Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasA vida em claro-escuro [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Há uma determinada sensibilidade. Às luzes coadas. Às sombras difusamente delimitadas nas paredes, às formas projectadas pela luz e às formas reflectidas. A uma exposição ténue e indirecta da realidade que não fere, não magoa os sentidos, e sendo etérea de substância, e intangível, é também subtilmente fugidia. Com a inexorável e imparável evolução da luz. Ou a fuga em que a rotação da terra interminavelmente impede a aparência de se fixar. O visível suave ou delicadamente ambíguo, as formas das manchas a confundir-se nos seus diferentes planos do concreto material, ali a desenhar outras possibilidades, mutantes e mutáveis. O desfocado que lhes dá leveza, alguma insinuação de potencialidade de movimento, e, por outro lado, ligeiros movimentos e oscilações devidas a alguma aragem que se filtra pelas portas e janelas quase fechadas. O excesso de luz e calor a produzir ambientes suavemente obscurecidos. É a tradição do sul. Um sul que gosta de alguma obscuridade interior, e em contraponto, de ser visitado através de estreitas aberturas das portadas, por uma luz intensa. Uma determinada sensibilidade à natureza espessa, fortemente colorida e diferenciada, mas matericamente anulada na planitude das paredes. (Esse conceito ilusório de Flatness, que só mesmo na lisura completa, estéril e sem representações por mais etéreas, se verifica.) Tornada suave, transformada em benignas formas fantasmagóricas, em cinzentos claros. No limiar do reconhecível. Uma reminiscência platónica. Ou às velaturas, camadas transparentes delicadas cortinas sobre a crueza do real. Atmosferas oníricas. É a impermanência da não cor. No não lugar. As formas são de facto uma obsessão em que muitos não reparam mas do mesmo modo sofrem como excessivas. Nas palavras de Balzac: “Tudo é forma, a própria vida é uma forma”. E de facto, toda a actividade, toda a estrutura existencial e os seus padrões definidos, se deixam descodificar na medida em que tomam forma e inscrevem a sua curva desenhada no espaço e no tempo. “As formas, nos seus diversos estados, não estão suspensas numa zona abstracta, acima da terra, para além do homem. Elas misturam-se coma a vida de onde provém, traduzindo no espaço certos movimentos do espírito.” Fócillon A tentação do desejo de vislumbrar na forma um sentido diferente daquele que lhe corresponde, de confundir a noção da forma explícita com a de imagem ou de símbolo. Uma espécie de talento para a deformação e o esquecimento. E assim determo-nos nas sombras delicadas e esfumadas, virando as costas à sua origem. É um determinado anseio do espírito. Já que aí a vida das formas não é decalcada na vida das imagens, simulacros ou recordações. Paradigma de um intelecto inconformado com o excesso de registos e leituras que uma realidade tridimensional permite. E há ainda o tempo. E no entanto, aqueles cujo olhar vai desfocando por limitação orgânica, corrigem-no com lentes, para tornar a selecionar mentalmente uma camada do real a ver. Do todo demasido complexo, ou mesmo confuso, dedicamos a nossa limitada compreensão a uma parte, reelaborada de acordo com critérios. Padrões, por vezes. Mas estes existem ou somos nós que os recolhemos de um contexto mais complexo e de algum modo os construímos…como pepitas de oiro profusamente misturadas em areias de composição variada. Que se coam. Uns existem e outros formulamo-los. Esquecer então as cores e determo-nos numa realidade bem mais serena. Essa das luzes e das sombras. E só. A vida em chiaroscuro. Depois pensar no sfumato de Da Vinci, essa lucidez estética que deu origem à modelação dos volumes através da variação da luz. A vida em claro- escuro. O que não é semelhante a dizer vida a preto e branco. Embora se pudesse circunscrever os dados da percepção a esse universo das não cores. Carácteres planos ou caráteres redondos como na literatura. É disso que se trata. A vida faz-se dessa modelação subtil de tons, em gradações mais ou menos suaves, com uma escala de variações mais ou menos ampla e diversa. As diferenças ente o mais claro dos tons e o mais escuro, numa forma, podem ser ínfimas ou brutais. Disso se faz uma expressão ou uma linguagem mais ou menos violenta. Mais ou menos delicada. Por excesso ou por defeito de emotividade. E é dessa construção que se obtém a noção do volume das coisas. Nas formas lineares, o contorno no seu desvario de movimento, em torno de um vazio, pode ser suficiente para insinuar na imaginação, todo um mundo interior que lhe é implícito. Quanto maior a sensibilidade impressa na linha, quanto mais sinuosa, maiores as possibilidades de sugestão daquilo que lá não está. O mundo conceptual do desenho, mesmo que se pense nele como raciocínio e não como imagem gráfica, é o das leituras múltiplas, escoradas abismalmente no olhar do observador, no seu museu imaginário e na sua relação com o movimento, com as formas do real, com a visão. E tanto mais este olhar pode ser aprofundado, quantas as pontes que se estabelecem. Estas coisas que têm a ver com a luz e as sombras. Com a revelação e as trevas. Revelação teatral, essa. Dramaticamente levada ao limite no tenebrismo de Caravaggio ou sobretudo na preciosa encenação da luz em Rembrandt. Mas Leonardo da Vinci, nas suas experiências de mago, encontrou no sfumato, mais uma maneira de, atenuando os contornos na sua dureza natural e linear, e eliminando as marcas do traço e da pincelada, amenizar a expressão humana. Um trabalho à custa de tons baixos que evaporam os limites como se de fumo se tratasse. Suponho que é esse o pequeno grande responsável pela aura de mistério atribuída ao sorriso lunar da sua Gioconda. E o facto é que, vista de perto, há nela uma quase trepidação, um quase menear dos traços, que, não chegando a sugerir movimento, parece uma respiração, uma pequena desfocagem que lhe transmite uma vida subtil. A vida é na verdade uma forma subtilmente modelada em tonalidades de claro- escuro. Difícil é situarmo-nos estavelmente e manter o equilíbrio nessa variada e imensa quantidade de cinzentos, com todas as suas inflexões e nuances. Mas como em qualquer observação ou esforço de localização, tudo é uma questão de focagem de estabilização do olhar, de respiração… E assim a tendência lógica, dado o esforço do mecanismo óptico, é para a radicalização do plano de focagem…Mais longe ou mais perto com maior ou menor profundidade de campo, no que se refere aos tons, infalivelmente se resvala para uma síntese facciosa ou maniqueísta do alto contraste. Reduzindo todos os tons por aproximação grosseira ao preto e ao branco. O eterno estado de graça de ver o mundo a preto e branco, literalmente. A saber, os bons e os maus sem meio termo e sem contemplações…É um anseio de alma. Organizar o mundo de maneira a nos situarmos por dentro ou por fora de algo sem dúvidas, dilemas, ou contradições de maior (uma das primeiras manifestações plásticas infantis, de carácter espontâneo, é estabelecer linhas de fronteira entre o objecto-eu, e o mundo exterior). Este cenário utópico e prosaico, tem uma virtude pragmática e as devidas disfunções redutoras de todos os modelos radicais. E a vocação abismal do costume… querer situar o nosso desgraçado conceito de si facilmente e sem atropelos, com a segurança de nada ser dúbio ou de duplo significado, e de nada depender de interpretações ou leituras, mas como se as coisas fossem elas próprias sem relação com o outro. O olhar, a leitura. Inequívocas e fechadas em si e na sua natureza específica. Confortável e redutora forma de estar…Abismal, como todas as outras porque, como todos os extremos, a necessidade dos opostos faz sentir o risco de erro com muito mais ênfase desta forma. E a vertigem inerente a uma escolha radical, é, por natureza apelativa e perigosa. O erro se ocorrer é total, tal como acertar seria uma contingência do jogo de consequências absolutas…Mergulhar no negro absoluto e negar todas as tonalidades intermédias, é virar as costas a um realismo sem as inflexões do romance, ou de difícil capacidade de lirismo….A opção pelo branco absoluto por outro lado seria a alienação completa de um referencial que tarde demais haveria de se fazer sentir. Não há inocência possível na opção pelo branco absoluto…E sabe-se que a vida é em tons de cinzento, múltiplos variados enriquecidos de outras cores, reflectores, instáveis, influenciáveis e absorventes de todas as ínfimas partículas do universo em redor… Nada a fazer. Terreno variado, trabalhoso, de difícil estabilização. É a vida nos seus tons. De cinzento. Na sua obesidade ontológica. Uma camada de realidade a cheio.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasLabirintos da Paixão [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]awrence George Durrell nasceu em Jalandhar a 27 de Fevereiro de 1912, no Nepal aos pés do Himalaia e veio a falecer em Sommières no dia 7 de Novembro de 1990. Apesar de ter nascido na Índia é logicamente considerado um romancista inglês. A sua obra mais famosa é o Quarteto de Alexandria, uma tetralogia composta pelos livros Justine (1957), Balthazar (1958), Mountolive (1958) e Clea (1960). O Quarteto de Alexandria tem a particularidade genial para a época de todos os livros contarem a mesma história cada um na perspectiva de uma determinada personagem. O meu preferido é contudo o primeiro livro da tetralogia, designado por Justine, a personagem mais fascinante da obra. Enfim a mais fascinante no quadro das personagens representativas da intriga, pois o poeta Constantino Kavafis apesar de aparecer apenas a espaços acaba por contaminar os textos de um simbolismo que ilumina tudo com a sua luz própria. Em 1974, começou um novo ciclo de romances, o Quinteto Avignon, que seguiria os cenários e técnicas do Quarteto, sendo mais amplo no tempo, porém. Há também interessantes tramas paralelas, como a história do tesouro escondido dos Templários e a ocupação da França pelos nazis. Grande parte da sua vida foi passada longe de Inglaterra, em função da sua vida de diplomata e isso marcou a sua obra. Viveu na Grécia, em Chipre, no Egipto e na Argentina. Labirintos da paixão O romance Justine é outro dos acontecimentos literários da minha vida, como a Conversa na Catedral, O Lobo das estepes, O Danúbio, Os Passos Perdidos, entre outros a que me referirei, ao longo das minhas “Fichas de Leitura” sempre que me parecer apropriado. Devo ainda acrescentar que apesar da óbvia qualidade literária dos romances que marcaram a minha aventura intelectual e poética, há quase sempre elementos de outra natureza responsáveis pela importância e pela paixão que produziram e não raro são indissociáveis da minha própria vida. Atrevo-me a pensar que é sempre assim que as coisas acontecem, salvo talvez no caso dos leitores profissionais que marcam as suas preferências através de outras agendas biobibliográficas. Comigo acontece que posso evidenciar obras apenas pelo seu valor literário e pela importância que me parece que têm desempenhado na História da Literatura e ao mesmo tempo evidenciar outras pelo lugar simbólico que desempenharam na aprendizagem e evolução da minha paixão literária, quer em termos formativos quer apenas em termos lúdicos. A ordem de preferências sofre assim naturais oscilações. Daí que possa construir duas genealogias paralelas ainda que alguns textos pertençam muito naturalmente às duas famílias. Alguns exemplos muito ilustrativos: O Estádio de Wimbledon de Daniel de Giudice foi um dos textos mais importantes para mim nos anos oitenta mas não me atreveria a considerá-lo uma obra-prima nem a integrar o seu autor na lista dos autores de génio do século passado. A Montanha Mágica de Thomas Mann é seguramente um dos momentos chave da História da Literatura do século XX e contudo não desempenhou um papel decisivo na minha formação, enfim talvez tenha desempenhado esse papel no plano intelectual, mas não no plano emocional. Por isso nunca me refiro a ele com o entusiasmo com que me refiro a textos seguramente menos importantes mas muito mais apaixonantes para mim, como se houvesse em mim uma história do pathos ao lado de uma história formal. Uma em quanto professor e outra em quanto simples leitor. Mas as duas acabaram sempre por se intersectar no plano coloquial e não sistemático da experiência literária. O Quarteto de Alexandria de Lawrence Durrel, será um dos casos em que converge a importância historiográfica do autor e da obra com a minha história pessoal e mesmo assim muito forçadamente pois a verdade é que a obra tem vindo a perder a importância que se lhe chegou a atribuir. Para mim contudo não a perdeu pois sobretudo Justine continua a ser para mim uma obra de culto. Todo o Quarteto se passa em Alexandria no período que decorre entre as duas grandes guerras, nesse ambiente excepcional de um cosmopolitismo exacerbado onde convivem pacificamente mas também perigosamente egípcios, gregos, sírios, judeus e ingleses entre muitos outros elementos étnicos. Justine, é o primeiro livro da tetralogia e aparece sobretudo centrado no amor e na paixão. É portanto um bom princípio, pois em boa verdade havendo um princípio de subordinação geral nas questões existenciais e vitais esse princípio só poderia ser ou o amor ou a morte, mas a verdade é que apesar de ambos se conterem e complementarem mutuamente; o amor é mais vital do que a morte. O romance desenvolve-se à volta da vida particular de Justine, a belíssima judia, esposa de Nassim, poderoso banqueiro copta. O narrador, chamado Darley, é um jovem apaixonado pela literatura e ele próprio pretendente à arte da escrita, que virá a conhecer a bela Justine na trama dos encontros e desencontros de um grupo de amigos da sociedade alexandrina. Nesse torvelinho de relações, encontros e desencontros Darley acabará por se envolver não apenas com a misteriosa e enigmática Justine mas também com a frágil Melissa. A partir destas relações subtis e complexas, vai o autor elaborando a rede de episódios sempre marcados por um denso erotismo, sensualidade e tensão. Pressente-se o perigo e o drama, e até o trágico em cada página. A cidade é ela própria, em si, um topos de grandes paixões e emoções, pois tudo nela favorece uma certa irracionalidade: o clima, a miséria, a história compósita, o carácter labiríntico do seu tecido social e étnico hostil às formas de sistematização racional e lógica. Ao acabarmos de ler Justine e depois o resto da tetralogia apetece de modo, também ele, irracional partir para Alexandria e viver lá as emoções que a obra nos promove de modo no entanto sobretudo alusivo ao sabor de uma interseccionismo complexo de elementos culturais, históricos, étnicos, compósitos e indiscerníveis através do logos e onde se vislumbra sempre, como num sonho, uma espécie de beleza prometida, irreal, mas eterna e sobretudo arquetipal.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFesta dos Tabuleiros em Tomar [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s Festas do Espírito Santo em Tomar são conhecidas por Festas dos Tabuleiros e realizam-se de quatro em quatro anos, tendo em 2015 ocorrido entre os dias 4 e 12 de Julho. Estas festividades foram criadas pela Rainha S. Isabel e o seu marido o Rei D. Dinis, que ao colocarem a “coroa fechada e encimada por uma pomba branca no homem de baixa condição, no pobre, ou na criança, os tornou Imperadores do Espírito Santo.” Era a preparação para a Terceira Idade do Mundo, como António Quadros refere no seu livro Portugal, Razão e Mistério. “O ritual e as festas tal como se realizavam, a correlação das crenças e das ideias, das classes e das forças, nesse éon de fidelidade, não à palavra dos bispos, mas ao Evangelho Eterno.” “Profetizado por S. João no Apocalipse: vi, depois, outro anjo a voar no mais alto do Céu, o qual tinha um evangelho eterno para anunciar aos habitantes da Terra, a toda a nação, tribo, língua e povo”. E continuando com António Quadros: “Ao criar as Festas do Espírito Santo (D. Dinis) legou a Portugal um sentir solidário ao qual está ligado o Quinto Império. Deu alma a essa força fazendo coroar de rei, um dia por ano, uma criança ou uma pessoa do povo. Trovando em cantigas de amigo, vai dotar Portugal dos meios que permitiram a fantástica aventura que foi navegar em conquistas de espaço e avançar até ao Homem Moderno.” Conhecida no início pelas Festas do Império, Tomar, a cidade dos Templários aos quais a Ordem de Cristo sucedeu, celebrou-as logo desde o século XIV, mas com o passar dos tempos a tradição foi-se perdendo e transformada “só resta já o folclore dos coloridos Tabuleiros” como Amorim Rosa na sua História de Tomar de 1965 escreve. E com ele prosseguindo: “Iniciada pelo baptismo dos catecúmenos em Sábado Santo, no Domingo de Páscoa reuniam em cada lugar ou sesmo os recém-baptizados e os velhos cristãos sob a égide do Chefe da Festa, eleito no ano anterior. Porque o Imperador, os Reis, Mordomos ou Vereadores, e o alferes (porta-bandeira do Espírito Santo) parece que eram eleitos no Pentecostes transacto. Durante os cinquenta dias que medeiam entre a Páscoa e o Pentecostes, as Coroas e o Pendão do Divino Paráclito saíam a dar uma volta pela área, sesmo ou vila, cada domingo, e depois o Pendão do Espírito Santo e as Coroas eram guardadas durante a semana em casa de cada mordomo, saindo em festa de Saída das Coroas e recepção em casa do feliz mordomo da semana seguinte, a quem tão alta distinção era dada. Em dia, ou véspera da Pentecostes, em procissão, cada grupo levava as suas oferendas de pão em seus tabuleiros, envergando as moçoilas as suas túnicas brancas vestidas no Sábado Santo e despidas no Domingo – Pascoela. Junto com a carne e o vinho, fornecidos pelo Imperador, Mordomos ou vizinhos mais abastados, e géneros adquiridos com as esmolas recolhidas durante os domingos da Saída das Coroas, o pão era levado à Igreja Paroquial, para ser solenemente bento pelo pároco. De início, normalmente, cada freguesia tinha mais de um grupo. Depois nesse domingo da Quinquagésima, realizava-se um ágape de todos os cristãos do Grupo, onde comiam e bebiam o pão, a carne e o vinho benzidos, e elegiam um pobre ou um menino como Imperador da Festa e os dois Reis Mordomos para o ano seguinte, que coroavam com as coroas encimadas pela alva pomba, símbolo do Espírito Santo, cujo dia era, num gesto de humildade, igualdade, caridade e amor cristãos. Com os tempos os grupos aumentaram, acabaram por reunir-se por freguesias (e já nos nossos dias no Concelho) e, na impossibilidade prática de realizar a refeição comunitária, voltou-se à fórmula inicial do BODO, onde a cada um se dava a pesa, ou seja, uma ração de pão, carne e vinho bentos, que cada família comia respeitosamente em sua casa”. Os cortejos A Festa dos Tabuleiros, uma das componentes da antiga procissão do Império, acontece no fim do Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa. São setenta dias de festa que culmina no domingo da Sétima Semana com a Sopa do Espírito Santo. O Cortejo dos Tabuleiros realizou-se na tarde do Domingo, dia 12 de Julho de 2015, mas já durante a manhã ocorrera a Procissão da Coroa e Pendões do Espírito Santo, tendo-se realizado uma missa na Igreja de S. João Baptista, situada na Praça da República. Às quatro da tarde, foi então a vez do Cortejo dos Tabuleiros sair da mata dos Sete Montes, onde estiveram em exposição. Os tabuleiros, com a altura das mulheres que os transportam sobre a cabeça, pesam entre dezoito e vinte e cinco quilos e actualmente a sua estrutura é constituída por quatro varas na vertical onde estão enfiados de cinco a sete pães, cada um com quatrocentos gramas e enfeitados com flores, verdadeiras ou de papel. Todos os tabuleiros têm uma coroa a encimá-lo e no topo desta apresenta-se a pomba branca do Espírito Santo, ou a Cruz de Cristo. Nesses tabuleiros eram originariamente levadas as oferendas ao Espírito Santo, mas, desde meados do século XX ficaram transformados num produto folclórico essencialmente ligado à promoção turística. E o resultado é a avalanche de turistas que encheram Tomar, apercebendo-se haver entre eles muitos estrangeiros. Durante quase quatro horas o Cortejo dos Tabuleiros percorreu as ruas ornamentadas da cidade, capital dos Templários portugueses. A meio caminho do percurso entrou este na Praça da República e aí os tabuleiros foram retirados da cabeça das mulheres com a ajuda do par masculino, que a acompanha, para descansar daquele enorme peso. Reposta a energia e escutadas as palavras do prelado, com o tabuleiro de novo na cabeça, seguiu-se a bênção deles, que voltaram a circular pelas ruas cheias de pessoas, que durante horas esperaram ao Sol escaldante para ver passar o cortejo. No final do cortejo seguiam três carroças puxadas cada por uma parelha de bois e onde se encontravam sentadas em cada uma três crianças. Como nos prospectos distribuídos no Turismo nada referem sobre a História destas festas, vemo-nos obrigados a recorrer ao que diz Maria Micaela Soares sobre o Imperador: “No primeiro ano é coroado; no segundo, imperador; e no terceiro vai entregar a bandeira.” Assim “a mesma criança figura portanto em três festas, a não ser que por qualquer motivo o não possa fazer”. No entanto, nenhuma destas crianças vinha coroada. Já sobre a tourada, que no final servia para com a morte do touro, a carne ser consumida no Bodo, nada aparece no cartaz das festas. O joaquimita Joaquim de Flore, nascido em Celino, na Calábria em 1132, como pajem de Rogério de Sicília foi à Terra Santa e quando regressou entrou para a Abadia Cisterciense de Sambuccino, onde mais tarde foi Prior e Abade. Período em que a Ordem de Cister relaxava as suas regras feitas por S. Bernardo no século VI, Joaquim recusou voltar ao rigor das regras anterior e por isso, em 1192 esteve na origem da congregação “de Flore”, em San Giovanni que quatro anos mais tarde foi aprovada pelo papa Celestino III. Movimento espiritual que lhe deu o título de Bem-Aventurado, mas pelo qual mais tarde Roma o condena como ortodoxo herético. A obra de Joaquim de Flore compreende: “Concordia dos dois testamentos”, “Comentários do Apocalipse” e “Dez cordas do Saltério”. Um século depois, nos finais do XIII, o monge Liberatus publicou “Vaticina Joachimi”, as profecias de Joaquim que eram escutadas com sucesso até ao século XVI. Em 1595, o beneditino Arnold de Wion publicou “Lignum Vitae” “A Árvore da Vida” que anunciava a destruição de Roma e o Juízo Final no fim de 111 Pontificados. D. Dinis, em conjunto com D. Isabel trouxeram para Portugal a trindade joaquimita dos franciscanos espirituais e numa consciente acção de planeamento, povoou, plantou, cantou o encanto do Ser Humano em quem investiu, em vez das catedrais góticas. “Para os Franciscanos espirituais dos séculos XIII, XIV, o Abade Joaquim tinha sido o novo S. João Baptista, anunciando o novo Cristo de uma Idade onde já não haveria lugar para a Igreja clerical.” “…compreender-se-á por que julgamos ser a Festa do Império, no seu protocolo, uma manifestação ritual concebida como anúncio e preparação para a Idade do Espírito Santo, Terceira Idade do Mundo. Dest’ arte a Festa do Império constitui o paradigma simbólico e ritual do projecto áureo português, projecto religioso universal através da iniciativa dionisíaca, que irá guiar e iluminar singularmente a história nacional no seu período mais fecundo e criacionista, que será ferozmente combatido pelos ventos da Contra-Reforma, chegados até nós no tempo de D. João III e dos Filipes, mas que perdurará no destino lusíada até aos dias de hoje, nos nossos mitos do Encoberto e do Quinto Império, nas festas do Espírito Santo e nas comunidades espalhadas pelo mundo, pela nossa memória inconsciente e no saudosismo poético e literário, persistente no nosso pensamento.” Palavras retiradas do livro “Portugal, Razão e Mistério” de António Quadros em cortadas citações, para atingir a ideia que gostaríamos de transmitir.