A propósito de alguns filmes africanos II

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stas linhas continuam umas que se dispensaram a semana passada sobre alguns filmes africanos francófonos. Falou-se de alguns filmes de Ousmane Sembene e de alguns filmes africanos dos anos 80 que recolheram, à altura, merecido favor internacional.
Filmes como Yeelen e Yaaba ajudaram a fixar uma imagem rural e tribal do cinema africano. Vários filmes senegaleses dos anos 60 e 70 ajudam-nos a perceber, através das suas sedutoras histórias urbanas, que, felizmente, nem sempre assim é.
Eu gosto particularmente de um filme senegalês de 1973, Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty. Nele encontramos, como em Xala (de Ousmane Sembene) o à-vontade de quem sabe, com impecável segurança, demonstrar uma forte crítica ao modo de funcionamento do país e a situações pessoais através de um tom sarcástico e superficialmente despreocupado.
Apenas um nível elevado de sofisticação satírica permite esta adequação de um tom humorístico e auto-crítico a este tipo de matérias. O distanciamento irónico de Touki Bouki não é muito diferente do que Ousmane usa com habilidade em Xala e Mandabi e afasta-se da imagem tribal e rural que se veio a associar ao cinema africano.
A trama é simples. Um casal tenta reunir dinheiro para poder emigrar para Paris. É impossível não estender a Mory e Anta, os arrogantes heróis desta história, todo o nosso apoio e simpatia. Assim como Xala, este é um filme urbano e gingão, excelente exemplo de como o cinema africano desta altura não merece o paternalismo e a condescendência com que foi tratado quando, nos anos 80, se tornou mais conhecido. Apetece pensar que quem viu este cinema não conhecia o que se passara nos anos 60 e 70.
Mais ousado narrativamente é o curto (56 min.) Badou Boy (bad boy), de 1970, também de Djibril Diop Mambéty. O genérico não engana, estamos perante um objecto do tempo, uma espécie de documentário/ficção nouvelle vague onde o protagonista é um rapaz de rua em fuga de um polícia obeso e bonacheirão. Estamos igualmente longe de uma história lamechas sobre um rapazinho pobre, o tom é agressivo, urbano e cool.
Outra metragem curta de Mambéty é a comovente La Petite Vendeuse de Soleil, de 1999, o seu último filme, pouco mais de 40 minutos de retrato de um cidade confusa e cheia de animação e sol. A mistura das linhas urbanas de cor e de som de La Petite Vendeuse de Soleil, agressiva, serve de lição a algum cinema de boas intenções mas murcho que hoje se pratica.
Sili, a rapariga que protagoniza a história, comove e causa afecto. É parecido, no seu programa, com Badou Boy, e excita no espectador não a pena mas uma admiração firme e combativa. Trata-se assim de uma história que rejeita a imobilização resultante da mera compaixão mas que promove, ao invés, um impulso criativo activo.
Sili é uma pequena pedinte, aleijada, de cerca de 10 anos, que é hostilizada por um grupo de rapazes que vendem jornais. Sili impõe-se dedicando-se corajosamente à mesma actividade que eles. La Petite Vendeuse de Soleil (Soleil é o nome do jornal) causa uma disposição activa e revolucionária.
O realizador maliano Abderrahmane Sissako realizou 2 filmes, respectivamente de 2006 e 2014, Bamako e Timbuktu, que interessam a estas linhas porque são exemplos de dois filmes africanos que alcançaram reconhecimento internacional recentemente. Pode-se dizer-se sem grande erro – continuando um propósito mais bondoso que académico – que ver os filmes dos dois realizadores senegaleses aqui admirados, Ousmane Sembene e Djibril Diop Mambéty, dos dois malianos Abderrahmane Sissako* e Souleymane Cissé e do burquinense Idrissa Ouedraogo, constitui uma introdução fértil ao pouco conhecido cinema africano.**
Bamako é uma engenhosa encenação. Um filme genial na construção que se atinge, de um discurso em que paralelamente se faz desfilar um conjunto de acções e magníficos rostos locais e um tribunal contra o sistema que perpetua no Mali, e em África em geral, a fome, a pobreza e a corrupção. Os culpados são o F.M.I., o Banco Mundial, a Dívida e George Bush, mas também a administração local. É uma queixa exemplar, cujo grito se compõe tanto dos argumentos apresentados em tribunal como de gestos do quotidiano. O engenho consiste na forma como se fundem.
Os medos ocidentais da emigração e do terrorismo e a morte e exploração de inocentes são também temas deste tribunal. Bamako causa uma disposição ousada e excitante.
Timbuktu está muito bem embrulhado, as paisagens são bonitas (na Mauritânea?) e a indignação que se pretende promover cresce sem grandes violências mas com firmeza. No entanto, não mostra uma construção surpreendente, como acontece com Bamako e é, assim, mais esquecível.
Elogie-se a recusa de cair na tentação de estender a apresentação do absurdo a um nível que entre em choque com o tom suave do filme.
Permanece em Timbuktu (penso em Bamako) uma sensibilidade aguda no retrato das emoções e das acções simples do quotidiano, mas confesse-se que, conhecendo Bamako, esperava um filme mais ousado e mais surpreendente e não um que se pode fundir num gosto internacional giro. Estou certo que são muito os defensores deste filme bondoso e de ousadias tonais. Timbuktu causa uma disposição contemplativa e amolecida, longe da combatividade que Bamako promove.

* Abderrahmane Sissako nasceu na Mauritânia e emigrou cedo para o Mali. Vive em França. O filme, Timbuktu, é considerado mauritâneo.

** O autor destas linhas não desconhece o fenómeno Nollywood mas sobre ele não sabe discorrer. A Nigéria é, depois da Índia, o segundo produtor mundial de filmes.

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