A beleza das cidades. Happy City.

[dropcap style=circle’]P[/dropcap]or alturas da publicação nestas páginas de um artigo que chamava a atenção para as insuficiências que impedem um usufruto mais confortável da cidade, numa edição de fim de semana de um jornal inglês de longa história, subtil influência e cor salmão, saía um artigo sobre a beleza das cidades.
Esta prende-se muito com a sua personalidade e o seu rosto próprio. Há cidades que têm monumentos históricos, como Praga, Dresden ou Londres. Outras, em grande número porque foi difícil recusar este apelo que não é meramente económico, situam-se junto a rios ou mares, como Lisboa, Istambul ou Sidney e tornou-se lendário a elas chegar por via poética.
Umas, como Tóquio, Hong Kong, Berlim ou Nova Iorque, além da água, tremem pela sua frenética vida financeira, artística, económica e cultural.
Ao primeiro critério, que é de imitação impossível e de subtração insensata, só acedem as cidades que tiveram a sorte de manter a sua monumentalia. É o que acontece com Macau. O segundo, de ordem puramente geográfica, de impossível reprodução. O terceiro constrói-se mas apenas em locais onde se promoveu durante séculos (mesmo que poucos) um espírito empreendedor que encontrou solo para prosperar.
Em Macau causa interesse lembrar que quase todas estas circunstâncias ocorrem, mas de um modo tímido, quase imperceptível e inconsequente. Há rio, ou mar, mas sujo. Manteve-se um conjunto monumentário não só decente como único em toda a Ásia de exemplos chineses, europeus e sincréticos.
Não existindo actividade cultural que a distinga, a cidade montou-se em torno de uma actividade lucrativa mas um pouco absurda – o jogo. Não existem muitas cidades assim, que vivam exclusivamente da fortuna daqueles que resolvem jogá-la. É fácil fazer o exercício que nos permita ver com clareza o absurdo de tudo isto: a região administrativa especial em questão gera receitas altas (mesmo que mais baixas que há 2 anos) porque fica com o dinheiro dos outros. Tornou-se, deste modo, numa cidade arranjada em torno do turista e não do residente.
Esta mecânica sublinha uma vocação que já aqui se identificou nestas páginas, uma tendência absorvente e côncava.
O que seria de esperar é que a esta circunstância côncava que o morcego da entrada do Hotel Lisboa e o desenho da moeda local tão bem exemplificam, fosse acompanhada de uma administração adulta e com visão.
O livro de Charles Montgomery, Happy City, ensina que é inegável que por vezes a transformação se dá impulsionada pela visão de uma pessoa, como se aprecia na história de Enrique Peñalosa, o conhecido ex-presidente de câmara de Bogotá cuja visão serviu de inspiração para várias municipalidades. O que se salienta nas duas Regiões, de Macau e Hong Kong, é a total ausência, há várias décadas, de um governante com a mínima visão.
Estima-se que o visionário presidente de câmara tenha influenciado mais de 100 cidades. Jacarta, Deli, Lagos e Manila introduziram melhoramentos inspirados no seu exemplo.
Pequenos acrescentos podem servir interesses vastos da população, como a limitação do acesso de carros privados a certas zonas da cidade, a criação de vias para bicicletas (centenas de quilómetros no caso de Bogotá), parques, praças para peões, bibliotecas, escolas e um sistema de transportes públicos decente. A motivação básica de Peñalosa centrou-se em combater a ocupação da cidade pelo automóvel privado e permitir que os residentes usufruíssem dela de uma maneira mais limpa.
No princípio do século XX as ruas da cidade pertenciam ainda à comunidade e o automóvel privado não passava de uma anormalidade facilmente contornável. Aos poucos esta situação começou a mudar e o automóvel, por trás do qual se montaram interesses económicos poderosos que ainda persistem, reclamou cada vez mais espaço e mais velocidade à medida que o transporte público, os ciclistas e os peões foram sendo empurrados do espaço público que era a rua. Este movimento tem um nome: Motordom. Ainda vivemos nesse modelo, se bem que as coisas estejam a mudar um pouco em várias cidades da Europa, América e Ásia Extrema.
O Alcaide de Bogotá tornou-se, em pouco tempo, numa cidade conhecida pela falta de segurança e pela poluição, num herói. De acordo com o seu plano, e como nos mostra Montgomery com entusiasmo, a cidade tornara-se mais feliz. “Peñalosa has become one of the central figures in a movement that is changing cities around the world” (pg.2).
Central ao seu projecto foi a ideia de que a cidade deve ser inclusiva, a de que a cidade deve ser para todos – o que se consegue criando espaços públicos de qualidade, não prometendo o impossível à população e criando um entusiasmo pela elevação do status social de hábitos anteriormente associados exclusivamente à pobreza (como o uso da bicicleta ou do transporte público).
