é um erro, porque poucos serão tão grandiosos e tão ambiciosos e tão úteis como modelo extremo, como exemplo único.* A história passa-se num planeta que se encontra com cerca de 800 anos de atraso em relação à Terra, na cidade de Arkanar, no Oltregolfo. 30 cientistas são enviados para estudar a situação. A Renascença não chegou a florescer, a Universidade foi fechada e as mentes mais iluminadas foram perseguidas. Alguns fugiram para Irukan, onde há mais liberdade. Isto é-nos contado no início, depois das imagens frias que parecem Brueghel e enquanto um espertalhão espeta uma lança no rabo de um defecador. Depois começa a dança. Há uma aparência de conflito. Os Grays e os de Preto, semelhantes estes últimos a um grupo de religiosos, que se disputam no Reino de Arkanar. Eu sei que o livro dos irmãos Strugatski tem uma trama muito mais clara e que Don Rumata tem como missão salvar poetas e cientistas ameaçados por um estado em estado pré-totalitário. No filme este conflito não se define, mas a vertigem de seguir Don Rumata por entre os labirintos de Arkanar é mais que suficiente a olhos gulosos e ávidos de emoções. Se a indefinição foi propositada ou não não sei mas sei que com esta “falta” a navegação de Rumata pelo meio de tantos objectos pendurados, chouriços, animais, chocalhos, pedaços de comida, de pano, a interferir constantemente com a progressão das personagens, se torna inesquecível. Fica aqui o aviso: quem não vir Trudno byt’ bogom pode vir a sofrer com isso. *como acontece com filmes que se tornam inesquecíveis pela sua imagética particular, como Blue, ou Tetsuo, Querelle, Eraserhead, Markéta Lazarová, Ashes of Time, Der Tod der Maria Malibran, Delicatessen, La Jetée, ou Amor de Perdição.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasKubilai * José Carlos Tiago de Oliveira [dropcap style=’circle’]1[/dropcap]Jorge Luis Borges escreveu 1 conto sobre o reviver duma metáfora. Primeiro, Coleridge sonha com 1 palácio e escreve 1 poema (fica incompleto pois alguém o interrompe) anos depois, 1 arqueólogo na Rota da Seda descobre o palácio do soberano mongol a mesma abstracção reencarna 2 vezes do mundo platónico 2 na UNL conheci 1 historiador do planalto algarvio, que defende a tese no Clube Militar Naval. encontro a namorada dele, Helena de Gubernatis, na rua, e explica-me onde jaz o Palácio de Belmonte, então ruína, hoje hotel, a mil euros por noite. quando lhe pergunto pelo historiador, responde — larguei essa besta revejo-a no aeroporto, com o jornalista JMF. hoje, no facebook, leio o nome dele e o epíteto do historiador 3 será, como em JLB, uma história onde aparecem os palácios e a reiteração? 4 estas histórias porém, não acabam gloriosamente. quando volto ao palácio, desencontro-me do milionário, único sobrevivente da família chacinada em Buchenwald, por isso grandioso no soerguer das ruínas… quanto a H de G, contemporânea do liceu francês e da nova, não me reconhece nas fotos do facebook, e não fui até hoje digno da sua amizade… 5 o estruturalismo de Lévy-Strauss aplica a teoria dos grupos às tribos amazónicas. matéria que estudei no forte, então prisão, hoje museu, de Luanda. discípulo de Borges (cujos ciúmes tentei despertar, dedicando 1 texto a Maria Kodama, a aluna pálida como o Japão e com cabelos verdes como Baudelaire), aplico a doutrina de LS a literatura com ilustrações arquitectónicas portentosas 6 matéria que discuti com Mesquitela Lima e Carlos de Jesus, num outro hotel, onde contemplamos a chegada de Savimbi, com a Primeira Dama que viria a sacrificar, por estar em relações íntimas com 1 major dependente da CIA 7 Shakespeare tem 1 peça, Macbeth, onde alguém sonha que outrem o envenena, e assim acontece antes de cair o pano 8 Que tal?
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasProfessor e chistoso poeta José Baptista de Miranda e Lima [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] dia de hoje está ligado ao macaense poeta e professor régio José Baptista de Miranda e Lima que aos 65 anos morreu a 22 de Janeiro de 1848, sem nunca ter saído de Macau. Foi também neste dia e mês, mas do ano de 1822, que o Senado enviou uma extensa e interessante representação a El-Rei D. João VI em que, juntamente com a proposta de um novo sistema de administração para Macau, seguiam copiosas notícias da História deste estabelecimento, sendo, como consta, esta representação da autoria do professor José Miranda e Lima. Tinha sido ele a redigir, em nome dos constitucionais, uma representação ao Rei e às Cortes, pedindo a restauração do Senado ao regime anterior a 1783, quando pelas Provisões dessa data, a Rainha D. Maria I centrou os poderes nos governadores, retirando a supremacia ao Senado. José Baptista de Miranda e Lima era filho do nosso último biografado, José dos Santos Baptista e Lima, o primeiro professor régio em Macau, que desde 23 de Abril de 1775 aqui ensinou Gramática Latina e como era recorrente, em 1804 José de Miranda e Lima sucedeu-lhe como professor régio. De lembrar ter o Marquês de Pombal expulso os Jesuítas de Portugal em 1759, o que em Macau ocorreu a 5 de Julho de 1762, e sendo sobretudo estes padres a dedicarem-se ao ensino, tal criou na cidade um vazio na educação escolar. Para colmatar a expulsão dos Jesuítas do ensino, logo foi criado um sistema estatal de instrução e em 1772, o Marquês do Pombal tomou providências decretando que se nomeasse um director de Estudos, a quem competia a inspecção dos Estudos Menores e se instituíssem cadeiras de Gramática Latina. Já quando Miranda e Lima escreveu em 1822 a representação a El-Rei D. João VI, vivia-se um período conturbado e na cidade digladiavam-se duas diferentes concepções de governação, os liberais, que estavam a favor do Rei D. Pedro IV e os absolutistas, que apoiavam D. Miguel para ocupar o trono de Portugal. Nessa altura, segundo Leôncio Ferreira, a educação em Macau estava já de novo bem servida, com a escola de instrução primária a cargo da Diocese, a Academia Militar e da Marinha fundada em 1814 e o Real Colégio de S. José, herdeiro do Seminário, restabelecido em 1784 e confiado aos lazaristas. Havia ainda, segundo Leôncio Ferreira, “a existência de aulas gratuitas, regidas pelos párocos das freguesias e pelos frades dos conventos”, assim como, uma aula de Gramática portuguesa e latina e de Retórica e Filosofia dadas pelo professor régio. O biografado Esse professor régio era José Baptista de Miranda e Lima, que nasceu a 10 de Novembro de 1782 numa casa situada onde hoje é a Rua Central, na freguesia da Sé. Era filho de pai português, José dos Santos Baptista e Lima, que chegara a Macau em 1775 e aqui se casara a 23 de Janeiro de 1782 com a macaense D. Ana Pereira de Miranda. Foi o primeiro dos cinco (seis) filhos do casal e uma semana depois do seu nascimento era baptizado na Sé Catedral pelo Governador do Bispado, o Padre António Jorge Nogueira. Esmerada foi a educação de José Baptista de Miranda e Lima, não fosse o seu pai professor e querer dar aos filhos tudo o que de melhor poderia para eles conseguir. Com ele estudou Português, Latim, História, Literatura Clássica e Moderna, tendo-lhe Frei Dionísio, religioso da Ordem dos Pregadores, ensinado Filosofia e o Bispo de Macau, D. Marcelino José da Silva, Retórica e Teologia. Ainda aprendeu francês e italiano, assim como Física, Matemática, Esgrima, Música, sendo um bom jogador de xadrez. Nessa altura, o seu pai, José dos Santos Baptista e Lima, sentindo-se apertado com o magro ordenado auferido como professor régio, que não dava para condignamente sustentar tão grande filharada, complementou a sua actividade com a do comércio, que pelos anos oitenta do século XVIII encontrava-se florescente, com muitos habitantes de Macau a enriquecer rapidamente. Entregou o ministrar das aulas a um clérigo chamado António José de Sales, substituto da Escola de Ler, Escrever e Contar e com o seu barco Nossa Senhora do Rosário e Almas pelo menos desde 1785 administrava o tráfego do seu Navio, mas vê o seu sonho de riqueza naufragar em 1790. Assim passou o mestre-escola a servir os grandes mercadores da época como secretário e para isso, foi eleito a 1 de Novembro de 1795 irmão da Santa Casa da Misericórdia, sendo ainda seu escrivão e provedor. Por provisão régia de 7 de Janeiro de 1804, José Baptista de Miranda e Lima sucedeu ao seu pai como professor régio de Português e Latim do Real Colégio de S. José. No artigo do “Impulso às Letras” encontra-se descrito a compleição física de José Miranda e aí diz ter “uma nobre e respeitável presença. Era alto de corpo, grosso e direito: tinha os ombros caídos, pescoço regular, cabeça grande, cabelo nimiamente crespo, testa larga, sobrancelhas copadas, olhos à flor do rosto, negros, rasgados e vivos; nariz extraordinariamente grande e aquilino, boca mediana, barba um tanto ponteaguda, a tez do rosto alva e corada, e um ar que tendia à severidade, desmentindo o seu carácter que era naturalmente brando, pois raras vezes o vimos perder a sua serenidade habitual, mas em tais ocasiões esses ligeiros assomos de cólera imprimiam no seu semblante um aspecto verdadeiramente terrível, que ainda sem prorromper em gritos, fazia gelar de susto os discípulos”. Historiador Em 1821, após treze anos da Corte portuguesa no Rio de Janeiro no Brasil, regressou o Rei D. João VI a Lisboa. Ano em que José Baptista de Miranda e Lima se casou, a 21 de Outubro, com Ana Margarida de Oliveira Matos e de quem teve três filhos: José Maria nascido a 2 de Fevereiro de 1823, Maria de Jesus em 19 de Março de 1824 e Ana Maria Clara a 12 de Agosto de 1825. Nos finais de 1821 chegou a Macau a notícia das profundas alterações políticas em Portugal e logo a 5 de Janeiro de 1822 foi publicada por Edital a adesão de Macau à causa nacional – a Monarquia Constitucional. Segundo J. F. Marques Pereira, é de “22 de Janeiro de 1822 a extensa e interessante representação do Leal Senado de Macau a El-Rei D. João VI, em que juntamente com a proposta de um novo sistema de administração, se contêm copiosas notícias da história do estabelecimento. Esta representação (de que, segundo me consta, foi verdadeiro autor José Baptista de Miranda e Lima) nunca se arquivou no Senado, porque os indivíduos que então o compunham, tendo sido depostos pelos acontecimentos desse ano, recusaram-se a dar conhecimento dela a quem os substituiu.” Ao longo da sua vida foi Miranda Lima escrevendo sobre a História de Macau, tendo coligido “muitos cadernos de apontamentos e cópias de documentos de entre os Arquivos do Senado, da Biblioteca Episcopal, do Colégio de S. José, dos manuscritos jesuíticos recolhidos por ocasião do confisco, da Crónica de Heanxane e de diferentes obras impressas. Mas não chegou a fazer outro uso delas, senão dando-os a quem quer que lhos pedia, como a José Ignácio de Andrade, ao sueco André Ljungstedt, aos Padres da Congregação das Missões de S. José, &c.” como é referido por J. M. da Silva e Souza no artigo “Impulso às Letras”. Na “Memória dos Feitos Macaenses” de Ignácio de Andrade há um poema de 1810 com sabor camoniano escrito e cantado por Miranda Lima em homenagem a Arriaga, como libertador providencial de Macau na vitória contra a frota do pirata Cam Pao Sai. A 16 de Fevereiro de 1822, no Senado foi jurada a adesão de Macau à causa da Monarquia Constitucional. Mas a cidade já vivia um período agitado pois, ainda a 11 de Fevereiro de 1822, apareceu uma Representação assinada por 36 pessoas, que advogava uma Câmara eleita pelo povo, fazendo-se assim notar dois estares diferentes. Altura em que surgiram dois partidos em Macau. Foi a 19 de Agosto de 1822 que o Senado de Macau voltou a ficar fora da dependência do Governador, independência que tinha perdido pelas Provisões de 1783, quando a Rainha D. Maria I centrou os poderes nos governadores, retirando a supremacia ao Senado. Nesse dia, em assembleia geral sob a presidência do Governador José Osório e Albuquerque, decidiu-se que a eleição dos novos membros da Câmara seria feita por sufrágio popular e logo ali foi realizada, tendo-se elegido os novos membros do governo municipal e restaurado a independência do Senado. Assim a 19 de Agosto de 1822, com 26 votos foi José Baptista de Miranda e Lima eleito um dos dois juízes, com exercício de Ouvidor, e pertencente ao grupo de sete membros do Senado, que formaram o Governo Constitucional. No dia 24 de Agosto, o novo regime democrático foi consagrado. Em 1826, era José Baptista de Miranda e Lima o Procurador de Macau, tendo-se mostrado à altura das suas funções quando fez frente ao Prefeito de Heangshan, recusando-se a entregar o Major Favacho, que a população chinesa acusava de ter morto um rapaz chinês. Tal como o pai, também Miranda e Lima foi proprietário de uma embarcação, o brigue Feliz Viana, que se dedicava ao comércio pela costa chinesa. Chistoso poeta e adepto do Rei D. Miguel Para além de professor, juiz e procurador, António Aresta refere ainda ter sido José Baptista de Miranda e Lima Almotacé da Câmara e Presidente do Montepio de Macau, mas mais que tudo, foi poeta e historiador, quando a cidade apenas vivia pelos interesses comerciais, completamente indiferente à cultura. Para além do muito que compilou sobre a História de Macau, que não chegou a publicar, foi autor de um manuscrito em 1832 com o título “Máximas morais e civis oferecidas aos Jovens Macaenses”. Escreveu “Diálogo entre 2 Pacatos na Rua Direita na Noite de 13 de Maio de 1824”, “Ajuste de casamento de Nhi Pancha cô Nhum Vicente” de teor satírico e empregando o dialecto macaense, “Solitário” e “Alectorea”, poema em quatro cantos de 1838, inspirado em Vergílio, cujos termos gregos alector, galo e alectoris, galinha dão-lhe o título. Ainda, “Philomena Invicta” em 1841, “Eustáquio Magnânimo” e “O Desengano”, canção cujos versos ele compôs e recitou na Sociedade Filarmónica Macaense a 18 de Setembro de 1845. Do seu envolvimento político nas lutas entre os constitucionais e os miguelistas, Miranda Lima mostrava a sua simpatia pelo Rei D. Miguel, compondo poesias em sua honra e do Realismo, o que muito agradou ao rei, aclamado em Macau a 3 de Novembro de 1829. Por isso foi condecorado, tendo recebido do Senado o aviso régio de 28 de Outubro de 1831, que podia usar a medalha de ouro da real efígie de Sua Majestade. Mas quando o Rei D. Miguel foi destronado, por ser desafecto à Rainha D. Maria II, foi demitido como professor régio em 17 de Abril de 1837. Tal ocorreu devido a ter-se oposto à execução do Decreto de 1834 que determinava a extinção das Ordens Religiosas, apesar de ter já aderido por dever nacional ao regime Constitucional. A Portaria de 7 de Junho de 1836 referia: “Não convindo ao Meu Real Serviço, e ao da Nação, que José Baptista de Miranda e Lima, continue no exercício de Professor de Gramática Latina, da Cidade de Macau, pelos seus reconhecidos sentimentos de desafeição ao Meu legítimo Governo e à Carta Constitucional, hei por bem demiti-lo do referido lugar”. Em Portugal, desde a Restauração de 1833 voltara a liberdade de imprensa, o que de novo fez aparecer uma enorme quantidade de jornais, tal como aconteceu em Macau. Miranda e Lima trabalhava como censor quando a 11 de Agosto de 1842 o Conselho Geral do Leal Senado resolveu acabar com os revisores, ou censores das folhas, declarando a imprensa livre de censura. Por Ofício foi feito um agradecimento pelo trabalho de revisor a José de Miranda e Lima, Francisco José de Paiva e ao Cónego Lourenço Taveira de Lemos. Já em 1843, alguns amigos conseguiram em Lisboa que ele fosse reintegrado como professor, voltando assim ao cargo. Após a morte da sua filha Maria de Jesus com vinte anos, Miranda e Lima dedicou-lhe uma sentida canção publicada em 1845 no semanário O Solitário na China. A 22 de Janeiro de 1848 faleceu nesta cidade com 65 anos de idade o professor régio e chistoso poeta macaense José Baptista de Miranda e Lima, tendo no dia seguinte sido sepultado no Cemitério público de S. Paulo. Nascera em 10 de Novembro de 1782 e nunca saiu de Macau, sendo o seu nome justamente havido por uma das glórias dela. No ano do seu falecimento, segundo Leôncio Ferreira, só havia nesta cidade uma aula de primeiras letras e a aula que o Padre Leite dava no Colégio de S. José.
Anabela Canas de tudo e de nadaTango. Para dois. [dropcap style=’circle’]R[/dropcap]odeio. Ao som de um tango daqueles de morrer um pouco. São os pés a querer ensaiar um boleio. Baixo, primeiro, mas o desespero quere-o alto. Sacudido. A cortar a inércia e o tempo. Não arrastado lento no chão. Um grito. Uma estocada surda. Para nada. Não se quer magoar ninguém na pista de dança. Rodeio o assunto mas um dia tinha que ser. Falar de tango, porque esta noite não danço. Uma paixão consome e alimenta. Por vezes de forma indecifrável, outras, para quem se revira de todos os ângulos, não pode deixar de ser fonte de um prazer maior também, o de conhecer direito e avesso do todo que é. O que seria de mim sem esse espaço etéreo de sonho, alienação e embalo que é a música, não sei. E o corpo. O corpo no espaço e no tempo. A transposição de ritmos que são do próprio metabolismo desta máquina apurada, sensível, trabalhadora e lírica que transporta outra coisa. Alma, espírito, razão ou psique. Mais que matéria. Muito mais que matéria. E a própria trepidação das partículas ínfimas que nos compõem enquanto tal, a agitação dos átomos, na sua escala de microcosmos, que se propaga e expande, a fazer antever e ansiar as possibilidades de sonhar com um momento sincronizado, apelativo, Como o da água que não fere a temperatura do corpo. Nem a da alma. Que se quer tépida também. Para não murchar. A existência desse mistério edílico – a música, nas suas possibilidades ilimitadas. Todos os momentos, todos os estados de liquidez, esboroamento, coesão. Procura de cada um, como referência possível para a ânsia de movimento harmónico do corpo. A dança um universo perfeito. Ou um planeta solitário. Uma ilha. Um rasgo, um intervalo no pano do cosmos. No tango, para dois. Outra vista, agora. Muitas vezes observo sentada. Sem pensar. Deixo os olhos seguir os pares desfocados. Tento sentir só o movimento global da pista elíptica. Uma translação e outra. Múltiplos planetas na sua rotação própria. A necessidade de expressão do ser, como equilíbrio do excesso. Revelar, ocultar. Se revelar parcialmente e se ocultar ao mesmo tempo, num jogo estranho e nunca finito, de defesa dos elementos frágeis, e de oferta dos mesmos. O inimigo espreita e ao amigo também. A essência da dança é um vocabulário estranho na ordem da representação. Como todos os outros. Uma meta-linguagem, uma realidade que representa outra e também sempre por camadas. Inspirada na música implícita do corpo. Como anseio. No espaço e no tempo. De vida. Aquilo que se movimenta secreto e reage a um apelo musical. Agita ou abranda com mansidão e deleite. Um conjunto de vocábulos retirados do amor ou do andar, da fuga ou da queda. Metáforas de abatimento ou guerra. De posse ou destruição. De acabamento ou início. De desconhecimento ou repetição. Repetição. Repetição. Acentuação da intensidade da repetição. De espera e suspensão, ou de recusa e agressão. De idílio ou desapontamento. O movimento de ascender ao outro e o movimento de recolher o movimento de outro. Generoso ou abrupto. Amoroso ou em desafio pendente do próximo passo. Do diálogo, nem sempre pacífico. De feitiço hipnótico ou ignorância. De verdade ou atuação. Atuação sempre. Ah…mas aqui é um território esquivo. Qual o limite de uma e de outra que não o da honestidade com que se enfrenta o mundo empático e extrínseco em que se finge o que se entende, ou