Viena

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]exposição que se mostra no Museu de Arte de Macau, com pintura e desenho austríacos do século XIX e XX, vem chamar a atenção para uma cidade com características peculiares – Viena. Quase oriental, quase engolida pelo império otomano, cujos avanços teve de recusar várias vezes, capital de um país de um protagonismo envergonhado é, como poucas, o que se pode chamar uma cidade de cultura.
Tem mais de 100 museus, 70 teatros e 4 casas de ópera, um gigantesco orçamento dedicado às artes e uma tradição musical riquíssima a que se associa Mozart, Haydn e Beethoven, mais tarde Mahler, e os compositores da excitante Segunda Escola de Viena. Escuso-me ao elogio da frivolidade famosa do complexo da opereta e da valsa, mas convido o leitor a procurar o gigantesco programa da temporada de 2015/2016 da Wiener Staatsoper para se entender o que é uma verdadeira cidade – de dimensão média – de cultura.
Muitos outros nomes aparecem associados a Viena, como os de Klimt, Max Oppenheimer, Kokoschka, Hundertwasser ou Egon Schiele, assim como Sigmund Freud e Joseph Breuer, Wittgenstein, Kurt Gödel, Karl Krauss, Stefan Zweig ou Hermann Broch. Da música à literatura, da pintura e da arte performativa à matemática, da filosofia à psicanálise, não há campo do saber e das artes em que os seus habitantes se não tenham distinguido.
Mas é do hipnótico livro de Claude Magris, Danúbio, que extraio uma nostalgia erudita, utilíssima para o conhecimento da zona europeia interior que este rio atravessa, uma zona de contacto entre o mundo germânico e eslavo, sítio de impérios ocidentais e orientais e zona de intenso cruzamento de povos de proveniências muito diversas.
O livro de Magris, cujo original em italiano se publicou em 1986, apresenta-se da seguinte forma: uma viagem de 400 páginas ao longo do Rio Danúbio, desde a sua fonte (fonte de incertezas) até à foz no Mar Negro. Pelos sítios onde passa, Magris seduz-nos com histórias sobre figuras que por lá viveram e histórias que por lá se deram. Referir com justo pormenor a enorme diversidade de assuntos de que se trata no livro do erudito italiano seria fastidioso. Baste notar que das suas reflexões se extrai uma sensual e melancólica imagem do interior da Europa e uma exaltação da monotonia que encontramos em alguma literatura alemã (área de especialização de Magris) do século XIX, por exemplo em Fontane. Não é apenas a política, as guerras, os amores, a geografia, a poesia ou os cafés, mas também uma intensa nostalgia.
O Danúbio, por oposição à ligação que o Reno mantém com a figura germânica de Siegfried, símbolo solar da pureza e da virtude, é o símbolo do Reino de Átila, do reino europeu oriental e internacional, germânico, magiar, eslavo, judeu, mas também grego e otomano.
A data da sua primeira edição precede de 3 anos a da queda do muro de Berlim e as transformações que marcaram desde então a Europa de Leste. Se não contém essa actualização, o livro oferece uma útil última visão da vida na Eslováquia, Bulgária, Roménia ou Hungria durante o fim do período de influência Soviética directa.
Magris dedica muitas páginas a Viena, a primeira das quais a propósito do poeta sem casa que gostava de quartos de hotel e de postais – Peter Altenberg, frequentador das mesas do Café Central (o título do quarto dos nove capítulos do livro) que recebiam, por esta altura também a visita de Trostski, nos anos 80 certamente menos afligido pela insensibilidade do turismo de massas que vitima hoje a capital da Áustria, entre muitas outras cidades.
Nestes espaços barrocos o vienense cumpriria o destino de se saber figurante da grande representação que é a vida e lembrar que “as coisas acontecem do modo que acontecem em parte e principalmente por acaso, e que poderiam perfeitamente acontecer de modo diverso” (uma ideia repetida mais à frente a propósito do economista Schumpeter).
Uma das constantes do livro em questão é a visita a moradas famosas. 19 Kundmanngasse é a da casa construída por Paul Engelmann para Wittgenstein. Outro lugar de visita privilegiada são os cemitérios, como aquele em que está enterrado Schoenberg e onde o autor do livro acompanha, durante uma noite, Herr Baumgartner, uma das três pessoas cuja missão é a de abater, no cemitério, faisões, lebres e coelhos que perturbem a sua apresentação ao público.
Não faltam histórias de valor passional, como a que ligou amorosamente Maria Vetsera ao Príncipe Rudolfo da Áustria e que terminou tragicamente em Mayerling em 1889, uma história que continua a causar interesse e teve versões no cinema. Magris debruça-se especialmente sobre o livro que a mãe da infeliz apaixonada escreveu depois da sua morte, pleno de pormenores macabros e de um desejo férreo de manter o pundonor da família.