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasOs interesses da embaixada [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e Duarte Coelho foi um dos responsáveis pelo início das hostilidades navais com os chineses, apesar de Joaquim Veríssimo Serrão dele dar uma imagem de homem honrado e ilustre diplomata, anteriormente, já Simão de Andrade, sem tacto diplomático, “cometeu um erro que originou o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais”, como refere João Paulo Oliveira e Costa, e, “após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão, que tem sido, desde as dinastias Tang (唐, 618-907) e Song (宋, 860-1279), um importantíssimo empório para o comércio externo chinês. As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.” Com os dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses, em 1522 terminou “o primeiro período que começara com a chegada de Jorge Álvares à China em 1513”. Iniciava-se um novo ciclo “em que os Portugueses começaram a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que acabou” em 1549 “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó” Revisitar os Primórdios de Macau. O antigo Sultão de Malaca “As petições do enviado do antigo sultão de Malaca, ferozmente anti-portuguesas, encontraram um renovado acolhimento na corte imperial, onde foram analisadas pelo libo (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão: O libo de Cristóvão Vieira corresponde ao Tribunal do Ritos pequinense, que estava encarregado de organizar o protocolo das missões tributárias (Hugh b. O’Neill, Companinon to Chinese History). A partir das informações, algo confusas, do prisioneiro português, pode deduzir-se que em finais de 1521 a missão de Tutão Mafame rumou novamente a Pequim, onde pôde apresentar as suas razões em audiência imperial. O embaixador malaio queixava-se da abusiva conquista de Malaca pelos portugueses, pedindo a intervenção militar do Filho do Céu para repor a legalidade, ao mesmo tempo que denunciava a embaixada de Tomé Pires como missão de espionagem. Subsequentemente, os malaios foram reenviados para Cantão, com a promessa de que brevemente [lhe mandariam o despacho]”. E continuando no Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “A decisão imperial, com efeito, não tardou, após o lipu ter deliberado que [a terra dos franges devia ser cousa pequena chegada ao mar], uma vez que [depois que o mundo é mundo nunca viera a terra da China embaixador de tal terra]. O Imperador Jiajing (1522-66) ordenou, em primeiro lugar, que a carta do monarca português fosse queimada. Depois, o presente trazido por Tomé Pires devia ser recusado. Em terceiro lugar, o embaixador e os membros da sua comitiva deviam ser aprisionados e mantidos como reféns. Ou seja, a China não reconhecia a missão portuguesa como embaixada tributária formal. Finalmente, as autoridades provinciais deveriam escrever a el-Rei D. Manuel e ao seu representante em Malaca, com instruções peremptórias para que esta cidade fosse devolvida ao seu legítimo soberano. Após a entrega da praça ao antigo sultão, Tomé Pires e os restantes prisioneiros seriam libertados. Caso o Rei Venturoso desrespeitasse as decisões imperiais, realizar-se-ia um novo conselho. Entretanto, os navios portugueses deveriam ser rigorosamente impedidos de visitar portos chineses. (Rui Manuel Loureiro, Cartas dos cativos de Cantão. Para T’ien-Tsê Chang, a conquista portuguesa de Malaca, que viera perturbar o equilíbrio político-militar no Sudeste Asiático, foi o factor determinante no fracasso da embaixada de Tomé Pires (Malacca and the failure)” Rui Manuel Loureiro. “Com a denúncia dos emissários do desapossado sultão de Malaca, ficou apurado o facto – já tão bem conhecido pelas autoridades de Cantão como pelas centrais, mas omitido de propósito pelos mandarins e eunucos junto do Imperador – de que eram mandados pelo país Folangji, que conquistara a cidade, tributária da China. Mesmo assim, a Corte só mandou executar os intérpretes sob a acusação de terem trazido à China estrangeiros e não maltrataram os membros não asiáticos da embaixada” Revisitar Os Primórdios de Macau. E ainda desse livro: “Quanto aos contactos com a Corte, (…) foi Ning Cheng, quem fez este favor aos Portugueses porventura em troca de algum presente ou suborno”. Sem ordem de prisão Encontrava-se desde 22 de Setembro de 1521 Tomé Pires e os restantes membros da sua comitiva em Cantão, mas só a 14 de Agosto de 1522 foram formalmente acusados de entrarem em território chinês sob falsos pretextos. Altura em que decorriam nos mares de Cantão os confrontos entre a armada chinesa e os navios de Martim Afonso de Melo Coutinho. “Quanto à rejeição da embaixada, inicialmente, quando os Portugueses foram mandados de volta a Cantão, não houve ordem de Pequim para deter a embaixada em Cantão, como bem elucida um trecho do diário de Yang Tinghe, o ministro mais influente dessa altura: (…) quanto aos bárbaros de Folangji, mandem-nos sob escolta de volta para Cantão, onde ficarão à espera de novas ordens de Baofang (Casa de Leopardo). Esta ordem foi dada como correspondendo à vontade expressa pelo Imperador Zhengde no seu testamento, mas a verdade é que foi preparada postumamente por Yang Tinghe que exerceu a regência durante a sucessão, juntamente com a Imperatriz-Mãe. Pelas fontes chinesas, sabemos que no momento do falecimento do Imperador Zhengde, o quase regente Yang Tinghe, por uma questão de segurança da capital, tomou muitas medidas, das quais algumas implicavam o repatriamento de embaixadas, tais como as de Qomul, Turfan e a de Portugal, que se encontravam em Pequim, além da execução do eunuco Jiang Bin, entre outros protegidos do Imperador Zhengde. Como o falecido Imperador não deixou descendentes, o vácuo do poder poderia dar lugar a uma renhida luta pela sucessão entre os diferentes ramos da casa imperial, como costumava acontecer nestes casos. Assim sabemos que o principal motivo do reenvio da Embaixada de Tomé Pires para Cantão se ficou a dever a uma questão de segurança nacional.” “A questão é que a vinda da Embaixada de Tomé Pires para Cantão terá sido interpretada pelas autoridades provinciais como um claro sinal de rejeição dessa missão. Para esconder a sua cooperação e participação neste processo passível de ser considerado como uma fraude, uma irregularidade que poderia custar a carreira e até mesmo a própria vida a essas mesmas autoridades, caso fosse descoberta, houve, pois, todo o interesse em silenciar o caso. Entretanto, chegou de Pequim a ordem de deter a embaixada, tomando os seus membros como reféns até à desocupação de Malaca. Daí que, como nos informa Cristóvão Vieira, as autoridades de Cantão passassem a perseguir implacavelmente os Portugueses com todas as acusações possíveis e imagináveis e com todos os meios ao seu alcance” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang. O presente real Quanto aos presentes destinados ao Imperador chinês, pelas fontes portuguesas, sabemos que o embaixador Tomé Pires os levou; todavia, até agora não foi possível localizar nenhuma lista, embora haja muitas referências a eles. O que levou Rui Loureiro a colocar estas questões: “O presente para o Imperador nunca é descrito na documentação quinhentista. Por mero lapso? Ou talvez porque a missão de Tomé Pires não tinha o estatuto oficial de embaixada e, como tal, o presente que transportava não era significativo?” De novo no Revisitar os Primórdios de Macau de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “Em nosso entender, dado que a primeira missão diplomática portuguesa junto da Corte chinesa foi uma iniciativa lisboeta e o embaixador seleccionado e nomeado pelo vice-rei da Índia, o presente destinado ao Imperador da China foi preparado in loco e de modo improvisado. Talvez esta tenha sido a razão da insignificância dos presentes. No entanto, a pobreza da oferta leva-nos a crer que a primeira missão diplomática portuguesa teria mais por objectivo um reconhecimento do terreno do que apresentar-se como uma embaixada propriamente dita, como nos revela António Galvão: ” Revisitar os Primórdios de Macau. E nele continuando: “Ora, também este documento chinês tem esse mérito: o de preencher uma lacuna multissecular na historiografia portuguesa das relações luso-chinesas. Analisando o conteúdo da lista, não podemos dizer que fossem presentes preciosos em extremo. No entanto, não eram de preço menor. Para isso, é interessante ver as componentes desta relação. O objecto que lidera o inventário é o coral em rama, que era muito apreciado na China imperial”. Mas, como objecto de maior valor que vinha no presente, para além de alguns tecidos e vidros, “os portugueses incluíram um espadagão de três gumes e outro terçado de ferro, uma escolha diplomática prudente a substituir as armas de fogo, que tanto poderiam causar admiração como suspeita.” A observação de que “o cabecilha costumava ler livros” confirma que Tomé Pires era um homem culto e amigo da leitura” Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasFicam dois e uma parte [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]or e cão para pernoitar. Como uma senha cúmplice. Disse ao monge que me abre a porta pesada a ranger nos gonzos, com aquela idade indefinida que lhe imaginei, e que me parece um conhecido de sempre, tantos os emails trocados. Estendo-lhe a mão e ele, olhando para mim e para trás de mim, surpreende-me com três beijos nas faces. Muito fraternais, muito firmes muito urbanos aqui neste confim que tanto me obrigou a trepar. Exausta. Pedi um quarto de casal com uma caminha extra desmontável, lembro-lhe. Ele riu, ligeiramente trocista. Entendi mais tarde que aquilo que parecia ironia, nele, raramente era outra coisa senão ternura. Abriu a porta do quarto que eu esperava e disse que teríamos que nos revezar, ou tirar a cama estreita à sorte todas as noites. Vim pelo claustro. Mas também pelas montanhas que aqui bem perto têm a verticalidade lisa de lâminas, e pelas árvores que densamente bordejavam o caminho até aqui acima. E também pelas mesas compridas de madeira que percorrem o refeitório em que eles se sentam silenciosos em frente a malgas que eles mesmos fazem, de um minimalismo essencial como só no Japão e por outras razões que tradicionalmente talvez se cruzem com as que subjazem a esta estética. E pela cama sóbria, elementar e nua que habita os quartos de todos e também dos visitantes como eu. Não vou dizer o lugar, que conheci há muito num artigo de jornal, nem vou descrever a aventura quase penosa que me trouxe aqui. Eles merecem essa descrição e merecem ser conhecidos mas ficar na memória só para quando algo de especial passa. Eu vim pelo claustro e pelo silêncio radical a que eles me destinam de que precisava usufruir como um banho purificador. Não vou detalhar-me na candidatura quase desesperante nos termos. Entendo a auto-protecção necessária e por fim vim. Está frio aqui. Mais do que imaginei, mas vim prevenida e sem vaidades. Tudo aqui é reduzido ao elementar. Vim pelos claustros, já o disse, e pelo silêncio. E vim para alimentar o meu desgosto em paz. Todos dizem isso. Diz-me de olhar azul e transparente num sorriso, o monje, que é a ponte entre mim e as regras do lugar. Com aquela calma contemplativa e a benevolência que se espera. Respondi que é natural os seres humanos terem em comum essa necessidade. Aí o olhar dele, mas não os lábios, sorriu ainda mais, e acrescentou que raramente depois e de facto se verifica ser essa a verdadeira necessidade, mas sim a de derramar a alma, nos ouvidos de quem puder acolhê-la. E aqui, só ele se destinou a ter essa função, talvez por também ter menos vocação para o silêncio. Talvez porque o mosteiro se deixa usar mesmo para sua própria viabilidade, ou talvez porque dedicando-se aos outros alcança melhor as trilhas do seu caminho. Lancei-lhe estas hipóteses e finalmente sorriu com o rosto todo. Peut-être… E quanto a si, veremos… acrescentou e sorriu de novo. Julguei ver de novo uma pontinha de ironia benévola. Garanti-lhe que não o incomodaria muitas vezes saindo das minhas primeiras intenções e de facto poucas vezes o vi, e sempre pelo acaso da sua preocupação. E sempre sorriu como se contente da minha persistência. Mas nos primeiros dias, reparei que era ele que de algum modo se propunha ao diálogo, como se quisesse inteligente e generoso, deixar-me confortável para encetar o meu silêncio das despedidas só se verdadeiramente fosse aquilo de que necessito, ou para estar ali a acompanhar-me, sem me dar a impressão de insucesso, poupando-me à eventual frustração, já que era ele a vir ao meu encontro. Porque ele sabe que muitos dos visitantes chegam imperfeitos, e ser generoso é não os confrontar com a imperfeição. Poucas vezes ou nenhuma, senti tanto o reflexo atento de alguém, face ao intuído. Até o fumo negociei com ele. O fumo e o feminino, assunto este, tão ou mais complexo e igualmente fora dos limites estritos da ordem. Mesmo nos visitantes. Dura negociação e duras conversações. E também aí, fui surpreendida pela profunda generosidade que na maioria das vezes não se encontra na ortodoxia destas ordens. Garanti-lhe que, nas camisas brancas que levaria, recordação dos vários homens da minha família, e no resto do meu equipamento habitual, pouco vislumbrariam desse feminino proibido ali. O quarto, e a cama reduzidos à essência, como disse. Belos e legítimos. Uma assombrosa janela sobre um pedaço do vale meio confundido pelo muito arvoredo. Da cama, tudo o que é necessário para ser uma boa cama. Os lençóis de um linho quase áspero e amarelado, um colchão firme. Uma almofada rija e alta e um único cobertor de lã, num castanho muito escuro, que na primeira noite percebi insuficiente para mim, e com uma única risca cinzenta a delimitá-lo de um só lado, o que me intrigou. Ainda persisti duas noites no frio irremediável até que cedi à incontornável necessidade de dormir algumas horas e apelei por mais dois. Iguais em tudo e que, somados, eram de um enorme conforto, então. E o meu cão ao lado da cama sempre. Sem um tapete mas com o pêlo comprido a fazer parecer que esteve sempre bem. A mesma estética minimalista ou essencialista e depurada, constatei nos utensílios à refeição, toda a cerâmica feita ali mesmo por eles, e uma parte dela comercializada por necessidade, embora com tristeza. Gostariam de não ter que lidar com dinheiro e de pouco precisam. Mas a variedade subtil de formas e tons maioritariamente variando entre os azuis e os verdes aquosos, fizeram-me pensar que as cores quentes não são para eles um anseio da alma. Nas formas, perfeitas até ao desaparecimento de vestígios artesanais, via-se serem a procura e o apuro progressivo e perfeccionista. Com variações por vezes para pequenas assimetrias. Uma cerâmica fina, argila da região, a lembrar oriente. E os talheres de pau. Basicamente apenas colheres e as facas do pão. Mesmo as refeições se pautam pelo mesmo rigor. Tudo produzido por eles na horta primorosa. Uma única refeição sempre constituída por uma sopa espessa variada e abundante. Com alguma carne, muitos legumes e uma grossa fatia de pão. E ao dejejum, sempre o mesmo pão, com queijo fresco ou mel, ou ambas as coisas e sempre. Como são belíssimos aqueles pães enormes grosseiros, toscos, cheirosos e ainda quentes. Tudo intenso de paladar e curiosamente em quantidade saciante. O que me pareceu bem, não pensei nunca que o sacrifício e o maltratar do corpo fossem caminho necessário para provar o que quer que fosse. Eles têm uma vida útil, oferecem o silêncio e a fé. Para quê adicionar sofrimento… Rumei um pouco mais a norte, para chegar aqui. Passei duas fronteiras. Penso que uma é a da dor e outra, a do lugar da dor. Penso que uma é a da dor e outra, a da inércia. Mas só por uma delas ponho as mãos no lume. Quanto à dor, não se pode deixá-la escorrer no espaço normal de sempre e para o sempre de todos os dias, sob pena de ela impregnar indelevelmente o habitáculo das paredes que por reflexo voltarão a macular-me mais e mais. A dor precisa do seu cenário próprio. Acolhedor, digno, acalentador mas longínquo. E de ficar lá, tentando que não nos acompanhe no regresso. Mas a dor, como um cão. Não se deixa abandonar facilmente e por vezes percorre os quilómetros de uma vida e até à exaustão, atrás do dono. Caminhar. Foi para o que vim. Sem o olhar se perder em nada ou prender a nada. Nada querer e nada querer ver. Uma sucessão de minutos e horas e dias, cheios de sinais exteriores à dor, em que as únicas marcas que se imprimem são aquelas coisas – tantas – que a fazem lembrar. E todos esses signos de que se rejeita a leitura, todos esses conjuntos de formas significantes, todas as cores, os movimentos e os sons, nada dizendo que se queira ouvir, funcionam a longo prazo como uma superfície abrasiva. Uma pedra-pomes que desgasta, refina e alisa o sentir. Mais ainda. Mas não se ama a dor. Como não se ama a mágoa. Só que uma e outra, a ter uma representação possível, é literalmente o rosto do objecto da dor. Da mágoa. E como tal, é paradoxal o desejo e temor de a perder. Porque com uma e outra, se vai ele também. Para o lugar do nunca mais. Maior o rigor e diria que se ama a tristeza e a dor, mas não se quer ficar nela ou com ela para sempre. E não por elas em si mas pela memória registada a ferro e fogo nelas. É só um divórcio triste. E que se deve encetar com a delicadeza e o tempo de fazer bem as partilhas. Sim, eu trouxe o meu cão. E ao meu cão dei um nome feminino. Não sei bem porquê, talvez para ser forte. Tal como chamei Feliz ao gato para enganar a sorte. Não o deixei abandonado nem vim a fugir dele, e com ele, desesperado, a correr atrás do comboio tentando não me perder o rasto. O meu animal querido. E com ele passei os dias. Colado a mim. A caminhar em torno do claustro até à tontura. Tentando progressivamente andar mais devagar e assim abrandar o ritmo cardíaco e as guinadas da dor. E ele, que foi lentamente conhecendo o ritual diário e a obsessão do percurso, passou a, uma vez por outra, esperar-me deitado ou sentado no ponto qualquer do caminho, seguindo-me depois a partir dali. Ou não. Aleatoriamente primeiro, e a pouco e pouco, mais espaçadamente. Suponho que se resignava a ficar, tal como eu aprendia a deixá-lo para trás. De início custou-me. Da primeira vez que parou sem me seguir, senti um travo amargo de desapontamento. Mas quase sempre não se afastava muito das minhas pernas. Suponho que queria dizer que estava lá para mim, enquanto necessário, mas sabia que não era para sempre e que teríamos que nos despedir com desgosto no final da estadia. Ele sabe, não sei como, que o vou deixar ali. Não abandonado, mas entregue a quem tratará bem dele. E que encontrará ali a sua última morada, num sítio belo. E com uma pequena pedra com uma frase minha de carinho. E eu sabia que ele não iria seguir-me na abalada porque entendia. Que tinha que ser assim. E que eu não iria esquecer nunca. E ele também não. Iria farejar de vez em quando pequenos pontos nas pedras daquele chão, onde talvez persistisse um registo ténue de lágrimas. E depois, vou ter para sempre saudades do meu cão. Hoje eu sei que este e outros sentimentos são para sempre. Mas o esquecimento recobre as saudades como recobre um amor. E só quando umas e outros vêm à memória, de forma aguda e cortante, se entende que estão lá e sempre estiveram. Num recanto escuro e esconso dos bastidores. Para sempre. Ou então, se a memória for generosa como o monge que conheci aqui, para nunca mais. Mas ele, por aqui, não vai comer pão por muito tempo. Carrega uma idade inverosímil para um cão. E um dia, não muito longe, virá uma carta, simples e delicada – eu sei – com uma fotografia do lugar em que ficou. Tratei de tudo com o irmão. Perguntei-lhe se me enviaria um email, porque há toda uma logística que mesmo aqui já se trata desse modo. E ele, sem aquele sorriso habitual e só dos olhos, neste caso, disse que as coisas importantes se escrevem em papel. Sim. Com invisíveis dedadas e impressões deixadas pela subtil gordura das mãos, o ritmo da escolha das palavras certas em modo e número. As dobras no papel, a espessura, a dança da caligrafia o rasgar do envelope. Ou no silêncio do ar. Como o contrato de silêncio – perguntei. Sim, disse. Fiz alguns desenhos do claustro e da capela. Quando fiz menção de lhos deixar, foi rigoroso na recusa. Disse: leve-os para suporte de memória. Nós ficamos com o melhor de si. (A dor?) Para se lembrar de como ela ficou bem entregue. O seu cão. Amanheceu e levanto-me de imediato com os primeiros raios. A experiência diz-me que acordada na cama sou pasto fácil para pensamentos devoradores. Preciso de caminhar muito ainda e aproxima-se o tempo de voltar. E das despedidas. Amanhã. A porta fecha-se entre mim e o irmão dos olhos sorridentes, sérios no momento. No último instante já não é ele mas um outro diferente e dos que nunca quebraram o silêncio devido. Quase duvido do que vejo, tão fugaz foi o momento. E de tudo. Enceto a descida. O passo rápido e embalado porque a descer todos os santos ajudam. E do que não posso duvidar, é de que vou mais leve. Sem eles. Mas não menos triste. Ficam dois, e uma parte. O combinado. Dois e uma parte.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOceano – Lua [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]im, foi há quarenta e seis anos. Ainda a Terra pairava em rota de colisão com a sua Estrela, seguindo um ritmo muito próprio, quando alinhou com aquela massa cinzenta, vazia, sem som, como se de repente o Homem tivesse de novo descoberto a Roda avançando a passos gigantes para além de si. Entre a visão infantil do Peter Pan e aquela imagem em câmara lenta, a imaginação de uma criança desdobra-se em mil efeitos que não cessam jamais, dentro e fora dela. Presentes estavam as pessoas da «Viagem à Lua» de Georges Méliès quando os astronautas vagueavam na sua superfície. Lembro-me bem, da curiosidade e da vontade de lá ir, descolar, andar sem gravidade, muitas vezes me coloquei de forma a andar assim, porque quando somos crianças tudo é possível. Portanto, ontem, 20 de Julho, sinto-me sempre neófita. «Ir à Índia sem abandonar Portugal» Agostinho da Silva explica bem a correlação entre as coisas: ir à Lua sem abandonar a Terra, ainda é melhor! Findado que foi o ciclo das Águas, recomeça o ciclo do Ar. Ora, por mais que queiramos, há mais gases e ar que águas, oceanos. Estamos, sem que lhe demos a importância devida, no ciclo da Era Espacial. Não tenho preciso tudo o que senti naqueles instantes, mas ficou claro um imenso amor pelo Oceano-Galáctico. Aliás, não gosto de água, devo ser um raro organismo vivo juntamente com os gatos a ter tal reacção. A Água da Terra mete medo, é o resquício de um barro indistinto… uma manobra descongelada… chegados lá, já não temos guelras, mais fácil crescerem-nos asas. Em proporção ao espaço-tempo, levou tanto a sair da Terra como os Hebreus atravessarem o deserto; pois, era logo ali, claro, muito perto, mas libertar é tarefa dura e, na primeira parte do processo, estes aparelhos e marchas estão quase ao nível da Roda – mas é preciso ir. Quando a sonda chegou a Marte senti o mesmo frémito, olhei para o fundo de um oceano vazio, uma paisagem árida como quem olha para um deserto de libertação, ficamos encantados até com a escassez, a luz, a vibração outra… e, por instantes, há aquela dúvida, se não andamos em viagem, numa Diáspora que é preciso resolver. O Profeta Elias pode estar ainda algures no seu carro de fogo, numa dessas superfícies que o sol esqueceu, e a vida, tal como a entendemos, não contempla. ….”os homens amam a Terra por que esta lhes resiste”. Vir até aqui, à Terra, já não é destino, há moléculas que ficam presas às teias da quase invencível sobrevivência que vieram apenas registar e acabaram engolidas na engrenagem da reprodução dado que há sistemas sensíveis às fontes de calor…e eis, que nascemos pessoas, numa atmosfera hostil onde nada se mexe a não ser o movimento louco que faz da corrente de ar uma manobra difícil. Há um suborno à massa desfeita, que não é passível de ser acelerada, por outro lado, entre o Homem que somos e o que virá, o abismo cresce na proporção da recusa de um e da urgência de outro. Os «Velos de Ouro» estão agora além, além das águas dos Argonautas, Argos é Apolo. Todo o distintivo em provocar rupturas ficou aberto desde aquele dia, mas quase ninguém se lembra, dado que o asfalto é grandioso para quem se alimenta de húmus e na escala que evolui há um Olho Gigante que nos inquire da capacidade que cada um tem em suplantar a lei. Leis que não são eternas, apenas andaimes de uma estrutura tão requintada que nem damos conta, e tão implacável que só nas suas dobras se acorda. “Vi então um novo Céu e uma nova Terra pois que a primeira tinha desaparecido”- Apocalipse, um livro fortemente espacial, de grandezas várias e resultados insuspeitos. A Lua sempre estará vazia de curso nas instalações dos nossos mapas celestes, dado que não nos governa com a rotatividade das harmonias simples. Está ali, mas ninguém sabe bem para quê, não é uma sentinela de gestação, de fecundidade, de cortar cabelos (mais, cabeças?) tudo se produz num laboratório demasiado humano para ter o rasgo feiticeiro da sua luz… não nascemos lunares, os colos são frios, as barrigas até se alugam e quem dá curvas lindas são ainda os Matisses do Mundo. Quase não serve para nada a vitória da curva sobre a recta… giramos sem cessar mas sem projecto de Dança… Quando há Eclipses vai tudo espreitar, gostam de sobreposições, encavalgamentos, linhas rectas… mas, findo o instante, desatam a circular de forma desordenada. O Homem Fantasma! A Lua Lobisomem, perderam-se… eles também eram reais. As Lunações mais perfeitas, as casas a cheirar a lavado pela Lua-Nova, os acasalementos da Lua-Cheia, nada, nada disso a Lua faz, bem como a memória de a ela ter chegado se dissipou em mil verdades e mentiras, num desdobramento consoante ao «Homem que engoliu a Lua». E como ela esta vazia, temos muita fome de tudo, insaciáveis, somos os monstros que comem pedras. Pela noite ela ainda me vem visitar a pique no meu jardim secreto, e não vem redonda, dado que a espiral morreu, mas logo aqui, a faço Mãe e Irmã, dos meus sonhos mais fecundos. Lembro-me de ter lá estado, e nela ter vogado, numa atmosfera feliz.