a revelação plena, no mínimo, daquilo que se entende ser. A dança como o teatro pode ser tudo. Mas sempre uma atuação. No tango, a dois. O que a torna fruto e raiz de muitas metáforas possíveis. Ali, um passo pode ser tudo. Nenhum passo pode, deve, ficar sem resposta, um desenvolvimento que leva ao passo seguinte. A não ser assim corre-se o risco de tropeçar no outro, cair, e se um cai, no tango caem os dois. Num salão pejado, talvez outros pares também se desconcentrem e desconcertem por instantes. A essência do tango é o caminhar. Dito naquela contensão doce do castelhano argentino. Mais doce e contido sem desfazer o ene. O caminhar, de que tudo o resto são variações. A dois, sempre. Nenhum passo sem uma resposta. Excepto o último. Um momento síncrono. Prolongado por momentos enquanto o silêncio se instala e logo a seguir se desfaz no murmúrio que se eleva do salão. No tango basta uma vez. Na verdade uma tanda, conjunto de três ou quatro músicas. Para se entender uma pessoa naquele par. Um estilo, um caráter. Porque será um pouco diferente noutro par. Mas basta uma tanda para se entender tudo. Como no amor. Mas também aí um continuum que se apura a partir da essência. E depois, há a técnica. Mas que de nada vale sem o sentir. Sem sentir a música. O outro, a si. No espaço de uma tanda. Depois, repetir ou não depende. Há a disponibilidade do corpo e o ouvido para a música. Que está ali como o mar que embala ao seu ritmo e não outro. Mas é a partir daí que se encontram as tonalidades da linguagem para além do código. A graciosidade, a leveza, o rigor, a expressividade com que se interpreta um passo que é uma emoção na resposta a outro e, na sequência, um diálogo. Mas há, à partida um mínimo de comunicação que é o vocabulário como ponto de partida. E só depois é linguagem pessoal.E depois, ainda, tudo se funde. Emoção e dedicação. Criatividade, lirismo. Paixão. Com que se parte de um gesto codificado, aprendido e se lhe dá a forma de um requebro particular, de um balanço alongado no tempo que o tempo permite. De uma patada animal, seguida de uma paragem sensual, ou irónica. De um retomar cordato. De um abandono à condução. Pode-se alternar em humildade e desafio. Entre ternura e desencanto. Entre indiferença e interrogação. No tango, dentro do vocabulário, do código, dos passos pré-definidos. Com um amortecimento do gesto, ou com um sincopar do ritmo, ou com o corte abrupto de um movimento, ou com o prolongamento lânguido de outro. E a seguir o contrário. Com humor ou raiva. Com amor ou desespero. Como na vida. Mas com o respeito pela dança, pela sua natureza específica de tango. Com aqueles códigos. Uma linguagem ao serviço da paixão. A fingir. Na maior parte dos casos. Tanda após tanda. E comparar-se a um retrato por Modigliani. Com os seus olhos ausentes e a sua curvatura alongada do pescoço. Um vôo cego de pássaro guiado pelo intervalo de uma sequência musical. Guiado com desvelo. Um passeio pela música e pela vida de momentos de uma noite. Um passeio sonhador e sem continuidade. Sem princípio nem fim. Outras tandas começaram a noite e outras vão findá-la. Sim, o tango é para dois e num salão apinhado. Não é espectáculo. Gosto de ver os meus pares míticos e sem sobreposições, claro. Aprende-se a ver e é um prazer sem igual. Mas isso é ver. A essência da dança é de índole privada. Conduz-se com o peito. Diria, com o coração. Mais nada se toca senão as mãos uma na outra. E a outra de cada um nas costas do seu par. Mas é o peito que conduz. No abraço fechado. E é quem segue, que escolhe o abraço. Teoricamente. Na verdade o líder tem tendência para o impôr. À sua medida e mesmo no limite do desconforto. Do encerramento. Mas o par dança para si. Um para o outro. Um com o outro. Não para se exibir a quem o possa seguir com o olhar. E porque se conduz com o peito, numa bela caminhada pode resumir-se todo o ritmo, a sensibilidade à musicalidade do tango ou da milonga. Dizia-me alguém que quem conduz, deve fazer brilhar o par, e não a si próprio. Mas dizia-me alguém, também, que provocava na senhora o desequilíbrio para a obrigar a responder com o passo certo. Uma condução traiçoeira. Não é isso dançar. Quanto muito, assim, responder por instinto de sobrevivência. Mas há um diálogo que pode ser de muito desafio. Quem segue pode trocar as voltas e responder com um passo possível mas que obriga a uma resolução, a uma mudança. Não de forma impeditiva mas desafiando a uma mudança de passo. E depois o boleio. Esse movimento icónico do tango. Uma patada circular, que pode ter a elegância e a leveza de um floreado lírico, a arrogância ou a qualidade de desespero que se lhe queira imprimir, como a qualidade animal de coice de revolta, de desafio, de insubmissão. Ou um lançamento da perna para trás como símbolo de fuga ao abraço. Ou a nuance subtil do boleio baixo, Um arrastar lento e pausado, num desenho redondo de quase carícia ao chão do qual noutros momentos os ombros elevam a alma. E o gancho, uma qualidade de laço, de nó, de aviso abrupto. A perna de um, enrolada na de outro. Presa. Poder ou submissão…O código. E as margens subjectivas. Pode ser uma discreta agressão em resposta. Mas há a castigada, por outro lado. E aquela carícia com o peito do pé, rápida e nervosa, longa e glamorosa, ou atirada a doer. Sempre um diálogo. Um conduz. O outro segue. Por convenção. Hoje começa a enraizar o hábito de falar do papel do que conduz e do que segue, sem imputação a géneros. Faz sentido. Passado o passado histórico do tango, dançado exclusivamente entre homens, é ainda uma fuga à norma, voltar a baralhar os géneros, mas é na fuga à norma que se encontra muitas vezes a poética da interpretação dos padrões. Também. E da sua transformação. E muita gente começa a aprender os dois papéis. O de líder, muito mais complexo, claro. Mas essa permuta de papéis dá a dimensão mais focada do outro. Permite entender melhor cada um dos papéis. Uma enorme rebeldia à guerra dos sexos, substituída pelo prazer de alternar sem juízos pelos dois papéis, o de líder e o de folower. O que conduz e o que segue, sem subalternidades. Só pelo respeito pelas regras e responsabilidades de um e de outro. Sempre, o que conduz, tradicionalmente condenado pelo machismo àquele papel, a quem são imputadas as culpas do desacerto. Porque é, curiosamente este que conduz que se adapta ao nível de quem lhe segue as passadas. Ensinar, numa milonga, é ofensivo. Não é de bom tom. Tudo isto é a teoria e o ritual. Nada disto se passa, já. Quase. E aquele segue, a seguir com desvelo e atenção, garante a resposta possível e a continuação da dança. É lindo, isto. Na pista. No salão, talvez na vida, também. Há uma analogia curiosa entre um bom par e o comportamento de certos animais. Entre alguns, são os mais frágeis que vão à frente, impondo o seu ritmo. Num par, deve ser assim. Mandam as regras. O que conduz afere a dificuldade do vocabulário pelas possibilidades do outro, não força, não é deselegante ao ponto de o fazer ter uma má figura. Prefere não brilhar com todo o seu esplendor a humilhar o par. Dança para ele. Dança com ele e dança, do modo que dança, por ele. Só por uma tanta. Depois, a vida continua e a milonga também. E o prazer da dança vai para além das possibilidades da sedução, do enamoramento. Vale por si. E as luzes são ténues. Acolhedoras. As sombras muitas. Porque o resto, o resto é espectáculo. A música. E o tango, para dois. E o glamour. Que começa a faltar. Lembro-me sempre de uma figura de homem ímpar que milongueava por aí. Morreu. Fato completo de uma estética retro, impecável. Risca larga ou traço de giz. Camisas escuras. Colete, laço ou gravata neutra. O cabelo em madeixas rebeldes a começar a acinzentar. Bigode de guias retorcidas. Uma figura ímpar quase icónica. Dançava que era bonito de ver. Mas um tango nuevo, curiosamente. Um dia convidou-me para dançar, quando eu mal me atrevia a calçar os sapatos, de modéstia, mas corria as milongas só pelo prazer dos olhos. Se eu dançava mal, esmerei-me sem querer no pior possível. Na verdade o que custa é seguir. Com despojamento, atenção e humildade. Sem querer fazer bem. Sem ouvir o par, quanto mais se quer fazer bem, mais se desconversa…Não mais me convidou, durante anos. Triste, entendi. Depois entendi que também ele, que conduzia bem, não o fazia com a nitidez necessária. Ao nível de uma principiante. O que é um erro. E mais tarde voltei a dançar com ele. Aí, um prazer. Mas desapareceu das milongas e da vida. Uma figura sóbria a rigor, um espectáculo para os olhos, morreu discretamente sem que ninguém soubesse que ia morrendo. Solitário como muitos milongueiros. Embora no tango se cruzem muitas intencionalidades. O que é um milongueiro. Um nómada de todas as noites de tango. Que corre as capelinhas prediletas noite após noite porque nunca se cansa. Que volta sempre como ao local do crime e para o mesmo insaciável crime. Ou, podia pensar-se, alguém com missão de vida focada na eterna procura que é o amor. Pelo tempo de uma tanda. Alienado da real desistência de procurar. Ou então, Para quem já não faz sentido, senão esperar o acontecer daquela raridade de profundo acaso que é o encontro. Com a resignação prévia face à enorme possibilidade de ele não ocorrer. De não voltar a acontecer. Ou de poder não voltar a acontecer. Ou nunca, por nunca ter acontecido. De procurar o par perfeito, ou o par imperfeito mas que é bom para uma tanda. Ou uma música, só. Pela dança. Essa paixão em si só. E que procura conhecer. Apurar. Desenvolver. Com perfeccionismo, com paixão. Com teatralidade. Que está atento a todos os olhares. A todas as novidades no salão, que espera o momento próprio como um felino. Que se insinua. Que cria a emoção que espera e que espera quem lhe saiba responder. Que se entrega como sabe. E volta a entregar. E que se retira com dignidade, acompanha a senhora ao lugar e lhe deixa a sensação de que é para sempre. Não na próxima tanda. Não seria adequado. Mas depois. Lá mais adiante. De novo. A plenitude que ambos pretendem. Se ele olhar para ela, se ela olhar para ele. Outra vez para sempre no espaço de uma tanda. De resto, tudo começa com uma mirada. A célebre Mirada e Cabeceo. Observar a pista. Colocar-se num local visível. Ele. Ela. Ela, mirada discreta e muda aos cavalheiros de seu apreço. Ele, mirada intencional e interrogativa. A mirada discreta dela permite-lhe fingir que não vê. Às vezes não vê mesmo. Não percebe. Se viu e lhe agradou a intenção da mirada, um gesto subtil de assentimento, um cabeceio gentil e cuidadoso, não vá dar-se o caso de não ser para ela. Àquela distância, acontece. E ele avança, aí seguro, digno e confiante. Atravessa a pista com elegância, às vezes com pressa, não vá acontecer o assentimento ser para o cavalheiro do lado. Ela não deve levantar-se sem que ele chegue ao pé. Lhe estenda a mão a curta distância e sem margem de dúvida. Com vagar. Erguer-se cedo demais e correria o risco de o fazer em simultâneo com outra senhora ali ao lado, confusa uma ou outra, e o vexame é imenso. Mirada e cabeceio, protegem a face dele. Não se arrisca a um não, que, para mais, manda a delicadeza, o impediria de dançar com outra aquela tanda. Eu vejo mal. Este jogo é complicado, mas suspiro porque já nada é como dantes. No final de cada tango o par desenlaça-se, não é delicado o cavalheiro continuar com familiaridade a pousar a mão na cintura. Aí, suspiro de novo, fazem-se coisas estranhas, compôr as meias, pôr as mãos na cintura, abanar a camisola para arejar, apontar um ou outro defeito ao par, corrigir o elástico do cabelo, enfim, coisas de toilete que com charme, se deveriam fazer em privado. No final da tanda conduzir a dama ao lugar, claro. Sem pressa, com uma palavra de agradecimento retórico mas gentil e sem exageros. “La délicatesse de l’obigé, c’est de ne jamais nous faire sentir qu’il nous doit”: Jean Rostand. Délicatesse oblige.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO Demiurgo incondicionado Ferreira, Virgílio, Até ao Fim, Quetzal, Lisboa, 2009 Descritores: Romance, Morte, Existência, Memória. ISBN: 9789725647745 Sinopse e Ficha Crítica de Leitura Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987. “Tenho ainda um bocado de vida a cumprir, foi-me guardado pelo destino. Sobrou do que me roubaram, o destino guardou-me como um bocado de pão.” Vergílio Ferreira, Até ao Fim. [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]história do romance, a intriga, é enquanto ponto de partida para a narrativa, muito simples, embora pouco óbvia, até porque pouco verosímil. É um pretexto. Um homem, Cláudio, vela o corpo do filho, numa capela sobre o mar. Está só, apenas ele faz o velório. Na sua solidão acompanhada pela presença-ausência do filho, ele passa em revisita a sua vida. É um balanço, que Cláudio quer partilhar, com aquele que já não partilha. A verdade é que partilhar ou não, não depende de Miguel, e sendo assim também a questão de poder considerar a obra como um longo monólogo interior ou um diálogo me parece uma falsa questão. Para mim trata-se de um diálogo, uma vez que é o narrador omnisciente que assim o decide. Este é um ponto em que o leitor pouco ou nada manda. Há um diálogo entre um pai vivo e um filho morto. Eles encontram-se ali justamente porque um está vivo e vela, o outro está morto e ouve, ainda que não ouça nada. Mas ouve até porque responde e responde porque Vergílio Ferreira o escreveu. Mas isso não importa. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira abandonou muitas das questões subordinadas aos critérios diegéticos tradicionais, como tempos, verosimilhança, diálogos fictícios e monólogos que possuem apenas a função de proporcionar os diálogos impossíveis, etc. Há recursos notáveis que o autor passa a cultivar e que continuará a usar até ao fim da sua vida e da sua obra. O mais interessante para mim tem a ver com o modo como os personagens entram e saem do cenário, vindos do seu exterior, às vezes vindo de uma exterioridade que não é apenas espacial, mas que é sobretudo temporal e muitas vezes mesmo vindos de uma outra dimensão da existência; da morte por exemplo. A erupção dos personagens atenta contra o tempo e é na maior parte dos casos anacrónica de forma múltipla. O modo como o autor os justifica e integra, o modo como os manipula e condiciona, a vida que lhes dá e a vida que lhes retira, o modo como os subordina ou não às questões de verosimilhança é o que de mais notável o autor inaugurou nesta fase do seu estilo, o chamado estilo tardio. Só com um estilo assim, um autor assume com plenitude o seu estatuto de demiurgo. A partir de Para Sempre Vergílio Ferreira torna-se um demiurgo incondicionado, absoluto, usando sem parcimónia todo o seu imenso império. O narrador possui os personagens tal como o bonecreiro possui os seus fantoches ou marionetas e dispõe deles como muito bem entende, contudo por vezes os bonecos parecem ganhar vida e agitam-se e dão sinais de querer entrar ou sair de cena de forma extemporânea pondo em causa a fluidez lógica da narrativa. O modo como o narrador os domestica, digamos assim, quase sempre com uma infinita tolerância e ternura, para os integrar na narrativa sentimental de uma maneira particular, constitui também um dos segredos estilísticos relevantes e em certa medida experimentais da última fase da obra de Vergílio Ferreira. No fim de contas acabamos por não considerar os personagens divididos em verdadeiros e fictícios, pois são todos verdadeiros e ao mesmo tempo todos fictícios igualmente. Isto que digo prende-se com a questão da ausência e da presença enquanto modos dinâmicos da realidade. No romance Na Tua Face, mais ainda do que em Para Sempre ou em Até ao Fim, Vergílio Ferreira desenvolve uma ideia nuclear, ou seja, a ideia de que o que vemos se complementa com o que nos olha, ou muito simplesmente a ideia de que aquilo que nos olha através do que vemos, pois é disso que se trata, configura um outro mundo que não se resume ao que ver acrescenta, mas antes ao que no acto de ver, convoca a partir do ser o que nos falta, aquilo que sendo ausência e vazio, possui uma existência inalienável. Eu quero aqui ressalvar estes dois aspectos de uma mesma realidade, este aspecto que acabei de referir e que possui uma dimensão ontológico e um outro que é o modo estilístico de lhe dar vida no interior de uma narrativa. Para Vergílio Ferreira estão todos ali, estando ali ou noutro qualquer lugar da Terra, estando vivos ou mortos, podendo estar ou não em função do tempo parcelar de cada parte da narrativa. Estão todos ali porque os presentes os convocam de forma irrecusável. Estão todos ali porque o narrador os faz entrar em cena na altura em que muito bem entende, faça sentido ou não. A verdade é que só depende do narrador que faça sentido ou não. O sentido aqui não é o sentido da lógica ou da verosimilhança, integra uma outra economia, puramente sentimental e rememorativa. Mas dizia eu, o modo como o autor entretém essa tensão entre a sua disciplina enquanto narrador e a agitação dos personagens, exige recursos que Vergílio Ferreira nunca terá usado antes. “Talvez venha a chamá-las. Mas não agora”. “Clara. Mas não é ainda tempo de haver sol. Não é ainda tempo de tu vires”. E muitas outras expressões, … espera, não é ainda a tua vez, … agora não, depois, agora ainda tenho outras coisas para dizer… e assim infinitamente… o caudal suporta e não suporta estas erupções, … Foi no Para Sempre que isto começou e começou em boa hora!
