Os contos, os porcos e as pérolas

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]João Aguiar nasceu em Lisboa, tendo passado grande parte da sua infância na Beira, Moçambique. Licenciou-se em Jornalismo pela Universidade Livre de Bruxelas, tendo trabalhado nos centros de turismo de Portugal em Bruxelas e Amesterdão. Regressou a Portugal em 1976, para se dedicar numa primeira fase ao jornalismo. Trabalhou para a RTP (onde iniciou a sua carreira em 1963) e para diversos diários e semanários como: Diário de Notícias, A Luta, Diário Popular, O País e Sábado. Em 1981, foi nomeado assessor de imprensa do então Ministro da Qualidade de Vida. Colaborou regularmente na revista mensal Super interessante, sendo membro do seu Conselho Consultivo. Foi ainda colaborador da revista Tempo Livre. Morreu aos 67 anos, vítima de doença prolongada. Das suas obras eu destacaria: A Voz dos Deuses (1984), Os Comedores de Pérolas (1992), O Dragão de Fumo (1998), O Rio das Pérolas (2000), Uma Deusa na Bruma (2003), O Jardim das Delícias (2005), O Tigre Sentado (2005, 2ª edição), entre muitos outros títulos.

A obra que analiso aqui é O Rio das Pérolas do ano 2000, curiosamente o ano da transição da soberania de Macau para a China . Num certo sentido este pequeno livro de contos possui o valor emblemático de uma despedida de Macau e de uma nostalgia pelo carácter desta cidade misteriosa e sob muitos aspectos emblemática.
Esta obra de João Aguiar é constituída por 4 (quatro) contos – Sândalo e Jasmim, O Deus dos pássaros, Sinal novo e o Princípio da compaixão – unidos por uma referência comum à cultura chinesa de Macau.
Nestes quatro contos o narrador acossado por uma depressão persistente vai tendo encontros com personagens irreais. O pretexto, parece-me, é utilizar a ficção para dar conta de um conjunto de descobertas culturais e religiosas relacionadas com a estadia do autor. Melhor seria dizer, com as estadias do autor. Os contos exercitam assim uma dupla função lúdica e erudita, quase etnográfica, que nem sempre funciona plenamente mas suficientemente para justificar a leitura destes quatro contos. No primeiro conto, designado Sândalo e Jasmim, o narrador, o próprio autor seguramente, irá entrar em contacto com a deusa Sèong Ngó, ou seja a deusa da Lua. Aparentemente o autor desconhece quase tudo sobre Macau e usa um interlocutor, para tornar mais verosímil a narrativa que, sendo português, se encontra há vários anos em Macau, o que justifica os imensos conhecimentos de que dá provas. Mas a erudição, em boa verdade, não passa de um segredo de polichinelo, pois tudo se resume a uma saber generalista e que se pode encontrar em qualquer guia turístico ou na Internet. O que no conto despoleta a intervenção da deusa Sèong Ngó são as traquinices de uma criança que inopinadamente interpela o nosso personagem para no fim de contas lhe dar uma lição de sabedoria existencial. Claro que a criança não é nem podia ser uma criança qualquer, pois as crianças com três anos de idade não podem dar lições de vida seja a quem for. A criança em causa que se dirige ao nosso narrador, na praia de Hac Sa, lugar que como sabemos é muito visitado na noite do Tchung-tchao Tchit que é, nem mais nem menos, a grande festividade do Outono, mais conhecida pelo “Bolo Lunar”, festividade móvel e que ocorre sempre no décimo quinto dia do oitavo mês lunar. É uma festa que celebra o fim das colheitas dedicada à deusa da Lua. Ora foi como vimos a deusa da Lua que se aproximou da personagem para o poder esclarecer acerca dos ensinamentos sábios da criança Na Cha. E quem é afinal Na Cha. Vamos por partes e comecemos pelo seu habitat. Na Cha possui o seu templo próprio em Macau, ali na Calçada das Verdades, entre as travessas de Sancho Pança e de D. Quixote. É aí que se encontra um templo de dimensões muito reduzidas, o que se compreende, pois é habitado por uma criança. É tão pequeno que possui uma única parede e a sua cobertura é suspensa por pequenas colunas de pedras. Este minúsculo templo, mas tão “simpático” na sua simplicidade é dedicado a um deus criança, precisamente a criança Na Cha da história de João Aguiar. A narrativa de João Aguiar é neste ponto muito realista pois a criança aparece identificada tal qual como é descrita em qualquer panfleto de promoção turística. Assim o autor enfatiza o carácter traquina da criança, tão traquina que os pais o mantinham preso a uma argola, da qual se libertava, porém, a toda a hora. Mas sobretudo o autor acentua o seu desassossego, uma vez que ele está