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasA propósito de Seconds, John Frankenheimer, 1966 We are interfering with natural laws, em Tanin no Kao, Teshigahara [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ouco se tem falado nesta página sobre cinema norte-americano. Por falta de interesse. Ao ler uma lista de 100 filmes americanos surpreendeu-me a ausência de Seconds, de Frankenheimer (ou de um filme que seja de William Hellman ou Douglas Sirk). A classificação contém, no entanto, filmes parvos, como Forrest Gump, ou filmes estúpidos, como The Tree of Life (ou será que este filme é uma comédia?). John Frankenheimer é autor de alguns filmes importantes/interessantes datados dos anos 60 e 70: The Manchurian Candidate e Birdman of Alcatraz (ambos de 1962), e French Connection II (1975). Seconds deve ser o seu filme mais excêntrico. Seconds é um objecto estranho, uma espécie de mistura de drama psicológico, ficção científica e filme político. É a preto e branco, bonito, inquietante, e mostra um nervosismo de quem não sabe bem o que fazer. É, de início, um filme distante, como se tudo se passasse numa esfera de difícil acesso e impossível de tocar. É a sua excentricidade que o traz a esta página. Rock Hudson é Antiochus Wilson. Este é um papel muito diferente do papel de jardineiro tonto que interpreta em All that Heavens Allow porque este não é um filme típico. E é por não ser um filme típico que está aqui. Meshes of the Afternoon também esteve, assim como um filme de William Dieterle sobre uma rapariga elusiva (apenas porque me continuo a recusar a aceitar que é só por causa da música). Arthur Hamilton é um banqueiro de meia idade que recebe um telefonema de um amigo que julgava morto, membro de uma organização secreta chamada Company. Desiludido com o vazio da sua vida profissional e doméstica, Hamilton aceita um pacto faustiano que lhe permitirá ganhar uma nova identidade sob o nome de Antiochus Wilson, um pintor com residência na Califórnia. É aqui que entra o infeliz Rock Hudson. Como é que ainda não se conhece a verdadeira causa do assassinato de Kennedy ou a identidade de Deep Throat ? Americans love a secret, e o cinema americano está cheio de teorias conspiratórias, um amor pelo segredo e um medo de poderosas organizações que é um medo parecido com o medo chinês. A paranóia de Seconds é um bom exemplo do receio da desestabilização e do caos (aqui não um medo de uma ameaça exterior) que percorre a história europeia da América do Norte e que o cinema dos anos 60 e 70 (anos de guerra, manifestações, hippies, assassinatos, Watergate, drogas, música popular e invasão da privacidade) não podia deixar de retratar (há, por exemplo, muito cinema político). Algumas das cenas da transformação de Hamilton em Wilson fazem parte de uma operação plástica real e este dispositivo realista e macabro tem marcado a recepção do filme ao longo dos anos. É fácil vê-lo sob essa perspectiva do choque de um outro tipo de invasão, a invasão do corpo. Sensivelmente a meio do filme, Frankenheimer insere uma secção hippie com uma festa dionisíaca na Califórnia. Esta serve para lembrar que Seconds não é um grande filme. Mas o resto confirma-nos que é mais do que um cult movie tradicional ou uma curiosidade de série B. Há longas secções (no início e mais para a sua conclusão) em que a descrição da paranóia e da perseguição é muito convincente. * Depois das cenas pagãs seguem-se umas cenas de uma festa na casa de praia de Antiochus (tudo muito sunshine noir) onde se repõe o nível perturbador e conspirativo do princípio do filme – especialmente quando Antiochus percebe que os outros convivas são também, como ele, reborns (Rosemary’s Baby, de Polanski, será muito assim, dois anos depois). É difícil não lembrar um filme japonês há vários anos aqui elogiado, e muito mais interessante que Seconds a todos os níveis, e que lida igualmente com questões de identidade: Tanin no Kao (The Face of Another), de Teshigahara Hiroshi, coincidentemente do mesmo ano de 1966*. Também no filme japonês há uma envolvência científica e assustadora que corteja alguns lugares do cinema de terror e até do filme policial. Nele se exibe a possibilidade da produção de uma máscara, uma transformação do indivíduo que permitirá viver num mundo sem amigos, família ou inimigos – um mundo novo ao alcance da máscara que é, afinal, um mundo de liberdade, infinitas possibilidades e, como em Seconds, extrema solidão. O filme de Teshigahara é, no entanto, muito mais pessoal. Toda a intriga se passa em torno de 2 ou 3 pessoas e não carrega nunca uma ameaça de uma organização secreta, como acontece no filme paranóico de Frankenheimer. É difícil de decidir qual dos dois cria um desassossego maior. Em Seconds vemo-nos à mercê de uma poderosa organização. Em Tanin no Kao à mercê de nós próprios. Quase assustador é lembrar que um filme que nos abandona numa ilha com duas mulheres, uma delas actriz de profissão, Persona, de Ingmar Bergman, e que mostra questões identitárias através do retrato do rosto destas mulheres (e que contém imagens “médicas” da mesma família das constantes nos outros dois) é também de 1966. No entanto, em Seconds, é também difícil não nos deixarmos abandonar não tanto à sua mensagem – em torno da identidade de alguém que perde o seu rosto – como ao seu aspecto intrigante e por vezes infantil, e lembrar que grande parte do cinema norte-americano é, desde a sua origem, um cinema de uma curiosidade adolescente. * no entanto, Seconds não é, como começa a ser hábito dizer-se, uma obra-prima esquecida. ** profundamente baseado na literatura de Kodo Abe, em especial no livro com o mesmo nome. Aproveita-se esta nota para aconselhar, do mesmo autor, The Box Man, que aborda questões semelhantes.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasA cor do nada [dropcap style= ‘circle’]A[/dropcap]zul se diz o céu. De todos os azuis, se engana a razão. Falar da cor – de qualquer cor – é sempre falar da maior das ilusões da percepção. Do que não existe em si, mas sim pela acção permanentemente produzida, renovada e afinada dos sentidos. Da visão, neste caso, e sinestesicamente talvez também de todos os outros. O que não está lá, intrinsecamente à matéria, mas como elaboração. Da luz reflectida de diferentes maneiras de acordo com a estrutura atómica dos elementos físicos. E em permanente mutação. Ao longo do dia, quando cada imperceptível mudança da luz, cada subtil contracção da pupila, ou alteração do humor, dá a ver não só aquilo que a matéria física tem em si como potencialidade ou inevitabilidade, mas também algo, acrescido de um contributo psíquico, que está por detrás de cada olhar particular. E mesmo este, modelado por características fisiológicas que restringem ou alargam as possibilidades da percepção. O dia e a noite, só em si e na sua eterna alternância, trazem e levam de forma gradual a cor. Impermanente. Tão delicadamente a cor se retira, que somos iludidos ao ponto de a imaginar a envolver-se em trevas, quando na realidade ela se vai com a luz. Vai, do lugar onde nunca esteve. Senão como ilusão. E volta para o lugar de onde veio. Lugar nenhum. Se quiser falar da cor mais próxima do nada, vem sempre à ideia o branco como o negro, até culturalmente envoltos em sentidos de leitura muito semelhantes. Mas aí estaria a falar de não-cores. O que seria batota. E de entre as cores, se há uma que nos domina é o azul. Vivemos envoltos no azul da atmosfera. Nada mais presente do que esse azul. E nenhuma cor mais ausente, também. Longínqua, esquiva, distanciada do nosso alcance. Sempre ali, e sempre em recuo, numa fuga perceptiva que faz dela, se por um lado a mais repousante e calma de entre todas, também a que implicitamente está sempre em movimento de nós para o além de nós, uma distância infinita de tão grande. Que sugere todo o espaço real ou psicológico, do aqui até ao limite do universo. Para sempre, para longe e para fora. Ela, que nem no mar encontrou espelho à sua altura. E por isso a mais solitária das cores. A mais triste e a mais melancólica. Aquela está sempre lá e sempre em fuga. Intangível e impermanente, mais ainda do que qualquer outra. E mais bela, por isso. E é por isso que nas representações pictóricas, esta é a cor mais poderosa na ilusória representação do espaço em profundidade. Se as cores quentes são as que mais turbulência provocam, as que mais dinamismo sugerem, e as que mais emoções sensitivas têm como aptidão provocar, até porque avançam para nós com voluptuosidade, intensidade e quase desafio ou agressão, é curiosamente a mais fria delas todas, a mais etérea, que, não só não opõe resistência ao olhar, como o deixa vogar por ela adentro, ou por ela fora, sem limite. A cor do abismo. E se nela o olhar teimoso se queda sem mergulhar, é ela própria que recua, como prefigurando um canto de sereia, que atrai, arrasta, e atrás do qual insensivelmente nos deixamos ir e perder. Não fosse o nosso dinamismo psíquico, uma espécie de elástico que, abrupta ou suavemente, nos traz de volta àquilo ou ao lugar que nos centra. O universo de azul é abismal de facto. E nesse abismo se espelha a nossa dimensão também ilusória de grandeza de espírito. Não delimitável. Mas também a nossa insignificância, e com ela, a insignificância de muitas das formatações, molduras, preconceitos e ideias prévias. Nesse imensurável abismo que é o retorcido dinamismo psíquico, uma hélice de dois sentidos, nos perdemos em dilemas e labirínticos esquemas de configuração, ou entendimento, ou modelos de existência. Ou nos perdemos saborosamente na amplidão espacial, porque ao espírito ocorrem sempre metáforas do conhecido, esvoaçando ao sabor de correntes de ar quente, que nos elevam do corpo leve, porque de espírito se trata. Para isso, muito mais é preciso do que um simples brevet. E muitas horas de vôo se requerem para o podermos fazer sem a alienação total. Tanta simbologia criada a partir do carácter puro e espiritual desta cor. Tanto poeta, tanto estudioso dedicou palavras à menos material de todas, que seria redundante e exaustivo rever. Encontro num pequeno trecho em contexto científico, sobretudo talvez na ausência de intencionalidade poética, quase uma fina ironia dadaísta. O concreto objecto da ciência, enunciado, é só por si poesia: “O colorido exuberante do fogo de artifício tem, no laboratório químico, uma aplicação interessante: a identificação de substâncias pela espectroscopia de emissão atómica. Cruzam-se testes de chama com química quântica, crimes desvendados, auroras boreais, operações cirúrgicas com laser e lâmpadas economizadoras.” De onde nos vem o azul, não sendo dos átomos incolores que constituem a matéria, senão das maiores extensões aéreas, oceânicas ou dos azulados gelos dos polos…Frio. Frio. Frio. E, no entanto, azul é a mais aveludada das palavras que designam as cores. Sem érres nem vogais abertas e cruas. No português. No inglês ainda mais. Será talvez por isso que somos sóbrios e melancólicos ao ponto de ter o fado como a canção que nos define…que somos, em parte, um povo in blue. E de onde vêm os blues como género musical senão das raízes sofridas, e como melopeias de trabalho, lamento e ânsia melancólica de liberdade, dos escravos negros nas plantações do delta do Mississipi. Se as cores dissessem o que sentimos em toda a sua plenitude, se com as palavras quiséssemos dizer tudo o que queremos, sobre tudo o que sentimos, e dizer tudo o que sentimos sobre as cores, ou o que elas dizem do que sentimos, teríamos que usar uma mistura, uma fórmula constituída de todos os idiomas, muitos ou poucos, que conhecemos. Porque o sentido de uma palavra numa língua tem a doçura própria, procurada e irrepetível na outra. E ao sentido acrescenta-se imprecisamente a tonalidade sonora, criando ramificações específicas. Para além da forma como diferentes idiomas reflectem diferentes necessidades de nomeação das cores, de maior ou menor diferenciação e desmultiplicação de termos para uma mesma cor. Mas eu queria descrever o que vejo, para não o pensar a mais do que o é. Do azul e da distância evocada, invocada e que simboliza. A percepção do recuo a definir uma área de coisas etéreas, tanto como o espírito, ligadas à cor. Mas dizer azul tem uma estranha proximidade pouco fonética mas mais sensorial com o dizer veludo, sendo esta redundantemente mais aveludada ao paladar. Ao tacto. Ao imaginar ou recolher na memória. E o azul enaltece-se dessa qualidade e dessa temperatura por semelhança. Mais liso, mais fina a cor e as matérias que invoca mas igualmente confortável. E no entanto a mais abismal das cores. Porque a mais transparente. Curiosas expressões em torno do azul, se encontram na língua inglesa. Sinestésicas como o feeling blue, ou, aquela que prefiro: out of the blue. Aquilo que veio do nada. E daquela outra figura de estilo: ouro sobre azul, onde o amarelo, prefigura a luz, razão de todas as cores, e símbolo de toda a razão como saber, parece concluir-se ser o tudo e o nada que se complementam. Tanto a dizer sobre as cores – quaisquer cores – que não cabe no espaço desta página. E sobre o azul, a maior de todas, a mais distante, misteriosa e intocável que, tem tanto de hermética como, paradoxalmente, de transparente e límpida, muito mais ainda. Ou dizer nada e reservá-la à contemplação. O que seria a mesma coisa. Da química dos pigmentos e do olhar animal, se faz o azul. De tudo e de nada. O azul que é a cor da alma. No nada, que é o seu lugar.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasRegresso de Tomé Pires a Cantão [dropcap style= ‘circle’]A[/dropcap]turbulência já andava no ar desde Nanjing e quando a Embaixada chegou a Beijing, o problema das credenciais e da própria legitimidade da embaixada, no contexto do sistema tributário chinês, tornaram o ambiente hostil para Tomé Pires e a sua comitiva. E seguindo com Rui Loureiro: “Os mal-entendidos desencadeados pela disparidade entre as duas cartas são conhecidos sobretudo graças à missiva de Cristóvão Vieira. Contudo, talvez valha a pena chamar a atenção para uma outra versão, de origem chinesa, dos mesmos acontecimentos. De acordo com documentos coevos, o jurubaça principal da embaixada portuguesa, um chinês que dava pelo nome de Huo-che Ya-san (Huozhe Yasan), estabelecera excelentes relações com as autoridades provinciais, logo após o desembarque no porto de Cantão. Por sua própria iniciativa, e graças a uma generosa distribuição de dádivas, conseguira obter autorização imperial para Tomé Pires visitar Pequim como enviado do rei de Malaca. Porém, após a chegada à capital, o seu astucioso plano seria desmascarado pelo enviado do verdadeiro rei de Malaca, que chegou à corte chinesa quase na mesma altura.” O “jurubaça grande falleceo de doença”, enquanto decorriam as averiguações. Mas os restantes línguas, como resultado do inquérito imperial, foram decapitados em Pequim, acusados de “saírem fora da terra” e de trazerem “portugueses a terra da China”. O falecimento do Imperador Zhengde precipitou os acontecimentos e não fosse o novo Imperador Jiajing (1522-66, que começou a governar logo em 1521, mas o ano de início de governação só conta após o novo ano chinês) a anular a intenção dos mandarins da corte de Beijing em executar Tomé Pires, tinha a História da primeira Embaixada terminado na capital chinesa. Devido à suspensão obrigatória de todas as actividades após a morte do Imperador, Tomé Pires foi mandado sair de Pequim e regressar a Cantão, com os presentes que trouxera. Se o pseudo-embaixador Yasan tinha sido desmascarado e falecido por doença, agora o verdadeiro Embaixador dos folangji, Tomé Pires e os seus companheiros partiram em 22 de Abril. Data mais plausível que a de 22 de Maio, pois se o mau ambiente que os portugueses viviam já em Beijing durante o período de doença de Zhengde, após o falecimento do Imperador não permitia longas demoras e assim, dois dias depois deixaram a capital, a caminho do porto por onde tinham entrado na China. Foram conduzidos vagarosamente para Guangzhou, onde chegaram a 22 de Setembro de 1521. “Ao mesmo tempo, foram de Pequim mandadas instruções, por via rápida, para que, quando o Embaixador e os seus companheiros chegassem a Cantão, fossem presos, e que só depois dos portugueses terem evacuado Malaca e esta sido entregue ao seu legítimo rei, vassalo do Imperador da China, seriam aqueles postos em liberdade” A. Cortesão. Hostilidade em Cantão Apenas duas semanas antes da entrada em Guangzhou de Tomé Pires, tinham das redondezas fugido para Malaca três barcos portugueses, que participaram na primeira batalha entre chineses e portugueses em frente ao porto de Tunmen e só ajudados por uma tempestade providencial se salvaram de ir engrossar o número de portugueses nas cadeias chinesas. “O embaixador (Tomé Pires) levado à presença das autoridades de Cantão e solicitado a escrever para Malaca, de acordo com a vontade do imperador, altivamente, como se sabe por uma carta de Cristóvão Vieira, recusou. Pela mesma fonte de informação sabemos que todos estiveram perante o puchanchi (tesoureiro provincial), de joelhos, durante umas longas quatro horas.” E continuando com Luís de Albuquerque: “. É de crer que grande parte destes artigos apreendidos pelos chineses pertencesse a Tomé Pires, que já era rico antes de ir à China e decerto não deixou de procurar aumento à sua riqueza.” “Vieira diz ainda que, na presença de Pires, arrolaram a fazenda confiscada, tendo o presente de D. Manuel ficado à guarda do Puchanchi” L. Albuquerque. Para agravar a situação A 4 de Agosto de 1522, chegara a Tamão a frota de seis velas comandada por Martim Afonso de Mello Coutinho trazendo como missão desde Lisboa consolidar a amizade que se julgava já estabelecida entre portugueses e chineses e conduzir um novo embaixador, pois tinha como certo que nessa altura Tomé Pires estaria de regresso. Ao contrário do que em Cochim fora informado por Simão de Andrade, em Malaca soube que em vez de se ter feito amizade com a China, ocorrera em 1521 uma batalha naval, de onde os portugueses saíram derrotados. Martim Afonso de Melo Coutinho “não obstante, decidiu continuar viagem, acompanhado por outro navio e um junco com Ambrósio do Rêgo e Duarte Coelho, que relutantemente, e apenas sob pressão de Jorge de Albuquerque, ao tempo Capitão de Malaca, consentiram em voltar à China, onde, no ano anterior, como vimos, tinham estado em sérios apertos. Coutinho partiu de Malaca com seis velas, em 10 de Julho e chegou a Tamão em Agosto de 1522″ A. Cortesão. Em Malaca, sobre as andanças da Embaixada de Tomé Pires nada se sabia apesar de, pelos factos ocorridos no ano anterior, poucas esperanças havia de ter sido realizada com êxito. Não imaginava Martim Afonso de Melo Coutinho estar Tomé Pires e os que sobravam dos seus acompanhantes presos ali próximo, em Cantão. Entrou Martim Afonso de Melo Coutinho a 4 de Agosto de 1522 com os seus barcos no porto de Tamão tão confiadamente, como se as instruções de D. Manuel para conseguir a amizade do Rei da China e estabelecer ai uma fortaleza, por si só valessem como lei. Foi no pior momento porque em terra, os chineses tinham Tomé Pires e seus companheiros, como ladrões e espiões. E com Luís Gonzaga Gomes seguimos: ” Os chineses, que se encontravam ainda excitados com a embaixada de Tomé Pires, receberam tão mal os portugueses que se travou uma rija batalha naval, no porto de Tamão, onde Martim Afonso de Melo Coutinho tinha entrado, descuidadamente, e donde conseguira escapar, a coberto da luta sobre humana travada pela barco de Pedro Homem que, obrando prodígios de incomparável valor, conseguiu atrair sobre si toda a atenção dos chineses até ser derrubado por um tiro.” “Os portugueses sofreram muitas baixas, perderam dois dos navios e o junco e, depois de vãos esforços para restabelecer relações com as autoridades cantonesas, regressaram a Malaca em meados de Outubro do mesmo ano.” “Com tudo isto a situação de Pires ainda se tornou pior, se é possível. Os mandarins de novo lhe ordenaram que escrevesse uma carta ao Rei de Portugal, a qual o embaixador Tuam Hasam Mudeliar levaria a Malaca, a fim de que esta e o seu povo pudessem voltar ao antigo senhor; se não viesse resposta satisfatória, o embaixador não voltaria. Os portugueses receberam na cadeia uma minuta em chinês, da qual escreveram três cartas, a El-Rei D. Manuel, ao Governador da Índia e ao Capitão de Malaca, que foram entregues às autoridades de Cantão em 1 de Outubro de 1522. O embaixador malaio, como é fácil de compreender, não mostrou interesse especial em servir de correio de tais missivas, nem era fácil encontrar quem se quisesse encarregar de missão tão contingente. Por fim, um pequeno junco com quinze malaios e quinze chineses partiu de Cantão em 31 de Maio de 1523 e alcançou Patane, na costa nordeste da Península Malaia. As cartas foram, segundo parece, às mãos do ex-rei de Malaca, grande intriguista, que se refugiara na próxima ilha de Bintang, e a quem não faltavam motivos para odiar os portugueses e, talvez mesmo, Pires em especial; mas nunca chegaram ao seu destino. Contudo, Ambrósio do Rêgo, que, nessa altura, tinha ido a Patane, soube, por um intérprete que costumava servir entre portugueses e chineses, quando estavam em paz, que Tomé Pires e alguns dos seus companheiros ainda se encontravam vivos em Cantão” A. Cortesão. O fim trágico dos mercadores Como Armando Cortesão refere: “Os mais importantes documentos para a história de Tomé Pires e sua Embaixada, depois do desembarque em Cantão, constam de duas cartas de Cristóvão Vieira e Vasco Calvo, escritas dessa cidade em 1524, das quais Barros se aproveitou largamente nas Décadas.” Voltando a Luís de Albuquerque: “A partir daqui, as notícias sobre o destino dos prisioneiros são escassas, em alguns casos confusas, senão até contraditórias. No final de 1523, Ambrósio do Rego trazia a Malaca a notícia de que ainda viviam entre oito e treze cativos, contando-se Tomé Pires entre os sobreviventes; aos da embaixada ter-se-ão juntado, portanto, os prisioneiros das armadas a que os chineses deram batalha no porto de Tamão (que ocorreu no porto de Tunmen), nomeadamente Vasco Calvo. Todavia, se acreditarmos na carta de Vieira, seria de vinte e três o número de presos; de facto, ele relata que no dia 6 de Dezembro de 1522 ” Já A. Cortesão complementa: “Os mandarins enviaram um relato ao Imperador, o qual confirmou as sentenças. . Cristóvão “Vieira menciona outros juncos que, por esse tempo, chegaram à China com portugueses, tendo sido todos atacados e as tripulações chacinadas. Do navio de Diogo Calvo ficaram presos, além de Vasco Calvo, sete outros portugueses e quatro servidores, os quais escaparam à matança por dizerem que pertenciam à Embaixada de Tomé Pires. Mas muitos outros morreram nas prisões, depois de expostos com letreiros onde se dizia que iam morrer por serem , quando não eram assassinados com uma pancada de malho na cabeça, ou espancados até expirar” A. Cortesão. Cristóvão Vieira, na sua longa carta escrita provavelmente em Novembro de 1524 no cativeiro e que conseguiu através de chineses fazer chegar às mãos dos portugueses, diz que só ele e Vasco Calvo se encontravam vivos na cadeia de Cantão e assim, todos os que a leram pensaram que Tomé Pires tinha morrido na prisão. Mas seria isso verdade?