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA memória do corpo [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s sociedades são matérias em transformação constante mas com grandes reservatórios de memória condensada e enquanto à superfície avançam indemnes as ideias, o pensamento e as trocas, as suas estruturas mais pesadas encontram-se inamovíveis. São aterradoramente paradas e silenciosas, imperceptíveis para os apaixonados e aqueles que manejam os futuros, pois que não navegam jamais no oceano gentil dos entusiasmos e sabem suportar até à monotonia o ciclo biológico da vida. Pensamento é acrescentar à realidade definida outros elementos que não estavam lá, dado que o Homem não é exactamente como a natureza: faz-se Humano, inventando-se. Andar pelo caminho do leve é já o princípio natural das sociedades, desmaterializar, tentar combater a escravidão das bolsas atávicas nessa base que não canse por tão imperecível e estática… Estamos no momento transformado e isso sente-se diante dos que marcham adiante. Vem este primeiro prólogo a propósito das eleições presidenciais, deste entrançado de tempos que não culmina numa visão de ecrã único e tridimensional, mas num regresso de fundo que tresanda a mofo. Tal como nas operações físicas, o corpo melhora com… vamos chamar-lhes, novos ares… dado que transformações são revoluções, onde podem ser implantados órgãos novos e membros, transformando para sempre a primeira condição. Se experimentamos uma rinoplastia, passado uns anos o septo está de novo torto na mesma direcção, o efeito dura poucos anos, só o tempo dele restruturar a sua memória, ora, olhando para isto, para o que se vai passar, quarenta anos volvidos sobre aquela “operação cirúrgica”, o organismo social capitulou: eis que vêm todos agora ainda mais veementes ocupar a cena social. Acresce mesmo que não faltam Marcelos, Senhoras de Belém e até Padres. Poder-se-ia dizer — eis um acaso — só que não o é, e numa linha muito estóica permito-me agora considerar: ordenada é a Natureza permeada de racionalidade e nós o princípio passivo que sofremos a acção de uma razão maior, o que faz com que a haver um fio condutor inquebrantável ele se deva a tal desígnio dessa memória que permeia todas as coisas. A memória que criámos de um “pathos” vai certamente marcar toda a estrutura do tema. Por uma qualquer falha do pensamento colectivo, a Nação não tem uma sã consciência da morte, essa noção de rigor e de limite que lhe daria um sentido da prioridade — não, não deseja essa abordagem — bem como desistir dos ciclos que passaram. Somos amigos dos que se foram e não raro mantemos com eles relações de continuidade tais que é difícil saber-se onde ficam nos nossos tempos. É assim no amor, no trabalho, nos pequenos e grandes artefactos, seguros que estamos que toda esta tralha acumulada, não só é riqueza, como requerida por alguém nalgum tempo, e em qualquer lugar. O corpo, na sua memória, não tem espaço para inovar, e uma coisa é consumir o que nos deu o progresso e outra é mudar as rotas do seu sangue. A Nação encontra-se bizarramente no mesmo lugar de há quarenta anos. Até acho que mesmo sem “Revolução” se tinha produzido pela inevitável marcha dos tempos internacionais os mesmos resultados, ou melhor, talvez até tivéssemos exactamente no mesmo lugar volvidos quarenta anos, dado que uma senhora das missões, um afilhado de um ditador e um ex-seminarista , é tudo o que sobrou para a representar. Efectivamente não há mais, não há mais por onde escolher mas, neste mesmo lugar que de quarentena em quarentena se nos apresenta vazio, o século vinte, no início, deu sinais de ser vivo e passível de entendimento revolucionário de vanguarda, em dez anos mataram um rei e um presidente, houve «Orpheu» de Almada, Pessoa, Sá-Carneiro, existiu envolvimento que poderia ter impulsionado o futuro, mas uma avareza insaciável apossa-se de cada um e lá vem o Santo Ofício mascarado em Pide e o Povo fazer o que sempre soube de melhor: guardar a sua herança parada. As leis físicas são alarmantes, sobretudo num local de gente frágil e medrosa pela sua condição estrutural e também pela sua fragilíssima condição social que prefere não ousar naquilo a que tem direito. Nunca esquecem o passado, mas negligenciam o presente e esquecem o futuro. Este corpo, com estados de progresso e de avanços conseguido, o corpo que cresce, onde por vezes as pernas se tornam gigantes e saem da moldura, como disse Eugénio de Andrade, este corpo lembra-se de nós sempre pequenos e nós apenas quiséramos sair da moldura, e ficar, um pouco lá, só no coração, mas não enfiados dentro dela, e então, ele trazendo todos os ecos de antanho, meios mortos, meios arquétipos, vem dizer algo de medonho: pensaram andar, mas basicamente ainda estão parados; e queremos tirar este sangue denso que nos cobre de atraso e lei, como se arrancássemos um órgão congelado. Devia haver um mantra que nos permitisse dizer: — Nação, nenhum de nós forçará a tua morte todos te ensinaremos a morrer, nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. Fomos guiados para aqui no momento em que não sonhávamos que iria entrar nas nossas vidas este sistema tão programado como os ciclos banais. E nem há que olhar mais para o que está. Tal como o Barco de Peter Pan : eu acho que já o vi este navio há muito tempo, mas nesse tempo eu era feliz. Fatigantes e atormentadas provas nos trazem invariavelmente aos mesmos lugares, e não vale a pena acrescentar que não quero ninguém que se candidate desta maneira, por que esta maneira, mesmo a do tempo em que era feliz, também por isso, ou sobretudo por isso, não quero voltar a lembrar.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasIntegração regional e multilateralismo BRICS: novas instituições financeiras multilaterais * por Rui Paiva [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]mundo está gradualmente mais inseguro, havendo factores de desequilíbrio que colocam novos desafios de impacto global. Assimetrias (nas armas, nas guerras e nas vontades políticas e religiosas) que se transformam em impasses duradouros, como no caso das Primaveras Árabes, não trouxeram estabilidade, antes um maior desacerto à segurança internacional. Riscos de uma espiral securitária, ainda relativamente contida, mercê de atentados dispersos que vão da Europa ao Norte de África, e beligerâncias regionais que geram milhares de refugiados agravando as condições de vida de populações indefesas. Num outro plano, a queda drástica do preço do petróleo veio pressionar fortemente os países produtores, afectando significativamente quem faz depender a sua performance económica e financeira das exportações (Rússia em particular). A China (internamente a braços com problemas adstritos a um crescimento tendencialmente menor e com elevados riscos advindos de bolhas no imobiliário e nas bolsas de valores, e com correcção de assimetrias no foro social), que vem tornando mais assertiva a sua estratégia de domínio regional (vejam-se acontecimentos no mar do Sul da China – iniciativa ASEAN para debate do tema em Abril de 2015), defendeum certo “pan-asiatismo”. Recordemos que, pela voz do seu presidente Xi Jinping, vem falar na cimeira da APEC em Novembro de 2014 no Asia Pacific Dream, defendendo “a Ásia para os Asiáticos”, e construindo o novo conceito sobre características económicas, o que pode ser contraditório com a sua estratégia global, quando aumenta a sua presença noutros continentes como a América Latina e África, e mais cirurgicamente na Europa (v. g. sectores estratégicos). A serem bem-sucedidas as duas orientações, poderá haver um momento de clivagem de interesses, acaso não consiga concertar os seus anseios com os dos membros do BRICS; como maior potência do bloco, entra numa nova fase de integração financeira no mundo, levando os parceiros a dar passos que terão que ser decisivos para a afirmação do todo. Será pela via financeira que esse objectivo se poderá materializar, embora envolvendo o BRICS, mas fazendo parte de uma estratégia chinesa mais ampla e ambiciosa; daí ser relevante referir a criação de várias instituições financeiras, com maior relevo para dois bancos, um de desenvolvimento e outro especializado no financiamento de infraestruturas. Múltiplas envolventes financeiras de Pequim Defendendo uma forma de cooperação sul-sul, a China anuncia em 2012 a criação do NBD, numa vontade manifestada pela Índia. Logo em 2014, e com vocação específica, a mesma China lidera a criação do BAII, Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB). Pequim envolve-se em múltiplas vertentes, que estruturam a sua estratégia geopolítica pela via financeira internacional. Assim, no âmbito do BRICS, o Banco de Desenvolvimento, equiparado ao seu rival Banco Mundial (em que se integrou o BIRD), e ao Banco de Desenvolvimento Asiático, criado no seio do grupo e para os membros, ainda que o seu carácter global se vincule à diversidade de continentes a que pertencem os cinco países. Complementarmente surge o Fundo de Contingência de Reservas Cambiais, com a lógica de um fundo na esfera monetária, na prática um claro contraponto ao Fundo Monetário Internacional. Fora da esfera de acção do BRICS, Pequim cria um megaprojecto estratégico, o Silk Road Economic Belt and the 21st. Century Maritime Silk Road Initiative, conhecido também como One Belt, One Road, procurando criar uma malha de infraestruturas ligando o ocidente chinês através da Ásia Central, seguindo as míticas ‘rotas da seda’ até ao Médio Oriente. A visita de Xi Jinping ao Paquistão, poucos dias depois de fechado o processo de admissão ao BAII, dando início à formalização das promessas de investimento naquele país, demonstram a vontade de realizar o sonho idealizado. Será o primeiro passo da ambiciosa estratégia regional chinesa, juntando um investimento de trinta e quatro mil milhões de dólares em projectos de energia e onze mil milhões em vias rodoviárias, portuárias e outras infraestruturas de transportes, assim como o porto de Gwadar, onde começa um corredor que termina na região ocidental de Xinjiang (onde a China tem um dos principais focos de tensão interna); logo, para além de abrir uma via de comunicação fulcral para as trocas comerciais que se antecipam (aproximando ainda a região chinesa do Médio Oriente tão importante na perspectiva energética), estabelecerá, esperam, um mecanismo de segurança1 e estabilidade regional. O BAII ganha novo élan por conseguir juntar a maioria dos países asiáticos, muitos europeus, alguns do Médio Oriente, América Latina e África. Os EUA pressionaram os seus aliados no sentido da não-adesão, invocando a falta de confirmação do cumprimento de boas práticas internacionais, de transparência, de boa governance, mas não conseguiram suster a dinâmica chinesa. Mas uma (aparente) indecisão dos países aliados cai por terra porque no âmago da corrida está um Reino Unido que, aceitando o convite (ciente dos ganhos que assim poderia obter em negócios, o dossiê de cooperação nuclear, e, não menos importante, a sua aspiração a ser a plataforma de internacionalização do renmimbi), na prática abriu a porta aos outros países. Um alto funcionário americano criticou o que apelidou de “acomodação” britânica em declarações ao Financial Times. O Silk Road Fund (quarenta mil milhões de dólares) é um fundo de financiamento em infraestruturas e recursos, assim como para cooperação industrial e financeira, dado a conhecer aquando da Cimeira da APEC em Pequim, em 8 de Novembro de 2014, e destinado a investidores da Ásia. É um fundo complementar ao One Belt, One Road, vocacionado para o financiamento de eixos rodoviários e ferroviários, portos e aeroportos, com expressão na Ásia Central e do Sul, a partir da Rota da Seda, como eixo de acção. Para a SCO, a China avança com uma terceira instituição, o Banco de Desenvolvimento da Organização de Cooperação de Xangai. Medidas internas de reforço Na óptica interna, o governo chinês toma medidas de reforço de capitais e de gestão dos chamados policy banks, o China Development Bank (CDB), o Export-Import Bank of China (EIBC), e o Agricultural Development Bank of China (ADBC), bancos estatais que executam a política monetária e se viram para o financiamento de infraestruturas. De molde a garantir a capacidade financeira para o gigantesco projecto One Belt, One Road, destinou parte importante das suas reservas externas, sessenta e dois mil milhões de euros, para reforço de capital dos mesmos. Na óptica do BRICS é fundamental perceber como se articulam e qual a vantagem para a China em promover estes bancos, quando os membros têm os seus policy banks poderosos, mormente o China Development Bank, o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social brasileiro ou o South African Industrial Development Corporation, da África do Sul. A experiência será um valor acrescentado na implementação de políticas de ‘banca de desenvolvimento’, desta vez numa perspectiva mul-tilateral e com a vantagem de serem projectos novos, actualizados, renovados, demarcando-se o ascendente financeiro chinês, potenciando a dependência dos outros membros, e evitando o ónus de uma actuação bilateral mais aberta, ao aparecer integrada num grupo de países, diluindo assim o que poderia ser invocado como o seu domínio pelo seu peso desproporcionado, anulando eventuais críticas à sua acção enquanto potência dominante. A dança das adesões Dos acontecimentos de meados de Março de 2015 realça-se que, i) a China dá vantagem estratégica ao BAII, definindo um timing apertado; ii) o ministro das Finanças chinês a 15 de Abril anuncia a lista de cinquenta e sete membros fundadores, verificando-se que Taiwan e Coreia do Norte não foram aceites, enquanto EUA e Japão mantiveram-se firmes na decisão de não aderirem. Suécia, Israel, Polónia e África do Sul foram os últimos a ser aceites; iii) consegue assim um apoio alargado que transcende o âmbito geográfico, ao conseguir atrair para o seu projecto países europeus (Reino Unido, seguido da França, Itália e Alemanha) e de outros quadrantes geográficos; iv) não menos importante, provoca uma aparente “cisão”, pelo menos diplomática, entre os EUA e os seus aliados depois do lobbying para que não houvesse uma adesão significativa, mormente entre os países europeus e asiáticos. A 12 de Março, uma data marcante, o Reino Unido decide avançar, alegadamente contra a vontade do Foreign Office, numa decisão de David Cameron e do Chancellor do Exchequer, George Osborne. Porque se deu a sucessão em catadupa? Em primeiro lugar porque a China, bem avisada, definiu uma dead-line para meados de Março por pretender organizar um encontro de alto nível no fim-de-semana (28-29 de Março), em Almatai no Cazaquistão; em segundo, a solidariedade é sacrificada por um posicionamento de oportunidade, pretendendo assim marcar presença num futuro e vantajoso negócio, para mais podendo vir a ser parte substancial em divisa chinesa. A China mandatou Jin Liqun seu ex-vice-ministro das Finanças e alto quadro do ADB para realizar um road-show tentando convencer os eventuais candidatos; e, em terceiro, os países vão sabendo com alguma antecipação das sucessivas adesões. As decisões de adesão passaram essencialmente por um triângulo de questões em suspenso, a) escolha dos três membros ‘não regionais’ para o board (num total de quinze a vinte); b) quem acolherá o prestígio do escritório regional europeu?; c) a eventual caída de um poder de veto chinês. Este comportamento mostra a dependência económica e financeira face a Pequim e a falta de unidade e consenso entre os ‘ocidentais’ quando se perspectivam novas oportunidades financeiras, denotando sobreposição do sentido de negócio sobre o plano diplomático. É a primeira vez que a China questiona frontalmente a hegemonia dos EUA , e tem a possibilidade de gerir instituições financeiras internacionais, não obstante poder ter criado uma clivagem com impacto futuro entre os EUA e seus tradicionais aliados no processo de adesão ao BAII; mostra uma estratégia global clara e com ambição, enquanto agente de uma prática financeira, mas cimentando acima de tudo a sua projecção geopolítica, e revela complementaridade no funcionamento futuro dos três bancos, numa estratégia de reforma do sistema financeiro mundial. Notas 1 Note-se que deste acordo nasce o fornecimento de oito submarinos chineses (USD 4/5 mil milhões) e a venda de mais de trinta jactos de guerra FC-31, quando a Índia adquiriu a França 36 Rafale.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasMarketa Lazarová, Frantisek Vlácil, 1967 [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]arketa Lazarová é o melhor filme que conheço que mais desconhecido parece das massas. Não encontro muitas pessoas que o tenham visto ou que sequer dele tenham ouvido falar. Não que essa ignorância me perturbe, antes pelo contrário. Se há algo que Markéta nos ensina é a permanecer impassíveis no cimo de um cavalo, bem armados, prontos a dispensar o golpe a quem cometer a imprudência de nos melindrar. Markéta arrasta-nos – brutalmente, desde o seu início invernoso belo a preto e branco – para a Idade Média. Numa história de contornos nem sempre bem definidos, seguimos os movimentos de vários grupos: um bando cruel, o dos Kozlík; os homens de Lazar, mercador medroso, pai da voluptuosa e virginal Lazarová; o regimento leal ao Rei e um grupo de alemães. É um daqueles filmes – são poucos os que o conseguem – que nos podem levar a pensar que, afinal, o cinema é uma arte para levar a sério e não apenas um entretenimento mais ou menos artístico para adolescentes ou intelectuais preguiçosos. A história passa-se no século XIII mas a sua estética é ousada, modernista, mesmo vanguardista – sem chegar nunca ao abstraccionismo. Os planos em câmara subjectiva e alguns zooms são particularmente eficazes. Não há nenhum outro filme de Frantisek Vlácil que mostre a tal ponto esta escolha experimentalista, uma que poderá ter sido promovida pela sua passagem pelo Czechoslovak Army Film Studio, onde se praticava um cinema (não ficcional) com estas características e pela sua ligação às artes plásticas. O próprio Vlácil confessa que chegou ao cinema um pouco por acaso (enquanto cumpria o serviço militar) e que os seus interesses primeiros se encontravam mais perto das artes plásticas, da arquitectura e da música. E também da literatura. Quem quiser pensar no realizador checo como um poeta que usa o cinema não deixaria de cair nas boas graças do autor. Certamente que no vivíssimo romance de Vladislav Vancura*, que serve de base ao filme de Vlácil, este encontrou inspiração visual. O próprio nos fala (num pequeno documentário) da sua dificuldade em encontrar textos para os seus filmes quando a sua preocupação é tão fortemente visual e não narrativa. Não ter frequentado escolas de cinema nem partir para o cinema através de uma apetência por ele permite uma originalidade e uma frescura que outros, poluídos pelo amor que lhe dedicam, não exibem. O amor pode originar a fraqueza. Se pensarmos que Vancura realizara alguns filmes de metragem longa informados pela estética vanguardista soviética podemos aqui identificar uma herança. O filme de Vlácil estrutura-se em vários quadros que espelham as opções narrativas, nem sempre de leitura fácil, do romance de que partiu. As loucuras são semeadas ao deus-dará é a primeira frase do livro. Para além destas circunstâncias, o ambiente estético da altura era propício ao experimentalismo. Mesmo que Markéta se não inscreva naturalmente no movimento da nova vaga checoslovaca, esta é uma época de ousadias. Sedmikrásky/Daisies, de Chytilová (já aqui admirado) é de 1966, assim como o enigmático, cómico e perturbador Ostre sledované vlaky/Closely Watched Trains. Do mesmo ano de Markéta é o famoso Hori, ma panenko/The Firemen’s Ball, de Milos Forman e de 1969 é um filme também há pouco tempo cronicado nesta página, Spalovac mrtvol/The Cremator, de Juraj Herz. Sem querer estar a procurar demasiadas semelhanças entre o livro (de difícil adaptação pela sua arrogância narrativa) e o filme, note-se que a velocidade de um é a velocidade de outro. A vantagem do filme reside também no modo excêntrico como usa o som, por vezes autónomo em relação à imagem – como se nos quisesse assustar. O bando Kozlík é um bando de bestas, um bando canídeo, vestido de peles e com uma crença profunda no poder da força. A sedução de Markéta Lazarová começa por ser a sedução do golpe mas passa por muitas outras, carnívoras, sexuais, religiosas, católicas e pagãs (as melhores) e paisagísticas. Até tem freiras e o destino primeiro de Markéta, antes da violação e da sua conversão ao amor por Mikolás, filho preferido do bandido, é o convento. É raro um filme de época atingir este nível de autenticidade. Quem estiver interessado poderá tentar saber em que condições de obsessiva clausura e imersão Vlácil manteve os seus actores. No fim das quase três horas que dura é difícil de afastar esta sensação de imersão total. Andrei Rublev causa um transporte semelhante mas o de Markéta é muito mais físico e muito mais brutal. Pensar em muitos outros filmes passados na mesma altura só pode causar irrisão. Se a violência do regime autoritário sob que se vivia na Checoslováquia nos anos 60 tem par neste filme não sei. O que interessaria é saber se é possível que a arte produzida sob um regime totalitário (e especialmente uma arte de massas como o cinema) não é sempre uma referência à clausura que aquele impõe. O que é certo é que Vlácil mais não conseguiu reunir o dinheiro e condições de liberdade que lhe permitissem fazer um filme semelhante. Quando as tropas do Capitão leal ao Rei atacam a fortificação de Kozlík, sob o olhar atento do frade, quem decide os destinos do homem não é Deus mas a guerra, a força bruta. Troça-se de tudo como o Capitão troça do alemão que é suposto proteger e ajudar a recuperar o filho. “mein sohn, mein sohn”, diz o estúpido do velho quando o vislumbra, branquinho e amaneirado, junto da paliçada dos bandidos sujos e vestidos de peles e armados para matar. – Deves ficar sabendo, velho alemão, que o teu filho, o Conde Kristián, se apaixonou por uma das filhas do bandido, Alexandra coberta de sujidade, cabelos emaranhados e sacerdotiza de amores pagãos, assim como Markéta, filha de Lazar, e assim Lazarová, não resistiu aos encantos de Mikolás Kozlík. Um filme de bandidos, é o que é. E o último filme de Alexei German? Trudno byt’ bogom/Hard to be a God, 2013, baseado num romance dos irmãos Strugatsky. * Markéta Lazarová existe em tradução portuguesa, feita directamente do checo por Anna e José de Almeida, editora Quidnovi.