Resíduos de uma diáspora interior

[dropcap type=”2″]D[/dropcap]evo a referência a este autor e em particular a este livro ao escritor João Paulo Borges Coelho na sua passagem por Macau, quando ambos participámos na Rota das Letras em 2014. Confesso que ainda não tinha lido nada de W. G. Sebald e fiquei com imensa curiosidade face ao entusiástico elogio de João Paulo Borges Coelho. Depois em boa verdade não comecei pelo livro intitulado Austerlitz, mas antes pelo Campo Santo, Austerlitz chegou uns meses mais tarde.

Resumo

O professor de História da Arquitectura Jacques Austerlitz investiga a estação ferroviária de Liverpool Street, em Londres, coligindo materiais para uma pesquisa sobre arquitectura industrial, quando é tomado por uma visão que talvez o ajude a explicar não a ‘arquitectura da era capitalista’, mas o sentimento incómodo de ter vivido uma vida alheia. A partir dessa experiência as suas andanças pelas ilhas britânicas e pelo continente europeu, a sua mania fotográfica e a sua memória minuciosa adquirem uma importância que já não é académica mas antes biográfica e Austerlitz passa a procurar reconstruir a sua própria história. Para cumprir esse objectivo o herói do romance terá de viajar no tempo em muitos países e nos cenários mais díspares, tal como um lar protestante no interior de Gales e um internato britânico, lugares esses onde decorreu a sua criação e educação; uma biblioteca em Paris, fortificações, palácios, campos de concentração, monumentos e balneários públicos. No fim desta viagem, que acabará por converter a dimensão biográfica e íntima do professor numa outra realidade através de uma articulação com a história europeia do século XX, indo assim ao encontro dos primórdios em que tudo começou, com outros nomes, numa outra língua, numa outra estação ferroviária, quando os horrores da Segunda Grande Guerra começavam a ser anunciados.

Reflexão

Se há uma ideia axial através da qual podemos referir a obra de W.G. Sebald, essa ideia é a de hibridismo. Contudo o hibridismo caracteriza muitos autores contemporâneos e desse ponto de vista parece que a ideia nuclear seria apenas carência de pontaria. A verdade é que o carácter ensaístico e híbrido de uma parte da ficção contemporânea, se não predomina, pelo menos marca muitos textos de incontornável importância. Estou, em particular, a pensar em autores europeus como Cláudio Magris, por exemplo, que num texto como Danúbio, desenvolve a sua narrativa numa atmosfera, a qual, temos até dificuldade em enquadrar no domínio da literatura ficcional e romanesca, embora por outro lado se possa reconhecer que o texto é um espantoso romance histórico, geográfico e intelectual de uma parte significativa da Europa e da cultura europeia. A nossa opinião depende muito do posto de observação e de uma certa tolerância relativamente às fronteiras dos géneros literários. Só a título de exemplo: O que é As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, a Vida Material de Marguerite Duras ou o Fogo Pálido de Vladimir Nabokov, para só citar alguns textos que me entusiasmaram muito e sobre os quais se pode discutir amplamente o género.

Porém o hibridismo de Sebald é mais complexo por um lado e radical por outro e apresenta-se tão bem doseado, que apesar da radicalidade nunca se perde o sentimento ficcional e romanesco. A todo o momento estamos a perguntar-nos se aquilo que acabamos de ler será memorialístico, autobiográfico, erudito ou ficcional em absoluto, embora isso pouco importe porque o prazer da leitura se sobrepõe. Como salienta muito bem António Barrento trata-se afinal de um trabalho oblíquo “sobre a memória pessoal e histórica (…) em que o ficcional se cruza com o biográfico e o documental”. Para levar a cabo este memorialismo pessoal o autor não hesita em introduzir nos seus textos pedaços dispersos de outras narrativas artísticas e de outros saberes, tais como fotografias, despojos arquitectónicos, conhecimentos técnicos de vária ordem, como a Medicina e a Engenharia, etc. «(…) por detrás dos quais se perfila a visão de uma Europa perdida, perigosamente enredada numa tragédia do esquecimento».