António Conceição Júnior h | Artes, Letras e IdeiasO gatilho, a mortalha e o jardim encantado [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e o leitor gosta de armas de fogo, provavelmente sonhando com uma Glock, uma Smith & Wesson com laser, ou ainda uma Magnum 45 que Clint Eastwood, como “Dirty Harry” popularizou no cinema, poderá continuar a sonhar deitado porque lhe será impossível possuir uma arma destas em Macau. Nenhuma delas é de defesa nem se encontra à venda. Quase na mesma onda se encontram os fumadores, que viram outro dos malefícios de tabaco: o preço a que este chegou. Mas não será por isso que os mais abonados irão deixar o vício, fazendo juz ao ditado “quem tem massa tem vícios”. E de impossibilidades a interdições, caminhando entre nenúfares, eis-me chegado ao jardim onde uma biblioteca octogonal, de estilo chinês, se ergue para deleite dos inúmeros leitores que quotidianamente a habitam. Passo por lá sem poder deixar de admirar o belo jardim, ali a dois passos da rua, quando reparo que a paragem oferecida pelo Rotary Club tem, parados, dois autocarros que resfolegam enormes quantidades de monóxido de carbono, à maneira das velhas locomotivas. Do jardim deserto, sinto uma espécie de sussurro vindo dos canteiros e das árvores. Algo como um roçar de folhas umas contra as outras. As folhas agitam-se, os ramos das árvores movem-se, embora não haja vento nenhum. De súbito, das folhas, começam a nascer por todo o lado uns cilindros do tamanho de cigarros, que lentamente se vão desenrolando como uma flor que se abre. O meu pasmo é grande, mas como se isso não bastasse, estas flores abrem-se ao meio e sem o processo larvar, borboletas brancas desprendem-se e esvoaçam pelo ar, todas brancas, frágeis, enchendo o jardim de manchas brancas como flocos de neve em plena canícula. Algumas caem junto a mim e percebo que as asas brancas são mortalhas de cigarro e o corpo é, apenas, um filtro de cigarro com um morrão apagado. Mirones espantados rodeiam o jardim comentando tão insólito acontecimento. O chão do jardim começa a estar pejado de beatas, enquanto as mortalhas libertas dos corpos, esvoaçam erraticamente, sem destino. Um sujeito com um colete, dossier na mão, dirige-se-me em inglês: “look”, apontando para as beatas, “no smoking here, I fine you”. Olho-o e respondo em chinês que não fumo e que já tinha visto antes dele. Nisto outro autocarro chega-se à paragem e nova baforada de fumo chega até nós. As borboletas-mortalha como que se multiplicam, enquanto aumenta a agitação das folhas. Tenho a suspeita de que, no reino vegetal, daquele jardim agora encantado, havia folhas que ansiavam pelo monóxido de carbono para devolverem oxigénio ao ambiente, enquanto outras, em clara revolta, queriam absorver oxigénio e expelir monóxido de carbono, coisa inaudita na função clorofilina, fotossíntese ou lá o que quer que agora lhe chamem. Era a revolta de umas ordeiras folhas contra outras que queriam o inverso do que lhes era natural, e parece que, a apoiá-las, as beatas voadoras e as mortalhas iam-se manifestando. Nisto ouço um disparo atroador seguido de um pschhhhhhh do esvaziar de uma roda. Outro tiro e, do autocarro, começa a esguichar água do radiador. O motor tosse, tosse e fina-se enquanto o condutor e os passageiros saem apressadamente, atropelando-se. Muitas das borboletas voam do jardim e enfiam-se no autocarro. Nisto avisto, a uns 20 metros de distância, um homem alto e magro, o cabelo quase todo branco, cigarro ao canto da boca, um revólver de longo cano fumegante caminhando para nós. Olho para o fiscal, olho para o chão, e uma poçazinha de líquido vai-se formando aos seus pés. Clint Eastwood aproxima-se, as borboletas, obedientemente, seguem-no. “Who’s gonna clean up this mess?” pergunta-me Dirty Harry olhando-me com os olhos eternamente semi-cerrados, apontando para o chão cheio de beatas e de mortalhas caídas. Ouvem-se palmas dos mirones quando alguns, poucos, o reconhecem. Correm com os seus telemóveis para junto de Eastwood, para se fazerem fotografar junto do actor. Os selfies não param. Alguns, mais entusiásticos oferecem-lhe fichas de casino. Em breve chegarão jornalistas, a televisão, a rádio. Que será que dirão do jardim encantado?
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasAs brumas [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos na Europa e foi 14 de Julho, nada de expressivo aconteceu, nem sequer a data pareceu interessar na azáfama da dívida grega e nos vãos de escada dos peditórios: a Europa é hoje um armazém de guarda-livros “merceeiros” e banqueiros, um rescaldo de contabilidades cujos princípios justificam os fins. A Revolução foi nas calendas de antanho e o tempo não está para grandes ardores. Nem sempre temos força física, anímica, para entrarmos em tais domínios, não nos podemos deixar galvanizar por ideais cujos resultados são imprecisos e utopias que não pagam contas. Parecendo grotesco o que agora digo, é assim que se vive, mesmo os mais aptos para uma participação de fundo. É claro que ninguém fica sentado a ver uma Revolução passar, uns tomam-lhe o freio, outros transferem-se para heróis, outros fogem, uns são presos, e os que nada ganham ou perdem também entram na “dança” nesta actividade ígnea não há horas para as reuniões, para tocar nos colarinhos, para cada um fazer a sua “paneleirice” rasteira num marasmo que mata mais que mil soldados. A Reforma é agora a modalidade mais eficaz e a sabotagem do direito do outro à vida, a diversão mais requintada do capital estrangulador. Articular revoltas nesta “benemérita” sociedade é algo de inconcebível, está tudo pensado ao detalhe: quem rouba também dá e dá espectáculo e coisas para manter os “sans- culottes” devidamente entretidos e alienados. Ainda são precisos. Porém, creio, que no dia em que este «Cérebro» entender que estão a mais, haverá estruturas para os fazer desaparecer: as investigações nazis da «Bayer» só agora estão perfeitas. Aliás, estamos perto de um efeito que não desmerece um qualquer outro que possamos ter achado menos bom. A Grécia lá teve que estender o fio de Ariadne, mas desta vez não matou o Minotauro e ao regressar a Atenas foi mais pobre, pois que os heróis morrem jovens e, no tempo deles e das Revoluções, o mundo também era outro, mais cativante em formato Humano. É nos Estios que elas se dão, pois que o Inverno não dá “pão”. Revolução é coisa Estival! Nós não podemos estar pior, ou seja, podemos sempre vir a estar, é um facto, mas dado que desconhecemos o abismo, agora mesmo nos sentimos muito mal, mas com recurso a tudo, pois que o acto da sugestão nos pode induzir de forma “Voltariana” ao melhor dos mundos. Estávamos nós a festejar oniricamente a Revolução quando estas coisas paralelas de afundar mais a Grécia se produziram; a partir de um certo instante a salvação é o abandono e não vale a pena capitular, dado que hoje, e como nunca, quem pode sabe e tem razão. E os ricos têm muita, dado que são eles que fazem as leis. Apanhamos sustos vários cada vez que passamos certas datas, dado que elas efectivamente morreram, congelaram na inércia dos séculos, de tal ordem que haverá um doido que nos virá alertar futuramente que o passado nunca existiu. No que diz respeito à Igualdade, ela, embora não designe de facto coisa nenhuma, devia ser neste tempo substituída por Equidade, ou seja, tratar diferentemente aquilo que é diferente, com formas de acção coordenadas, e não o simplismo igualitário, pondo nas portas das comissões este poema: «Todas as coisas têm o seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu, segundo o termo que a cada um foi prescrito». Descodificar tratados da União requer alguma filosofia, o que falta à Europa é uma estratégia política, apenas existe a financeira. Há países que estão calados, pois sabem, o quão maravilhoso seria serem geo-estrategicamente os “Bons Samaritanos” irem a correr dar água do seu poço; nesse dia os sonhos morrer-nos-iam, aqueles poucos que sobraram- porque, se bem entendo, essa expectativa é subliminar a todo este processo, quanto a nós, que há muito nos esquecemos da Revolução o melhor será irmos aos poucos esquecendo uma Civilização inteira. Penso que é isso que sabem lá no fundo os europeus, basta a «Pedra Angular» do berço dela se ir, para ruirmos e começarmos a perder-nos na penumbra dos tempos. O dinheiro, a Banca, os Banqueiros e a Economia vão matar o mundo, e nesse começar, somos agora o alvo que convém focar em silêncio. A Liberdade, essa não é a mesma que aquela que se gritou da cima da Bastille, o nosso sopro não aguentou o voo de Ícaro, nem o Sol gosta dos que não são águias. Fraternos somos a modos que solidários numa desgraça colectiva que adjectivou o princípio para uma escalada de valores onde não queríamos ter voltado. E foi nestes ditirambos que se passou a data do Grito Libertador, que tanto deu vida, como matou, dado que matar e dar vida, são actos da mesma “Revolução” e da primeira grande condição do Homem. Foram grandes esses tempos. Agora, sentados a uma mesa, vamos elaborando o estertor da última etapa. Gostava de te ver voltar. Ninguém deve nascer para isto. Se ao menos soubéssemos o dom da Equidade, dessa expressão que tem em si um principio inviolável de grande Justiça! Mas não: de tão iguais estamos exangues e o nosso sangue já não aquece a Terra.
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasCinco melhores cidades da Ásia Extrema, Monocle [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Publicou-se de novo a lista das 25 cidades com melhor qualidade de vida da revista Monocle. Ao contrário do que sucedeu em anos anteriores, não valerá a pena alargarmo-nos pelas suas minudências, um pouco repetitivas de ano para ano e origem certa de pequenas indignações e médias irritações. Exponha-se de novo a ideia de que seria cruel comparar administrações urbanas a sério com as tentativas infantis da administração local de fazer algo de útil. Uma que não consegue fazer um metrozinho de superfície ou um terminal marítimo não merece elevação a termo de comparação. Mas vale a pena perceber o que é que cinco cidades asiáticas fazem bem para que mereçam inclusão neste grupo de 25. São elas Tóquio (1º lugar geral), Fukuoka (12º), Singapura (13º), Quioto (14º) e Hong Kong (19º, logo após Lisboa e antes de Amesterdão). Das outras, 15 cidades são na Europa, 2 na Austrália, 1 na Nova Zelândia, 1 no Canadá e 1 nos E.U.A. Deve também lembrar-se que as cidades distinguidas pela Monocle podem ser, para alguns leitores, cidades demasiado arrumadas e pouco vibrantes (sem a excitação de sítios como o Rio de Janeiro, Istambul, Beirute ou Roma), uma disposição que atinge resultados quase risíveis na classificação da O.C.D.E., que elege Camberra como vencedora. Esta é uma revista que não esconde favoritismo para com certos lugares, a Escandinávia, a Suíça, o Japão ou Portugal. Portugal é, para esta publicação, um país giro. Lisboa foi a cidade escolhida, em Abril deste ano, para a realização de uma conferência sobre qualidade de vida, promovida pela Monocle, aquela que foi a primeira de sempre. A capa do número de Julho/Agosto é uma fotografia tirada em Santiago do Cacém e é no Alentejo que foram tiradas as fotografias das páginas de moda deste número. No seu interior encontra-se um artigo sobre o Porto e o seu Presidente da Câmara em que se sublinha a ideia da renovação de edifícios antigos para uso como habitação social e como modo de combater os efeitos mais perniciosos da gentrificação. No entanto, por muito irritante que seja, a Monocle centra os critérios de classificação das cidades em torno de uma ideia de bem estar onde pormenores como a hora de abertura de lojas, o número de horas de sol ou a tolerância para com estilos de vida diferentes são importantes. Isto acontece em contraste com outras classificações que se centram demasiado em considerações económicas (como a lista da Mercer, de que já aqui se falou, ou a da EIU – Economist Intelligence Unit). Este ano, para além das considerações em cima referidas, dá-se particular relevância à qualidade da rede de transportes, à limpeza das ruas, aos espaços verdes, à facilidade na abertura de pequenos negócios (uma obsessão monocleana), ao respeito pelo património, ao modo de tratamento dos idosos ou a uma paisagem urbana que permita, através da sua diversidade, que o sol atinja as ruas e banhe a populaça. Conhecendo as cinco cidades asiáticas que a classificação deste ano distingue, não posso deixar de concordar com a justeza da sua escolha (apenas desejar que Taipé melhore o suficiente para entrar nesta classe). Numa altura em que mais de metade da população mundial vive em cidades, assiste-se com entusiasmo a um debate centrado na deslocação de poderes dos governos centrais para os governos locais. A libertação da cidade dos governos centrais só pode ajudar à qualidade da governação. Tóquio – Curiosamente, aquilo que a Monocle distingue é um paradoxo que me surpreendeu quando da primeira visita a esta cidade: o de que à sua gigantesca dimensão se junta a possibilidade de um estilo de vida saudável e tranquilo. Com muitos jardins e parques, 225 bibliotecas públicas, 131 museus, 335 ecrãs de cinema, 587 galerias de arte, 1383 livrarias independentes, uma rede de transportes públicos acessível, pontual e limpa e uma oferta de restauração surreal (4617 restaurantes novos no ano passado/Melbourne 18) pode-se ser muito feliz em Tóquio. Junte-se o facto de ter sido há pouco considerada a cidade mais segura do mundo e uma oferta extraordinária de lojas e bares – para além de uma quantidade gigantesca de lojas com produtos de elevadíssima qualidade e de todos os tipos.* Tóquio é uma prefeitura metropolitana que inclui 23 special wards. Na prática, aquilo a que chamamos Tóquio é um conjunto de “23 pequenas cidades” – para além do resto que constitui a grande área metropolitana. No interior de muitas dessas wards, que incluem districts famosos como Ginza, Ikebukuro, Harajuku ou Ueno, pode levar-se uma vida quase aldeã, em pequenas ruas com pequenas lojas que se percorrem facilmente de bicicleta. “its heartstopping size and concurrent feeling of peace and quiet” é a frase que a Monocle usa para ilustrar o paradoxo de Tóquio. Recordo que na minha primeira viagem a Tóquio, em Ikebukuru, passados dois ou três dias, já vários lojistas me lançavam saudações amáveis. Curiosamente, o preço médio da renda mensal de um apartamento com um quarto é de apenas 720 euros (Zurique €2000 e Hong Kong €1700. Fukuoka €470 e Berlim €530). Fukuoka – A cidade com mais elevado crescimento no Japão é uma cidade afortunada. Há vários anos que o seu governo apostou na modernidade e diversidade da arquitectura – o que lhe confere uma atmosfera experimentalista. Situada junto ao mar, não muito longe da montanha, com um clima favorável (e uma população amável e descontraída) e sem a arrogância de outras cidades japonesas, esta é uma escolha óbvia. Exibe, no conjunto das 25 cidades, o preço mais baixo para aluguer de um apartamento com 1 quarto (€470). O preço médio de venda de um apartamento com 3 quartos é de €145.200 (ou seja, MOP1.225.000). Tem 173 livrarias independentes (HK tem 50) e, posso confirmá-lo, uma disposição meridional tranquila e acolhedora. Singapura – As qualidades mais marcantes de Singapura são por demais conhecidas. Juntem-se-lhe um aeroporto que acolhe mais de 300 voos internacionais (apenas Amesterdão a ultrapassa), uma taxa de 60% de reciclagem dos seus lixos, a melhor das cinco asiáticas (Estocolmo mais de 90%/Paris apenas 15%), 258 galerias de arte e um clima agradável todo o ano. Sendo a primeira cidade jardim da Ásia, tem sido feito um esforço grande para a tornar atraente a nível da oferta cultural, mesmo que este esforço por vezes tropece em censuras infantis. É, como qualquer outra destas cidades extremo-orientais, muito segura. Tendo-lhe sido dedicado um artigo inteiro não me estendo sobre o formidável jardim que o governo decidiu criar junto ao mar. Esta mancha imensa marcará o nível de vida dos seus habitantes para sempre. Quioto – Esta é uma cidade modelar. Com muitos jardins e templos, pode tornar-se um exemplo num debate que tem ultimamente inundado jornais e revistas: o da qualidade de vida em cidades onde o turismo se tornou uma actividade com uma presença demasiado intensa. É o caso de Amesterdão, Macau, Lisboa (a cidade europeia com maior crescimento turístico), Hong Kong, Barcelona ou – o paradigma mais assustador – Veneza**. São cidades onde o excesso de turismo cria uma crescente insatisfação na população residente e onde os seus governos terão de fazer escolhas radicais para que se não comprometa ainda mais o nível de vida dos seus residentes. Ao contrário (completamente ao contrário porque aqui os residentes, esquecidos e desprezados, são reféns do turismo) do que acontece em Macau, em Quioto tem-se conseguido encontrar um equilíbrio. Esse equilíbrio traduz-se na plantação de mais árvores e na ordenação do tráfego (em Macau reina a confusão generalizada, um misto de provincianismo e total ignorância baseado na reticência em pedir ajuda exterior). Ter mais de 200 museus e mais de 280 livrarias independentes é um auxílio comovente na promoção da qualidade de vida. Hong Kong – Por que é que em Hong Kong há 55 jornais diários? Em Auckland e Portland (a única cidade dos E.U.A. que costuma aparecer nesta lista) só há um. Eu sei que o que me agrada em Hong Kong é a oferta. De restaurantes (no ano passado abriram 1500 restaurantes novos), de bares e de lojas. E, agora, de arte. Esta é a grande transformação por que passaram, na última década, Singapura e Hong Kong. A Art Basel HK é a maior feira da Ásia. O West Kowloon Cultural District será um ponto de atracção novo para a cidade. Ao contrário do que acontece em Singapura e nas cidades japonesas, a juventude de Hong Kong mostra-se cada vez mais inovadora e contestatária e se esta era uma cidade vibrante por outras razões esta razão da contestação veio dar-lhe um brilho novo. Quem não estiver satisfeito tem à sua disposição 180 voos internacionais, muitos deles intercontinentais. Várias zonas da ilha de Hong Kong mostram uma vitalidade e criatividade a nível do pequeno comércio – independente do gosto internacional imposto pelas grandes marcas – que a tornam particularmente atraente para a revista Monocle, que reserva muitos dos seus elogios para pequenas empresas de vestuário, design, mobiliário, restauração, etc. Tai Hang e algumas partes de Wanchai, para além de Kennedy Town, que tem agora estação de metro, são exemplos perfeitos de um estilo de vida urbano que permite também um sossego quase aldeão, um estilo que recebe o favor constante desta revista. As cidades japonesas são, no entanto, imbatíveis na oferta deste tipo de modelo: cidades grandes e modernas mas extremamente bem equipadas a nível de transportes, espaços verdes, qualidade excelente de todo o tipo de produtos, hospitais, livrarias, bibliotecas, restaurantes, bares, pequeno comércio, vias para bicicletas e limpeza, e onde se mantém, para quem o desejar, um estilo de vida tranquilo. * uma imagem que marca indelevelmente o turista é a de grupos de crianças de cinco ou seis anos a deslocarem-se sozinhas para a escola através dos meandros aparentemente labirínticos da gigantesca metrópole que é tudo menos ameaçadora. ** pela primeira vez, em Veneza, se pensa num sistema de limitação do número de turistas ou de acesso a certas áreas. Em Barcelona suspendeu-se o licenciamento a novos hotéis, pensões e apartamentos privados. A lista de monumentos e lugares em que o número de turistas se tornou excessivo é longa: Monte Evereste, Machu Picchu, Angkor Wat, as Galápagos, Bali, etc.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA segunda embaixada portuguesa à China [dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A 10 de Julho de 1522 saiu do porto de Malaca para a China, Martim Afonso de Mello Coutinho, com seis navios, de que eram capitães ele e Vasco Fernandes Coutinho e Diogo de Mello Coutinho, seus irmãos, com Pedro Homem, Duarte Coelho e Ambrósio do Rego” segundo refere Marques Pereira. E com ele continuando: “Esta expedição, ordenada por el-Rei D. Manuel, é considerada pelos historiadores como a segunda embaixada de Portugal a este império” (à China). “Em 1521 D. Manuel procurava controlar o comércio com a China tendo concebido duas rotas para a pimenta, uma entre Cochim e Lisboa e outra entre Pacém e Cantão”. Já João Paulo Oliveira e Costa assinala: “Quando morreu, a 13 de Dezembro de 1521, D. Manuel I estava certamente convencido de que a influência portuguesa se estendera definitivamente até à Ásia Oriental. Mas quando o soberano despachava as armadas no seu reino do Extremo Ocidente, os acontecimentos precipitavam-se no Extremo Oriente; a política manuelina caminhava aí para o fracasso”. A frota partira de Lisboa para a Índia a 5 de Abril de 1521 e como Embaixador do Rei D. Manuel à China ia Martim Afonso de Melo, o qual era fidalgo da sua casa e tinha o porte e entendimento para esta negociação. Fora nomeado para, após findar o trabalho de Embaixador, ser Capitão da fortaleza a edificar na costa chinesa, sem estar sobre a alçada da Índia, pois levava poderes semelhantes aos desses governantes. Para consolidar e aumentar os conhecimentos da construção naval que Fernão Peres de Andrade tinha trazido da China, pretendia-se aí construir um navio, para o qual seguia Manuel Mendes de Vasconcelos como capitão dessa futura embarcação. “A bordo da nau Conceição ia Martim Afonso de Melo e estava acompanhado pelos seus irmãos, Vasco Fernandes Coutinho e Diogo Melo (nomeado para feitor dessa fortaleza), um cunhado, Simão de Miranda e muitos criados que há muito serviam na família”, como escreve Marques Pereira. Em Chaul, na Índia, Martim Afonso de Melo encontrou-se com Simão de Andrade, que deixara “a orla costeira chinesa, na monção de 1520, sem que se agudizasse a reacção chinesa, o que só aconteceu alguns meses depois” logo, “desconhecedor dos eventos ocorridos depois da sua partida”. E continuando com João Paulo Oliveira e Costa: “Simão de Andrade, certamente entusiasmado com o negócio que realizara e com a forma autoritária como se impusera, transmitiu na Índia a Martim Afonso de Melo uma imagem optimista da situação. E Martim Afonso seguiu viagem disposto a construir a primeira fortaleza na China, conforme lhe ordenara o rei” e esperava vir a encontrar Tomé Pires já regressado a Cantão. A sombra de Simão de Andrade Encontrava-se o Embaixador Tomé Pires em Beijing desde meados de 1520, ou Janeiro de 1521 como as fontes portuguesas indicam, à espera de ser recebido pelo Imperador Zhengde. Os memorandos que iam aí chegando relatando os distúrbios provocados por Simão de Andrade e os seus homens em Tamão, assim como a conquista de Malaca pelos portugueses, um porto tributário da China, colocaram em maus lençóis a Embaixada. Com o falecimento do Imperador Zhengde em 20 de Abril de 1521, logo foi esta obrigada a sair da capital, devido à suspensão obrigatória de todas as actividades e regressar a Guangzhou. Numa viagem muito lenta, só lá chegaram a 22 de Setembro de 1521, permitindo aos mensageiros da corte de Beijing muito antecipadamente entregar as instruções para o governo de Guangzhou, mas não trazendo ordem para prender a Embaixada. Os anteriores desmandos de Simão de Andrade, de pura pirataria, criaram o primeiro equívoco grave nas relações com as autoridades locais, trazendo-lhes graves problemas pois tinham sido responsáveis pelo arranjar de uma solução forjada para a Embaixada de Tomé Pires ter podido seguir até Beijing. “A complexidade da questão deve ter beneficiado Simão de Andrade que, assim, não foi imediatamente atacado