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO primeiro professor régio José dos Santos Baptista e Lima [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]studávamos a vida do professor e poeta macaense José Baptista de Miranda e Lima quando dêmos com a figura de seu pai, José dos Santos Baptista e Lima, que veio de Portugal para Macau em 1775 como primeiro professor secular de nomeação régia. José dos Santos Baptista e Lima, natural da freguesia de Nossa Senhora da Esperança na vila de Alpedriz, concelho de Alcobaça no distrito de Leiria, nasceu por volta de 1750 e era filho de Manuel dos Santos e Teresa Maria de Jesus. Devido à reforma pombalina na Educação, por carta de 7 de Janeiro de 1774 foi nomeado pelo Rei D. José (1750-77) como o primeiro professor secular, para leccionar Gramática Latina em Macau. Pagou do seu bolso a viagem na fragata Nossa Senhora da Penha de França desde Portugal e acompanhado pelo seu primo chegou a Macau a 23 de Abril de 1775; era então Diogo Fernandes Salema e Saldanha pela 2.ª vez Governador da cidade. Ainda no primeiro ano de professor fazia já uma representação ao Rei a pedir aumento de ordenado e que no fim dos seus três anos de comissão, esta fosse revogada. Dava como razões que, para ensinar Gramática Latina aos seus discípulos portugueses, precisou primeiro de lhes ensinar “a língua portuguesa, ignorada totalmente pelos nacionais de Macau, que só falavam um idioma misto de português e chinês corrupto, impuro, e tal, que o referido Professor necessitava muitas vezes de intérprete para perceber o que diziam os seus discípulos, e para dar-lhes os precisos documentos, o que fazia certo com autênticas atestações: e como este trabalho era superior ao que estava obrigado pelas Reais Ordens de V. M. e o ordenado de 400$000 réis não chegava para se tratar com decência, tendo-se transportado para aquele país à sua custa, pedia humildemente a V. M. lhe acrescentasse o mencionado ordenado, suplicando ao mesmo tempo lhe desse providências, para que acabados os três anos que a sua carta lhe facultava, não ficassem os discípulos, pela dificuldade de recurso, privados das suas lições”. Esta representação ao Rei a pedir aumento de vencimento é de 4 de Setembro do ano de 1775 e foi feita por intermédio da Real Mesa Censória, que Rafael Ávila de Azevedo define como “tribunal encarregado de inspeccionar e seleccionar o professorado oficial e particular para o ensino oficial”. Consulta que só foi aprovada em 5 de Abril de 1777, pela Rainha D. Maria I (1777-1816) que acabava de chegar ao trono. Estando a terminar a sua comissão de três anos, a 28 de Abril de 1778, o Governo de Goa ordenou a continuação do professor régio da Cadeira de Português de Gramática Latina e que continuasse a reger o Real Colégio de S. José. O Senado a 23 de Dezembro de 1778 solicitou ao Governador da Índia a criação de cinco escolas de ler e escrever, de gramática latina, filosofia, moral e teologia. Muitas destas informações são do lavor do Padre Manuel Teixeira e com elas vamos continuar, misturando-as com informações retiradas dos Arquivos de Macau. Família do professor régio A Rainha D. Maria I, a 19 de Janeiro de 1779 mandou que dessem “mais cem mil reis a título de ajuda de custo ao professor de Gramática Latina da cidade de Macau, José dos Santos Baptista e Lima, pelos rendimentos do subsídio literário daquela cidade, em respeito ao bem, que a serviu o mesmo Professor, e ao grande trabalho, que este tinha com o ensino dos seus discípulos”, documento dos Arquivos da Fazenda de Macau. O “subsídio literário” era um imposto especial sobre as bebidas alcoólicas que o Marquês lançou para garantir a manutenção dos estabelecimentos de ensino. Ao intérprete pagava do seu bolso o professor José dos Santos Baptista e Lima. Mas o Senado, não reconhecendo a José dos Santos Baptista e Lima o bem, que a Rainha dizia servir ele como “professor e ao grande trabalho que este tinha com o ensino dos seus discípulos, recusou-se a pagar-lhe, remetendo uma representação para o Governo de Goa endereçada à Rainha. Esta, a 17 de Janeiro de 1781, voltou a enviar nova carta, urgindo esse pagamento e verberando a negligência do Senado em dar-lho. Nessa carta a Rainha faz ainda um elogio a outro professor da Escola de Ler, Escrever e Contar de Macau, António José de Sales e refere que “se o Senado não pagar dois professores, Me darei por muito mal servida”. Em Macau, José dos Santos Baptista e Lima casou-se a 23 de Janeiro de 1782 com Ana Pereira de Miranda, de quem teve seis filhos: José Baptista Miranda e Lima nasceu a 10 de Novembro de 1782, Maria Isabel nascera a 13 de Novembro de 1783, Isabel Maria nascida a 9 de Julho de 1785; Bento José a 10-11-1786; Josefa Serafina nasceu a 24-3-1791 e Vicência Maria a 29-3-1793 e que faleceu com 22 anos. O professor régio José dos Santos Baptista e Lima teve dois filhos que lhe seguiram as pisadas, o mais velho, José Baptista Miranda e Lima que substituiu o pai no lugar de professor e Maria Isabel, professora das “primeiras letras” que correspondia ao ensino primário. Quando estes nasceram, encontrava-se a educação em Macau no patamar mais baixo em qualidade. Altura em que chegou ao Senado uma carta de Goa datada de 19 de Fevereiro de 1783, a participar ter Sua Majestade encarregado o Bispo de Pequim a restabelecer o Seminário para educação da mocidade e por não haver “sujeitos hábeis para ajudarem nas Missões da China”. Administrar o tráfego do seu Navio A 23 de Dezembro de 1785, o Senado oficiou o Governador da Índia, D. Frederico Guilherme de Sousa (1779-86): “Sendo uma das Providências que V. Exa. mandou para esta que os Reverendos Padres do Real Seminário de S. José desta Cidade dessem estudo público aos sujeitos que quisessem instruir-se nas Letras humanas não tem tido o devido efeito, e não sabe este Senado por que razão o não teve. Entende este Senado que fazendo uma tão grande despesa com o dito Seminário também lembra este Senado a V. Exa. que sendo enviado para esta José dos Santos com o cargo de Professor Régio de Gramática Latina, está feito um dos homens de negócios. Senhorio de um Gurabo (embarcação de vela da Índia) Senhora do Rosário em cujo tráfego ocupa todo o tempo tendo totalmente abandonado o exercício de ensinar e ao mesmo tempo não deixa de cobrar por quarteis de 500 tt.s por ano os quais podiam ser úteis, aplicando-se em outras despesas mais necessárias”. Ainda como Governador da Índia, Frederico Guilherme de Sousa ordenou em Maio de 1786 que se pagasse “ao Professor de Gramática Latina, os ordenados que vencer enquanto constar que tem Aula aberta”, mas “não assistindo em todos os dias lectivos na Aula” não devia o Professor Régio receber ordenado. José dos Santos e Lima respondeu a 2 de Setembro desse mesmo ano dizendo que em doze anos de magistério cumprira sempre as suas obrigações. “Que em prémio deste meu trabalho e de ter gasto a flor de meus anos na instrução da mocidade desta terra (sempre ingrata a quem bem a serve) tem resultado as várias contas que esse Senado alucinado por alguns seus membros menos bem intencionados, tem dado de mim já a corte de Goa já ao Régio Tribunal da Mesa Censória em me pagasse sem perda de tempo tudo o que me estivesse devendo e ao meu primo nomeado para Mestre de Ler, Escrever e Contar, não aceito por esse Nosso Senado e que de contrato proceder se daria por muito mal servida”. Homem de negócios Mas o Senado voltou à carga: “Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor = Recebeu este Senado a Carta de Vossa Excelência datada de 8 de Maio do ano presente (1786), em que nos participa que (…) ao Professor da Gramática Latina, José dos Santos Baptista em execução da Ordem de V. Ex.a, se lhe mandou intimar que os dias lectivos se pusesse pronto nas horas competentes, para ensinar aos que se quisessem instruir, e como constou a este Senado, junto com o Governador desta Cidade que o dito Professor não assistia como deve, por se ocupar no seu negócio administrando o tráfego do seu Navio Nossa Senhora do Rosário e Almas, lha mandou um estudante a quem paga dez patacas cada mês pretendendo por este motivo receber o seu ordenado de quinhentos taéis, os quais se lhe mandou suspender desde o mês de Setembro. V. Ex.a determinará o que for justo, atendendo sempre, a que uma das causas mais proveitosas nas cidades é a instrução da mocidade, sem o que se não podem criar sujeitos capazes de se empregarem no Governo da República”. Macao, em Mesa de Vereação, 16 de Dezembro de 1786. Bocage, que terá estado em Macau apenas cinco meses, de Outubro de 1789 a Março de 1790, referindo-se à Educação diz ser muito má. Naquele tempo em Macau o comércio marítimo rendia somas avultadas e até o Governador entrara nos negócios do contrabando de ópio. Por isso, não é de estranhar que o professor régio José dos Santos Baptista e Lima, com uma prole cada vez maior e um ordenado de professor baixo, que mal dava para sustentar a família, também adquirisse um barco. A posse desta embarcação aparece-nos já em 1785, mas naufragou cinco anos depois, em 1790, nas praias de Gaspar Dias, em Goa. A 1 de Novembro de 1795 foi José dos Santos Baptista e Lima eleito irmão da Santa Casa da Misericórdia, sendo ainda seu escrivão e provedor. Ficou também ligado à iniciativa de se armarem em Macau navios para em 1809 combater o pirata Cam Pau Sai. Fica-se a saber pelas contas dos Cofres da Fazenda Real, que o Senado remeteu a 28 de Dezembro de 1787 ao Vice-Rei de Goa e este mandou lembrar que havia empréstimos que não tinham sido cobrados e que José dos Santos Baptista de Lima ainda devia ao Senado duas mil patacas de um empréstimo por seis meses que fizera em 16 de Dezembro de 1784. Ambiente na cidade O Senado deu ordem em 1787 ao procurador Filipe Lourenço de Matos para mandar demolir algumas casas chinesas novamente construídas em Mong-há e Patane. Mas mal começou esta obra de destruição, revoltaram-se os mercadores do Bazar. Também os mandarins furiosos exigiram que se demitisse o procurador. Sobre esse assunto, a 25 de Maio de 1787, quando participava na reunião do Senado com o Governador e todos os homens bons, José dos Santos Baptista de Lima disse: . O Senado, grande responsável pela turbulência na cidade pois não pedira primeiro a autorização do tso-tang para essa demolição, dera as ordens, mas castigou quem as cumpriu. Demitiu o Procurador Filipe Lourenço de Matos e para aplacar a população agitada, nomeou um novo procurador, António José de Gamboa, com quem os mandarins foram convidados a tratar deste assunto. Sobre a Educação em Macau, o Desembargador Lázaro da Silva Ferreira escreveu para o Governo da Índia em Dezembro de 1784 queixando-se da realidade que a cidade atravessava: , Dr. José Caetano Soares. O professor régio era José dos Santos Baptista e Lima; havia um clérigo, chamado António José de Sales, substituto da Escola de Ler, Escrever e Contar. Nem os franciscanos, nem as clarissas, tinham escolas em Macau, pois apenas pelo exemplo da sua acção e pela caridade das esmolas viviam, no Dao e aí eram professores na abnegação. Após a expulsão dos jesuítas, Leôncio Ferreira referia “a existência de aulas gratuitas, regidas pelos párocos das freguesias” e religiosas só havia escolas dos agostinhos e dominicano, apenas elementares e com reduzido número de alunos. Aparecia já uma boa escola no Convento de S. Domingos quando, a 16 de Janeiro de 1816 José dos Santos Baptista e Lima faleceu em Macau na freguesia da Sé, após ter aqui residido durante quarenta anos.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasAquilino Ribeiro Ribeiro, Aquilino, Andam Faunos Pelos Bosques, Círculo de Leitores, Lisboa, 1983 Descritores: Literatura portuguesa, Romance, Ruralismo, Arcaísmo, 272 p.:21 cm Cota: C-8-5-168 [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]quilino Ribeiro nasceu na freguesia do Carregal no Concelho de Sernancelhe a 13 de Setembro de 1885 e faleceu em Lisboa a 27 de Maio de 1963. Da sua biografia consta como nota de destaque o facto de ter sido implicado no Regicídio de 1908. Consta também que frequentou o Seminário de Beja, o qual abandonou por falta de vocação e que entrou em 1907 para a Loja maçónica da Montanha do Grande Oriente Lusitano. Nesse mesmo ano foi preso por acusação de anarquismo, mas evadiu-se no ano seguinte, mantendo-se contudo na clandestinidade em Lisboa. Mais tarde, em 1910, foi para Paris e matriculou-se na Sorbonne, mas não viria a terminar o curso, regressando a Portugal em 1914 começando a leccionar no Liceu Camões. Entrou para a Biblioteca Nacional em 1917 e conviveu de perto com Jaime Cortesão e Raul Proença. Colaborou ainda com a Seara Nova, fazendo parte da direcção da Revista. Viria a ser julgado e condenado, mas à revelia, em Tribunal Militar em 1929, por práticas hostis ao regime, depois de ter sido preso e se ter evadido em 1927, por ter participado na revolta do 7 de Fevereiro e tendo reincidido na revolta de Pinhel em 1928. Mestria e Vitalismo Comecei cedo a ouvir falar de Aquilino do qual se dizia que era o grande mestre da língua portuguesa sendo assim considerado um escritor incontornável no panorama da História da Literatura Portuguesa da primeira metade do século XX. O primeiro texto que li de Aquilino foi nas edições Sá da Costa, uma introdução-prefácio ao Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira, e desde aí decidi que o leria, senão por inteiro, pelo menos o essencial da sua obra. O texto sobre o exilado Cavaleiro de Oliveira é caudaloso, tão expressivo e bem escrito que estimulou imenso a minha curiosidade pela restante obra. Trata-se de facto de um texto notável que vivamente recomendo como forma de entrar na escrita intensa e vital de Aquilino, como lhe chama José Carlos Seabra Pereira. Falando da obra de Aquilino, a verdade é que, apenas o essencial é extenso, pois em tudo o que escreveu o autor se situou num plano de grande mestria e qualidade. Ainda assim destaco o romance de estreia, A Via Sinuosa desde logo por isso, porque é bom caçar um escritor quando ele está mesmo a sair do ninho. Os romances de estreia são imperdíveis para mim, mas nesse plano Aquilino é um autor esquivo, pois a sua estreia é uma obra atípica; estou a referir-me ao folhetim A Filha do Jardineiro escrito em parceria com José Ferreira da Silva, obra de propaganda republicana. O Jardim das Tormentas, publicado alguns anos mais tarde, já pode ser considerado de estreia, mas é uma colectânea de contos. A verdade é que temos que ter em conta esses textos, pois esses é que são de juventude, escritos e publicados com a idade de 22 e 28 anos respectivamente e afinal o escritor tem já 33 anos quando publica o primeiro romance. De facto, quando se fala da obra de Aquilino Ribeiro há cinco títulos que ocorrem imediatamente e em catadupa como se constituíssem uma Pentalogia e são eles os romances, Terras do Demo (1919), O Malhadinhas (1922), incluído na colecção de contos A Estrada de Santiago, Andam Faunos Pelos Bosques (1926), A Casa Grande de Romarigães (1957) e Quando os Lobos Uivam (1958). Mas como se pode constatar, nem sequer são textos próximos no tempo. As Terras do Demo é uma obra de juventude, o autor tem 34 anos, enquanto A Casa Grande de Romarigães e Quando os Lobos Uivam são obras de maturidade tardia, escritas quando o autor já passou dos 70 anos. Devo começar por confessar que apesar de ser já intenção minha ler e escrever sobre Aquilino Ribeiro, no âmbito modesto destas minhas Fichas de Leitura, a ideia se reforçou imenso depois de ler o notável estudo da obra do escritor, recentemente publicado na Verbo por José Carlos Seabra Pereira e designada, Aquilino – A escrita vital. Nessa obra Seabra Pereira na linha também de Urbano Tavares Rodrigues evidencia como linha isotópica transversal a toda a obra aquiliniana a questão da luta de eros contra cronos; mas o que alimenta esta tensão é em Aquilino da ordem de um imanentismo vitalista hostil às formas, secularizadas ou não, de uma qualquer forma de providencialismo, em particular o providencialismo de matriz historicista. A mundividência aquiliniana é sempre desenganada e realista ao mesmo tempo. Seabra Pereira fala de um sensualismo redentivo, mas sensualismo neste caso afasta-se da vulgata hedonista para se colar a um vitalismo global que sendo do corpo também é do espírito. E é do corpo e do espírito simultaneamente porque em Aquilino a fórmula dicotómica tradicional nos aparece esvaziada. O homem aquiliano é uma totalidade orgânica determinada pela vontade sendo que esta vontade se insere num transe existencial dominado por um imperativo categórico que não sendo imoral é pelo menos não moral. E é justamente nesse plano que é absolutamente justo chamar-lhe vitalista. Ora o vitalismo é sempre muito mais individualista que gregário ou social e daí que as personagens de Aquilino pisem muitas vezes o risco mas curiosamente sem perderem quer o halo de autenticidade quer o halo de justiça admissível. Mesmo quando não são completamente justos os heróis de Aquilino impedem-nos de julgá-los por que eles se encontram em certa medida para além do bem e do mal. Mas só em parte. A maior parte das antropologias filosóficas centradas na dimensão ética e moral do homem, sobretudo, moral, aparecem estigmatizadas por um optimismo muitas vezes bondoso mas ingénuo. A dimensão da oikeiosis estóica, do conatus essendi espinosista ou da evangélica fórmula da perseveração do ser até ao fim, contudo tão naturais e espontâneas, é muitas vezes obliterada em ordem à prossecução de filosofias que sacrificam o indivíduo no altar social e comunitário. Seguramente que deve haver limites para a voracidade egoísta do amor de si, mas isso não obsta à autenticidade dinâmica daquilo que citando Ortega y Gasset, Seabra Pereira identifica como “desejo de ser” e aplicado a Aquilino aparece reforçado por uma instância libidinal activa. É aqui talvez que reside a propensão vitalista de Aquilino, ela é indissociável de eros e luta agónica contra a clausura do ser nas malhas de cronos. E talvez por isso a sua posição é ao mesmo tempo não escatológica mas também não historicista. Esta perspectiva é-me muito desafiante na medida em que eu sou mais sensível à tonalidade da bondade do ser e portanto ao argumento ontológico do ser para o bem, mesmo que isso possa sacrificar a pletora da expansão individual. É isso que encontro em Sócrates e é isso que encontro em Cristo. Esta assunção desenha em mim uma espontânea suspeita face às propostas que propõem formas expansivas do vitalismo do ser, como encontramos em Cálicles, no Górgias, em Trasímaco, na República, em Diderot no Supplément au Voyage de Bounganville e por maioria de razão em Sade e em Nietzsche, mas também, ainda que de modo mais