O que acabo de dizer e citar, aplica-se tanto ao Austerlitz, como aos outros livros, mas é justo que se diga que Austerlitz pode ser considerado um modelo, atendendo ao facto de que aqui se duplica o sentido do esquecimento, uma vez que ele é ao mesmo tempo individual e colectivo. Para que o objectivo funcione, artisticamente falando, é porém necessário que as escolhas de Sebald sejam apropriadas, tanto no plano intelectual quanto no plano estético. Ora, em boa verdade, é isso que acontece sempre. O bom gosto de Sebald é notável, sobretudo porque não é nunca gratuito. Estou a pensar no modo como começa o romance Austerlitz. Começa como se sabe na Gare de Antuérpia. A Gare de Antuérpia é de uma imponência e beleza esmagadora. Eu estive lá pela primeira vez nos anos 80 do século passado e lembro-me de sentir o quanto aquele espaço era favorável a um ambiente romanesco. Por outro lado, não penso que a designação da personagem principal através do apelido Austerlitz seja uma designação fortuita, ela é como também se sabe o nome de uma Gare, parisiense no caso, ao mesmo tempo que consagra o nome de uma batalha, que foi por sua vez determinante para a consagração de Bonaparte, figura muito emblemática também, abordada por Sebald em Campo Santo e a verdade é que o romance para além de nos aparecer centrado na biografia de Jacques Austerlitz, constitui também uma reflexão sobre a monumentalidade própria das gares, enquanto lugares da sensibilidade nostálgica. As gares mais do que lugares de partida e de chegada, e isso já seria suficiente, são sobretudo nós de comunicação e encontro. Elas encerram uma ideia ou projecto que sustenta largamente a problemática cosmopolita da alteridade. Numa gare e por maioria de razão numa gare internacional invoca-se sobretudo o Outro, o que chega e parte e na sua mobilidade permanente se apresenta hostil à armadilha da apropriação nas tenazes indiferenciadas do Mesmo.

O que justamente se apresenta como nostálgico em todos os livros de Sebald é uma espécie de diáspora interior que consagra territórios neutros ou neutralizados pela história e que só se tornam interessantes porque aparecem sempre sob a forma de vestígios, de resíduos ou de despojos, restos arqueológicos ou ruínas. Claro que muitas vezes estas ruínas não se apresentam em ruínas, fisicamente digamos assim, e quando isso acontece são mais ruínas ainda, são verdadeiras ruínas. Os monumentos são na maior parte dos casos ruínas sentimentais, ruínas morais do Espírito, desmentidos brutais das nossas maiores ilusões. E o que são as desilusões senão ruínas. Quando os monumentos aludem à História e aludem sempre, o sentimento de ruína é global, a desilusão é aterradora. É consagrada uma verdadeira terra de ninguém, espiritual, um não lugar da memória que só pode provocar nostalgia e até sofrimento. Contudo, após o estremecimento ontológico inicial desenha-se aos poucos um princípio de esperança.

É preciso passar sempre pela prova das ruínas e da desilusão. É preciso passar pela prova da memória. Simplesmente em Sebald essa memória só pode tornar-se redentora nos planos ético e moral por um lado e político por outro, para poder ser motor de redenção histórica, se filtrar os acontecimentos e os factos assim como os vestígios a uma luz dolorosa e poética, de uma poética do ser que não pode ser nunca meramente festiva e comemorativa.

A importância dos vestígios, dos resíduos e das ruínas é na aparência tautológica uma vez que é da natureza da realidade e não apenas da realidade histórica ser fragmentada e dispersa. O que se propõe é assim da ordem da resignação que se opõe à tendência do espírito para a denegação e para o recalcamento. Não obstante, resignação tem aqui o sentido não de uma desistência pusilânime mas antes de uma lucidez extrema. A aceitação resignada de uma realidade que é por natureza fragmentada prepara o Espírito para a cura e através dela para as bodas da superação reconciliada.

Nota: Se ainda não o disse em letra de forma, será provavelmente a altura ideal para o fazer: o melhor da cultura europeia, da cultura literária desde logo, está muito ligado a uma tradição de desenraizamento, de diáspora, errância, deriva e exílio. Na tradição europeia os castiços produziram muito menos e de muito menor qualidade, o que se compreende. Aconteceu assim com a grande tradição intelectual da mitteleuropa, nos séculos XIX e XX, mas também em muitas outras latitudes e épocas. Se fizéssemos uma retrospectiva da literatura e do pensamento europeu contemporâneos seguramente que confirmaríamos esta observação que porém não cabe aqui na economia apertada desta recensão; porém aproveito para referir alguns autores em que entronca esta genealogia que hoje em dia engloba nomes como Sebald, Magris, Rushdie etc… Pense-se desde logo na filosofia em Kant, e na literatura em Kafka, Marai, Zweig , assim como Borges e Cortázar.

Pense-se sobretudo nessa figura incontornável da problemática da alteridade que é Lévinas, judeu lituano, ucraniano e russo, em parte alemão pela cultura e finalmente francês, por adopção, linguística, mas não só.