por forças imperiais, mantendo a prática dos abusos” como refere Gonçalo Mesquitela e com ele continuando: “O simples facto de tais factos sucederem implicava uma imensa responsabilidade das autoridades respectivas que, antes de um acto de força, a autorizar ou ordenado por Pequim, eram os primeiros a estar interessados em resolver a situação…” A primeira batalha entre portugueses e chineses Simão de Andrade deixou por volta de Setembro de 1520 a orla costeira chinesa sem ter esperado pelo regresso do Embaixador Tomé Pires, que por essa altura estaria na capital da China. Se a embaixada passou em Beijing quase um ano, ou apenas três meses, não há até agora como confirmar, e por morte do Imperador Zhengde teve que daí sair a 22 de Abril de 1521, só chegando a Guangzhou em 22 de Setembro de 1521, como diz A. Cortesão. “Entretanto, antes de Tomé Pires chegara a Cantão Diogo Calvo, com alguns navios” segundo L. Albuquerque, mas Cortesão diz que chegou “a Tamão a nau Madalena, pertencente a D. Nuno Manuel, a qual viera de Lisboa sob o comando de Diogo Calvo. Outros navios se lhe tinham junto em Malaca, entre eles, um de Jorge Álvares que, no ano anterior, não pudera ir com a esquadra de Simão de Andrade por o seu junco ter aberto uma veia de água. Quando (entre finais de Maio e Junho) em Cantão foram recebidas as instruções enviadas de Pequim contra os portugueses, juntamente com a notícia da morte do Imperador, os chineses imediatamente se apoderaram de Vasco Calvo, irmão de Diogo Calvo, e de outros nossos compatriotas que se encontravam comerciando na cidade” A. Cortesão. E prosseguindo com este venerável historiador investigador: “Além de apreenderem alguns dos navios portugueses, os chineses, com uma grande armada de juncos, bloquearam a Madalena e outros navios nossos que se encontravam em Tamão, entre os quais dois juncos que, em 27 de Junho de 1521, haviam aportado com Duarte Coelho. Poucas semanas depois chegou Ambrósio do Rêgo, com dois outros navios”. Luís Gonzaga Gomes refere: “Em 27 de Junho de 1521, Duarte Coelho chegou a Tamão, num junco, acompanhado doutro, pertencente aos moradores de Malaca, ambos fortemente armados. Ao saber do ânimo predispostamente hostil em que os chineses se encontravam contra os nossos, Duarte Coelho pretendeu sair, mas, verificando que os juncos que se encontravam no porto não possuíam armamento suficiente para repelir uma agressão, deixou-se ficar, para os ajudar a escapar e principalmente, pelo facto de Jorge Álvares, seu íntimo amigo, se encontrar tão doente, que veio a falecer, onze dias após a sua chegada…” Segundo uma nota de João Paulo Oliveira e Costa: “Foram precisamente Ambrósio do Rego e Duarte Coelho que abriram as hostilidades junto a Cantão”. E regressando ao que diz A. Cortesão: “Tantos eram já os tripulantes portugueses mortos em combate, ou aprisionados e depois chacinados, que nessa altura já não havia bastantes para todas as embarcações, de modo que Diogo Calvo, Coelho e Rêgo resolveram abandonar os juncos a fim de melhor guarnecer os três principais navios. Assim se fizeram à vela em 7 de Setembro, mas logo foram atacados pela esquadra chinesa. Contudo, conseguiram escapar, graças a um tufão providencial (, segundo Barros opina) que dispersou os juncos inimigos, aportando a Malaca em Outubro de 1521.” João Paulo Oliveira e Costa diz: “No ano de 1521, as águas de Cantão só foram visitadas por mercadores privados e pelos navios da feitoria de Malaca.” Algo estranho são os cerca de setenta dias de perseguição das autoridades chinesas a estes mercadores até eles fugirem. Como conseguiu Duarte Coelho sepultar Jorge Álvares a 8 de Julho de 1521 em Tamão, onze dias depois da refrega? Questões que não vimos explicadas! Segundo L. Albuquerque: “Duas semanas depois da partida destas naus, Tomé Pires e os seus companheiros chegaram a Cantão. Estavam irremediavelmente entregues à sua trágica sorte.” “Do navio de Diogo Calvo ficaram presos, além de Vasco Calvo, sete outros portugueses e quatro servidores, os quais escaparam à matança por dizerem que pertenciam à Embaixada de Tomé Pires” A. Cortesão. O triste fim da Segunda Embaixada Voltamos agora à segunda Embaixada, com que iniciamos este artigo e que, de Lisboa fora enviada à China a 5 de Abril de 1521 pelo Rei D. Manuel. Um ano após Martim Afonso de Melo Coutinho ter saído de Lisboa “com a missão de consolidar a amizade que julgava já estabelecida entre portugueses e chineses, e conduzir novo embaixador, pois tinha como certo que nessa altura Tomé Pires estaria de regresso” segundo A. Cortesão, de Cochim partiu em Abril de 1522 com quatro barcos e em Pacém carregou pimenta, tendo chegado a Malaca em Julho. Nessa praça, Martim Afonso de Melo tomou conhecimento dos incidentes ocorridos no Verão do ano anterior em Cantão. Acautelado em Malaca, aí reforçou a sua armada e juntou o junco comandado por Duarte Coelho e o barco Santiago capitaneado por Ambrósio do Rego (que já tinha sido feitor e provedor da Fazenda em Malaca), os mesmos que abriram as hostilidades contra os chineses em 1521 nas águas em frente ao porto de Tunmen. Saiu a frota de Malaca no dia 10 de Julho de 1522 para a ilha de Tamau (Lantau). Levava Martim Afonso de Melo Coutinho ordem do Rei D. Manuel (que já tinha morrido a 13 de Dezembro de 1521 e agora era D. João III o Rei de Portugal) para ir “ao porto de Tamou, e procurando amizade com o rei daquela grande província, a China, edificar nele, ou noutro lugar que mais acomodado parecesse, uma fortaleza em que ele ficasse por capitão. Facilitava o negócio ter mandado Fernão Peres de Andrade um embaixador ao mesmo rei, que foi Tomé Pires; e não havia até então novas do que mal lhe saíra a jornada” segundo refere o Frei Luís de Sousa, nos Annaes de D. João III. A 4 de Agosto de 1522 chegou Martim Afonso de Melo “à ilha de Tamou (Tamão), e entrou no porto acompanhado de Diogo de Melo, e Pedro Homem, com tanta confiança e descuido, como se entrara na barra de Goa. E foi na pior conjunção que pudera ser, porque em terra nadavam os chineses encarniçados na prisão do embaixador Tomé Pires e seus companheiros, e muito mais no roubo de seu fato e fazenda, que era muita e boa; e no mar corria a costa uma armada grossa da mesma província, por ser monção em que acudiam àquele porto navios de várias nações a fazer seu trato.” E continuando com Frei Luís de Sousa: “Procurou Martim Afonso tomar língua da terra; mandou um barco e outro ao general da armada. Não lhe tornando nenhum, entendeu que estava tudo de guerra, e que fizera erro em se meter no porto. Determinou sair-se ao mar largo. Não esperavam mais os chineses que ver o movimento que fazia. Tanto que viram que os nossos se faziam à vela, foram sobre eles com todo seu poder, disparando muita artilharia. Era o partido muito desigual, e acrescentou a desigualdade um desastre; deu fogo na pólvora do navio de Diogo de Melo, voaram as cobertas para o céu, e foi toda a gente ao mar, uns mortos, outros nadando. Era Pedro Homem tão animoso que lhe não tolheu a vista de tantos inimigos mandar alguns homens no batel a ver se podia salvar Diogo de Mello e foi parte a falta deles para ser acometido com mais ousadia dos chineses, e com menos dificuldade entrado. Era Pedro Homem de corpo agigantado, e de forças e ânimo igual. Pelejou de maneira, que se o não acabara um tiro de fogo, contra quem não valem forças nem esforço, pudéramos dá-lo por vencedor de um exército inteiro. E isto é certo, que tiveram tanto que fazer os chineses com ele só, e com o seu navio, que isso valeu a Martim Afonso para não se entenderem com ele. Assim vendo que não tinha outro remédio, (Martim Afonso de Melo) se fez à vela para donde viera, e chegou a Malaca em meados de Outubro do mesmo ano; e daí se passou à Índia na monção. E deste modo se malogrou também a segunda embaixada portuguesa à China.” Annaes de D. João III. Jorge dos Santos Alves resume: “Nas duas semanas que se deteve naquela zona, os navios de Martim Afonso enfrentaram dezenas de juncos” e “incapazes de manter os adversários à distância sofreram a abordagem e então os combatentes portugueses foram literalmente submersos por vagas sucessivas de assaltantes.” “A armada chegou à China a 4 de Agosto de 1522, mas só se deteve aí 14 dias, retirando-se de seguida, deixando para trás dois navios afundados e um grande número de mortos, entre eles Diogo de Melo e Pero Homem.” Num ápice de um ano, tinham falhado as duas primeiras embaixadas portuguesas ao Império do Meio e os chineses vencido duas batalhas navais.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasCem mil anos. Quase [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]ento-me na varanda ampla, com um cigarro. Consolo breve e repetido. E penso nos cem mil anos que passaram desde que amei aquele homem. Pela primeira vez. Que um dia chegou terrível e partiu a minha vida em duas, antes e depois. Dor e esquecimento. E em cada um desses lugares – porque o são – eu. Metade de mim. E só quando no esquecimento se dilui a consciência de que o é, algo se reconstrói. Penso se valeu a pena querer morrer. Penso se valeu a pena esquecer para depois voltar a amar com o mesmo desespero. Porque o desespero tem um rosto particular para cada amor. Digo, para cada pessoa. Sou eu que sou desistente, ou, pelo contrário, uma amante que assume repetidamente o fardo doce de amar a sós…para depois percorrer o caminho de retorno à solidão a sós. Cem mil anos sem conseguir amar para sempre, esquecer para sempre, nem morrer como tal. Vem-me à memória o poema de Poe: “From childhood’s hour I have not been As others were; I have not seen As others saw; I could not bring From the same source I have not taken My sorrow; I could not awaken My heart to joy at the same tone; And all I loved, I loved alone.” E dele, a dizer, só que chegou e partiu bem antes. Envolto na suas trevas. Sento-me olhando a praça velha, a torre do relógio, e espero. Ele viria às seis. Disse. Mas às quatro já eu comecei a ser infeliz. Porque a minha espera sabe-se em vão. Olho para baixo demasiadas vezes para a descrença que tenho de o ver surgir de uma das esquinas. E eu sei que terei que esperar a lentidão do avanço perverso do tempo, para às seis começar a confirmar essa certeza incrédula. E só lá para as dez conseguirei deixar de esperar. Nesta, como em outras alturas da vida, seria melhor parar o relógio, e fingir que nada se sucede a nada. E ser, quanto muito apanhada dramaticamente no inesperado. E de cada vez que me debruço da varanda, sinto-me como Nástienca de Noites Brancas, inclinada da ponte sobre o Neva, a ser quanto muito encontrada pelo Sonhador. Lembro-me então que há muito não consulto o Livro de Areia, não me debruço sobre o acaso que é a alma desse pequeno oráculo que surgiu como tal, não sei se pelo meu fascínio pelas demandas, que parecem estabelecer linhas de um destino que não controlo e está traçado, se pelo desespero de respostas siderais ao meu vazio de orientação. A mala negra de viagem, jaz de entranhas em desalinho desde o primeiro dia, no sítio em que foi poisada. E dela extraio o pequeno livrinho de capa negra de cartolina mate, e folhas finas de um azul triste. E deslavado nas pontas, por efeito da luz. Amarelado, melhor dizendo. Concentro-me como sempre no amor que tenho a esse pequeno livro de um grande escritor. Abarco-o com as mãos quase enclavinhadas de expectativa, como sempre. Lembro que das últimas vezes que o fiz, e repetidamente, abri o livro das respostas, de olhos fechados como é do meu ritual, e apontei um dedo às cegas. Inacreditavelmente o meu dedo apontava um ponto cego numa página azul e vazia entre capítulos. Fazia o sentido que fazia. Reafirmado e confirmado. Nada a fazer. Hoje, o mesmo procedimento, e o oráculo foi firme na resposta: “Chamo-lhe Utopia”. Lendo o resto da frase: “voz grega que significa não existe um tal lugar”. Com assinatura: Quevedo. É mais uma vez uma página de início de capítulo. E este aparece um pouco acima daquele ponto preciso em que apontei o dedo com a força, já o disse, do desespero. E a este cabe o título: “Utopia de um homem que está cansado”. Borges nunca me falha na emoção de nele me encontrar. Na realidade há muitos anos que o leio assim. De forma errática. Falta-me o tempo. Aquele tempo de que ele me fala ao coração. A mistura dos tempos. E há um sabor particular nesta forma de abordar o texto, baralhando uma ordem que, sendo inevitável, em Borges parece apelar à subversão. A essa mecânica do olhar sem ordem pré-estabelecida, que se prende tanto com a sua explicação do tempo. A tarde fez-se noite entretanto, prolongada até ao limite que a melancolia devida àquele dia, permitiu. E de súbito, como um animal instintivo sem razão, levantei-me sem saber porquê naquele exacto instante e não antes ou ligeiramente depois, e entrei. Naquele quarto de hotel no centro de Praga, amplo, confortável, no seu requinte retro e no seu desgaste. Dependendo da luz e do olhar, mas sobretudo do fio de pensamento imediatamente anterior, propício a enlevar o espírito a um estar melancólico, decadente e nostálgico, ou a tombar sem apelo num completo desalento. A pensar no que não foi, que sendo para não ser, apesar de tudo determinou a específica tonalidade deste início de noite. Que não teve contudo a qualidade de ser perda. Porque, “Mesmo que os anos da (…) vida fossem três mil ou dez vezes três mil, (…) ninguém perde outra vida senão a que vive agora nem vive outra senão a que perde. O termo mais longo e o mais breve portanto são iguais; morrer é perder o presente, que é um lapso de tempo brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que ele não tem. (…) todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesmas órbitas” (Marco Aurélio). Passo pela mesa baixa logo imediatamente em frente à janela, e apalpo um fruto da taça decorativa – incrível como os frutos têm também esse pendor de adorno – um pêssego enorme e aveludado como era de esperar. O aroma intenso e inimitável, excepto talvez na tonalidade de uma pele, a remeter para a memória do perfume, que me lembra de súbito qualquer coisa para lá do alcançável, provavelmente na infância. E coloco-o de novo mansamente na taça. Sem apetite, por agora. O olhar sem se prender a nada, faz-me girar como em torno de um eixo, de forma algo automática e sem ânimo, e retomar a moldura da janela. Pensar naquele meu amor. E naquele meu amado, o que não é a mesma coisa. Aquele amor que, disse-o Borges na voz de Quevedo, é a utopia. Muitas emoções a somar, no mesmo dia em que visito Kafka no cemitério. Um pouco depois deito-me sobre a cama e quero morrer, mas simplesmente adormeço. Até aqui, ele o adjectivou, sem querer. Acordo lentamente como vinda de um lugar longínquo, e, desentranhada à força, retorno ao embalo agradavelmente preenchido pelo ruído do comboio em andamento. (E, do registo imaginado de duas vidas, vagamente contidas sua representação em duas páginas, que se deixam engolir pela ficção de duas linhas finais, chego ao ponto de onde parti). Aqui houve noite. Amanheceu.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasPlenitude e Nulificação [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]rimo Levi nasceu em 1919, no seio de uma família judia liberal, na cidade de Turim. Em 1934 entrou para o liceu onde foi aluno do filósofo Norberto Bobbio e do grande escritor Cesare Pavese. Primo Levi acabou os estudos secundários em 1937 e entrou para a Universidade de Turim, para estudar química, onde se formaria em 1941. Depois da fundação da República Social Italiana liderada por Mussolini, Levi juntou-se ao movimento da resistência, aos partisans portanto, designado Movimento Justiça e Liberdade. Primo Levi e muitos outros militantes da resistência, foram presos pelas milícias fascistas e enviados para o campo de detenção de Fossoli, perto de Modena; e em 1944 foram enviados para Auschwitz. Ao fim de onze meses terríveis Levi, tendo sobrevivido, foi libertado pelo Exército Vermelho. Dos 650 judeus italianos mandados para Auschwitz com Levi, apenas vinte sobreviveram. Assim que voltou à Itália, Levi começou a escrever sobre suas experiências no campo de concentração e sobre sua jornada de regresso a Itália. Desse trabalho ficaram dois clássicos: Se Isto é um Homem e A trégua. Publicou mais livros mas quase todos sem sucesso, salvo a obra O Sistema Periódico que foi considerado pela Academia de Londres o melhor livro de ciência alguma vez escrito. Levi morreu a 11 de Abril de 1987, depois de cair no vão da escada interna do prédio de três andares onde vivia, duvidando-se até hoje que não tenha sido suicídio. Sobre isso Elie Wiesel disse que “Primo Levi morreu em Auschwitz quarenta anos antes”. Plenitude e nulificação Se Isto é um Homem de Primo Levi, deve ler-se com o estômago vazio e numa fase da nossa existência marcada pelo equilíbrio, pois o conteúdo desta obra pode revolver as tripas e perturbar de uma forma irreversível. Eu, com total sinceridade, nem me preocupo que o conteúdo deste texto esteja relacionado com o que se passou no âmbito da Segunda Guerra Mundial e portanto no quadro das práticas nazis. Isso para mim seria reduzir o significado do texto assim como a sua exemplaridade universal. Isto passou-se vezes sem conta e infelizmente voltará a passar-se. Penso que Primo Levi, apesar de confessar que jamais perdoou aos alemães o que passou e sofreu no campo de concentração de Auschwitz, não descreveu a sua experiência como forma de retaliação ou vingança mas na perspectiva da denúncia de que os homens podem atentar contra a humanidade quer na pessoa dos outros quer na sua própria pessoa. Tenho tendência a ler o livro na sua dimensão ambivalente. O homem que ali, desde o título é equacionado e posto em causa, embora com juízos morais distintos, inequivocamente distintos, é o carrasco e a vítima. É difícil aceitar como sendo homem aquele que submete o Outro (homem) aos tratos a que foram submetidos nos campos de concentração, e não apenas os judeus, mas também os russos e os ciganos, por exemplo. E é ainda difícil continuar a ver um homem na vítima destruída de toda a sua humanidade; na vítima reduzida a coisa, coisa que não conta para nada, coisa inútil. É evidente que o adjectivo ‘inútil’ é neste caso redundante quando nos estamos a referir a pessoas pois uma pessoa não pode nem deve ser instrumentalizada, na medida em que o respeito pela pessoa humana reside na liberdade da sua finalidade própria, como muito bem diz o Imperativo Categórico de Kant na sua segunda formulação. De facto os juízos são muito diferentes neste nosso caso. Por um lado, um ser humano, no caso o judeu e em particular Primo Levi, é esvaziado da sua humanidade através da violência e do sofrimento que lhe é infligido e que pretende anulá-lo, reduzi-lo a coisa sem o mínimo valor e por outro lado, outro ser humano, no caso os alemães, mas não só como mostra Levi, auto esvazia-se da sua humanidade através da imoralidade radical dos seus actos. Neste segundo caso a nulificação advém paradoxalmente do exercício de uma plenitude, a plenitude absoluta do mal. Vale a pena transcrever este curtíssimo texto de Primo Levi e que antecede a narrativa propriamente dita. Sem mais palavras: Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas, Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama Quem não conhece paz Quem luta por meio pão Quem morre por um sim ou por um não. Considerai se isto é uma mulher, Sem cabelos e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frio o regaço Como uma rã no Inverno. Meditai que isto aconteceu: Recomendo-vos estas palavras. Esculpi-as no vosso coração Estando em casa andando pela rua, Ao deitar-vos e ao levantar-vos; Repeti-as aos vossos filhos. Ou então que desmorone a vossa casa, Que a doença vos entreve, Que os vossos filhos vos virem a cara. Parecem palavras bíblicas, mas são de uma outra dimensão. Esta mensagem é do homem e em nome do homem. Esta mensagem bem que podia encabeçar um dia um catecismo secular e humanista.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasBlack Narcissus, 1947, de Michael Powell e Emeric Pressburger O cinema britânico não é um cinema a que se tenha dedicado, nesta página, muita atenção. Não é por mal. Escreveram-se umas poucas de linhas sobre Don’t Look Now, 1973, de Nicholas Roeg, a pretexto de um fascínio pelo tema do desaparecimento que se estende a mais dois filmes, um italiano e um holandês, um texto inspirado por 12 Years A Slave, de Steve McQueen, 2013, que pouco mais é que a expressão de uma grande desilusão, um artigo a propósito de Caravaggio, de Derek Jarman, de 1986, nascido do gosto pelo tenebrismo, pela notação de uma teatralidade pouco própria ao cinema destas ilhas, e pela pintura de Caravaggio, de quem vira há pouco tempo um quadro em Hong Kong, e, finalmente, uma homenagem adolescente a The Long Good Friday, 1979, de John Mackenzie, um filme querido que está cada vez mais na moda porque hoje em dia é quase impossível fazer um filme de gangsters convincente e inovador. (À medida que escrevo estas linhas – à pressa – apercebo-me de que afinal se acumula um número não suspeitado de filmes). Juntam-se aos quatro filmes acima citados mais dois: The Fallen Idol, 1948, de Carol Reed, um típico thriller de fim de semana um pouco infantil (um dos muitos filmes britânicos sobre meninos ou rapazes*), e o modelar filme de rebeldia juvenil If, 1968, de Lindsay Anderson (a cujo This Sporting Life, de 1963, dedico um carinho difícil de ultrapassar). Não resisto a lembrar, mais uma vez, que olho sempre para o cinema das Ilhas Britânicas com uma grande dose de condescendência e uma dose ainda maior de afecto, diferente da profunda admiração e respeito (às vezes quase medo) que me causa o romântico cinema alemão, o densíssimo cinema russo, o poético cinema português ou o insuportavelmente mimado cinema francês – para citar apenas exemplos europeus. [quote_box_left]Sim, esta é uma saborosa história de freiras, erotismo e insanidade passado num cume dos Himalaias filmado por Jack Cardiff em cores cheias e sensuais[/quote_box_left] A relação que mantenho com o cinema britânico é tão pessoal que sobre muitos deles não escreveria. Prefiro guardá-los a expô-los, talvez porque as qualidades que neles noto não sejam tão universais como as que noto em outros filmes de outras origens. Penso em filmes como Kes, Naked, The Village of the Damned (1960), Peeping Tom, Goodbye Mr. Chips, Alfie, Distant Voices Still Lives, Withnail and I, Blue, The Loneliness of the Long Distance Runner, Don’t Look Now, The Browning Version, The Go Between, This Sporting Life, Billy Liar ou My Beautiful Laundrette. Quem os conhece imediatamente perceberá que são filmes provincianos ou domésticos e é por essa razão que me escuso a partilhá-los. Diverte-me também que alguns filmes, como Gandhi, Ryan´s Daughter ou Lawrence of Arabia sejam considerados grandes monumentos da história do cinema. (Deixo Greenaway e Kubrick de parte para não criar muita confusão). Tenho dificuldade em colocar algum filme britânico numa prateleira onde se juntem filmes como Ordet, Jalsaghar, L’Année dernière à Marienbad, Persona, Journal d’un curé de campagne, ou Chronik der Anna Magdalena Bach. Não seria justo. O filme que aqui me traz não é muito bom. Nem gosto muito dele. Mas de repente lembrei-me das suas cores vivas e da altitude a que tudo se passa e das suas improbabilidades: é Black Narcissus, 1947, de Michael Powell e Emeric Pressburger. Um filme de 1947 com uma música assim só pode causar nostalgias mas não é a nostalgia que me faz voltar a ele, é o deleite pela aceitação mole de um fantasismo popular. Tudo neste filme é improvável mas filmicamente aceitável. Um grupo de freiras ocupa um convento nos Himalaias, num lugar chamado Mopu. O jovem general chama-se Sabu e este é um filme de uma altura em que as pessoas sabiam menos sobre o mundo e, mais importante, tinham acesso a muito menos imagens do mundo e mais facilmente se deixavam enganar/encantar. A Superiora do convento, Irmã Clodagh, é muito bonita, e o plano em que pela primeira vez se vê o seu rosto não nos deixa duvidar dos seus poderes nem da sua beleza. É um plano maroto, porque não se filma assim uma freira. O responsável britânico junto do Senhor local, o agente, é um tal Mr. Dean, um homem jovem e sedutor cujo comportamento desbragado (e o modo estranho como se veste, por vezes apenas com uns calções curtos e reveladores) marca um contraste bem definido (isto é um filme para as massas, a história é clara, não contém ambiguidades) com o comportamento piedoso das Servas de Maria. Desde o início se desenha a inevitabilidade de um interesse amoroso nas alturas dos Himalaias, apimentado pelo pormenor do velho palácio que recebe as freiras ter sido anteriormente um serralho onde viviam, no luxo e no prazer de banhos (como mostram as pinturas que decoram as suas paredes), as mulheres do antigo Senhor local. O contraste entre a suposta piedade das irmãs e a história do lugar e o comportamento gingão do Sr. Dean tem paralelo na história do jovem General, Sabu. Black Narcissus é o nome do perfume usado pelo garboso e principesco jovem que, no ambiente piedoso do convento, e enquanto dedicado aluno, se deixa seduzir por uma voluptuosa plebeia chamada Kanchi (Jean Simmons como nunca, negra e sensualíssima). Sim, esta é uma saborosa história de freiras, erotismo e insanidade passado num cume dos Himalaias filmado por Jack Cardiff em cores cheias e sensuais. Se por vezes me lembro de Black Narcissus é por razões que se prendem com o berro das suas cores. Pouco mais se pode pedir mas deve lembrar-se quão excêntrico é este desígnio erótico na história do cinema britânico. Há, no cinema ocidental, muitos filmes com freiras – mais do que se poderia imaginar – e ao olhar para o olhar da Irmã Ruth, louco de amor e de ciúme, é impossível não pensar nas diabólicas freiras de Matka Joanna od Aniolow, de Jerzy Kawalerowicz. A loucura que os olhos da Irmã Ruth traem ao aproximar-se da Superiora do convento para a matar, traz um fim trágico à permanência das Irmãs em Mopu. No fim, fica-se com a sensação de que a aventura das freiras foi despropositada e que a interferência inglesa num complexo cultural completamente exótico não poderia senão dar este fruto amargo. Rejeitadas por um povo que elas não compreendem, insistentemente aflitas por um clima inclemente, o grupo de freiras da Ordem das Servas de Maria vê-se obrigado a deixar o antigo serralho. Sabu desiste de se elevar através da educação (o convento manteve, durante o período em que esteve aberto, uma escola e um hospício) para se dedicar a ocupações mais próximas e mais próprias à sua condição principesca: os deleites do amor e a prática da guerra. insistência que eu gosto de pensar que tem uma razão muito própria mas cuja definição não encontro. São Kes, Oliver!, Walkabout, Ratcatcher, Billy Elliot, The Loneliness of the Long Distance Runner, The Bill Douglas Trilogy, Oliver Twist, The Boy Who Turned Yellow, The Innocents, etc. No médio-oriente existe também um número muito substancial de filmes sobre rapazes.