timorato em “l’esprit parfaitement content et satisfait” de Descartes, na “Vera acquiescentia” de Espinosa ou até na Befriedigung hegeliana. Mas o curioso é que o vitalismo de Aquilino não chega nunca a possuir a marca ostensiva de uma expansão do poder ou para utilizar a expressão de Lévinas a promoção d’“Essa força que vai”. Contudo não podemos sonegar que o vitalismo mitigado, ou não, corresponde como nos diz Raymond Polin à procura de uma plenitude do ego e a um claro “accomplissement de tous les désirs”. Nesta perspectiva vamos no sentido do homem estético kierkgardiano e não da direcção de uma homanidade ética. A minha natural propensão vai para esta segunda perspectiva que é socrática e cristã. No âmbito da primeira estaremos sempre mais na linha de uma possibilidade de derrapagem dionisíaca em direcção ao universo irracional e herético da ubris e eu por mim prefiro adequar-me aos cânones do espírito apolíneo consagrados no célebre apotegma da deusa Nemesis: “Nada em excesso”, ou “Nada para além da medida” inscrito lapidarmente no Oráculo de Delfos. Se citei Hegel foi porém forçando uma dimensão que nele não é de modo nenhum dominante já que reconhecendo o carácter incontornável do querer ser ele não deixa de na filosofia da história salientar que todo o querer-ser é liminarmente ético (existentivo e ôntico) e metafísico (existencial e ontológico). Naquele tipo de posições é sempre a natureza que serve de modelo e que representa o valor por excelência e a referência obrigatória. No caso de Diderot é tão forte esta tendência que no Supplément, apesar de ele admitir a necessidade de uma moral de tipo universalista ao mesmo tempo pretende inferir o universalismo não na perspectiva de uma transcendência moral relativamente à natureza do homem mas justamente a partir da natureza do homem e, para cúmulo, fazendo da natureza do homem não a sua capacidade para ultrapassar as pulsões naturais primárias, porque só aí se pode encontrar a moral, mas antes justamente na natureza «tout court», fazendo jus a um naturalismo integral, já que só o artificialismo o poderia combater. Neste sentido o vitalismo de Diderot anuncia Nietzsche e pelo menos implicitamente Diderot é tão anti-Sócrates quanto anti-Cristo, tal como Nietzsche. E já que estou com a mão na massa, será talvez o momento asado para proceder a um esclarecimento estrutural sob a forma de uma quase declaração de princípios. É importante porque ela permite que se possam compreender melhor alguma das minhas opiniões aqui em sede de Fichas de Leitura, passadas e futuras. Ora a ideia esta: Independentemente de ser correcta ou não a ideia de que é com Sócrates que, através da sua radical reflexão ético-moral, o universo da norma se começa a sobrepor progressivamente ao universo da natureza, interessa ter em conta que este tipo de tensão dicotómica atravessa historicamente toda a história grega desde o princípio. Não vou (nem posso) alongar-me aqui sobre todos os momentos em que este conflito se manifestou de modo radical, mas não posso esquecer dois instrumentos culturais determinantes. O primeiro é a obra de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, já que pela primeira vez se faz uma clara condenação da brutal desmesura e a apologia consequente da justiça e da medida e de resto como se justiça e medida fossem permutáveis. E o segundo é a cultura órfico-pitagórica, uma vez que é no quadro reflexivo desta cultura, que a cultura grega inaugura uma preocupação relativamente ao problema do bem e do mal. Aí se fala de um mal constitutivo da natureza do homem, espécie de mácula original e aí começa portanto a physis a sofrer os primeiros golpes e o caminho que conduz à norma a abrir uma clareira por onde haverá de irromper um dia. Deixo de lado agora as incidências escatológicas desta cultura, mas de qualquer modo deixo claro que a espiritualização da alma, a ideia de juízo e a procura da beatitude deixaram marcas profundas na tradição cultural do ocidente. Mas sobretudo o que é mais incontornável é o facto de que paralelamente à possibilidade de uma normatividade laica se enraiza a ideia de uma justiça transcendente assim como a ideia não menos pregnante de uma Théia moira (graça divina). Portanto começa a fazer o seu caminho a ideia de uma inseparabilidade, de um enlace decisivo portanto, entre moral e salvação. E é então quando, não as leis ou a tradição, isto é não Thémis, a diké ou o nomos mas sim os deuses, se tendem a tornar nos arquétipos personificados dos comportamentos éticos e morais que a dicotomia apolíneo / dionisíaco se torna analiticamente insubstituível. O facto de Dionísio aparecer no âmbito do orfismo intimamente associado a Deméter, deusa-terra-mãe, conferiu-lhe desde o início o estatuto de um deus que faz apelo das forças instintivas, subterrâneas, senão mesmo irracionais, por clara contraposição com Apolo, deus da claridade, da luz, da inteligibilidade e da razão. De facto, o apelo da terra-mãe é o apelo do indiferenciado, de uma pertença onde o eu extaticamente se dissolve (daí que também a oposição orgânico / individual seja tão determinante e decisiva na cultura ocidental contemporânea). Não vale a pena explorar a ideia, para mim errada, de que a desmesura do êxtase, o paroxismo, a catarse é aqui o caminho da sabedoria e da salvação. Interessa-me mais reter esta ideia de que todas as propostas vitalistas se confundem com o universo da ὕbriς. E o que eu sinceramente penso é que até aos nossos dias continua a fazer sentido esta profunda duplicidade da cultura europeia e ocidental. Portanto, às forças obscuras de Dionisos e Deméter pode-se continuar a opor a sagacidade exegeta das forças da racionalidade, da inteligibilidade e o mundo artificial de Thémis, ou seja o mundo da norma e da diké. E que é neste universo ideológico e mental que se joga de uma forma decisiva a secularização e a autonomia e a possibilidade de uma ética e de uma moral humanistas. Regresso a Seabra Pereira para começar por reconhecer que apesar da posição vitalista de Aquilino Ribeiro, em boa verdade mais espontaneamente poética, como Seabra Pereira ressalva, do que propriamente correspondendo a uma posição de fundo programática, a verdade é que o seu vitalismo nunca nos choca. Esse será provavelmente o maior mérito literário do autor, a capacidade de incluir no modus operandi e vivendi das personagens comportamentos de tipo libertino, sem que o sejam ideologicamente e sem que o conjunto da obra resulte como promoção do espírito libertino militante. Em boa verdade, e não posso deixar de comungar completamente com Seabra Pereira o entendimento explicativo reside no facto de que o voluntarismo de Aquilino, quer dizer das suas personagens, não é nunca uma “vontade de ter poder sobre outrem”, mas antes “vontade comum de poder fazer, de poder dizer, de poder fruir”. E, em boa verdade, nesta nuance aninha-se toda uma enorme diferença entre uma filosofia do domínio sobre as pessoas e as coisas e uma simples fruição lúdica das ‘coisas’ correspondendo neste plano a um libertinismo quase sem mácula, mais poético e lúdico do que outra coisa; o que Seabra Pereira designa: que é em geral apenas “vontade de expansão afirmativa e emancipante — desembiocada mas não declamatória”. O poder não aparece como um programa ou como tendência para a substituição de uma moral evangélica. Quase que poderíamos dizer que este hedonismo vitalista não sendo angélico também não é demoníaco. É ainda assim libertino, mas sem programa. Finalmente e o que provará a correcção tanto a da análise da obra aquiliana como a do notável texto de Seabra Pereira, vem este autor a plasmar e para mim de forma definitiva no seguinte: “tem ressonâncias nietzscheanas o irredentismo psicológico-moral que predomina na obra aquiliana, mas que se abstém das violências amorais da superação nietzscheana contra o humanismo judaico-cristão”. Ficará para outras núpcias este diálogo com Aquilino e Seabra Pereira, quando eu tiver lido a maior parte da obra do escritor. Por hoje vou dedicar algumas considerações particulares a esta obra que tenho em mão, Andam Faunos Pelos Bosques. Este romance é particularmente emblemático das considerações ideológicas que acabo de fazer pois ao mesmo tempo que não se coíbe de dar largas ao seu vitalismo erótico articula de modo por vezes magistral o demoníaco com o divino. A beleza faz corpo com eros e com a transgressão mundana porém legitimada pela função redentora do Fauno. Há semelhanças entre Fauno e Sátiro, mas a figura do Fauno embora seja associado ao prazer sexual perdeu a conotação bestial conquanto ainda possa ser representado metade humano, metade bode. Aquilino usa a simbologia do Fauno para dar largas ao seu vitalismo erótico ao mesmo tempo que compromete os padres que são quem faz as despesas da narrativa. O texto pretende também promover os cânones de uma sexualidade mais livre face ao conservadorismo rural na matéria. E a verdade é que as donzelas a dada altura por espontânea vontade se foram oferecer aos braços da inefável criatura, anjo, homem ou demónio: “Donzelinhas, mal a pojar dos seios, foram oferecer-lhe a flor temporã da puberdade. As casadoiras, no primeiro abrir mão da família, moscavam para ele”. A primeira reacção dos camponeses foi apanhar a fera e é espantosa a narrativa aquiliniana mobilizando todo o tipo de recursos geográficos, linguísticos e etnográficos para cantar a gesta da “Batida” heróica. Neste ponto, precisamente, poderá residir a eventual condenação do texto, uma vez que desde o léxico até à caracterização dos figurantes parece que se convoca um mundo fascinante mas desaparecido.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasHotel [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]assava mais tempo do que o necessário dentro de quartos de hotel, aproveitando até ao limite as promessas que ia buscar às suas necessidades e aos seus medos mas principalmente às suas leituras. Ao contrário do que outros faziam (tinha ouvido várias histórias ao longo dos últimos anos), nunca ficava no mesmo quarto mesmo quando repetia um hotel. Ser hóspede de hotel é um pouco como ser actor. É fácil de perceber porquê, não vale a pena estar a tentar explicar. Preparar a água para o banho, mudar o canal de televisão, fazer chá ou deixar a roupa espalhada pelo chão do quarto de uma maneira ritual e diversa da que se pratica normalmente. Talvez uma das seduções do hotel seja a de se fazer o mesmo que se faz todos os dias em casa mas de modo diferente e com muito mais liberdade. Por essa razão é que um quarto de hotel é o melhor lugar para se ler poesia, sem distracções, como um equivalente adulto de uma cabana numa árvore ou o lugar escondido por baixo das escadas junto das vassouras. Ser hóspede de hotel pode ter uma vantagem inocente, a de nos sentirmos praticantes de uma pequena fraude sem consequências. E porque é aí que se fazem ou podem fazer muitas coisas, como os escritores podem ser, como diz Cláudio Maggris em Danúbio, uma falsificação de si próprios, projectando o pronome “eu” noutra pessoa (Capítulo 2, O Danúbio Universal do Engenheiro Neweklowsky, 14. De Lauingen a Dillingen). -Este é também, e fora provavelmente para ele, o lugar do adultério, uma das ficções que nos foram obrigando a viver. -Uma outra ficção que o uso de um hotel faz disparar são histórias de pessoas que aparecem mortas em quartos de hotel, o que tem um mistério inventado porque lá é muito fácil inventar mistérios. É aí que o quarto se transforma numa cripta. Para matar alguém é melhor fazê-lo num quarto de hotel ou de uma pensão do que numa casa particular. -Sonhara que alguém o fora procurar ao quarto quando já lá não estava. -Usa-se também como sítio para praticar o desenraizamento, que pode ser consequência de um acontecimento sério ou um desejo turístico de olhar pela janela e sentir as luzes em baixo, indistintas. Para a prática turística do desenraizamento pode ler-se um livro de Herta Müller. Reisende auf einem Bein/Travelling on One Leg seria uma boa escolha já que Irene, recém emigrada de um país que nunca é nomeado mas que os leitores de Müller sabem qual é, sente e mostra constantemente uma desadequação no país que a acolhera. Der Mensch ist ein großer Fasan auf der Welt/The Passport, também pode ser útil porque fala de uma partida adiada mas finalmente conseguida. Claro que um hotel tem muito que ver com uma viagem ou o desejo de uma. É impossível não pensar no jovem Dedalus de Joyce. There was a book in the library about Holland. There were lovely foreign names in it and pictures of strange looking cities and ships. It made you feel so happy. Imagine-se ser condutor de um táxi e começar o dia sem saber onde se vai. Começar por ir ao norte da cidade. Depois a uma estação ferroviária antiga com torreões finos, num sítio difícil de parar e largar o cliente. Para onde irá ele? Uma passagem por um hospital velho a precisar de reparações. Ao pequeno almoço não imaginaria nada disto. Durante o dia não há passageiros para espectáculos, vestidos a rigor para a ópera ou o teatro. Compton Street, St. Peter’s and St.Paul’s Primary School, please, de manhã. 77, De Gusto, Charlottenstraße, bitte, à hora de almoço ou de jantar. Uma das grandes vantagens é a da fugacidade da visita não permitir que se acumulem emoções que poderiam mais tarde dar origens a nostalgias sólidas. O hábito é um vício difícil de deixar e assim permite-se a criação de uma desordem, mesmo que esta obedeça a uma ordem de uma memória ou de uma moda. Começava agora a sentir um fascínio por aquelas pessoas que nunca viajaram, que viveram toda a vida num mesmo país ou numa mesma região, algo que lhe seria impossível reproduzir. Começava a sentir um fascínio por quem, durante décadas, encontrara sempre o mesmo cheiro ao preparar-se para dormir e poderia continuar na perfeição a cumprir todas as suas tarefas domésticas se por qualquer razão perdesse a visão. Bruce Chatwin tem um livro assim. Todos os outros são passados num lugar diferente e são uma viagem, mesmo que não sejam livros de viagens. Mas On The Black Hill é sobre dois irmãos gémeos que passam toda a sua vida em Gales, of all places, que também é o sítio onde cresce Austerlitz, o herói do livro de Sebald com o mesmo nome. Se por coincidência se lerem os dois livros, o País de Gales nunca será a mesma coisa para nós e é por isso que um hotel é um pouco como uma língua estrangeira que se desconhece totalmente ou se percebe mal, cheia das vantagens cautelosas dos malentendidos e das relações fugazes.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasNoite ditosa [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]uan de La Cruz escreve talvez a mais bela poesia da língua espanhola, ao começar Janeiro, e perto da Lua-Nova, é essa «Noite Escura» de que nos fala um poema cuja beleza ultrapassa a previsibilidade da sua maravilhosa linguística ou, por isso mesmo, a insufla de monumental qualidade poética. Este é também o verso exegético do noivo, da noiva, bem ao gosto dos cantares de Salomão, uma interpretação amorosa de uma ideia que o outro mantém mas que o supera em utopia e finalidade. E… “Em uma noite escura com ânsias, em amores inflamada, oh ditosa ventura!, Saí sem ser notada, estando minha casa sossegada… nessa noite ditosa, secretamente, que ninguém me via, de nada curiosa, sem outra luz nem guia senão a que no coração ardia… Oh noite, que guiaste, noite amável como a alvorada! Oh, noite que juntaste Amado com amada, amada em seu Amado transformada!” Estamos perante um texto confidencial e amoroso de tocante intimidade, o brilho que sai da escuridão, a casa vazia e tudo aquilo que no coração ardia. O erotismo é uma vontade firme para que o sexo não caía no degrau da casa e se despenhe nessa vertente, onde o Amado o retire da cena de um desejo maior. É uma demanda, uma fonte espiritual que envolve a cenário do poema até este se tornar um clarão de beleza sem par. Juan de la Cruz é influenciado pelos cancioneiros, adaptando muitos dos temas tradicionais pela sua vocação religiosa, como o fez com o conhecido «Cântico Espiritual», mas a sua imensa beleza supera e intriga até hoje o universo literário. Estamos em frente de um poeta, não sabemos por vezes nem o que dizer, nem como o dizer, talvez, e sempre dizer, que nasceu em tal século, este em 1542, Camões nasceu em 1524, talvez fosse um bom século para os seus nascimentos. Afinal, ele insere-se no «Século de Ouro» espanhol. Influenciado também pelo Renascimento Italiano há um ritmo absolutamente envolvente que deve ter provocado a melodia – a lira. Este é um tema que me parece quase hermético pela dimensão até do conceito, mas, renascidos que estamos das coisas mais densas contribuímos agora para iluminar áreas que o vazio fazia de escura forma sem ser de noite escura. Esquecidos andamos destas noites belas e esguias como Catedrais, assim designou Aquilo Ribeiro a estas noites de Janeiro, em que os gatos lá longe já viam o despertar da alvorada… Esta é a noite das noites, a do início a do imenso cosmos a rodar na zona de acção de uma melhoria de factos que precisamos desenvolver. Nós somos agora quem pode cantar estes poemas de forma vária, dado que não existe um Catolicismo de Estado que nos empunhe um emblema litúrgico. Podemos ir buscá-los ao passado histórico e fazê-los cantar na nossa causa comum. Não sei o que se pode fazer com outras formas, dado que cada um de nós traz a matriz do seu trabalho e da sua lição no todo. Eu creio que há que reabilitar as naturezas e ir sempre à origem para se ser de facto original. Para que haja um « Cântico Espiritual» há que haver o principio da anima, da alma, da vontade que guia, para sermos guiados temos de permanecer em silêncio e ouvir as «vozes». Mas, se não houver espaço e tempo, os nossos assombros permanecerão visuais e o mundo um local de imagens loucas. Há que construir o receptáculo, a Arca, a forma de templo onde ao longo da jornada o coração refresque dos abrasantes momentos da vida… Há que ir ao poema mais vasto, ao canto e a esta alma, porque quase sempre ficamos como este lindo instante do poema: «Aonde te sumiste Amado, e me deixaste soluçando?» Para onde se foram deuses e vozes, deus e canto? Não seremos certamente as plantas de um vasto Jardim mas convém não expulsar de nós certas correntes, sob pena de ficarmos tão duros que pensamos estar imortais. Infelizmente não, não estamos imortais, toda a vida é para que a cantemos ainda e deixar a severidade aos que ficam no tempo como uma monotonia. Era tanta a certeza deste bem, que o verso era um servidor das cargas humanas que ficavam rígidas dentro de nós e por isso, antes desta altura , um pouco antes, ainda havia «Oblatas» aqueles versos da liturgia cristã para que nos fosse dado o dom das lágrimas. São de uma profunda humanidade! Enfim, chorar, se já não faz parte de nós como medida de defesa emocional, faz parte dos políticos mundiais, que tal como Obama ou Putin nos surpreendem de cara molhada e expressão que até agora nestes homens não conhecíamos. Eu acho tão bom! Tentemos desocultar o porquê da célebre frase de Churchill «Sangue, suor e lágrimas». É sim e afinal um grito pantanoso de Neptuno em que tudo se liquefaz, mas foi um ciclo de águas de “banhos marias” de verdetes e aguadeiros, não tardam os mares outra vez… mas as nossas naturezas secaram de tal forma que talvez até já saibamos navegar por cima dos maremotos, ou resistir debaixo de água. Sempre ficarei com o « Cântico Espiritual»: “buscando meus amores, irei por montes e ribeiras; não colherei as flores, nem temerei as feras, e passarei os fortes e as fronteiras”. Há um Esposo para esta Alma que está na raiz das coisas que buscamos, um ser que nos guia em formas de procelas… esta deidade tão boa! Constelar e vazia vai ser a noite de Juan de la Cruz, aqui não mora já ninguém – em meu peito florido….que ficou adormecido e eu o afagava e com leque de cedros brisa dava”. Aqui o amor não veio nem o vi em uma noite escura nem a noite era ditosa …….mas ela ainda me guiava mais pura que a luz do meio dia ……em parte onde ninguém me aparecia. – E assim na noite fria e tão ditosa se pode começar o primeiro degrau da difícil e urgente marcha deste Poema.