Uma história passional a que Magris também dedica umas páginas para o fim do capítulo em que se detém em Viena, é a de Elisabeth da Áustria, prima de Ludwig da Baviera, mais conhecida por Sissi ou Sisi (mãe do Príncipe Rudolfo a que se alude em cima). Mulher de Franz Joseph, morreu também violentamente em 1898, assassinada por um anarquista italiano, depois de uma existência ansiosa e avessa à sexualidade e às crueldades e inconveniências das obrigações de corte. Magris fala da sua poesia e da solidão, nostalgia e reacção contra a corte que desta se desprende.
A dada altura, refere-se que o poeta Wolfgang Schmeltzl compara Viena a Babel porque nela se ouve falar hebraico, grego, latim, alemão, francês, turco, espanhol, boémio, esloveno, italiano, húngaro, holandês, sírio, sérvio, polaco e caldeu.
Difícil seria escapar à menção da ameaça otomana. O autor italiano fá-lo a propósito de uma exposição comemorativa do cerco otomano e batalha de 1683, em sua opinião um dos grandes encontros frontais entre o Oeste e o Este, onde figura menção às tropas otomanas e ao seu gosto pelo fausto em geral mas também às tendas opulentas que albergavam as 1500 concubinas do Grão-Vizir, cuja cabeça, perdida em Belgrado mas posteriormente resgatada, permanece no Museu de História de Viena.
As histórias de Magris são muitas delas histórias de guerra, e a propósito da do cerco muçulmano o autor não deixa de chegar à situação dos gastarbeiter turcos e da sua condição na sociedade alemã dos anos 80, considerações que têm hoje, passados quase 30 anos, uma desconfortável actualidade. Fala de escolas em que praticamente só existem alunos turcos e nenhuns alemães e das fricções que esta situação cria. O parágrafo relevante termina assim: “Our future will depend in part on our ability to prevent the priming of this time-bomb of hatred, and the possibility that new Battles of Vienna will transform brothers into foreigners and enemies”.
O desejo turco por Viena é um desejo que incorpora a ideia de um império que una a componente romana e muçulmana, um desejo não de conquista mas de complementaridade, uma discussão que volta a ter pertinência nos dias correntes.
No Café Landtmann, um intelectual vienense intento em iluminar as relações entre o mundo ocidental e os países de leste chama a atenção para uma palestra que Lukács deu na cave do mesmo café por volta de 1952. Exilado em Viena, cidade por que não nutria particular estima, via-a como a cidade de uma Angst contemporânea, um lugar de falhanços.
Os judeus são uma presença constante na história da capital austríaca* e no livro de Magris, seja através da noção de um povo de extrema adaptabilidade a qualquer lugar, um povo da Lei e do Livro que renasce após a destruição; quer na visita que faz à 7 Gentzgasse onde o historiador, crítico e poeta Egon Friedel se suicidou, atirando-se da janela, antes da chegada da Gestapo; na visita que faz ao velho cemitério judaico, na 9 Seegasse; ou na que dedica à 35 Rembrandstrasse, a casa onde Joseph Roth viveu em 1913, e a propósito de quem aproveita para lembrar uma nota dominante que define Viena e a Mitteleuropa, assim como a obra novelística de Roth – a melancolia. Nas suas palavras a propósito da morada deste refere: “a tristeza dos internatos e dos quartéis, a tristeza da simetria, da efemeridade e do desencanto.”
Também manifestações artísticas contemporâneas de Magris o seduziram o suficiente para sobre elas se debruçar, como a actividade vanguardista do Wiener Gruppe a que, no entanto, não parece estender grande simpatia, ou a história de Anna Augustin, uma criadinha de 14 anos torturada durante um ano e morta pela sua patroa, Josefine Luner, cujos retratos se exibem no Museu do Crime.
19 Berggasse. Noto em Magris um fascínio por moradas. Esta é a de uma casa onde Sigmund Freud viveu e manteve consultório. Nela encontramos de novo a melancolia, a melancolia paternal da existência de um homem gentil assim como o seu amor pela ordem e pela simplicidade.
15 Schwarzpanierstrasse, o local onde até 1904 se erguia a casa onde morreu Beethoven, a mesma onde, na noite de 3 para 4 de Outubro de 1903, Weininger se suicidou com um tiro no coração, o mesmo Otto Weininger de que já aqui se falara nestas páginas a propósito de Geschlecht und Charakter (Sex and Character).

* Freud, Otto Weininger, Mahler, Schoenberg, Karl Krauss, Max Oppenheimer, Hundertwasser, Joseph Breuer, Joseph Roth, Stefan Zweig e Hermann Broch são de origem judaica. Wittgenstein tinha também um ramo judaico na família.

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