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasÀ distância de um tango [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]eis e vinte da tarde e finalmente aqui, como combinado. Um primeiro encontro, mesmo que seja apenas o deste ano, é sempre tocado daquela emoção que é uma mistura de nervosismo e ansiedade. Mesmo que seja o encontro romântico com o mar. Olho para o lado, onde poisei na areia o saco de praia e os sapatos de salto alto. E não consigo deixar de achar cómico, delicioso e um pouco simbólico. Eles vieram por falta de lembrança, na corrida de sempre antes de sair de casa, a antever os vários percursos que passam também por uma reunião e por fim, o mar. Vieram por engano, mas fazem todo sentido num primeiro encontro. E porque estou confinada por mais um ano, provavelmente, à impossibilidade daquilo que um certo novo-riquismo sofregamente consumista, instalado algures no nosso imaginário, designa por férias. Sair, viajar para longe. Ver coisas diferentes e invejáveis. Fugir à escala da existência quotidiana. Comprar coisas exóticas como prova de mundanidade. Um paradigma que só muito pontualmente, na verdade se cruza com o meu. Mas penso que saí de uma reunião de trabalho e estou quase sem transição, aqui. Frente ao mar. Com os pés numa areia clara e quente, e com a alma a desanuviar. E que aconteceu no espaço de um tango. Ouvido no caminho, se bem que repetidas vezes. Um – especial – que me enleva desde há meses. De Pugliese, só instrumental sem os fantasmas e os enganos de uma letra a contaminar a leitura dos sons. Este em particular, acabou por se tornar a partir de um momento qualquer, quase figurativo. Quase narrativo. E de tal forma o sentido que evoca, a paisagem que descreve e representa se impôs com rigor, que ficou para sempre o mesmo. O mesmo sentido, a mesma imagem quase fílmica e o mesmo tango. Ouvido obcessivamente. Mas não pode apanhar-me distraída. Preciso concentrar-me para ver. E é íntimo, o mais íntimo que pode ser na memória de um encontro de amor. Êxtase e lamento. Ficou. Mas hoje, este encontro com o mar. Tão fácil. E longe da multidão imaginada, silencioso o auditório de areia, no local que escolhi. Só vozes dispersas e longínquas, e o som do vento, não forte, mas suavemente audível. A maré a começar a subir e aquelas nuvens muito ténues, muito fininhas como um véu espraiado em largos farrapos, interrompidos por todo aquele azul, que hoje são dois. Um entre elas e outro em redor. E pensei, antes de começar a esvaziar este meu saquinho de tormentos de hoje, como ossinhos de colecção, como tudo isto assim, e uma coisa de nada, é um privilégio. Que esquecemos de incluir nos paradigmas modernos de qualidade de vida. Porque é o vizinho da porta ao lado. Pequenos prazeres, à beira dos quais uma classe média, seja lá o que isso é, sempre esteve, mas sempre com os olhos postos lá mais adiante, num horizonte que viu fugir para parte incerta há uns tempos. Para não falar dos verdadeiramente pobres. E que, amargurada, frustrada relativamente a muitos sonhos que encarava como instalados no rol das possibilidades, não consegue por vezes desmontar e afinar pelas reais e restringidas possibilidades. Não. Não tenho nada a criticar aos sonhos dos outros, mesmo se forem megalómanos, frívolos por vezes e centrados em algum exibicionismo. O direito a ter opções é inalienável. Mas olho para este meu fim de tarde, e sinto-o como se de um luxo se tratasse. Porque vivo numa cidade alegremente espraiada ao lado de um grande rio e com uma costa de mar à distância de um tango. E nesse novo-riquismo de que falava há também o inflacionamento dos sentidos. Do sentido lúdico, como somatório de todos os outros. O deslumbramento depois da contenção carente em que se viveu. Um certo novo-riquismo em que o pós 25 de Abril, e mais tarde a entrada na EU, nos precipitou, esperançosos e confiadamente, em paradigmas complexos. E um dia, na frustração. E não se trata, de todo, de fazer a crítica da ambição ou o elogio da mediocridade. Sem transição, lembro-me daquele género muito particular do cinema português, sobretudo nos anos 40 e 50. Esse cinema conformado, quietinho e bem comportado, a funcionar perfeitamente de acordo com a política do Estado Novo, e sobretudo da “política do espírito”, curiosa expressão sinónima da censura. O retrato de um “bom povo”, expressão de má memória e tão cheia de significado. Porque muito compostinho. Os pobres muito honrados, alegres e infantis, sempre preocupados com pequenas coisas fúteis, porque das outras não se podia falar. Em que tudo acaba sempre a cantar. Naquelas vozes trinadinhas. O povo a cantar como rouxinol a propósito de tudo e de nada, feliz com a sua simplicidade e a sua ração diária de alpista. Sem outros problemas que os sentimentais. Aquelas comédias de bairro, com o António Silva e o Ribeirinho e Vasco Santana. E que eu adoro, claro. São encantadoras e fazem-nos rir ainda e sempre. Mas sem esquecer o que significavam à época em termos de falta de liberdade de outros vôos no cinema – que os houve, mas se diluíram – e de expressão, mesmo em termos artísticos. E o cinema é perigoso porque imita demasiado bem a vida. Mas este era o cinema acarinhado e patrocinado pelo estado em função de géneros bem definidos, como por exemplo, nas palavras de António Ferro, director do S.N.I.: “quando se tratar de comédias amáveis ou até de bons costumes populares, mas não explorem o que há ainda de atrasado, de grosseiro, na vida das nossas ruas ou no porte de certas camadas sociais”. Volto lá atrás ao momento em que me lembrei desta ideia de povo colorido e parcial. Não é o contentarmo-nos com as coisas pequenas que eventualmente temos ao nosso alcance, à falta de melhor, mas sim o isolar essas coisas do facto de, de momento não haver mais opções, e dar-lhes o valor absoluto que elas têm. É não remar contra a maré. Melhor dizendo, não remar a favor da infelicidade. Desta falta de horizontes um pouco acabrunhante, que nos amarfanha, por vezes demais. Que desgasta a energia para continuar a ter um olhar lúcido não só sobre a necessidade de se ser crítico e inconformado, sobre a validade de protestar e ter a noção do que falta em termos de opções, mas também sobre a forma como isso nos centra por vezes num desalento, em que sem darmos conta estamos a alimentar a auto-piedade. Ou então fruir e limpar a alma daquele tipo de mágoa alienante. Enquanto a angústia e as ondas vão e vêm, folga a alma e os sentidos. Concentro-me de novo só no mar. Quando vem a onda. A subida agora nítida da maré. Há aqui um desafio neste meu olhar já mais apaziguado. Chega até mim ou não, antes que parta. É um pequeno braço de ferro. Não quero ceder à ansiedade recuando de imediato e mais uma vez. Já recuei a toalha uma vez porque ao chegar se estava ainda naquele breve romanço entre marés. E medi mal a distância de conforto. E concentro-me depois no Céu. O azul do céu, em dois azuis, e o do mar que é esverdeado mais para cá. E o azul da minha alma in deep blue. E lembro-me que afinal, do azul, do que era para dizer, tudo ficou para dizer mais tarde. Noutras páginas. Mas ainda assim esteve sempre ali. Todo o tempo subliminarmente na minha disposição, e a ocupar todo o espaço e toda a consciência como um íman. E disponho-me a voltar para casa, para tudo e para perscrutar mais tarde o efeito desta limpeza desintoxicante que já conheço de outras marés. [quote_box_left]E lembro-me de que digo às vezes que a vida não está para saltos altos. Mas está. Às vezes. À distância de um tango[/quote_box_left] Mesmo porque não vim para construir castelos de areia. Ou castelos na areia, como dantes e como, sobretudo na infância, quando eram reais, mais sólidos que os outros e como tal pela sua natureza, os que mais inevitavelmente se desfaziam na primeira onda. Mas é bom saber que podemos fazê-los e não que este é um país em que todos os projectos são de areia e vão pela água abaixo. Limpo os dedinhos destes pés que tanto me aturam e arrastam por aí, quantas vezes com a alma a puxar para trás. Tentando não ser demasiado exigente com a areia, por esquecer o prazer que foi hoje o primeiro contacto com ela, fina e quente, substituído pela contrariedade de a levar para casa. E calço os tais sapatos de salto alto, que vieram por engano. Três páginas de letra miudinha e alguns cigarros depois, são já mais de oito horas. Volto ao carro, ao meu tango secreto e à marginal apinhada agora. Acrescento estas linhas sobre o volante, num semáforo, que abre e fecha sem desenvolvimentos, e enrolo um cigarro. É o elogio do pequenino do meu dia. Deixo a Riviera para trás, rumo a casa. Passada a curva do Mónaco, tiro os óculos porque me lembro de que vou com o sol nas costas. E, de súbito, como sempre, tudo à minha direita ficou ainda mais azul. Penso distraidamente se não deveria ser à minha esquerda, mas vou vagamente para leste…E lembro-me de que digo às vezes que a vida não está para saltos altos. Mas está. Às vezes. À distância de um tango.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA embaixada portuguesa em Pequim [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]em ter sido formalmente recebida em Nanjing pelo Imperador Zhengde (1505-21), a primeira Embaixada portuguesa à China seguiu para a capital Beijing por ordem do soberano chinês, onde se deveria realizar o acto protocolar da entrega dos presentes e da carta enviada pelo Rei de Portugal D. Manuel. Tomé Pires, que escrevera sobre a China sem a ter visitado, teria nesse momento um manancial de informações para aditar na sua Suma Oriental após ter percorrido Tamão (cuja localização tem adeptos na hoje conhecida por Ilha Lin Tin ou, segundo as actuais informações baseadas em documentação chinesa, a Ilha de Dayushan, actual Lantau), Nantó (Nantou, 南头, pequena vila na área de Nanshan, hoje pertencente a Shenzhen), Cantão (Guangzhou, 广州), Nanhsiung (Nanxiong南雄), Passo de Meiling (Meiguan, 梅岭关), Nan’an (南康), Kanchou (Ganzhou 赣州), Kian (Ji’an 吉安), Linkiang (Linjiang临江), Nankang (Nanchang, 南昌) e navegado do Rio Zhang (章江) ao Kuangkiang (Ganjiang 赣江), na cidade de Jiujiang (Kiukiang, 九江) desaguou no Rio Yangtzé (Changjiang, 长江) por onde seguiu para Nanquim (Nanjing, 南京, nessa altura denominada Yingtian) e onde o Imperador chinês se encontrava. A outra metade do percurso que a Tomé Pires faltava realizar foi feito pelo Grande Canal (DaYunHe, 大运河) seguindo de barco a Embaixada até à capital Pequim (Beijing, 北京), onde chegou no ano de 1520, ou em Janeiro de 1521. É de salientar que os historiadores de Macau como Marques Pereira, Luís Gonzaga Gomes e Beatriz Basto da Silva referem a data de 11 de Janeiro de 1521 para a entrada em Pequim do primeiro Embaixador de Portugal à China. Já Rui Loureiro propõe ter ocorrido em finais de 1520, ou talvez como diz Paul Pelliot, em Agosto de 1520, pois as fontes chinesas afirmam que a embaixada portuguesa permaneceu em Pequim quase um ano. Armando Cortesão diz: “Não consta ao certo quando Pires partiu de Nanquim, nem quando chegou a Pequim. Sabe-se apenas que, depois de ter navegado mais de mil quilómetros ao longo do Grande Canal, já se encontrava na capital quando o Imperador lá chegou, em Fevereiro de 1521”. Há também informações contraditórias acerca de ter Tomé Pires vindo de Nanjing integrado, ou não, na comitiva imperial durante a viagem para Beijing. No Revisitar os Primórdios de Macau a nota 92 refere: “Tomé Pires chegou, na comitiva imperial, a 18 de Janeiro de 1521”. Já Rui Loureiro revela: “O imperador chinês partira de Nanquim na mesma altura que a embaixada, mas detivera-se numa pequena cidade dos arredores de Pequim, onde assistiu à execução do príncipe revoltado: ” Cartas dos Cativos de Cantão. Assim, em Janeiro de 1521, o Imperador Zhengde encontrava-se em Tongzhou, a vinte quilómetros para Leste do Palácio Imperial em Beijing e foi durante a estadia nesta pequena localidade que recebeu vários memorandos sobre os portugueses. Memorandos contra os portugueses Onde terá o Imperador Zhengde recebido os memorandos, é ponto onde não há consenso pois, Rui Loureiro refere que o imperador os recebeu (em Tongzhou) numa pequena cidade dos arredores de Pequim e Armando Cortesão diz que o Imperador recebeu em Nanquim o embaixador do Rei de Malaca, Mamude Xá “e a carta que trazia. Ao mesmo tempo, chegou-lhe outra carta de dois mandarins de Pequim e ainda outra dos de Antão, acumulando queixas contra os portugueses, principalmente por causa dos desmandos de Simão de Andrade. Não admira, por isso, que a embaixada portuguesa fosse mandada seguir para Pequim sem ser recebida.” Malaca desde 1409 pusera-se debaixo da protecção dos imperadores chineses da dinastia Ming para conter os ataques do reino de Sião. Assim, “quando os portugueses a tomaram por Afonso de Albuquerque, em 1511, Malaca era tributária do Imperador da China. O Rei de Malaca, Mamude Xá, que fugiu quando da conquista da cidade, ficou sempre inimigo figadal dos portugueses e enviou um embaixador, Tuam Hasam Mudeliar (o , de Barros) a queixar-se ao seu suserano contra os portugueses, , que tinham tomado o seu reino, e a pedir o auxílio que, como vassalo, lhe era devido” A. Cortesão. Rui Loureiro complementa: “Alegando a sua condição formal de tributário do Celeste Império, o soberano malaio solicitava ajuda contra a ocupação portuguesa do seu estado: (referido nas Cartas dos Cativos de Cantão). Ao mesmo tempo, tentava lançar o descrédito sobre a embaixada lusitana, alegando que Tomé Pires e que os portugueses eram encapotados, que vinham tentar ocupar o território chinês, tal como anteriormente tinham conquistado Malaca”. Para além da pressão dos mensageiros malaios na corte imperial, que narravam histórias terríveis sobre os portugueses, outros dois memorandos, de teor muito semelhante, foram enviados de Beijing e de Guangzhou ao imperador e vinham reforçar o mau carácter dos portugueses que andavam pela costa Sul da China. Como o memorando de Beijing traz o relatório das queixas enviadas de Cantão, ficamo-nos assim pelo que veio dessa metrópole meridional acerca do comportamento abusivo dos folangjis da expedição de Simão de Andrade. “Os funcionários cantonenses descreviam todas as arbitrariedades cometidas pelos portugueses, desde a recusa de pagarem direitos alfandegários até à construção não autorizada de uma fortaleza, passando pela agressão a um mandarim e pelo rapto de crianças.” E continuando com Rui Loureiro, sugeriam “ao imperador que não recebesse a missão chefiada por Tomé Pires, pois os ocidentais, sob disfarce de embaixada legítima, vinham apenas , para depois as ocuparem.” Tais memorandos parecem não ter surtido os efeitos esperados no Imperador Zhengde, pois adoptou uma posição conciliadora, atribuindo os conflitos a segundo Cristóvão Vieira, nas Cartas dos Cativos de Cantão. Ambiente desfavorável em Pequim Enquanto a Embaixada de Tomé Pires esperava em Beijing pelo regresso do Imperador Zhengde, que apenas ocorreu em Fevereiro de 1521, segundo o que refere Luís de Albuquerque: “o ambiente criado na corte para a recepção do embaixador não seria, por consequência, dos mais favoráveis. Para o agravar surgiram ainda mais alguns equívocos e o presente deve ter sido considerado mesquinho. Já A. Cortesão diz: “Quando o Imperador chegou à capital, Pires entregou na corte três cartas de que era portador: uma do Rei D. Manuel, para ser aberta apenas na presença do Imperador, outra de Fernão Peres de Andrade e a terceira dos governadores de Cantão. Esta última tinha sido escrita quando os Governadores estavam ainda sob a boa impressão deixada por Andrade. Mas a carta deste (Fernão Peres de Andrade) foi, em Cantão, traduzida pelos intérpretes chineses, segundo o estilo da terra, os quais, entre outras coisas, escreveram que o Rei de Portugal desejava ser vassalo do Rei da China, etc. Tomé Pires nada sabia, claro está, do teor da fantástica tradução. Quando a carta selada de D. Manuel foi aberta no palácio imperial e traduzida, verificou-se que o seu espírito era, naturalmente, por completo diferente do que os intérpretes tinham escrito em nome de Andrade. Montalto de Jesus explica: “Acostumada como estava, a corte de Pequim, a receber apenas embaixadas tributárias, o teor altivo da carta de D. Manuel foi considerado derrogatório para com o Filho do Céu. Outra carta de Fernão Peres de Andrade foi falseada pelos intérpretes em Cantão e transformada numa petição de vassalo”. E continuando com A. Cortesão: “Os intérpretes aceitaram a responsabilidade pela deturpação, explicando que assim haviam feito com o melhor intuito, para adaptá-la ao costume da terra. Foram presos, tendo sido aberto um inquérito”. Montalto refere ainda: “uma nota do Vice-Rei de Cantão informava que Andrade pedira autorização para estabelecer uma feitoria em Cantão e que, difíceis de contentar, os conquistadores de Malaca eram muito presunçosos no tocante a honrarias. O conselho imperial, reparando na disparidade dos termos destas cartas, declarou Pires um impostor e um espião”, ficando “os membros da Embaixada proibidos de se aproximar do Palácio Imperial para fazer a costumada reverência” como anota Cortesão e com ele continuando: “Cristóvão Vieira descreve essa prática imposta aos embaixadores que iam à corte chinesa: . O Imperador ter desculpado os portugueses não caiu bem aos já “irritados mandarins, e mais acusações eram trazidas contra Pires e seus companheiros. E se algumas delas eram verosímeis – como o caso sucedido a uma mandarim que as autoridades de Cantão, em 1520, mandaram a Tamão cobrar quaisquer direitos dos portugueses e que, segundo Vieira, depois se queixou de (isto é, os portugueses) – outras eram puramente fantásticas. Barros conclui assim o capítulo da Década III, em que se refere a tudo isto: . T’ien-Tsê Chang, escritor chinês moderno, conta que alguns historiadores chineses de então chegam ao ponto de dar pormenores do preço pago pelas crianças e até do processo usado pelos portugueses para as assar” Armando Cortesão. Morte do Imperador Faleceu em 20 de Abril de 1521 o ainda jovem Imperador Zheng De, que de nascença se chamava Zhu Houzhao e ficou com o nome póstumo de Yi Di e o nome de Templo Wu Zong (1505-21). Nascido em 26 de Outubro de 1491 era o filho mais velho do Imperador Hongzhi e como bom estudante, esperava-se que se tornasse um brilhante soberano. Subiu ao trono a 19 de Junho de 1505, tendo como nome de Era, Correcta Virtude. Sendo do signo astrológico do zodíaco chinês Porco, preferiu delegar aos eunucos do palácio a governação do país e viver ‘liberta-mente’ nos seus palácios fora da Cidade Proibida (Gugong), assim como andar em constantes viagens pelo país. Gostava de conviver com estrangeiros e convidou muitos muçulmanos para o servirem como conselheiros. Demonstrou ser um bom militar, pois pessoalmente comandou uma expedição contra os mongóis e vencendo-os, estes durante muitos anos deixaram de invadir as fronteiras Norte da China. Na viagem de regresso de Nanjing, após a sua campanha contra o revoltoso Príncipe de Ning, o Imperador encontrando-se no barco a lançar uma rede de pesca, caiu à água do Grande Canal e adoeceu. Ainda passou por Tongzhou, onde julgou e sentenciou à morte o rebelde Zhu Chenhao, a quem tinha vencido em Nanjing. Três meses após a sua chegada a Beijing, o Imperador faleceu de doença contraída pelas águas do Grande Canal, havendo quem diga ter sido envenenado, pois era de fácil recuperação essa maleita. Segundo o costume, em virtude do falecimento do Imperador Zhengde (正德), a embaixada de Tomé Pires “foi convidada a sair da capital, para seguir para Cantão, onde deveria aguardar a boa ou má disposição do novo imperador em o receber” Luís Gonzaga Gomes. Como todos os filhos do Imperador Zheng De não tinham passado da tenra idade, o seu sucessor foi o primo Zhu Houcong, que governou a China entre 1521 e 1566 como Imperador Jiajing (1522-66) e seguindo com A. Cortesão: “Shih-tsung (Jiajing) contava apenas catorze anos. Os mandarins passaram então a dominar em absoluto. Da pouca conta em que os portugueses eram tidos nos diz Vieira, ao explicar a dureza com que foram recebidos em Pequim e o mais que depois lhes sucedeu: . Alguns dos mandarins declararam que a Embaixada não era genuína e desejavam que Pires e seus companheiros morressem como espiões. Salvou-os nessa ocasião o privilégio diplomático. Mas o intérprete principal Hoja Yasan (desmascarado como falso embaixador) e os outros quatro foram .” Montalto de Jesus diz: “O imperador morreu durante esta crítica conjuntura e o seu sucessor, anulando a intenção da corte de executar Pires”, foi a Embaixada “então mandada sair da capital e regressar a Cantão, com os presentes que trouxera para o Imperador, os quais foram recusados. Pires e os seus companheiros partiram de Pequim em 22 de Maio e chegaram a Cantão em 22 de Setembro de 1521, tendo durante a viagem falecido Francisco de Budoia” A. Cortesão, mas a data de partida de Beijing registada em Wuzong Shilu (Crónica Verídica do Imperador Wuzong) é 22 de Abril, como no Revisitar os primórdios de Macau é explicado, sendo também daí o que é dito dentro dos parênteses do parágrafo anterior. “Ao mesmo tempo, foram de Pequim mandadas instruções, por via rápida, para que, quando o Embaixador e os seus companheiros chegassem a Cantão, fossem presos, e que só depois dos portugueses terem evacuado Malaca e esta sido entregue ao seu legítimo rei, vassalo do Imperador da China, seriam aqueles postos em liberdade” A. Cortesão. Durante o período em que a Embaixada de Tomé Pires viajava de Guangzhou para Nanjing e daí para Beijing, até ao seu regresso a Guangzhou, muita coisa ia acontecendo na costa Sul da China. A imagem de pirata que Simão de Andrade aí deixara e o não acatar, pelos mercadores portugueses, a suspensão obrigatória de todas as actividades após a morte do Imperador, levou a que em Setembro de 1521 ocorresse ao largo do porto de Tunmen a primeira batalha naval entre portugueses e os chineses.