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEscola Comercial | Portugueses, macaenses, malteses às vezes A 8 de Janeiro de 1878 foi inaugurada a Escola Comercial, criada por iniciativa da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM). Título apenas para assinalar o dia do seu aniversário, mas sem pretensão de fazer aqui a História desta Escola. Eis, resumidamente, o trajecto que a Educação teve em Macau, ligando a Escola Comercial às outras escolas de matriz portuguesa, até à incorporação na Escola Portuguesa de Macau [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] ensino estivera a cargo quase exclusivamente dos jesuítas desde o século XVI, até que estes foram presos e expulsos de Macau em 1762, por ordem do Marquês do Pombal. O Seminário de S. José, por eles fundado apenas em 1728, via assim sair os professores jesuítas expulsos de Macau, o que deixava a cidade sem verdadeiras escolas, tal como sem Universidade, a primeira a existir no Extremo Oriente. É o fim do primeiro período do ensino em Macau, que Aureliano Barata propõe como tendo acontecido entre 1572 e 1772, havendo a “exclusividade do Ensino por parte da Igreja Católica”. O desembargador-ouvidor Lázaro da Silva Ferreira escreveu para o Governo da Índia em Dezembro de 1784 a dizer que, como conta J. C. Soares, “depois da extinção dos Jesuítas cessaram aqui as escolas. Não houve mais uma cadeira de latinidade, nenhuma de moral ou teologia. Quem quis aprender foi a Manila, alguns para Goa e outros a quem os meios faltavam ficaram aqui, ouvindo lições de algum clérigo antigo…” Mas Lázaro da Silva Ferreira sabia que isso não era inteiramente verdade pois, nessa altura e já desde 1775, havia em Macau um professor de Gramática Latina, José dos Santos Baptista e Lima, que veio de Portugal, sendo o primeiro professor secular de nomeação régia. Acrescentava Lázaro da Silva Ferreira: “O professor régio com ordenado de 500 taéis ainda não formou um só estudante bom. As religiosas não dão aulas, nem estes conventos têm mestres”. Nota-se aqui um mote dado ao seu amigo, o poeta Bocage. Para este segundo período, Aureliano Barata refere ter ocorrido entre 1772 e 1835, acontecendo o “predomínio do ensino público pombalino e início da expansão da rede particular de ensino privado, em língua chinesa”. Até 1784, a educação em Macau vai sempre caindo em qualidade, apesar do Senado a 23 de Dezembro de 1778 solicitar ao Governador da Índia a criação de cinco escolas de ler e escrever, de gramática latina, filosofia, moral e teologia. Os dominicanos abriram uma escola no Convento de S. Domingos e devido à expulsão dos Jesuítas, o Seminário de S. José em 1784 foi restabelecido e confiado aos lazaristas. Como Colégio de S. José nesse primeiro ano teve apenas oito alunos. Nos anos seguintes chegaram de Goa para aí leccionar os padres Manuel Corrêa Valente, João Agostinho Villa, a que se agregaram outros dois vindos de Portugal. Segundo Ljungstedt em 1815 estavam no Colégio oito jovens chineses, dois malaios e dezasseis rapazes nascidos em Macau e em 1831, sete jovens chineses, dois de Manila, cujos pais eram portugueses e treze nascidos em Macau. Leôncio Ferreira referiu “a existência de aulas gratuitas, regidas pelos párocos das freguesias e pelos frades dos conventos, especialmente o de S. Domingos, que tinham uma boa escola.” Vila-Francada em Macau Era Macau ainda um importantíssimo porto de comércio, com uma razoável frota e pela necessidade de haver bons pilotos nas embarcações, foi em 1814 fundada a Academia Militar e da Marinha. Fechou em 1823, pois os lentes do primeiro e segundo ano, respectivamente o tenente-coronel Paulino da Silva Barbosa e o Major António Cavalcante de Albuquerque, foram presos e enviados para Goa, enquanto o lente do terceiro ano, José de Sousa Corrêa, vendo-se só, pediu e obteve o seu regresso a Portugal. Tal deveu-se à queda do Governo Constitucional a 23 de Setembro de 1823, quando se deu a revolta contra os liberal e colocou-se Macau, entre 1823 até 1825, a ser governado pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau Frei Francisco de N. Sra. da Luz Chacim. Juntamente com outros liberais, fugiu também o principal mestre do Convento de S. Domingos, Fr. Gonçalo de Amarante, (o redactor principal do primeiro jornal de Macau, Abelha da China, que de cariz liberal era um semanário criado por Paulino da Silva Barbosa, o chefe do partido constitucional, mas com a tomada do poder pelos conservadores, por ordem judicial do Governo Provisório miguelista mandou-se queimar publicamente às portas da Ouvidoria o jornal de 28-8-1823), que após se refugiar em Cantão, sem esperança de regressar a Macau, algum tempo depois embarcou para Calcutá, onde morreu. A Revolução Liberal começara em 1820 e advogava para Portugal a implantação da Monarquia Constitucional. Em Macau, como espelho do que se passava em Portugal, em 1822 surgiram dois partidos: o dos conservadores, chefiado pelo Ouvidor Miguel de Arriaga e o dos liberais, pelo tenente-coronel (ou major) Paulino da Silva Barbosa, tendo ao seu lado os dominicanos. Em 5 de Janeiro de 1822 foi publicada por Edital a adesão de Macau à causa da Monarquia Constitucional, que em meados de Fevereiro foi jurada pelos macaenses no Leal Senado da Câmara. Os lazaristas tinham aderido ao constitucionalismo, mas este movimento sufocado em 23 de Setembro de 1823 foi substituído pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau, Frei Chacim. Os lazaristas protestaram e em 4 de Outubro de 1823 foram presos três professores do Colégio. Joaquim Afonso Gonçalves e Luís Álvares Gonzaga fugiram para Manila, regressando poucos anos depois, talvez em 1825, onde continuaram a leccionar no Real Colégio de S. José (o antigo Seminário), que agora tinha na direcção o Padre Nicolau Rodrigues Borja. Por aí passou Jerónimo José da Mata, primeiro, em 1826 como aluno, onde terminou os seus estudos e nos anos trinta do século XIX como professor. Em Portugal a 1823, com a Vila-Francada, inicia-se a guerra civil entre miguelistas e liberais. A luta pelo poder era entre os Constitucionais, partidários de D. João VI e D. Pedro, que defendiam as ideias liberais e os Conservadores Miguelistas, que pretendiam continuar no sistema do governo tradicional proclamado por D. Miguel, filho mais novo de D. João VI. A primeira Constituição Portuguesa foi criada em 1822 e esteve em vigência por dois períodos: o primeiro, promulgado a 23 de Setembro de 1822 vigorou até 2 de Junho de 1823, quando as Cortes, após o golpe de D. Miguel a 29 de Maio de 1823, desistiram e deixaram cair a Constituição; o segundo começou com a Revolução de Setembro de 1836 (reconhecida por Revolução Setembrista), que transitoriamente repôs por decreto a Constituição de 1822 e aboliu a Carta Constitucional. Após D. João VI morrer, a 10 de Março de 1826, o seu sucessor, seu filho D. Pedro IV outorgou a 29 de Abril de 1826 uma nova Carta Constitucional, que seguia o modelo francês, o da Carta Constitucional outorgada por Luís XVIII. Também por decreto de 28 de Maio de 1834 foram suprimidas em Portugal todas as ordens religiosas e congregações, mas só após dois anos a Congregação da Missão (lazaristas) foi dissolvida em Macau, devido à oposição para a execução do decreto do Padre Joaquim José Leite, procurador das Missões e Superior. Os padres que aqui leccionavam tornaram-se seculares e continuaram a ensinar no Colégio. Assim existiram as escolas régias, até que em 1836, com a vitória do Liberalismo, surgiu um novo modelo de ensino público oficial baseado no sistema francês e novas escolas de iniciativa privada apareceram. Iniciativas privadas Abre-se o terceiro período, que para Aureliano Barata aconteceu entre 1835 e 1894, sendo de “grandes reformas do Liberalismo, com a introdução de órgãos mais especializados de supervisão do ensino. Início do ensino secundário, público e privado, em Macau”. A 16 de Junho de 1847 foi inaugurada a Escola Principal de Instrução Primária, fundada pelo Senado por meio duma subscrição e com o donativo de cinco mil patacas que o negociante inglês James Matheson ofereceu, por ocasião da sua retirada para a Europa. Mais tarde a essa verba juntou-se quatro mil patacas produto da venda anual da lotaria para ajudar a pagar aos professores. Situada em metade das casas do Recolhimento de S. Rosa de Lima, a Escola Principal de Instrução Primária foi confiada à direcção do macaense padre secular Jorge António Lopes da Silva, que aceitou “ser um dos mestres de primeiras letras com o ordenado de 350 patacas anuais, pondo as seguintes condições: 1) levar consigo os meninos que estudavam em sua casa; 2) os requerimentos para admissão deveriam ser dirigidos não a ele, mas ao Senado; 3) que se alterasse o horário de inverno, pois o tempo do meio-dia às 2 horas lhe parecia curto para descanso de professores e alunos”, como salienta Manuel Teixeira. E com ele continuando: “A escola compreendia três cadeiras; uma de ensino primário, a cargo de Joaquim Gil Pereira, outra de português a cargo do próprio Padre Jorge Lopes da Silva e outra de inglês e francês a cargo de José Vicente Pereira” e chegou a ter trezentos alunos. A Escola esteve no Convento de S. Francisco entre 1 de Maio a 20 de Junho de 1849 mas, como foi necessário aí aquartelar a força auxiliar vinda de Goa, teve de regressar de novo às casas do Recolhimento, começando então a pagar uma renda anual de 75 patacas. Era “onde grande número de órfãos pobres e desvalidos recebiam gratuitamente uma regular educação que se tornava de maior transcendência à vista da decadência de outros estabelecimentos da instrução pública que outrora prestaram grandes serviços” palavras do Senado ao Governador de Macau Isidoro Francisco Guimarães (1851-1863). Os fundos angariados pela comunidade macaense para a manutenção da Escola Pública eram provenientes do produto da venda de uma lotaria que desde 20 de Setembro de 1852, o Leal Senado foi autorizado anualmente a organizar. Também em benefício desta Escola em 14 de Novembro de 1854 foi feito um Bazar nas casas da Câmara, que rendeu $1073.83. Nos finais de 1853, o Padre Jorge Lopes da Silva, nascido em Macau a 8 de Maio de 1817 e ordenado em Manila com 24 anos de idade, pediu a demissão após sete anos à frente da Escola. Para o seu lugar veio para a direcção da Escola o Padre Vitorino José de Sousa Almeida. Por portarias do Ministério do Ultramar, o Governador Isidoro Guimarães propôs que a Escola Principal de Instrução Primária fosse a 3 de Novembro de 1858 reunida à do Seminário, onde existia também a instrução primária. Algo recusado antes de 1847 quando, para a fundação da Escola Principal de Instrução Primária, o Senado, por não ter um local para estabelecer um Estudo público, propusera ao Colégio de S. José, que lhe facultasse “algumas salas para ensinar a ler, escrever e contar, doutrina cristã, gramática portuguesa, aritmética, elementos de álgebra e geometria, história geral e particular de Portugal” Padre Manuel Teixeira. Já a Nova Escola Macaense, idealizada pelo Barão de Cercal, António Alexandrino de Melo, foi inaugurada a 5 de Janeiro de 1862 e contou com três professores contratados na Metrópole, mas fechou em 21 de Outubro de 1867, quando terminaram os contratos de seis anos feitos com os professores. Ao encontrar o Colégio de S. José apenas com um aluno interno e outros oito ou nove externos, o Bispo de Macau D. Jerónimo José da Mata em 1862 pediu para voltar este estabelecimento de ensino a receber professores jesuítas. Assim chegaram os padres Francisco Xavier Rôndina e José Joaquim da Fonseca Matos e em dez anos, com um “escolhido corpo docente” transformaram o Seminário numa das melhores e exemplares escolas de toda a Ásia. Atraídos por bons professores de diversas nacionalidades, a afluência de alunos era grande, apesar de a maioria não fazer intenção de seguir a vida sacerdotal e assim, quando terminaram o curso, muitos ocuparam lugares de destaque na Administração de Macau.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasSubjectividade, alteridade e ficção Braga, Maria Ondina, A China Fica ao Lado, Instituto Cultural, Macau, 1996. Descritores: Literatura portuguesa, conto, De longe a China: Macau na historiografia e na literatura portuguesas / coord. Carlos Pinto Santos, Orlando Neves, – 4 vol., p. 1545-1559 Cota: Mc/S234d [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]aria Ondina Braga nasceu em Macau a 3 de Janeiro do ano de 1932 e faleceu em Braga a 14 de Março de 2003. Estudou em França e Inglaterra, tendo-se licenciado em literatura Inglesa pela Royal Asiatic Society of Arts. Trabalhou vários anos como enfermeira durante o período dos seus estudos no estrangeiro. Entretanto viveu em Angola, Goa e Macau, tendo regressado definitivamente a Portugal em 1964. Fixou-se em Lisboa, mas no fim da vida regressou às origens, para a cidade que a viu nascer, Braga. Da sua obra destaco: O livro de crónicas, Eu Vim para Ver a Terra de 1965. Os livros de contos, A China Fica ao Lado de 1968, Amor e Morte de 1970, A Revolta das Palavras de 1975 e O Homem da Ilha e Outros Contos de 1982. A coleção de novelas, Os Rostos de Jano de 1973. E finalmente os romances Estátua de Sal de 1969, A Personagem de 1978 e Nocturno em Macau de 1991. Destas obras eu seleccionei os seguintes contos e crónicas: Angústia em Pequim de 1988, Chá de Jasmim, Coloane, Macau nos Longes do Tempo, Chinesinha, Mulheres de Letras na China Antiga, Macau Uma roda Cega, Nam Van, A Condição Feminina na Literatura Chinesa do Século XX e Porto Interior. Quase que me atrevo a dizer que escrever sobre Maria Ondina Braga me estava destinado com o sabor de um encontro e de uma fatalidade. E porquê? Desde logo porque os meus mais de dez anos de Macau fizeram com que os nossos caminhos se cruzassem (como eu gosto desta palavra, caminho, que intuitivamente se liga intimamente com andança, paragem, partida, diáspora, etc.). Não sou muito dado a leituras que não deseje e a cultos priveligiados de obras ou autores através de mecanismos de identificação obrigatória, seja pela nacionalidade ou pela língua. As minhas escolhas nunca suportaram esse tipo de condicionamento e não seria agora que o iriam suportar. Como tal grande parte do que se escreveu e escreve em Macau, não me interessa e nunca me interessou e não acabará por me interessar. Mas Maria Ondina Braga interessou-me desde sempre. A trajectória existencial da escritora de Angústia em Pequim, profundamente associada a deslocamentos geográficos constantes, por França, Goa, Angola, Inglaterra e Macau, colocava-a na órbita das minhas potenciais paixões literárias. Propositadamente misturei os lugares, sem nexo e sem fio codutor e sem linha de eventual continuidade histórica, para acentuar a matriz anárquica da deriva, da procura, da insatisfação, pois a haver um nexo, ele não será geográfico, mas ontológico, disso, pelo menos, estou certo. A obra de Maria Ondina Braga é inseparável desta flutução itinerante, desta viagem, deste processo de desenraizamento que me é tão caro. Não sei à partida o que é a causa e o efeito, se a biografia se o Eu. Não sei quem engendrou quem e provavelmente nem fará sentido esse tipo de escrúpulo analítico. A obra seguramente não irá deslindar o ovo da galinha, imbrincados como já estarão lá a vida e a arte, a ficção e a memória. Será a obra e a memória que a vida produziu que determinará a auto consciência de uma dispersão das modalidades existenciais, ou será essa dispersão nativa, autóctone e estrutural, diria, que dramaticamente estimula a vida às travessias, aos exílios e às diásporas reconfigurando no espaço e no tempo o que por si já aparece a si na sua vocação íntima acrónica e atópica, e, quem sabe, por uma demanda insatisfeita e agónica de uma eutopia soteriológica. O que sabemos de modo iniludível, por ser da ordem positiva dos factos é que Maria Ondina Braga, fez da fragmentação uma obra e da prossecução da obra uma vida fragmentada, porque não tenhamos dúvidas era a arte, que nela havia, o motor da sua insatisfação e esta a causa última e primeira do trânsito obstinado. A instabilidade estrutural do eu, ou seja dos eus, ou das suas fragmentações dispersas, encontraria no território da escrita a sedimentação possível de uma ilusão de permanência. Precária ilusão, acrescento sem medo, pois a ficcionalização do eu constitui a máxima artificialidade da ficção. A recriação da unidade do eu que passa primeiro por uma ideia de desdobramento entre a vida, através do exercício da memória, e a subjectividade aí espelhada, acentua ainda mais a inevitável não conformidade entre o ser e o devir. E portanto nesse sentido a ficção alimenta-se de uma ficção e torna-se a ficção suprema. Procuramos ouvir a nossa voz, na ilusão de que ela pode assegurar a transparência fenomenológica da consciência mas, simplesmente, a reelaboração da consciência e da memória nunca são a realidade. Essa realidade em que se acredita, esse modo de pensar que ‘é assim que as coisas estão a acontecer’, ou se passaram, é de uma ingenuidade tocante. A mobilidade territorial do eu, a sua inconstância, a sua alienação quer do ponto de vista da gnose, quer do ponto da afectividade falsifica as próprias modalidades da apropriação e portanto tudo se transforma ou numa forma cristalizada do vivido, que é sempre falsa, ou numa forma de representação onírica que é sempre fluida, projectada apenas como vaga nostalgia ou desejo. Entre estes dois pólos se move a escrita de Maria Ondina Braga. Vamos ver como. Vou centrar a minha abordagem no conto que transcrevo aqui em parte: “ (…) Nem no primeiro, nem no segundo, nem no terceiro Natal que passei em Macau, a senhora Tung era cristã, mas todos os anos se nomeava catecúmena. A seguir ao jantar falava-se nisso. A directora, uma francesa de mãos engelhadas que noutros tempos frequentara a Universidade de Pequim, perguntava em chinês formal quando era o baptizado. Inclinando a cabeça para o peito, a senhora Tung balbuciava, indicando a irmã Chen-Mou. A filha… a filha sabia. Talvez se pudesse chamar cristã pelo espírito, mas o coração atraiçoava-a. O coração continuava apegado a antigas devoções… Todavia, vestira-se de gala para a festividade da meia-noite, tinha no quarto o Menino Jesus cercado de flores, e a alma transbordava-lhe de alegria como se cristã verdadeiramente fosse. O conto é manifestamente autobiográfico e o narrador que neste caso é também manifestamente omnisciente, embora não o pareça, é a própria Maria Ondina Braga. Isso pouca importância teria se não devêssemos exigir à autora um desdobramento que lhe permita o jogo lúdico de uma duplicidade hetero referencial. Nas narrativas autobiográficas o autor é obrigado a produzir dentro de si a emergência de um outro, uma figura da alteridade no seu próprio teatro interior, pois só assim se instala um universo ficcional completo. Muitas vezes nas crónicas essa dimensão especular não chega a aparecer e a narrativa persiste no âmbito de uma veracidade empírica de verosimilhança