E o que dizer de Vladimir Nabokov ou Joseph Conrad, que escreveram em várias línguas; e Joyce que viveu uma parte importante da sua vida em Trieste, lugar paradigma de uma grande oscilação dos mecanismos de pertença e enraizamento, como sublinhou muito bem Cláudio Magris em Um Outro Mar. Em boa verdade quase tudo o que de inovador e vanguardista a Europa produziu, a partir do século XIX sobretudo, apresenta essa marca a que não é estranho, por exemplo, o facto do enorme sucesso dos intelectuais judeus (povo de diáspora por excelência), espalhados pela Europa.

Os romenos Panaït Istrati, Tristan Tzara e Benjamin Fondane, abandonaram todos cedo o seu país e adoptaram o francês como língua literária. «Benjamin Fondane é o autor de uma «boutade» sobre a importância quiçá desmesurada da pátria de Chateaubriand, de Voltaire ou de Victor Hugo na cultura romena quando escreve que partia para França porque já não suportava viver numa colónia francesa e era portanto preferível ir viver para a metrópole. De facto a metrópole é sempre recomendável relativamente à província»: e a verdade também é que a maioria dos intelectuais ligados a uma cultura local ou nacional são quase sempre provincianos. E ser provinciano é no plano intelectual o pior dos defeitos e dos insultos. Na nossa tradição própria, os gigantes são de facto cosmopolitas ou desenraizados, como Camões, Eça de Queiroz ou Fernando Pessoa.

Dois exemplos apenas:

Sebald, W.G., Austerlitz, Quetzal, Lisboa, 2012 Descritores: Literatura alemã, Ficção, Memorialismo, Ensaio, ISBN: 9789897220517
Sebald, W.G., Austerlitz, Quetzal, Lisboa, 2012
Descritores: Literatura alemã, Ficção, Memorialismo, Ensaio,
ISBN: 9789897220517

Relativamente a Simmel, é conhecido um importante, embora breve, texto sobre o assunto, designado apropriadamente Digressão Sobre o Estrangeiro. Porém sobre este tema, o estrangeiro, nada melhor se escreveu ainda que a obra homónima de Michel de Certeau. Simmel afirma que: «o estrangeiro é o que chegou hoje, mas não para partir amanhã, sendo antes aquele que chegou para ficar». O estrangeiro conjuga assim, na perspectiva de Simmel, a harmonia que resulta da distância e da proximidade, da generalidade e da diferença. E nesse sentido ele é o verdadeiro símbolo da Modernidade, pois ele é síntese e inovação, entre por um lado a diáspora e a fixação, funcionando como intermediário das pulsões ambivalentes da alma humana. No estrangeiro convergem tolerância e auto compreensão, alteridade e identidade, generalidade e idiossincrasia. O estrangeiro é o verdadeiro símbolo da modernidade mas também do cosmopolitismo.

A reflexão de Robert Park, discípulo de Simmel, vai no sentido de evidenciar a figura simbólica do marginal das sociedades tardo industriais e pós modernas, sobretudo nas grandes metrópoles, exprimindo ainda a modernidade mas também a sua crise e desorganização, que andam afinal modernamente juntas. O marginal é também uma figura do cosmopolitismo, pois habita entre dois mundos, o que promove um desenraizamento agora não apenas cultural ou linguístico, mas também social. A figura do marginal é um estrangeiro multiplicado, pois acontece enredado entre duas realidades sociais, entre duas culturas e por vezes mesmo entre dois códigos linguísticos antagónicos. A subjectividade possui no marginal uma dimensão trágica, pois muitas vezes ele não consegue superar este divórcio que vive quase sempre de uma forma psicológica dissociativa.

W.G. Sebald nasceu em Wertach im Algau, na Alemanha, em 1944, filho de uma família católica do interior da Baviera. Estudou Língua e Literatura Alemãs em Freiburg e leccionou em Manchester na Inglaterra, de 1966 até 1970. A partir de 1970, ensinou na Universidade de East Anglia, em Norwich, tornando-se professor de Literatura Europeia, em 1987, onde permaneceu até à sua morte, num acidente de carro, em Dezembro de 2001. De 1989 a 1994, foi o primeiro director do British Center for Literary Translation. A sua obra foi contemplada com numerosos prémios literários em vários países. Poeta, ensaísta e tradutor, Sebald é contudo reverenciado no mundo todo pelos seus livros de ficção. A Teorema publicou quase toda a sua obra: Os Emigrantes, Os Anéis de SaturnoVertigens. ImpressõesAusterlitzHistória Natural da Destruição e Campo Santo. Entretanto a sua obra tem vindo a ser republicada pela Quetzal.

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