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA nau catrineta [dropcap style=’circle’]L[/dropcap]onge vão os tempos em que a língua falada era um legado de fábulas e um canto em verso que se soletrava em forma de uma Constituição oral das regras de um país, de maneira a produzir uma receptividade comunicante de unidade e completude de esfera onírica, no tempo da Barcarolas, dos Cânticos, dos Trovadores, das Orações e das Trovas. Ela articulava-se para produzir efeitos, desejar bênçãos, aperfeiçoar a melodia interna, profetizar e unir o inconsciente colectivo. Tudo isto foi a um tempo bem distinto da linguagem do agora, com ritmos e ciclos outros, que dava ao Verbo o papel de profecia. A cultura era também esta maneira de oralidade imensamente poética que merece ser vista com alguma consciência mais precisa quando falamos deste género literário. Vivemos hoje o fim de todo este ciclo: a língua não serve mais este propósito ou estes vários propósitos, tendo, na era da comunicação, sido práticamente abolida a sua imanência. Continuamos arduamente a produzir cultura, ferreamente empenhados em compreender tudo de todas as maneiras, a falar como nunca, a produzir sons e a jogar todos os verbos de forma a comunicar sempre mais, não se sabendo exactamente o quê. Com o recurso ao pensamento individual todas as formas de relato são agora possíveis, todas as misturas argumentativas, todos os diálogos, todas as línguas, toda a verificação automática da sua norma, enfim, querer ser compreendido por meio da palavra tornou-se uma obsessão ilimitada e quase perturbadora. Informar, passar a mensagem, factualizar, argumentar, dizer, desdizer, tudo isso os discursos abusivos e a comunicação aceleram numa vertigem sem paralelo. Estamos então no tempo de todos os recursos linguísticos e fonadores, pois que o Homem é o resultado da linguagem e o seu cérebro vai-se desocultando no exercício dela, de forma quantas vezes imprevisível , como no tempo em que o cérebro ainda possuía alucinações auditivas e os patriarcas, xamãs, profetas as ouviam a partir do seu lóbulo frontal e escreviam e ditavam coisas que ainda agora nos deleitamos e curvamos de pura admiração. Ora os seus cérebros estavam formados para outros raios comunicantes sem dúvida, porque hoje, não ouvimos mais essas “vozes”, nem elas nos ditam coisa nenhuma. Ficamos a sós uns com os outros a falar, por vezes mesmo a sós, outras porque nos disseram que não podemos estar calados, que todos temos uma palavra a dizer e assim por diante. As “vozes” hoje são ouvidas por escribas de editoras que lhes dita um outro, tão humano quanto ele, para relatar algo, que certamente vende e enche o mundo de papel, histórias essas quase sempre plausíveis, chamando para o poder humano aquele que algures tinham Deus e outras sublimes forças. Um escriba já não é o homem com acesso ao vocabulário e ao sinais gráficos mas um ente que escrevinha o que um outro pensa muitas vezes de si mesmo. Esta total separação de fontes ordenou que todos tentassem escrever a sua história em moldes e formas unitárias, tiradas de todos, para que todos possam participar na vida uns dos outros em depoimento humano tão falível quanto as narrativas não batem certo. Os Faraós, que tinham linguagens e formas de lucubração metodológica talvez pouco desenvoltas e não estariam propriamente a falar com o redactor, este teria também que saber interpretar a voz de um “deus”. Não se sabe muito bem o que é que os Faraós disseram, a não ser aquele, o Aqueneton, que resolveu acabar com a casta sacerdotal, talvez demasiado palavrosa para as suas ideias monoteístas. Mas havia o labor do escriba! A dialéctica, essa arte da oratória, cresceu não como factualidade de enumerar coisas, mas tão somente pela “beauté do verbe”. Falar era uma arte maior, que não tinha de contar factos ou dizer o que se sabia. Era a pura interpretação inteligente da maneira de argumentar sem um sentido pré-determinado: poder-se-ia falar da coisa falada e renunciar a ela num atalho da própria matéria verbal. Devia ser delicioso. Ajudava a dar ao pensamento a antecipação de uma acção, a percorrer memorandos de informação, que são cultura armazenada. Aliás, as religiões monoteístas aplicaram brilhantemente estes princípios nas orações, nas preces, nos salmos e na retórica que transmitiam com bases sólidas das fontes linguísticas que foram o latim e o grego. Esqueçamos tudo isto, porque o que não se exercita se esquece, claro, e vamos para o hoje do mundo falante. Nada disto parece sequer fazer sentido, nós os detentores da informação estamos tão nus destas verdades como despidos face a nós mesmos, as línguas são agora ferramentas ao serviço da nossa escalada de solidões várias, onde não vem colmatar nenhuma esfera desprotegida e direi até grandiosa. O que se disse hoje, amanhã diz-se de novo de outra maneira para assim nos dar a sensação que dizemos coisas novas. Meia perversa meia grotesca, serve-se dos acontecimentos ao redor (ao redor agora é a Terra toda) dando o brilho artificial de que quase sempre a própria informação se reveste. Há o lado monocórdico, que tanto fala da morte como da vida, como do sexo como da paz, com a mesma inexpressiva dose informática, de modo que tudo se resume a acontecimentos no grande entulho das coisas sensíveis, factuais, os responsos a estas várias desgraças há muito que foram esquecidas e a felicidade é tudo quanto se almeja. Só que para ela há códigos que não lembram ao diabo, erguidos como grandes paragonas, tão politicamente correctos que ninguém ousa desafiar. Caso o faça, fica morto porque, quem não fala assim, não está do lado certo da jornada. Olhando apenas o factor som do aparelho fonador, descobriu-se que a voz feminina pode provocar depressão nos homens e que pode estar associada ao grande número de agressões por parte destes. É uma conclusão que aponta para um total reaccionarismo mas que não deixa de ser interessante, porque corrobora com a ideia de Lou Salomé quando afirmou que a loucura afecta o desregramento vocabular na mulher enquanto que nos homens lhes retrai o dom da palavra, ou seja, a um provoca autismo, a outro a obsessão linguística. Estou certa que o futuro ditará novas abordagens no fenómeno comunicante, outros órgãos que ainda desconhecemos se irão aos poucos desenvolver deste aparelho, quiçá ainda rudimentar, se ampliarão outros, com novos símbolos gráficos como acesso à telepatia, onde o poder comunicante se desenvolverá como hoje só é possível nas máquinas de sonhar e que todo este ruído a que fomos sujeitos findará, porque não foi afinal por causa dele que fomos enquanto criaturas melhor compreendidos. Aliás, nunca os afectos recuaram tanto perante a exigência de os analisar, nunca tantos se entenderam tão mal. Aqueles que nos dizem o que é essencial saber, reunir-se-ão na nossa esfera de empatias melhoradas, sem longe e sem distância, como um Fernão Capelo Gaivota, para nos sussurrarem ao ouvido o seu precioso entendimento e dele nascerá a esfera de um conhecimento que amplia a linguagem em muitos saberes. Levados pelas vozes de uma esquecida Nau Catrineta talvez as histórias sejam então de pasmar. Que queres então, meu gajeiro? Que alvissaras te hei-de dar? Quero só a tua alma para comigo levar. Pegou-lhe um anjo nos braços, não o deixou afogar. Deu um estouro o demónio. E sossegou logo o mar.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO espírito do Renascimento [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]arguerite Yourcenar (1903-1987), de seu nome, Marguerite de Crayencour, nasceu em Bruxelas a 8 de Junho de 1903, de pai francês e mãe belga. É uma escritora francesa naturalizada americana em 1947, autora de romances, contos e de obras autobiográficas, foi também poeta, tradutora, ensaísta e crítica literária. Da sua vasta obra que a autora confessa ter sido escrita “com um pé na erudição e outro na magia”, constam títulos como As Memória de Adriano, A Obra ao Negro, O Tempo, Esse Grande Escultor, Contos Orientais, O Golpe de Misericórdia – obra adaptada ao cinema pelo realizador alemão Volker Schlöndorff, Mishima ou a Visão do Vazio, entre outros. Considerada como a última dos Humanistas, Marguerite Yourcenar foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa, a 6 de Março de 1980. Morre na Ilha dos Montes Desertos, no Maine (Estados Unidos) a 17 de Dezembro de 1987, com 84 anos. Marguerite Yourcenar foi educada de forma privada e de maneira excepcional: lia Jean Racine com oito anos de idade, e o seu pai ensinou-lhe latim e grego em tenra idade. Em 1929, publicou o seu primeiro romance, Alexis ou o Tratado do Vão Combate influenciada pela leitura de Gide, escrito num estilo muito rigoroso e clássico. Trata-se de uma longa carta em que um homem, músico de largo reconhecimento, confessa à sua esposa a sua homossexualidade e a decisão de a deixar. Na década de 1930, escreve e publica Fogos (1936), composto por textos de inspiração mitológica e religiosa, em que a autora trata de diversas formas o tema do desespero amoroso e dos sofrimentos sentimentais, tema que foi retomado mais tarde em Le Coup de grâce (1939), romance curto sobre um triângulo amoroso durante a guerra russo-polaca de 1920. Em 1939, publicou os Contos Orientais a partir da experiência das suas viagens pelo Oriente. Em 1939, dez anos depois da morte de seu pai e com a Europa conturbada pela proximidade da Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos, onde passou o resto de sua vida, obtendo a cidadania em 1947 e ensinando literatura francesa até 1949. As suas Mémoires d´Hadrien (Memórias de Adriano), de 1951, tornaram-na internacionalmente conhecida. Este sucesso seria confirmado com L’Œuvre au Noir (A Obra em Negro, 1968), uma biografia de um herói do século XVI, chamado Zénon, atraído pelo hermetismo e a ciência. Publicou ainda poemas, ensaios (Sous bénéfice d’inventaire, 1978) e memórias (Arquivos do Norte, 1977), manifestando uma atracção pela Grécia e pelo misticismo oriental patente em trabalhos como Mishima ou A Visão do Vazio (1981) e Como a Água que Corre (1982). O espírito do Renascimento A Obra ao Negro é o testemunho histórico de uma época – estamos no início do Século XVI – onde se cruzam alguns obscurantismos medievais e os conflitos dos tempos modernos, com a afirmação de novos regimes e Estados, perdidos em constantes guerras e conflitos. A visão de um Renascimento de luz é abafada, nesta obra de Yourcenar pelos conflitos em torno da questão religiosa, fruto da reforma protestante e da contra-reforma. Em A Obra ao Negro acompanhamos a vida de Zenão, médico, filósofo e alquimista, quando este, após levar uma vida inspirada no hedonismo, cultivada por uma profunda reflexão interior, temperada contudo pelo espírito pragmático do Renascimento, se estabelece em Bruges, sua cidade natal. Valendo-se de uma falsa identidade (a do médico Sebastião Theus), é perseguido pela Inquisição, e acaba por sofrer junto da mesa do Santo Ofício a condenação à morte. Tal como Sócrates, Zenão, na sua última expressão de liberdade, escolhe o suicídio em vez da dolorosa morte pelo fogo. Yourcenar retrata de modo ímpar diversos aspectos da história, da sociedade e da vida durante o Renascimento. No grande palco de A Obra ao Negro assistimos às rivalidades entre Francisco I, rei de França e de Carlos V, soberano do Sacro Império Romano Germânico, aos longos debates do Concílio de Trento, mas também aos conflitos nascentes entre os trabalhadores das tradicionais tecelagens flamengas com a chegada das inovações técnicas, e logo na primeira linha aos conflitos religiosos após o cisma que causou a Reforma e a importância da Inquisição cujo poder, à época, extrapolava a esfera espiritual, estabelecendo alianças temporais capazes de decidir o destino das sociedades. Convém notar que a História não é aqui uma tela de fundo, onde Yourcenar faz viver Zenão, o seu protagonista. Não é também uma mera ilustração da época, mas o próprio mundo em que age e pensa Zenão. Yourcenar explicita muito do esforço por ela empreendido para dar vida e cor a Zenão, na “Nota da Autora” que se encontra no fim do romance: “[…] para dar à sua personagem fictícia aquela realidade específica, condicionada pelo tempo e o lugar, sem o que o ‘romance histórico’ não passa de um baile de máscaras bem ou mal sucedido, [a romancista] não teve à sua disposição senão factos e datas da vida passada, isto é, a História” (p.319).
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasSchoenberg e Bartók, por exemplo [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]alou-se aqui das óperas que têm sido representadas em Macau ao longo da história do F.I.M.M. Adiantou-se que seria prático à iluminação dos espíritos e ao conforto das almas apresentar outro tipo de repertório. Para lá do F.I.M.M., integrado no Festival de Artes ou na temporada de espectáculos do C.C.M. poder-se-ia optar por mostrar ao público algumas óperas do século XX ou XXI. Lembrei-me de Erwartung e de O Castelo do Barba Azul, respectivamente de Schoenberg e Bartók, porque existe um artigo de Edward Said sobre um programa duplo, em Nova Iorque, que incluiu estas duas óperas – arranjo que não é invulgar uma vez que são sensivelmente da mesma época e exprimem um universo semelhante. São dois úteis modelos pois trata-se de peças com um conjunto mínimo de cantores. Erwartung tem apenas uma cantora e a peça de Bartók apenas dois. Posso acrescentar que são duas das minhas óperas preferidas do século passado. Intercale-se uma pequena nota. Von heute auf morgen, de Schoenberg, a sua única ópera cómica e a primeira obra a utilizar o sistema de 12 tons, tem cerca de uma hora e pede apenas 4 cantores. Glückliche hand, do mesmo compositor, um drama com música, é uma pequena peça de cerca de vinte minutos dividida em 4 cenas que pede apenas um barítono e um coro de seis homens e seis mulheres.* (Moisés e Arão, a outra das 4 óperas de Schoenberg, é um caso completamente diferente, uma obra em 3 actos – o último incompleto – com um conjunto “normal” de cantores e um coro que implica uma produção de maior peso). Tanto Erwartung como O Castelo do Barba Azul são peças subtilmente sedutoras pelo que escondem no seu negrume e na sua melancolia. Na peça de Schoenberg nunca percebemos bem o que se passa e qual a responsabilidade da mulher na morte do homem que esta encontra na floresta. Será que este existe ou é ele apenas uma expressão dos tormentos da mulher? O enigmático Barba Azul acompanha a sua recente mulher ao longo dos corredores do seu lúgubre castelo que, como a peça de Schoenberg, se situa num lugar indeterminado e dominado pelas trevas. A mulher da obra de Schoenberg não tem nome, é apenas die frau/a mulher. A esta sedução do desconhecido junta-se uma outra – a da sexualidade. Pelos corredores sinistros do castelo do Barba Azul e pelos recessos nocturnos da floresta de Erwartung demonstra-se uma sexualidade enigmática, por vezes fria, por vezes muito excessiva e expressiva. O gosto pela e o estudo da psicologia (que tem origens num complexo científico, intelectual e artístico em que a cidade de Viena teve um papel nuclear) tornara-se por esta altura uma moda que se estendera ao cinema, ao bailado, à ópera e a outros campos das artes. O mundo misterioso e sedutor da sexualidade, assim como o estudo dos sonhos e do subconsciente informam intensamente este período. Qualquer destas duas óperas pode ser vista como a descrição de um sonho (Schoenberg diz que Erwartung é uma espécie de pesadelo) em que a sexualidade tem um papel importante. Erwartung foi apenas representada em 1924 mas havia sido composta em 1909**, nove anos depois da publicação de Interpretação dos Sonhos, de Freud, e de vários outros estudos do mesmo autor, e três anos depois de um controverso livro do filósofo austríaco Otto Weininger (que se suicidou aos 23 anos) sobre sexualidade chamado Geschlecht und Charakter/Sexo e Carácter. Elektra, de Strauss, estreada em 1909, ano da conclusão de Erwartung, é uma ópera que tem sido igualmente apreciada através da perspectiva psicanalítica. É a época do triunfo da psicanálise, de Freud e de Breuer. Existe literatura que oferece uma interpretação de Erwartung que liga o texto desta peça directamente a um caso clínico específico – referente a uma paciente que seria parente da autora do libreto – constante em Studien über Hysterie (1895), de S. Freud e Josef Breuer. Exprime-se um compreensível fascínio por um mundo que se revelara aos poucos nos finais do século XIX e ao longo dos inícios do século XX. Esta é uma obra que tem uma longa carreira de representações até aos dias de hoje e que ilustra à perfeição a inclinação anti-realista, anti-naturalista, simbolista e expressionista que impregnava o grupo de Schoenberg em particular, enquanto demonstra o clima cultural geral prevalente na Áustria e na Alemanha no início do século XX. O palco e o canto, a ópera e o drama para música, são veículos modelares para a transmissão da transcendência, do misterioso, da sedução labiríntica do interior do indivíduo e do universo dos sonhos e da sexualidade. Alerte-se que à solista desta peça de Schoenberg se pede um esforço maior. Uma produção com uma cantora que não esteja à altura pode trazer resultados desagradáveis. No entanto, garantida a qualidade, é difícil não nos deixarmos seduzir pelo tormento expressionista desta mulher solitária que parece (nada nesta peça é claro) tentar encontrar, na escuridão da floresta, respostas para o destino do seu amante e do seu amor. O Castelo do Barba Azul tem seduções semelhantes, um lugar sinistro e soturno onde se cria a expectativa de um desfecho funesto. A recém mulher do Barba Azul, Judite, pede ao seu marido que lhe abra as 7 misteriosas portas que se encontram no castelo. Por trás de cada uma delas há objectos, jardins, um lago de lágrimas, etc., cobertos de sangue, testemunhos do passado do Barba Azul, um que Judite parece conhecer e querer obsessivamente confirmar, um passado escuro e enigmático sobre o qual Judite, através do poder do Amor, tenta lançar uma luz redentora. Paralelamente, é a sua obsessão em desvendar que a chama ao inevitável engolimento. O Barba Azul, por sua vez, abandona-se, sem conseguir resistir, ao apelo do destino. Ao aproximarmo-nos da última porta aumenta a tensão da peça, uma de infinitas possibilidades cénicas. A música, tonal, é sempre misteriosa e inquietante, de uma cor lúgubre e labiríntica. Exige também um esforço grande para os intérpretes que durante cerca de uma hora não param de cantar – praticamente não há partes unicamente orquestrais.*** A extrema concentração em apenas um pequeno episódio da história do Barba Azul (ao contrário do que acontece com Ariane e o Barba Azul, de Dukas, estreada em 1907) ajuda a manter intacto o desassossego que caracteriza a peça, um pouco como acontece com Erwartung, cuja curtíssima duração cria uma focalização feérica, fortemente obsessiva. Se estas são duas óperas bastante conhecidas muitas outras se compuseram no século XX e XXI de apresentação desejável. Sem Strauss, Schoenberg, Alban Berg, Debussy, Janacek, Hindemith, Krenek, Britten, Henze, Birtwistle, Stockhausen ou John Adams é impossível compreender a evolução de um género musical que tem vindo a ganhar uma importância cada vez maior. Estimo que o número de óperas compostas no século XX e XXI seja, no mínimo, entre 850 a 900. * foi notado num dos artigos anteriores que existem, nos séculos XX e XXI, muitas óperas de curta duração. ** um ano de brilhos, em que Schoenberg compôs, no Verão e no início do Outono, além de Erwartung op. 17, as Três Peças para Piano op. 11 e as Três Peças Orquestrais op. 16. Duas das óperas mais interessantes deste período, ousadas e enigmáticas também, Salomé e Elektra, de R. Strauss, respectivamente de 1905 e 1909, são testemunho de como a herança cromática wagneriana sofria constantes re-valiações e de como o retrato de mulheres em situações de extrema perturbação carrega uma extrema sedução. Hofmannsthal estava a ler Studien über Hysterie (1895), de Freud e Breuer, quando escreveu Elektra (cf. 2005, The Cambridge Companion to Twentieth-Century Opera, Ed. Mervyn Cooke, pág.48), um fio intelectual que chega naturalmente a Erwartung. *** existe uma versão filmada, de 1963, realizada por Michael Powell, muito datada cenicamente (e por isso interessante) e interpretada por Norman Foster e a bela Ana Raquel Satre.