histórica. Nem o papel ambíguo da memória a salva, pois muitas vezes a salutar ambiguidade e até o anacronismo ficcional é substituído por um rigor positivista eventualmente conveniente na historiografia mas contraproducente na efabulação romanesca. O ideal neste domínio é justamente o contrário do rigor documental e da veracidade confirmável, mas antes o sentimento de dúvida e eventualmente de estranheza ou incredulidade. Será que as coisas se passaram assim? Será que isto é mesmo autobiográfico. Onde começará a ficção e acabará a realidade? Essa perplexidade surge neste texto? E como? Em minha opinião surge e é isso que faz a diferença entre a boa literatura e a Grande Literatura. Os textos de Maria Ondina Braga contêm aquilo que Mikhail Bakhtin considera imprescindível, o desdobramento da consciência em duas entidades que não coincidem. É a irrupção da alteridade no seio do mesmo que abre o caminho ao processo efabulador e ficcional. A dado passo ela diz: “A menina sabia… ― a «menina» era a irmã Chen-Mou, a subdirectora do colégio ―, sabia que ela continuava a venerar a Deusa da Fecundidade. Tratava-se de uma pequena divindade, toda nua e toda de oiro. Fora ela quem lhe dera filhos. Estéril durante sete anos, a senhora Tung recorrera à sua intercessão divina quando o marido já se preparava para receber nova esposa. Não podia portanto deixar de a amar. Toda a felicidade lhe provinha daí, dessa afortunada hora em que a deusa a escutara. Parava a meio do largo átrio enluarado, de olhar meditabundo, mãos cruzadas no colo. E as palavras saíam-lhe lentas e soltas, como se falasse sozinha…. E aquele mistério da virgindade de Nossa Senhora! Virgem e mãe ao mesmo tempo… Não se lia no Génesis: «O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só carne?» Não era essa a lei do Senhor? Porquê então a Mãe de Cristo diferente das outras, num mundo de homens e de mulheres onde o Filho havia de vir pregar o amor? A Deusa da Fecundidade, patrona dos lares, operava milagres, sim, mas racionalmente, atraindo a vontade do homem à da sua companheira e exaltando essa atracção. Como o Céu alagando a Terra na estação própria. Retomávamos a marcha em direcção aos nossos aposentos. Difícil para mim responder às dúvidas da senhora Tung, nem ela parecia esperar resposta. Mudava, rápida, de assunto, aludindo ao tempo, à viagem de regresso, às saborosas guloseimas da criada macaísta. Já em casa, convidava-me a ir ver o seu presépio. O quarto cheirava fortemente a incenso. Em cima da cómoda, entre flores, lá estava o Menino Jesus, de cabaia de seda encarnada, sapatinhos de veludo preto, feições chinesas. (…) Os olhos da senhora Tung atentavam nos meus, como se à procura de compreensão, mas as suas palavras prontas (a deter as minhas?) eram de autocensura. Não, não devia fazer aquilo. A filha asseverara que o Menino Jesus entristecia, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. E quem sabia mais do que a filha? Eu já sentia frio, apesar da aguardente de arroz. O Inverno, ali, chegava de repente. A senhora Tung, no entanto, tinha as mãos quentes e as faces afogueadas. Despedíamo-nos. Eu sempre me apetecia dizer-lhe que estivesse sossegada, que de certeza o Menino Jesus não havia de se entristecer, em cima da cómoda, por causa da deusa, na gaveta. Mas nunca lho disse nos três anos que passei o Natal com ela. Palpitava-me que a senhora Tung se enervava com o assunto. E que, de qualquer jeito, não me acreditaria”. Acreditamos que tenha existido esta senhora Tung, mãe de uma freira de nome Chen-Mou e que viesse passar regularmente o Natal naquele colégio de freiras sub entendido e ainda que conhecesse suficientemente bem a Bíblia para discutir a virgindade de Maria, etc. Tudo é verosímil e provável, mas a narrativa, partindo de factos seguramente comprováveis possui a dimensão onírica de uma memória nubelosa à luz da qual, passe o paradoxo, as pessoas e sobretudo a senhora Tung adquirem uma dimensão de personagens que não possuíam na vida real. Trata-se de uma modulação mínima, que instaura os contornos de um universo poiético e que constitui o segredo da literatura. A senhora Tung existiu, vamos acreditar, mas esta senhora Tung, enquadrada do modo como Ondina Braga a concebe, é já uma personagem, enfim o esboço de uma personagem e é dessa personagem que nos começamos a aproximar e a afeiçoar. A senhora Tung só nos atrai e provoca curiosidade porque nos surge transformada pela retorta alquímica da escritora, que ao caracterizá-la fisica e socialmente não como o teria feito a Maria Ondina Braga que com ela contracenou, mas como o faz a escritora que agora no seu gabinete de trabalho a manipula levando-a a adquirir uma aura estranha e fascinante. Nesta mesma transformação é arrastada a própria autora que aqui contracena com a senhora Tung e que a senhora Tung seguramente não conheceu. Em boa verdade a mutação deu-se primeiro em Maria Ondina Braga e só depois por arrastamento em tudo aquilo que ela convoca, a começar pela senhora Tung, que seguramente também não se reconheceria a si mesma agora na pessoa de uma personagem.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA sarça ardente [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]al como a Fénix renasce da sua própria cinza, a sarça – quando parasitada por uma outra planta de frutos e inflorescências avermelhadas – dá-nos a impressão de chamas. Esta planta é mais vulgarmente conhecida como acácia e os seus belos ramos, tão valorizados em ritos e liturgias. A Fénix é uma ave e esta é uma planta: as coisas extraordinárias acontecem entre estes dois planos, de forma sempre renovável, presente e até insondavelmente desafiando muitas leis ditas imutáveis e pondo a funcionar o mecanismo alternativo da realidade paralela, partindo das mesmas organizações internas mas mudando-lhes a forma. Para os primeiros hebreus, Deus era mesmo designado por “Ehyeh” “Ehyeh-Asher-Ehyeh” – o que habita na sarça – sendo todos os objectos da liturgia feitos a partir dela. A Fénix entrava em combustão e desfazia-se, as suas lágrimas curavam a dor e a doença ao misturarem-se com o que sobrou do incêndio dela; tinha o poder de voltar à vida, a sarça não se consumia, não ardia, não entrava em combustão, era um fogo que não tinha o ciclo transformador. Aparentemente entre uma Sarça e uma Fénix parece haver antagonismo completo: onde mora o estático da planta que arde e não consome? As árvores sempre guardaram segredos. São os reinos vegetais, tão passíveis de produzir frutos proibidos como comestíveis, a estranha maneira de morrerem de pé com aquilo que por cima delas se passa e aparece, como se o reino vegetal fosse aquele onde os insondáveis caminhos do conhecimento de Deus mais falam sem que possamos extrair de tanta linguagem grande coisa. É nos ciclos de florestação que os incidentes mais bonitos e estranhos se consumam e quase sempre os seus efeitos, ora perversos, ora benéficos, nos instruem da finalidade sagrada da sua função. As aves quase sempre podem também morrer no ar, que o mesmo é dizer que de pé, mas, no vasto princípio paradisíaco, elas não estavam lá nem se manifestavam, era talvez um paraíso onde o céu não era este e o apelo da liberdade não se punha. Afinal, o Homem Adâmico era «Para lá do Bem e do Mal». Nietzsche testou esse efeito e conseguiu provar que nem toda a consciência necessita de juízo de valor. Os anjos vieram mais tarde como querubins que guardam a parte oriental ainda do Paraíso e não se lhes conhecendo outras actividades de mor importância nestas entradas, eles velam, voam, como a Fénix combusta, mas nada lhes é dado ainda de efeito inalterável “estão ao serviço de…”. São “intermediários”. Muitas vezes – e hoje que estamos no fim do Ano –as coisas tornam-se de uma eterna monotonia giratória, pois que ele se devolve aos nossos sonhos como cantigas de um circuito instável. Nós estamos efectivamente numa Terra com pouca sustentabilidade para podermos continuar aqui por muito mais tempo. O Ano que vem já deve ser a descontar para o «Êxodo» e nem que comamos as ervas amargas e o pão que o diabo amassou, parecemos aptos a recomeçar. Como não somos a Fénix, não ardemos, nem fazemos arder. Estamos em formas mansas de atrasar a transformação radical, mas que seria bom não esquecermos da vista, pois que a saturação dos Invernos é como a saturação dos cadáveres: gera pestilência. Entre coisas que nos deviam aproximar e a distância do sorriso bom do Verão, vimos como as águas avançam mais que as labaredas e a humidade do ar seguramente será boa para batráquios daqui para a frente. Nada de gelar que estamos a aquecer, mas este melhoramento climatérico tem pouco de risonho, ele quase nos agride a reserva biológica de dispositivo automático. Embora nem todas as plantas sejam acácias, o que arde deve fazer-nos pensar e o que nos inunda também. Não haver combustão não é suficiente para que salvemos o Mundo, nem as asas nos protegerão em caso de raios disparados, mas há algo que me intriga na grande marcha ambiental. Chegámos mais rápido do que julgáramos. Tão rápido que todas as esferas sonhadas e sabidas nos vêm agora à memória como possíveis esclarecimentos e tentativas de compreensão. A Terra é efectivamente e cada vez mais um planeta instável, onde a grande transformação se dá com alguma incerteza para o nosso permanecer. Vicissitudes de origem invulgar, abruptas, chegam-nos como tufões, os anjos devem andar chamuscados neste redil, e nem de nós por vezes dão conta, com o seu sistema de renovação radical. Por vezes, podem ser desesperantes como o de Heine Muller, que se suicidou num 30 de Dezembro e escreveu o «Anjo do desespero», no qual acrescentou esta coisa tão bela e enigmática: «Depois do desaparecimento das mães o trauma do segundo nascimento e o que eu vi era mais do que eu podia suportar». Talvez que nascer segunda vez não seja afinal um bem, talvez que não suportemos essa forma de nós outra vez. É certo que os anos passam, ou seja, que nós passamos pelo tempo, umas vezes tão indelevelmente que ele nos esquece. Parecemos abandonados da sua demolidora passagem, mas, depois, vimos que tal como a Sarça que estávamos sem nos consumirmos e sagramo-nos da sua luz estática. Depois tudo avança e desejamos descansar, um estranho sono que nos ajude pela mão das ervas daninhas a ficar sem a memória das coisas que fôramos. Quase nem podemos chorar! Há uma calcinação muito grande nos olhos que nos obrigam a manter abertos e que empurramos com quentes lágrimas pela vida que nos deram. Por vezes era melhor saudarmos coisas mais simples, ter reservas, andar em outro chão… por vezes não aguentamos as “asas” como bem disse Baudelaire : “o poeta é semelhante ao princípio da altura …. exilado no chão em meio à corja impura … a asa de gigante impedem-no de voar”. Sim, mas nunca de se gastar, de fazer de si a Fénix e deixar para Deus as labaredas sem chamas, como as línguas do Espírito Santo, que sendo luzes e em luz caem, permanecendo todas e como vozes, produzindo a não combustão. A língua como um fenómeno imenso, os homens antigos ouviam sempre vozes… talvez haja um lado cerebral que os dispunha para isso… As vozes à medida que as sociedades se transformam vão tendo outras características. Esta nossa, mais visual, e já nada nos visita de forma apelativa, e com o tempo de tudo dizer, as vozes se foram. Nomear, ouvir, escutar, mas o cérebro tornou-se intolerante à solidão, o cérebro humano não ausculta e por isso não ardem as sarças nos locais de uma fogueira, que o lume aquece e os dias do últimos dias do Ano são frios.
Boi Luxo h | Artes, Letras e Ideias5 filmes recentes [dropcap style=’circle’]B[/dropcap]ande de Filles (2014, Céline Sciamma) – Quando menos se espera surge um filme verdadeiramente adulto, desenvolto e sedutor. Pouco dado ao Bildungsroman (Naissance des Pieuvres, da mesma autora, tem uma figura central, Marie, com semelhanças com a de Bande de Filles) este vosso dedicado cronista preparara-se para lhe dedicar pouco entusiasmo. Mas esta história sobre os dias de Marieme, uma rapariga de dezasseis anos, num bairro social dos subúrbios de Paris, recusa desde muito cedo os clichés da vida na suburbia tanto a nível do texto como a nível do seu aspecto narrativo, assim como recusa lugares comuns próprios às histórias de crescimento. Em vez da exploração do calão ou da linguagem corporal das tribos dos arredores ou da exploração do tópico da raça, de justificações sociais usadas à exaustão ou do sexo, Céline Sciamma explora o inegável charme das várias figuras que mostra e a sua tendência eufórica, ao mesmo tempo que elogia a propensão de Marieme para manter a sua independência face às várias pressões que a rodeiam. Se é a história de um grupo é muito também a história da integração e da independência de Marieme. A gradação que se desenvolve desde as cenas de futebol americano com que o filme começa até à chegada solitária a casa de Marieme é uma introdução auspiciosa cujas promessas se cumprem encantadoramente ao longo do filme. [dropcap style=’circle’]Y[/dropcap]outh (2015, Paolo Sorrentino) – Foi quando o monge levitou que confirmei que este filme de Sorrentino não tem surpresas para oferecer, ao contrário do que acontecera com o seu filme anterior. Este dispensa, ao invés, à medida que se desenrola, uma boa oportunidade para tentar adivinhar qual o lugar comum seguinte. O do monge é paradigmático porque pensei que uma pessoa que fez La Grande Bellezza não cometesse semelhante infantilidade. Serve Youth para confirmar que La Grande Bellezza foi feito em estado de graça. O que não quer dizer que este tenha sido feito em estado de desgraça. Uma das suas contradições é que este realizador, que é novo, tenha feito outro filme sobre a velhice e sobre as oportunidades que este estado oferece mas que é um filme velho e gasto. Há que se recomende a quem não quiser ser surpreendido: algum humor, uma narração certinha, boas paisagens (que o filme se passe na Suíça não deixa de causar um sorriso a quem o vir como um filme pastoso e quase sem razão de ser), algumas imagens a imitar Fellini e, para quem gosta, grandes planos de actores famosos – mesmo que esta opção retire, como é normal, credibilidade ao filme. Não estava à espera da banalidade da maior parte dos diálogos nem do sentimentalismo internacional que exibe (o sentimentalismo de La Grande Bellezza, um sentimentalismo italiano, tem o seu lugar próprio nesse filme.) Consola, no fim, ver a violinista Viktoria Mullova, que deu um concerto em Macau no F.I.M.M. deste ano, e uns grandes planos de Sumi Jo. Pena seja que estas duas aparições se encaixem num desenvolvimento desnecessário e sentimentalóide. [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ia Madre (2015, Nanni Moretti) – Confesso que prefiro o Moretti dos primeiros filmes, aqueles em que se mostra irritantemente opinativo, agressivo, insistentemente apaixonado, cómico, chato, imprevisível e impossível de ignorar. Mas mesmo que agora Moretti nos esteja a dizer (nos esteja a repetir) coisas que nós já sabemos e que não nos diga absolutamente nada de novo, há um apelo doméstico e emocional nos seus filmes que permanece sedutor. Esta sedução vem do seu trabalho de cinema e do seu saber artesanal. Não é fácil de perceber de onde vem a credibilidade destas figuras e a facilidade com que as aceitamos como próximas (não necessariamente amadas). Para quem se deixa seduzir e comover por este tipo de cinema seria difícil fazer melhor, ser mais sério e mais convincente. É um daqueles exemplos em que se pode falar de um efeito Moretti, uma imagem de marca, uma definitiva autorização. E se o próximo filme de Moretti for assim, aceitá-lo-emos de novo, mesmo contra a nossa vontade, vergados à evidência da sua habilidade e da sua inegável humanidade. [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]hanhe guren/Mountains May Depart (2015, Jia Zhangke) – Já tinha pensado que Jia Zhangke poderia ter chegado a uma fase de indefinição no seu cinema, esgotado o tipo de filmes sobre a China que tem vindo a fazer. Depois de Tian Zhu Ding/A Touch of Sin, que tem as suas ousadias críticas e estilísticas mas também alguma indefinição quanto aos seus objectivos, difícil seria adivinhar o que viria. RGB tiff image by MetisIP Shanhe guren não é ousado a contar nem inovador a mostrar (há quem o veja até como uma capitulação às pressões do regime). As conhecidas sequências sobre o estado da China são vazias de interesse e as tramas pessoais (que começam numa história de homem rico/homem pobre que se desenvolve numa de jovem desenraizado sem mãe que se envolve com mulher madura) não despertam grandes entusiasmos. Infelizmente exibe um traço irritante do cinema chinês que é a obsessão com a história e com o passar do tempo, o que impõe uma obrigação narrativa enfadonha – que vem da literatura – que enfarinha muitos filmes chineses das últimas décadas. Nem as imagens da fealdade de um país em constante destruição/construção, cheias de poder a nível estético e crítico noutros filmes, aqui convencem. A parte que tem que ver com o futuro (próximo), passada na Austrália, é quase penosa pelo número de clichés e infantilidades que dispensa, ao mesmo tempo que se desagrega totalmente a nível de algumas reflexões sobre o mundo contemporâneo que poderiam causar algum estímulo. Esse estímulo não acontece e fica apenas um filme inútil, provinciano e murcho daquele que continua a ser, desde os anos 90, o mais interessante autor de filmes chineses. Tian Zhu Ding é um filme zangado e duro, este amolece e esfarela-se no fim. O mais aborrecido é que Shanhe guren, que é um filme interessante, seja, para quem conhece os outros filmes de Jia Zhangke, um que não serve para nada. Esperamos muito que Jia Zhangke não venha a cair na tentação de fazer um filme ocidental, como Wong Kar-wai (o ridículo Blueberry Nights), Hou Hsiao Hsien, Kiarostami ou Tsai Ming-liang. [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]ove (2015, Gaspar Noé) – o filme de Noé sublinha que o cinema devia ter mais sexo explícito, especialmente se o objectivo é falar do amor e dos outros de um modo sincero. Nymphomaniac, de von Trier, já o havia provado não há muito tempo. É preciso trancada forte para ser exacto e é preciso mostrar um pouco de coragem. Partilha com o filme de Lars von Trier a concentração no interior de um apartamento mesmo que no do dinamarquês este seja um local que é totalmente estranho à protagonista. É essa estranheza que liberta o seu discurso. Neste Love é difícil tirar Murphy de um interior que é o seu e será essa envolvência que nos envolve a nós e que nos intriga. Este filme teria tudo para ser um grande filme de amor se a história de Murphy fosse interessante. Como elogio da banalidade das figuras e do seu comportamento seria um desastre. Para além de coragem e de algum poder criativo seria preciso alguém que não dissesse I love Europe por poder estar na cama com uma adolescente e a sua namorada ou alguém que não dissesse que quer fazer um filme com “sangue, esperma e lágrimas porque isto é a essência da vida” – porque é nestes pequenos momentos (de que Youth está cheio) que vamos deixando de acreditar no filme mesmo que sejam usados para trivializar a sua figura principal. Mas acredito no seu apartamento e na justeza de algumas das suas imangens, a distância da câmara ao protagonista, perto e um pouco elevada, à mesma altura da voz off. Se a meio do filme nos perguntamos porque é que nos interessa a banal história de um homem que engravida involuntariamente a vizinha do lado e é abandonado pela namorada é porque esperamos que surja um desenvolvimento cheio de perigo, algo que cause o medo. Mas tal acaba por nunca acontecer. O que acontece é uma pequena viagem guiada por alguns efeitos Noé já nossos conhecidos. Pela altura do desfecho este já não nos causa senão um pequeno enfado.