Uma cidade onde existam menos diferenças sociais (como Copenhaga) elimina com mais facilidade o stress associado à consciência de que se é ostensivamente mais pobre que os outros – um problema crescente nos Estados Unidos da América, mostra-nos Montgomery, e certamente crescente na Ásia, onde o contraste entre os que têm (e ostentam) e os que não têm (mas vêem outros ter, o que aumenta o nível de desconforto social e stress) é cada vez maior.
Pg.250 – “American cities have actually been getting more segregated by income class for the past three decades”.
Para lá do senso comum provou-se que um contacto directo e persistente com a natureza, sob a forma de jardins, parques ou simples ajardinamentos, tem um efeito benéfico sobre os residentes a nível do seu bem estar mas também a nível do seu comportamento. A privação da natureza leva mais rapidamente ao cansaço, à agressividade e até ao crime e esta deve estar presente não apenas em parques ou jardins, que podem ser de acesso mais difícil, mas o mais possível integradas na malha urbana. Tem de haver proximidade.*
Não se pretende dizer que a distracção e o lazer constituem medida única para o avanço do bem estar mas este deve ser complemento importante de um ambiente em que se propicia o avanço profissional, uma escolha diversa de oportunidades que tragam sentido ao quotidiano e um sistema que tolere e proteja de modo inequívoco escolhas alternativas ou desprotegidas de vida.
Um dos pontos mais interessantes por que Montgomery se estende tem que ver com a importância da confiança por oposição à importância de considerações materiais. O modo como nos relacionamos com os outros habitantes da cidade deve criar uma rede de confiança nas pessoas e instituições que rodeiam o residente, seja a polícia, o governo ou os vizinhos e amigos. O relacionamento com os outros é mais importante que o ganho material. Não poderia faltar o exemplo dinamarquês.
O caso chinês é paradigmático (como se aponta no Capítulo I). Se o acesso a bens de consumo aumentou de um modo nunca visto, o mesmo não se passa a nível da satisfação com a vida, um padrão que se descobre em muitos outros países.
No terceiro capítulo o autor demonstra como um quotidiano ligado a grandes ligações diárias por carro esvaziam a componente social da vida urbana e tendem a criar desconfianças nas pessoas e no sistema.
Outro paradigma de construção recente aparece ligado também a um indivíduo – Lee Myung Bak, o presidente de câmara de Seul que ousou demolir quilómetros de viadutos numa área de imobiliário de alto preço para que o rio Cheonggyecheon reganhasse luminosidade natural. Hoje é uma zona naturalizada com arbustos, relva, zonas de água, pássaros e peixe. Não foi esta a única intervenção significativa do presidente de câmara (2001 a 2006) que veio depois a ser eleito presidente do país.
No que respeita ao valor da convivialidade Happy City sublinha uma constante interessante. A de que as pessoas muito rapidamente se adaptam a inovações assim que descobrem as suas vantagens, muitas das quais tendem a criar modos de pôr as pessoas em contacto em espaços públicos (e mesmo que estas possam encontrar uma resistência inicial, como acontece, por exemplo, com alguns planos de pedonização ou redistribuição de fluxos de tráfego).
Montgomery, para o fim do livro, chama a atenção para um fenómeno que parece vir contra a eficácia do redesenhar das cidades de modo a torná-las mais inclusivas. Quando o centro da cidade e algumas das suas zonas mais degradadas começam a tornar-se mais atraentes os preços sobem e os habitantes dessas zonas podem-se ver obrigados a abandoná-las. Se o autor não insiste muito nisto é porque Happy City é mais um livro sobre design que sobre políticas sociais. Aconteceu em Vancouver, em Bogotá e em Melbourne. Em Hong Kong há exemplos muito recentes. Em Kreuzberg, em Berlim, tentou travar-se esta gentrificação. Mais uma vez, o que se deseja é uma política de inclusão e uma cidade pensada pelos seus habitantes.

* Curiosamente este é um dos termos chave de um livro de Edward Glaser já aqui apreciado, Triumph of the City, onde, no seu elogio à cidade, se encontra copiosamente a referência à proximidade física permitida pela cidade vertical e o efeito que esta tem na sociabilização, no excitar da circulação e na criação de ideias, da inovação e da criatividade. Montgomery mostra-se mais inclinado para um modelo entre a cidade vertical e a cidade horizontal, como se lê no Capítulo 6 – intitulado How to be Closer (“If you search hard enough for places that balance our competing needs for privacy, nature, conviviality and convenience, you hand up with a hybrid, somewhere between the vertical and the horizontal city”. pg.139). Não parece haver diferenças no modo como ambos entendem a cidade vertical como a opção mais verde.

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