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDois embaixadores no encontro com o imperador em Nanjing [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]té chegar a Nanjing tinha Tomé Pires como Embaixador viajado já durante dezassete meses desde Cochim, na Índia, a Tamão (屯门, actual Lin Tin) na China, onde esperou de 15 de Agosto de 1517 até finais de Setembro para ser desembarcado em Cantão (广州). Aí, numa longuíssima e desesperante demora para seguir até Pequim (北京), esteve à espera mais de dois anos e meio, sendo a viagem constantemente adiada. Em 1518, Fernão Peres de Andrade, desembarcada a Embaixada e antes de partir rumo a Portugal, disse aos Governadores de Guangzhou que, no ano seguinte, outro Capitão português viria recolher o Embaixador. Mas, quando em Agosto de 1519 Simão de Andrade chegou à China, com essa finalidade, encontrou ainda Tomé Pires em Cantão sem daí ter saído. Por isso, Simão que “era um homem assomadiço e impaciente e sem grande sensibilidade para levar em conta os costumes e as etiquetas daqueles com que era obrigado a negociar”, como o define Luís de Albuquerque, “sentiu como se fosse uma afronta” e andou por Tamão a maltratar os chineses, enquanto aguardava pela Embaixada que, no entretanto, iniciara a viagem à Corte do Celeste Império. Com Tomé Pires tinham ficado em Cantão cinco portugueses, Duarte Fernandes, Francisco de Budoia, Cristóvão de Almeida, Pedro de Faria e Jorge Álvares, o persa de Ormuz já lusitanizado Cristóvão Vieira, mais doze moços servidores e cinco intérpretes, sendo Yasan o principal. No entanto, para além de Cristóvão Vieira, Francisco de Budoia e Duarte Fernandes não consegui descobrir quem mais dos portugueses seguiu com Tomé Pires na viagem de Cantão a Pequim, sabendo ter Jorge Álvares voltado a Malaca a 23 de Janeiro de 1520, onde se distinguiu nas lutas contra o Rei de Bintão, ficando-se pela região do Sudeste da Ásia, mercadejando de Malaca ao Mar do Sul da China. Só em 23 de Janeiro de 1520 Tomé Pires, acompanhado pelo seu séquito, iniciou a etapa até Pequim (北京), para se encontrar com o Imperador e entregar-lhe o presente e a carta do Rei D. Manuel. O percurso até Nanjing, onde chegaram em Maio de 1520, foi feito na sua maior parte de barco, pelos canais e rios que abundam pelo Sul da China, sendo apenas a passagem montanhosa, que separa as províncias de Guangdong, Jiangxi e Fujian, feita em liteira, a cavalo e a pé. Nessa travessia faleceu Duarte Fernandes, que já vinha adoentado. Rui Loureiro, complementando com o que vem nas Cartas dos Cativos de Cantão: “Apesar de se elevar a cerca de três mil metros de altitude, a serra era provida de caminhos calcetados, embora muito íngremes e trabalhosos, que provocaram a admiração dos portugueses. Assim, foi possível atingir Wan’an, do outro lado deste maciço montanhoso, já na província de Jiangxi, num curto espaço de tempo, utilizando mulatos e asnos, para aí retomar a rota fluvial.” Ora esse caminho, já por nós realizado, para se chegar à Passagem de Meiling (Meiguan, 梅岭关) não tem que se subir mais de quatrocentos metros de altitude, sendo ele ainda calcetado e do outro lado, encontra-se não Wan’an, que dista dali algumas centenas de quilómetros, mas sim a vila de Dayu (大余), conhecida na altura da dinastia Ming por Nan’an (南安) e banhada pelo Zhangjiang (章江). E seguindo com Armando Cortesão: “Assim, ao chegarem a Nan’an, junto a um subafluente do Kuangkiang (赣江, Ganjiang) que, após uns seiscentos quilómetros de percurso, vai desaguar no grande Yangtzé (长江, Changjiang), de novo embarcaram, passando pelas cidades de Kanchou (赣州, Ganzhou), Kian (吉安, Jian), Linkiang (临江, Linjiang), Nanchang (南昌) Nankang e Kiukiang (九江, Jiujiang) junto já da confluência. Depois, seguiram pelo Yangtzé abaixo, durante mais uns quinhentos quilómetros até Nanquim, onde chegaram em Maio de 1520”. Como tivemos ocasião de mostrar num artigo passado, a povoação de Nankang situa-se entre Dayu e Ganzhou, mas, pela posição colocada na citação acima reproduzida de A. Cortesão, ela é o nome cantonense de Nanchang (南昌), a capital da província de Jiangxi. Aí Tomé “Pires fez observações de latitude, uma das quais em Nanchang, que indicou encontrar-se entre 28º e 29º N (latitude exacta, 28º 30′ N). Outra latitude que se sabe ele ter observado foi a de Pequim, a que atribuiu 38º ou 39º (latitude exacta, 39º 54′)” A. Cortesão. Em Nanjing com o Imperador Após três meses de viagem, quando a Embaixada portuguesa chegou a Nanjing “o imperador Zhengde encontrava-se então nessa cidade, onde dirigia pessoalmente as operações militares contra um príncipe que se revoltara” como refere Rui Loureiro, que numa nota, usando Paul Pelliot diz, esse príncipe de Ning era Zhu Chenhao e tinha-se rebelado contra a autoridade imperial em 1519, atacando Nanjing, revolta que foi rapidamente controlada. A História da China refere que a rebelião iniciara-se em 10 de Julho de 1519, quando à frente das tropas, o Príncipe Ning partiu da sua capital Nanchang para atacar Nanjing, mas foi derrotado pelo oficial militar local Wang Shouren. O Imperador Zhengde, ao chegar, ficou frustrado por não ter sido ele a liderar as tropas na vitória, como ocorrera em 1518 na expedição ao Norte da China, onde, nomeando-se General Zhu, cercou Yingzhou e numa batalha derrotou os mongóis, o que levou a um longo período sem estes voltarem a invadir a China. Agora a solução encontrada pelos seus ajudantes foi libertar o Príncipe Ning para depois ser o imperador a capturá-lo, o que veio realmente a acontecer. No Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, numa nota lê-se: “Aconteceu que o bárbaro Folangji chamado de Jiabidanmo (capitão-mor) e uns trinta acompanhantes vieram apresentar os seus tributos. Ao chegarem a Nanquim, encontraram Jiang Bin, que comandava as quatro forças de elite na protecção pessoal de Sua Majestade. Este apresentou o Hoja Yasan a Sua Majestade. Sua Majestade gostou do Hoja Yasan e deixou-o ficar na sua companhia.” Ora Hoja Yasan (Huozhe Yasan) era o intérprete principal do grupo de cinco que vinham de Malaca com Tomé Pires integrados na Embaixada. Quando esta fora recebida em Cantão “tratava-se de uma embaixada mandada pelo país Folangji para apresentar os seus tributos”, mas “como Portugal não constava da lista dos países tributários da China, não podia sequer, em princípio, ser aceite em Cantão para iniciar o processo burocrático de obtenção de autorização para ir à capital imperial”. Como em 1511 os portugueses tinham conquistado Malaca, “a solução encontrada terá sido esta: comunicar a Pequim a vinda desta embaixada como se fosse uma missão de Malaca, um país tradicionalmente tributário da China. Só com esta fraude, talvez sugerida ou mesmo preparada pelas próprias autoridades de Cantão, haveria legitimidade para se conseguir a autorização central para a ida da Embaixada de Tomé Pires a Pequim.” E continuando no Revisitar os Primórdios de Macau: “Neste processo intervêm duas figuras centrais: o famoso jurubaça Hoja Yasan”, natural de Fuliang (Jingdezheng) de Jiangxi e “o eunuco Ning Cheng, que apresentou, muito provavelmente, o jurubaça Yasan a Jiang Bin, o eunuco favorito do Imperador Zhengde. A partir daí, o Yasan, um simples intérprete contratado pelos Portugueses passou a figurar nas fontes chinesas como sendo o embaixador, já que a fisionomia dos Portugueses não correspondia em nada à dos de Malaca, familiar aos mandarins centrais. E assim, paradoxalmente, a primeira embaixada portuguesa seguiu para Pequim com um embaixador chinês. Precisamente por esta razão, não há, na carta de Cristóvão Vieira – que era membro da Embaixada de Tomé Pires – nenhuma referência à actuação de Tomé Pires durante a sua estada em Nanquim e mais tarde, em Pequim, já que talvez Tomé Pires e os outros portugueses que foram às duas capitais tivessem sido aceites como acompanhantes de Yasan, que naqueles termos se fazia passar pelo embaixador perante as autoridades centrais.” O embaixador do antigo sultão de Malaca encontrava-se já em Nanjing quando a Embaixada portuguesa aí chegou mas, sem conseguir ser recebido pelo Imperador chinês, dirigiu-se para a capital. Esta informação de Rui Loureiro é contrária à de Armando Cortesão que diz: “O Imperador recebeu em Nanquim este embaixador e a carta que trazia. Ao mesmo tempo, chegou-lhe outra carta de dois mandarins de Pequim e ainda outra dos de Cantão, acumulando queixas contra os portugueses, principalmente por causa dos desmandos de Simão de Andrade. Não admira, por isso, que a embaixada portuguesa fosse mandada seguir para Pequim sem ser recebida.” O Imperador visita os portugueses “O Imperador Wu-tsung estava em Nanquim, mas não quis receber aí o embaixador português, mandando-lhe recado para que seguisse para Pequim e lá aguardasse a sua chegada”, mas tal informação de A. Cortesão, pelo que em seguida se relata, cria algumas dúvidas. Rui Manuel Loureiro refere que: “De Nanquim, os portugueses escreveram pela segunda vez para Cantão, afirmando que se tinham avistado com o imperador, notícias estas que chegaram às mãos de Simão de Andrade antes da sua partida para Malaca” e A. Cortesão complementa: “Em 2 de Agosto foram escritas cartas, ao que parece, ainda de Nanquim, depois entregues a Jorge Botelho e Diogo Calvo, em Tamão (são elas que relatam o convívio do Imperador com os membros da Embaixada fora do protocolo).” Algo de muito surpreendente o que nessas cartas é referido como tendo ocorrido em Nanjing e que, por ser fora do restrito protocolo chinês e ter quebrado todos os hábitos diplomáticos, causa grande perplexidade. O embaixador fora extremamente bem recebido pelo Imperador Zhengde (1505-21) e que . O Imperador, que segundo o costume chinês nunca saía dos seus aposentos, tinha ido repetidamente visitar os portugueses, chegando mesmo a jogar com Tomé Pires às távolas. No Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang lê-se: “Mais surpreendente ainda é o facto de que o Imperador Zhengde encontrou-os pelo caminho da sua inspecção e foi visitá-los à pousada onde estavam”. “Sua Majestade dignou-se ir pelos seus próprios pés imperiais ter com ele(s) diariamente.” “Tudo isto poderia parecer impossível do ponto de vista da aplicação rigorosa do protocolo dos Ming; contudo, com este Imperador, que gozava da fama de ser liberal e libertino, não havia nada impossível, se considerarmos também que os Portugueses eram apadrinhados por Jiang Bin, que era, nessa altura, o primeiro favorito do monarca.” “O soberano chinês ordenou que a embaixada seguisse para Pequim, onde seria formalmente recebida” Rui Loureiro e Armando Cortesão refere: “Não consta ao certo quando Pires partiu de Nanquim, nem quando chegou a Pequim. Sabe-se apenas que, depois de ter navegado mais de mil quilómetros ao longo do Grande Canal, já se encontrava na capital quando o Imperador lá chegou, em Fevereiro de 1521.” No Revisitar os Primórdios de Macau: “As fontes chinesas dão-nos uma ideia de que a integração de alguns membros da embaixada portuguesa no séquito de Zhengde foi um favor imperial conseguido pela intervenção de Jiang Bin…” mas parece que se tratava “de uma prática comum o Imperador Zhengde levar na sua comitiva um número reduzido de membros das embaixadas que se encontravam na China. Esta informação leva-nos a deduzir que parte da embaixada de Tomé Pires ficou com o Imperador Zhengde em Nanquim e a outra seguiu para Pequim. Dos que ficaram em Nanquim, um era sem dúvida, o Yasan, pois nas fontes chinesas há muitas referências ao facto de o Imperador Zhengde, como passatempo, aprender o português com ele”. Numa nota do Revisitar os Primórdios de Macau refere-se que “Tomé Pires chegou, na comitiva imperial, a 18 de Janeiro de 1521” a Pequim. Já numa outra nota, desta vez do livro Nas Partes da China de Rui Manuel Loureiro diz “Paul Pelliot, recorrendo a fontes chinesas que afirmam que a embaixada portuguesa permaneceu em Pequim quase um ano, coloca a chegada de Tomé Pires à capital em Agosto de 1520. Esta datação é pertinente, pois os portugueses chegaram a Nanquim em Maio, e três meses seriam mais do que suficientes para a viagem entre esta última cidade e Pequim”. Do Rio Yangtzé até à capital a viagem foi realizada de barco pelo Grande Canal (大运河), passando por Sampitay, conhecida por Pizhou (邳州) e situada a Leste de Xuzhou, chegando a Embaixada por fim a Pequim (北京). Destaque O Imperador, que segundo o costume chinês nunca saía dos seus aposentos, tinha ido repetidamente visitar os portugueses, chegando mesmo a jogar com Tomé Pires às távolas “Com este Imperador, que gozava da fama de ser liberal e libertino, não havia nada impossível, se considerarmos também que os Portugueses eram apadrinhados por Jiang Bin, que era, nessa altura, o primeiro favorito do monarca.” Jin Guo Ping e Wu Zhiliang em “Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História”
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasPara onde voam os pássaros [dropcap style =’circle’]P[/dropcap]ara longe. Isso sabe-se. Quando migram, adiantam-se às estações. Têm percursos fixos independentemente dos perigos e cumprem-nos anualmente mesmo tendendo para a extinção. Eles sabem onde vão. Guiando-se pelo magnetismo da terra. Há sítios do mundo em que hoje se reeduca espécies para encontrarem outros caminhos e outros lugares. E como voam. Nessas formações perfeitas em flecha ou em arco. Eles, os seres redondos por natureza poética ou filosófica, ou fenomenológica. Disse-o Klee: “todo o pássaro é redondo”, e disse-o Bachelard, evocando Rilke quando escreve “o gorjeio redondo do ser redondo arredonda o céu em cúpula”, ou Michelet quando define o pássaro como “quase totalmente esférico”. A forma redonda não como forma física de natureza geométrica mas como imagem metapsicológica. O ser e o ser do pássaro redondo porque centrado em si. São no entanto, em bando, o movimento por excelência, a seta de sentido. O sentido do todo. E, mergulhando os olhos naquelas nuvens imensas de aves, em bando compacto, em estruturas indecifráveis na sua causalidade, definindo ritmos e padrões mutantes, evoluindo no ar consistentemente, há uma sensação de maravilha. E o bando, mesmo na mansidão rítmica e dinâmica dos inúmeros arabescos e floreados, nunca se perdendo como um corpo, orgânico e uno na sua identidade. Plástico no entanto ao ponto de ver a ligação entre as minúsculas partes, como células, distender-se mais ou menos elástica, deformar-se por acentuação ou nivelarem-se entre si as linhas invisíveis que as ligam. Um pouco como um tecido tridimensional arrastado pelo vento e pelo tempo, suavemente a mudar a sua curvatura e a modelar ondulações várias, sem romper. Ou como uma malha fina e flexível. Hipnótica. A beleza emocionante, e emocionante sem retórica, até quase à força de lágrimas arrancadas à nossa dificuldade em lidar por vezes com o que é belo. Faz pensar que talvez o embalo para olhos contemplativos, com que invejamos os pássaros, se assemelhe a referências remotas, muito lá atrás no início de tudo no ventre materno, a oscilação dos fluidos um eterno romanço de conforto em que só se antevê um mundo fora da caverna, em subtis mudanças de luz e sons coados. E porque embalamos o corpo ao som da música, também nos embalamos solitariamente ao sabor de formas que nos conduzem o olhar. Pequenos humanos que dançam uns com os outros, que também somos. Aos pares ou em grupos. Só ao sabor do ritmo e da melodia, ou em coreografias imaginadas e ensaiadas num corpo de baile. A eterna nostalgia do vôo que afinal nunca fizemos. Excepto, ou talvez sobretudo, porque a natureza dos pensamentos tem essa mesma qualidade e capacidade das aves. O que nos liberta das limitações corpóreas e terrenas, se bem permaneçam sempre ligados a um corpo como à luz de um farol. Os pensamentos. Os pássaros pequenos – que o mesmo é dizer, pássaros porque só eles o são em termos de espécie – como os estorninhos, e porque são presa de predadores de maior vulto, voam às centenas ou voam aos milhares ao fim da tarde antes de escolher o poiso para dormir. A grandes velocidades navegam juntos em padrões assimétricos, altamente coordenados. A estas revoadas dá-se o nome colorido, burburinho de estorninhos. Uma onomatopeia bonita que quase rima com o seu nome de pássaros a adejar asas velozmente. Agitados. Animados. Por isso a questão é afinal para onde voam os pássaros quando não voam para lado nenhum. Esses bandos de dezenas centenas ou mesmo milhares de pássaros ou outras aves, que evoluem juntos no espaço, porque a natureza lhes ensinou que é melhor, para se protegerem de predadores, naturais ou não, mas também porque têm um destino comum e se ajudam para essa finalidade. Enquanto outras aves voam sós, e não há juízos possíveis sobre a validade de uma ou outra forma de existir. Eles levantam vôo de forma aparentemente despreocupada e aleatória, mas gradualmente vão definindo as suas posições e o seu lugar no bando. Posicionam-se numa formação que permite usufruir do impulso gerado pelo deslocamento do ar, causado pelo bater das asas do que voa à sua frente. As primeiras aves do bando, ajudam a vencer a resistência do ar criando um vácuo que ajuda as outras a planar ou a voar com menor esforço e por mais tempo. E quando voam para longe é uma economia relevante. Em tão pequenos seres vivos, que atravessam por vezes anualmente milhares de quilómetros. O bater das asas deixa para trás um redemoinho de ar, nesse turbilhão, em que o ar é empurrado para baixo e seguidamente num jacto para cima. E é aí que a ave seguinte pode fluir, economizando energia e desenvolvendo um esforço menor. Todos os órgãos sensoriais apurados se coordenam para uma orientação espacial precisa e os manter com exactidão no seu lugar, relativo a seis ou sete outros, que lhes voam em redor. E isso exige uma sincronia perfeita no batimento das asas, aferida pelas sensações de deslocação do ar, como uma orquestra em uníssono, ou quando um som ainda paira no ar e já outro se começa a formular. Os líderes são eventualmente os melhores navegadores. É um mistério como assumem esse reconhecimento de que o são. Mas no vôo em bando, este vai mudando regularmente a formação e os que lideram revezam-se nesse papel. Subtilmente, sem quebras de ritmo, sem dilemas, luta ou contestação. Seguindo viagem. Quantas comparações, quantos símbolos encontram uma imagem no reino das aves, no seu modo de vida. A rapina, o vôo, o olhar, o golpe de asa. E estes mecanismos de grupo. A partir daqui, quantas metáforas se poderiam pertinentemente formular… Políticas, sociais, existenciais. Quantos povos deveriam poder dizer “queres voar comigo?”… e quantos amantes deveriam saber dizê-lo também. O lirismo é um estado dificilmente partilhável. Sobretudo com esta puerilidade. No mundo de hoje como no de sempre. Mas tudo a tender para pior. Por isso me apetece esta metáfora infantil e simples. Este é o discurso mais próximo de uma afirmação política que consigo de momento. Tão difícil escrever. Centrarmo-nos em algo que faça sentido, numa emoção relevante e abrangente que faça sentido. Seja ela enebriarmo-nos com concertos de Schumann, ou com a contemplação do vôo de bandos de pássaros. Que seja coincidente com o momento, anestesiante e extensível a outros sentidos possíveis, mas mais universais do que o simples desabafo da nossa pequenez. Desde que essa espécie de embriaguez possa extravasar o círculo redondo, passe a redundância, do nosso eu em êxtase lúdico, e envolver os outros no prazer de uma imagem bela, em algum prazer de um simples momento. Para além de todo o registo de amargura, de dispersão e confusão, de injustiça, de desígnios imperscrutáveis, em que somos um bando desavindo, penso nas nuvens de pássaros. Funcionamos não como um bando mas como diferentes bandos de espécies distintas. Incompatíveis. Inimigas. A solidariedade, palavra terrível e aglutinadora como uma cola, mas por vezes tão desastrosa e inábil como esta. E como a cola, manietante e geradora de dependências. Melhor dizer como os pássaros que levantam vôo de forma caótica, mas que, subtilmente e às vezes levando muito tempo, se vão organizando naquela formação que é a melhor para o percurso de todos, sem competição sem hesitações. Melhor dizer, mesmo que por palavras. Podemos voar? Podemos voar convosco? Podemos voar juntos? Podemos voar? Poderíamos voar. Se fôssemos pássaros. Como humanidade, não vamos longe.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasMaus ventos e maus casamentos [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]periférico país que é Portugal tem cada vez mais o velado aspecto das «Ilhas do Encoberto» no imaginário, neste caso, no nosso imaginário colectivo. Eram estas Ilhas levantes que emergiam do fundo oceânico nas noites de S.João por volta do Solstício, sendo um fenómeno inteiramente natural devido à actividade tectónica das placas neste momento do ano. Ora as populações não tinham conhecimentos que tal as informasse e delas se criou um mito maravilhoso e terrível. Pessoa, sempre atento aos fenómenos do inconsciente colectivo e aos mistérios que o habitavam, até escreveu um belíssimo poema em sua homenagem: “– não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida… aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… é a que ansiamos…. aí, aí, o mal não cessa não dura o bem…. mas, aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri. Não é com Ilhas do Fim do Mundo nem com palmares de sonho ou não que cura a alma seu mal profundo e o bem nos entra no coração. É em nós que tudo”. Qual «Jangada de Pedra», que nos parece um pouco a «Nau Catrineta» ou a «Arca de Noé», estamos expostos a todos os ataques de forma tão sóbria, quanto nós encobertos por densas camadas de doce alienação. Aqui mesmo ao lado, mais exactamente em Almaraz, a cem quilómetros com a fronteira portuguesa, a central nuclear mais antiga de Espanha acaba de ser chumbada pela área de energia nuclear da Greenpeace por inexistência das mesmas válvulas que permitiu o acidente em Fukushima. Foi a partir daqui que se exigiu que todas as autoridades reguladoras aderissem a este sistema com carácter de urgência. Mas outras falhas são mencionadas no inquérito, tal como o risco de actividade sísmica para o qual não está preparada, desenhando-se assim, um problema de primeiro plano, cuja gravidade de uma ameaça indelével é tanto maior que a Grécia, o euro e a senhora Barroso, e o senhor y, x e b, na medida em que, com Grécia, com ou sem senhora, se tudo rebentar, também nada de relevante pode existir que valha a pena ser contado. Chamados a manifestarem-se, os nossos queridos “hermanos” nem abriram a boca. Talvez até tivessem ali construído estrategicamente, com os ventos voltados para soprar para estas bandas… os ventos são óptimas locomotivas e, assim, se livrassem potencialmente de algo de muito indesejável, em parte, pois ninguém fica a salvo. Séneca teria pensado próximo disto caso estivesse agora a escrever este estranho texto. Os cínicos são muito lúcidos e não vagueiam nesta beberagem dos “Amigos para sempre”, ou seja, estão-se nas tintas, passe a expressão, para os seus vizinhos; nem um pedido de desculpa, ou uma desculpazinha de mau pagador, mau ventilador…. O Estado Português é um altar que ora está palrador, ora está devedor, ora está pleno de actividades paralelas, para chegar a tanta coisa, e certo anda que já ninguém se casa nem os ventos já puxam vela. No tempo dos Filipes, eles não ensaiariam em tê-la construído no estuário do Douro para haver mais aragem. Talvez já nem existíssemos num anteprojecto de Solução Final. O facto de Portugal não ter esta energia, e com a gravidade do que se passa, o país seria receptáculo de toda a radioactividade em caso de desastre. As prioridades do país, exactamente como a dos loucos, são aleatórias, dependendo muito do entusiasmo do momento. Há o futebol, a Grécia, o euro, a crise, o Sócrates, os concursos, o Ambiente… –que é uma coisa que serve para ganhar ambiente – mas não há uma nítida percepção do que é uma prioridade, talvez porque esta paz amoleça a noção do indispensável e do acessório, ficando tudo confusamente misturado. Este sim seria um tema para convidar os homólogos espanhóis, obrigando-os a sentarem-se a uma mesma mesa, discutindo em conjunto algo que afecta a todos e de forma urgente, grave, eficaz, mas a estrutura governativa que é uma coisa que está ali em funções de uma outra regência, quer esquecer o mau casamento com o país aqui do lado. E anda a vender coisas que se por acaso as válvulas não estiverem bem seguras lhes estragará o negócio. Portugal é isto: uma coisa meia à deriva, entre ventos e marés, acossado e sem soluções, que não seja o descolar pelo mar fora… ou submergir como as Ilhas Encantadas. Estes aspectos que estão unidos à soberania precisavam de abordagens rápidas, e os cidadãos deviam ser informados de forma digna e com a devida consideração, infelizmente, isso não acontece num labirinto de formas que se estreitam até ao estertor da insanidade. Para que existe um Estado? Ninguém sabe. Ele tomou o papel do nosso guarda-livros, e em matéria de soberania e defesa somos tão frágeis como entes isolados. Vivemos à beira de toda a indigência, de todos os perigos e ouvimos diariamente discursos alucinantes acerca de assuntos que não interessam nada. Mais uma vez os “maus ventos e os maus casamentos” podem trazer a morte. E não se trata da nossa, apenas, porque essa doravante será um bem para a Terra, mas para outros reinos, que são a vida no seu equilíbrio de forças. Isso pode acontecer a qualquer momento ou nunca mas para que nunca aconteça o melhor é prevenir e não abrir um chapéu de chuva ao primeiro sinal de radioactividade. Ou as covas. Não estou a ver esta gente debaixo de uma catástrofe. Morreriam todos de inanição e estupefacção e seria como a morte dos inocentes. Os cérebros lusos funcionam muito de forma organizada, não existe a modalidade plural e, por isso, é fácil entretê-los fazendo-os olhar para um lado, e dizendo: é dali que há-de vir o Agamémnon e ali andam estonteados até à náusea a discutir o sexo do monstro e dos Anjos, quando um mais esperto desaperta as válvulas, estende as garras e vai polir o último metal. O Federalismo Europeu começará também com a política da terra queimada. Do Juízo em Chamas. Final. Um suporte sem forma não nos causará injúria, nós mesmos nos tornámos uma receita para a diluição, partimos da visão errónea de que para ser grande sê repartido e, neste lodaçal de coisas várias, tudo o que pode acontecer é a vitimação incrédula. Sabemos o quanto o imprevisto é o que fundamenta a História e mesmo assim não acreditamos em “brujas, pero que las hay, las hay”. Chegados àquele ponto em que quem der um tiro para o ar fará uma Revolução, neste caso, quem deixar as coisas assim, fará ainda muito mais e pior, dado que as Revoluções com um só disparo para o ar até são bonitas. Com apreensão nos deitamos nestes tempos, debaixo de factos inconclusivos, uns por não serem factuais, outros porque nem lhes sentimos o pulso ameaçador. O Governo português foi a correr meter-se num lodaçal de armas de destruição maciça, que afinal não havia, só para tirar uma foto ao lado de uns assassinos com poder, mas existem muito perto das suas janelas reais perigos que a visão esquemática não deixa ver. O rosto com que fita é uma Górgone que não se chama Portugal e o que ganhará a batalha será Perseu. Que por estas terras não existe e, aí sim, há que implorar ao Panteão Grego que nos anuncie rápido a sua vinda. As grandes auto-estradas são veios por onde a morte célere e o tráfico ilícito há-de doravante passar à velocidade de um qualquer Ájax: aquele tornado branco, o mais Poderoso. Todos os fantasmas são Brancos. E todos estão adormecidos, existindo como nunca, agora e aqui, a possibilidade de serem reais.