sempre em movimento de um lugar para outro, de tal modo que é representado com uma argola dourada na mão e rodinhas nos pés. Consta que esta criança não queria nascer, pois provavelmente sentir-se-ia muito confortável no ventre da sua mãe. O que andaria ali a fazer, na praia de Hac Sa, na noite de celebração do “Bolo Lunar”, esta criança tão abençoada, sobre isso o autor nada nos diz, mas é de crer que seria também para comemorar esta festividade tão importante, aproveitando já agora para comer um pedaço de bolo, pois sabe-se como as crianças são doidas por guloseimas, mas mais do que tudo, estou certo, para cuidar das crianças que nessa noite com a cumplicidade dos pais ficam a pé até mais tarde. É que Na Cha é uma Criança-Deus superiormente investida do estatuto de patrono para melhor proteger as outras crianças de males e doenças e por maioria de razão colocá-las ao abrigo das más influências dos espíritos malignos. 171215P14T1
Em todas as histórias há sempre qualquer coisa de surpreendente mas ao mesmo tempo erudito como já disse, salvo no conto intitulado O Deus dos Pássaros. Nesta história do pássaro vermelho artificial que o contador de histórias comprou na Rua das Mariazinhas e que meteu dentro de uma gaiola comprada junto ao Mercado Vermelho o que há de relevante é a justaposição de um costume com um desejo que, através do inconsciente, se transmuta numa desconstrução do costume em nome de um valor libertário, tão ocidental. E tudo isso através da subversão do desejo. É uma parábola sobre a liberdade mas também sobre o incondicionado dos deuses. Mas, para que o efeito libertário se tenha completamente consumado foi necessário que o desejo do homem pela liberdade fosse estimulado e desencadeado por uma espécie de transcendência onírica que na economia da narrativa desempenha um papel propiciatório. Os deuses propiciam e os homens agem. Num contexto temático completamente diverso do poema Infante da segunda parte da Mensagem: Mar Portuguez, este segundo conto faz plenamente justiça ao seu primeiro verso: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Que, contudo, este Deus não seja o nosso mas o Deus dos pássaros é o que acaba por contar muito pouco em minha opinião.
O encontro com A-Mah, a deusa, tem os contornos de um prodígio. Aliás uma das personagens, Jasmim de seu nome, peripatética de profissão, quer dizer, que faz o trottoir, mas afinal avatar da própria deusa, diz a dado passo: “De vez em quando, convém renovar os prodígios, se não as pessoas confundem-nos com as lendas”. O conto termina no templo de A-Mah onde duas das personagens do conto se encontram para rezar e agradecer à deusa. Jasmim, que tinha embarcado com eles, o narrador e o seu tio Pac, foi afinal quem os salvou do terrível tufão de grau nove que se abateu sobre Macau e Ilhas durante um breve período, afinal o tempo de um passeio de barco desde o Porto Interior até para lá de Coloane e regresso.
Finalmente o quarto conto narra o encontro desta predestinada personagem, com a deusa Kun Iam. Kun Iam é a encarnação feminina do Avalokiteçvara, o compassivo, o bodisatva mais venerado do Mahayana que representa essencialmente o princípio da misericórdia e da compaixão. Neste conto o autor explorou, e a meu ver muito bem, dois aspectos aos quais sou particularmente sensível, a questão da tolerância e no fim de contas do amor pelo próximo, ao mesmo tempo que explorou também a problemática do Outro, na perspectiva de que não se encolhe ao considerar que a compaixão, a misericórdia, não são expressão de nenhuma religião ou cultura em particular, mas fazem parte da natureza humana e são assim partilháveis justamente enquanto património comum, o que de algum modo explica as semelhanças entre a imagem da nossa senhora das Dores e a imagem da deusa Kun Iam que se encontra no templo de Kun Iam Mil e que ao que parece terá vindo de uma capela que havia em Pequim no século XVIII. O encontro do escritor com a deusa ou aliás com Avalokiteçvara tem metaforicamente os contornos de uma perseguição e digo metaforicamente pois a ideia que é ressalvada é a de que o sentimento de compaixão e misericórdia, mais ainda do que estar em nós é algo que nos persegue a vida toda. Desde há muito que a personagem se sente perseguida, em boa verdade por dois inimigos, um sentimento de revolta e de raiva, podemos dizer assim, e ao mesmo tempo, sem o saber, por este Avalokiteçvara que na trama dos seus sentimentos se virá a afirmar como compaixão.

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