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasA beleza das cidades. Happy City. [dropcap style=circle’]P[/dropcap]or alturas da publicação nestas páginas de um artigo que chamava a atenção para as insuficiências que impedem um usufruto mais confortável da cidade, numa edição de fim de semana de um jornal inglês de longa história, subtil influência e cor salmão, saía um artigo sobre a beleza das cidades. Esta prende-se muito com a sua personalidade e o seu rosto próprio. Há cidades que têm monumentos históricos, como Praga, Dresden ou Londres. Outras, em grande número porque foi difícil recusar este apelo que não é meramente económico, situam-se junto a rios ou mares, como Lisboa, Istambul ou Sidney e tornou-se lendário a elas chegar por via poética. Umas, como Tóquio, Hong Kong, Berlim ou Nova Iorque, além da água, tremem pela sua frenética vida financeira, artística, económica e cultural. Ao primeiro critério, que é de imitação impossível e de subtração insensata, só acedem as cidades que tiveram a sorte de manter a sua monumentalia. É o que acontece com Macau. O segundo, de ordem puramente geográfica, de impossível reprodução. O terceiro constrói-se mas apenas em locais onde se promoveu durante séculos (mesmo que poucos) um espírito empreendedor que encontrou solo para prosperar. Em Macau causa interesse lembrar que quase todas estas circunstâncias ocorrem, mas de um modo tímido, quase imperceptível e inconsequente. Há rio, ou mar, mas sujo. Manteve-se um conjunto monumentário não só decente como único em toda a Ásia de exemplos chineses, europeus e sincréticos. Não existindo actividade cultural que a distinga, a cidade montou-se em torno de uma actividade lucrativa mas um pouco absurda – o jogo. Não existem muitas cidades assim, que vivam exclusivamente da fortuna daqueles que resolvem jogá-la. É fácil fazer o exercício que nos permita ver com clareza o absurdo de tudo isto: a região administrativa especial em questão gera receitas altas (mesmo que mais baixas que há 2 anos) porque fica com o dinheiro dos outros. Tornou-se, deste modo, numa cidade arranjada em torno do turista e não do residente. Esta mecânica sublinha uma vocação que já aqui se identificou nestas páginas, uma tendência absorvente e côncava. O que seria de esperar é que a esta circunstância côncava que o morcego da entrada do Hotel Lisboa e o desenho da moeda local tão bem exemplificam, fosse acompanhada de uma administração adulta e com visão. O livro de Charles Montgomery, Happy City, ensina que é inegável que por vezes a transformação se dá impulsionada pela visão de uma pessoa, como se aprecia na história de Enrique Peñalosa, o conhecido ex-presidente de câmara de Bogotá cuja visão serviu de inspiração para várias municipalidades. O que se salienta nas duas Regiões, de Macau e Hong Kong, é a total ausência, há várias décadas, de um governante com a mínima visão. Estima-se que o visionário presidente de câmara tenha influenciado mais de 100 cidades. Jacarta, Deli, Lagos e Manila introduziram melhoramentos inspirados no seu exemplo. Pequenos acrescentos podem servir interesses vastos da população, como a limitação do acesso de carros privados a certas zonas da cidade, a criação de vias para bicicletas (centenas de quilómetros no caso de Bogotá), parques, praças para peões, bibliotecas, escolas e um sistema de transportes públicos decente. A motivação básica de Peñalosa centrou-se em combater a ocupação da cidade pelo automóvel privado e permitir que os residentes usufruíssem dela de uma maneira mais limpa. No princípio do século XX as ruas da cidade pertenciam ainda à comunidade e o automóvel privado não passava de uma anormalidade facilmente contornável. Aos poucos esta situação começou a mudar e o automóvel, por trás do qual se montaram interesses económicos poderosos que ainda persistem, reclamou cada vez mais espaço e mais velocidade à medida que o transporte público, os ciclistas e os peões foram sendo empurrados do espaço público que era a rua. Este movimento tem um nome: Motordom. Ainda vivemos nesse modelo, se bem que as coisas estejam a mudar um pouco em várias cidades da Europa, América e Ásia Extrema. O Alcaide de Bogotá tornou-se, em pouco tempo, numa cidade conhecida pela falta de segurança e pela poluição, num herói. De acordo com o seu plano, e como nos mostra Montgomery com entusiasmo, a cidade tornara-se mais feliz. “Peñalosa has become one of the central figures in a movement that is changing cities around the world” (pg.2). Central ao seu projecto foi a ideia de que a cidade deve ser inclusiva, a de que a cidade deve ser para todos – o que se consegue criando espaços públicos de qualidade, não prometendo o impossível à população e criando um entusiasmo pela elevação do status social de hábitos anteriormente associados exclusivamente à pobreza (como o uso da bicicleta ou do transporte público). Uma cidade onde existam menos diferenças sociais (como Copenhaga) elimina com mais facilidade o stress associado à consciência de que se é ostensivamente mais pobre que os outros – um problema crescente nos Estados Unidos da América, mostra-nos Montgomery, e certamente crescente na Ásia, onde o contraste entre os que têm (e ostentam) e os que não têm (mas vêem outros ter, o que aumenta o nível de desconforto social e stress) é cada vez maior. Pg.250 – “American cities have actually been getting more segregated by income class for the past three decades”. Para lá do senso comum provou-se que um contacto directo e persistente com a natureza, sob a forma de jardins, parques ou simples ajardinamentos, tem um efeito benéfico sobre os residentes a nível do seu bem estar mas também a nível do seu comportamento. A privação da natureza leva mais rapidamente ao cansaço, à agressividade e até ao crime e esta deve estar presente não apenas em parques ou jardins, que podem ser de acesso mais difícil, mas o mais possível integradas na malha urbana. Tem de haver proximidade.* Não se pretende dizer que a distracção e o lazer constituem medida única para o avanço do bem estar mas este deve ser complemento importante de um ambiente em que se propicia o avanço profissional, uma escolha diversa de oportunidades que tragam sentido ao quotidiano e um sistema que tolere e proteja de modo inequívoco escolhas alternativas ou desprotegidas de vida. Um dos pontos mais interessantes por que Montgomery se estende tem que ver com a importância da confiança por oposição à importância de considerações materiais. O modo como nos relacionamos com os outros habitantes da cidade deve criar uma rede de confiança nas pessoas e instituições que rodeiam o residente, seja a polícia, o governo ou os vizinhos e amigos. O relacionamento com os outros é mais importante que o ganho material. Não poderia faltar o exemplo dinamarquês. O caso chinês é paradigmático (como se aponta no Capítulo I). Se o acesso a bens de consumo aumentou de um modo nunca visto, o mesmo não se passa a nível da satisfação com a vida, um padrão que se descobre em muitos outros países. No terceiro capítulo o autor demonstra como um quotidiano ligado a grandes ligações diárias por carro esvaziam a componente social da vida urbana e tendem a criar desconfianças nas pessoas e no sistema. Outro paradigma de construção recente aparece ligado também a um indivíduo – Lee Myung Bak, o presidente de câmara de Seul que ousou demolir quilómetros de viadutos numa área de imobiliário de alto preço para que o rio Cheonggyecheon reganhasse luminosidade natural. Hoje é uma zona naturalizada com arbustos, relva, zonas de água, pássaros e peixe. Não foi esta a única intervenção significativa do presidente de câmara (2001 a 2006) que veio depois a ser eleito presidente do país. No que respeita ao valor da convivialidade Happy City sublinha uma constante interessante. A de que as pessoas muito rapidamente se adaptam a inovações assim que descobrem as suas vantagens, muitas das quais tendem a criar modos de pôr as pessoas em contacto em espaços públicos (e mesmo que estas possam encontrar uma resistência inicial, como acontece, por exemplo, com alguns planos de pedonização ou redistribuição de fluxos de tráfego). Montgomery, para o fim do livro, chama a atenção para um fenómeno que parece vir contra a eficácia do redesenhar das cidades de modo a torná-las mais inclusivas. Quando o centro da cidade e algumas das suas zonas mais degradadas começam a tornar-se mais atraentes os preços sobem e os habitantes dessas zonas podem-se ver obrigados a abandoná-las. Se o autor não insiste muito nisto é porque Happy City é mais um livro sobre design que sobre políticas sociais. Aconteceu em Vancouver, em Bogotá e em Melbourne. Em Hong Kong há exemplos muito recentes. Em Kreuzberg, em Berlim, tentou travar-se esta gentrificação. Mais uma vez, o que se deseja é uma política de inclusão e uma cidade pensada pelos seus habitantes. * Curiosamente este é um dos termos chave de um livro de Edward Glaser já aqui apreciado, Triumph of the City, onde, no seu elogio à cidade, se encontra copiosamente a referência à proximidade física permitida pela cidade vertical e o efeito que esta tem na sociabilização, no excitar da circulação e na criação de ideias, da inovação e da criatividade. Montgomery mostra-se mais inclinado para um modelo entre a cidade vertical e a cidade horizontal, como se lê no Capítulo 6 – intitulado How to be Closer (“If you search hard enough for places that balance our competing needs for privacy, nature, conviviality and convenience, you hand up with a hybrid, somewhere between the vertical and the horizontal city”. pg.139). Não parece haver diferenças no modo como ambos entendem a cidade vertical como a opção mais verde.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasOnde moram as algas – Conto de quase natal [dropcap style=’circle’]À[/dropcap]procura daquela latinha de chá onde guardo o menino Jesus. A única figurinha do presépio que tenho minha. Há quase vinte anos já era vintage, agora continua, porque o menino não cresceu. Em minha casa, a dos meus pais, também o presépio toda a vida se guardou numa caixa de sapatos. Este ano o meu presépio, reduzido a esta única figura como sempre, tem um cenário diferente. Um asteroide. Cinza, queimado, de Raku. Penso nele como o pequeno planeta do principezinho. A sensação de não ter havido salvação é a mesma para um e para outro. Defraudada humanidade pela troca do ser transcendente que era imaterial, superior e triplo sem o ser, por um humano na arrogância do próprio deus, idêntico aos outros, mas com missão impossível. Por isso voltou. Morreu por amor, supostamente, e para aquilo que não conseguira em vida, a salvação dos mortais, que talvez não se reconhecessem na fé por um igual. Voltou aos céus para que a humanidade pudesse voltar interiormente o olhar para cima. Suponho que é mais ou menos a isto que Žižec chama a monstruosidade de Cristo. Morrer por amor é lindo, afinal. E difícil para além de todas as metáforas. Talvez ele fosse então superior. Não estou preparada para mais um Natal. De novo. E isto não é um conto de natal. Que não saberia escrever. É do lugar onde moram as algas. Na minha casa. E, a fazê-lo seria afinal muito curto, a começar na palavra não. Ou a acabar. Somos pessoas que precisam de vez em quando de sair de si. É o que farei mais uma vez. Arrastada para outro lugar. A pensar que talvez valha a pena ou a pensar que não tenho coragem e que depois vou decidir aliviada que será a última vez. E nunca é. Como nada do que pensamos ser. Vem este tempo que não vem de lado nenhum e que não tem nenhum lado bom. Sair à rua, e todos os desconfortos etéreos e fundos da alma ficam difusos por detrás de uma sensação mais urgente. Dominadora. A de um mal-estar exterior, físico, sem protecção de abafos que valha. Há sempre uma parte do corpo a receber o frio gelado. Há a crescente humidade a tomar conta da roupa a chegar lentamente ao mais interior. A luta contra o vento de frente, o chapéu que se vira. O nariz quase congelado. As mãos escondidas com força. Não há maneira de este tempo odioso de inverno ser suportável. Também porque a alma anda caída de pequenas alturas, é certo. A queda não é grande. Ou então é uma maneira de todo o transtorno das sensações, todo o desgosto omnipresente, se substitua, em parte, àquela infelicidade maior. O inverno há-de passar como sempre. Naquela noite, outras sensações, uma casa com gente que bebe até aos confins da alma, que dança e dança mesmo em cima da mesa, que despeja agruras, e ingredientes a cru, pelo meio das cartas. Do Tarot. Despindo-se de si como é urgente de vez em quando, e como se de um casaco pesado demais para se trazer em casa. Há momentos em que um adulto tem que se sentar no chão, ou subir para cima da mesa. Intervalos de si. Sair do lugar. E o caminho para casa, depois de vencido um sono quase mortal a certa altura. Caminho curto nas ruas já desertas. Quase desertas. É ainda a luta do corpo a querer despertar o suficiente para chegar ao desmaio na cama, no calor e no arrumar da noite. Os passos a tornar-se rápidos, a dor de cabeça a subir de tom, mal escondida por detrás daquele gelo de noite, como um saco de gelo natural sobre a fronte. A dor de cabeça a tornar-se insuportável à velocidade a que os passos se tornavam ritmados. Insuportável lá atrás, mas estancada pelo gelo. A perturbação das sombras inquietantes que se tornavam várias ou voltavam a uma só. A fazer querer olhar em volta, a sentir-me seguida. Que recuavam ou avançavam mais depressa do que os meus passos e sem descolarem deles. Como um grupo incerto a diferentes velocidades, que me acompanhasse. Solto de mim. Independente no seu móbil, mas ironicamente. E era. Nas luzes amareladas das ruas. O frio da noite a sobrepor-se à melancolia que volta a tomar conta da memória até ali entretida com outras vozes. É o que o frio tem de bom. Ser mais forte que outros males. O mesmo para males de qualquer coisa. E aos mal- de- amor ou mal de amar, e dos males do amor, há dias em que só nos acompanha o amor. Outros em que só nos acompanha o mal. Como duas sombras diferentes que por vezes se arrastam pelo chão, velozes ou a deixar-se ficar um pouco para trás. E que nunca se desprendem dos passos. Dependendo das luzes da cidade que percorro. Mesmo com o frio e mesmo enquanto dormem de pálpebras cerradas, são amareladas e quentes. A noite presta-se. E há aquilo sempre. Aquilo que sempre me aperta a alma de dentro. Ser com dúvidas de ser. De o ser. Momentos da noite. Uns são os meus e outros de ninguém. Que sou. O sono a vencer de novo. Boa noite ao candeeiro da mesa. Só umas palavrinhas sobre o trabalho, antes de dormir: o grande problema é quando o hoje parece não existir, mas somente o ontem, na sua etérea, progressiva diluição, e o amanhã na sua inultrapassável ainda não existência e imprevisibilidade. E, quando, neste mecanismo de resistência ao autoapagamento, apenas tenho como suporte cristalizar no eterno presente só meu. E aí, o que sobra são sentimentos. Os mais duradouros, apenas. E nesses, custo a ancorar os mais inseguros com tendências fugidias. Porque os resistentes são como o vírus, que instalado, simultaneamente se alimenta e destrói a partir de dentro. Primeiro a incerteza do que existe. Depois, quando a incerteza começa a ser substituída por formas ainda ambíguas, instala-se uma primeira fase de insegurança. A partir daí crescem na mesma razão e expressão as possibilidades de definição das formas, que tendem a assumir progressivamente com a maior clareza diferentes vocações, e as potencialidades de insegurança. E um dia, o culminar do lirismo. Momento seguinte: terror absoluto. O que no fundo poderiam ser metáforas para ontem e amanhã…E são duros e resistentes, ambos os sentimentos. É o que por agora existe, e o hoje é um nada só meu. Assim, termino como comecei. Ou não…porque na pintura, na vida, no jogo, os grandes jogadores são os que perdem e ganham grandes fortunas. E, perder e ganhar pode ser ainda uma outra maneira de dizer ontem e amanhã. A pensar no desabafo de Virginia Wolf: “Oh the delicacy and complexity of the soul”, quando deambula pelos escorregadios meandros da alma (“ the slipperiness of the soul”), e fantasia acerca de escrever um diálogo da alma consigo própria: “As for the soul…the truth is, one can’t write directly about the soul. Looked at, it vanishes; but look at the ceiling, (…) at the cheaper beasts in the Zoo which are exposed to walkers in Regent’s Park, and the soul slips in. It slipped in this afternoon.” A tentar pensar nas pequenas, muito pequenas coisas que trazem sempre agarradas metáforas possíveis. As coisas de nada, e de entre essas, a tentar fixar-me na mais pequena em cima da mesa. A tentar fugir a uma prévia definição de um tema, sempre algo triste. A tentar que algo venha por si. A enrolar um cigarro. O filtro. Já para não pensar na mortalha como a roupa que todos os dias vestimos para morrer mais um pouco e isso acontece. O filtro. Ou o filtro do café. Também. Às vezes sinto-me tão perdida. Tão, tão perdida nos labirínticos corredores. Que gostava que tudo fosse tão simples como as minhas latas de chá. Levantar pela manhã e começar o dia a abrir janelas. Estender a mão para a prateleira do meio. Aquela em que a caixa de lata do cacau tem café, a latinha dos biscoitos de limão tem bolacha-maria, a dos bombons tem orégãos, a do chá de Jasmim tem chá de três anos, a do Earl Gray, raiz de Valeriana, a do Pu-Erh, Camomila, a de Orquídea, Tília. E assim sucessivamente…E depois aquela mais nova de todas, oferecida. Decorada com rosas que tem dentro, simplesmente, chá preto com pétalas de rosa. Ao lado, o bule da avó, o da bisavó e o da tia- avó. Um outro de um mercado de rua em Cantão. Esta prateleira está em ordem. Ao lado, a caixa do pão vinda dos anos cinquenta, guarda chocolates e algas Wakame. Todos os dias, por assim dizer começo e acabo a estender a mão para aquela prateleira de enganos inofensivos. Pelo meio está o pior. Se tudo fosse tão simples. Como elas. Que basta abrir ou simplesmente abanar. Todas produzem um tsch tsch tsch diferente. Todos os meus dias começam e muitos deles acabam naquele estender da mão, para aquela prateleira. E com tudo o que trazem e levam pelo meio. Naquele dia, algo em mim se recusava a acordar. Nem mesmo porque o sonho fora mau. É mau sonhar com os anjos. De um modo geral o sonho é menos sonho e naquela noite teve a realidade que os sonhos têm, e que entristece não mais do que a realidade. Uma daquelas manhãs em que o olhar é mais lento e fixo. Fixado por momentos no filtro do café. Fixado nessa realidade tremenda. Depositar uma essência na fronteira de que passa só uma realidade líquida, imparável mesmo ao filtro. Que se bebe todos os dias. Igual, diferente. Nunca a mesma, mas sem uma identidade própria. Como se todos os dias se tomasse o mesmo café. Que passa. Sem deixar nada de específico. Talvez um dia, muito discretamente mais amargo. Num outro, um tanto excessivamente açucarado. Pequenas diferenças desprezáveis. Há um único café. E do pó nada mais a dizer, que não de que ao pó retorna. A origem, a essência, não permanece, é discreta e descartada sem se lhe sentir o sabor directo. Da realidade visível também. Algo fica preso no filtro do café. Mediatização existencial logo pela manhã. Ausência de corpo. De alma. Como um livro. E que mora em outro lugar. Como as algas.