A falha

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma edição recente do Financial Times aparece um artigo de David Tang sobre as piores cidades do mundo chamado Are these the world’s worst cities?. Macau figura nele e na fotografia de maior impacto, entre as várias que ilustram o texto, vê-se a zona do Grand Lisboa. Estas linhas não vêm especificamente em condenação do artigo de Tang mas em condenação da aceitação, por parte do FT, e de outras publicações mais ou menos especializadas e/ou de créditos formados, de incluir artigos mal feitos.
A melhor maneira de avaliar a qualidade de um guia de viagem é ler a edição que diz respeito ao sítio onde vivemos. Como exemplo, o guia Lonely Planet, em edições antigas, listava como restaurantes a patrocinar em Macau nomes absurdos e de interesse gastronómico muito duvidoso. Hoje em dia já não é assim e parece, no geral, equilibrado e feito com profissionalismo.
O mesmo se pode fazer com artigos de viagem, constantes em revistas da especialidade, sobre cidades ou países que conhecemos bem. É divertido identificar os erros e o modo como nós, os residentes, somos retratados. Em certos retratos de Lisboa todos os seus habitantes andam de eléctrico, cantam fado e comem Pastéis de Belém diariamente enquanto lamentam a perda do Império.
Menos agradável é pensar que artigos sobre cidades ou países que nos propomos visitar são escritos com a mesma leviandade ou a mesma carga de ignorância. O conselho que este vosso servo dispensa é o de que se deve mandar os articulistas todos à merda.*
Em Dezembro de 1999, vários jornalistas portugueses aterraram em Macau para cobrir a transferência de soberania do território para a R.P.C. Foi muito divertido e esclarecedor. Muitos deles juntavam-se ao fim do dia num bar/café da cidade – que hoje em dia é muito mais bem frequentado – e eu percebi que, ao fim de dois dias, todos eram especialistas de Macau. Achei que esta gente dos jornais e da rádio era uma gente extraordinária.
Por outro lado não se pode esperar que um articulista, cronista ou repórter possa, em uma visita de 4 ou 5 dias, munir-se de material que rivalize com o que um residente possui.
O que David Tang diz está bem, Macau tem uma quantidade imensa de sítios pirosos e imensamente feios, maioritariamente construídos após 1999, edifícios que espelham a instalação – acarinhada pela administração local – de uma ganância sino-americana sem limites no mau gosto e no desprezo pela cidade e seus residentes.
Não poderia estar mais de acordo. O edifício do Grand Lisboa, dentro e fora, é horrível. A parte do Cotai que se estende do Galaxy ao novo Studio City é um pavor de mau gosto e baixa qualidade de construção e algumas das unidades hoteleiras que estão em fase de acabamento, por trás do City of Dreams, são uma adição de horrores.
O que está menos bem é que Tang não diga que há ainda lugares em Macau que mantêm um charme próximo ao que terá tido há 30 anos, que há uma geração nova em Macau que tem introduzido subtis alterações positivas no comércio local e que se tem mantido um conjunto histórico que é único na Ásia.
As duas primeiras coisas ele não diz porque não sabe e a terceira não diz, sabendo-o, porque quer mostrar irritação. Sir David sabe perfeitamente que entre as cidades da Ásia Extrema onde permanece um conjunto monumental sincrético ou de matriz ocidental, como Malaca, Jacarta (o centro histórico abandonado), Penang, Xangai, Bandung ou mesmo Hong Kong, Macau é um exemplo superior.
O que é menos bom, e quem leu coisas escritas por Tang não estranha, é que este insista, pedantemente, na ideia de que Manila ou Bangkok deveriam ser parecidas com Viena ou Florença, exactamente da mesma maneira que Eduardo Prado Coelho (que tem obra e provas dadas em outras áreas, ao contrário de David Tang) se queixou de Macau por não ser mais parecida com Paris (… aquilo que é o encantamento parisiense (ruas com belíssimos cafés com espelhos e madeiras) não existe por estas bandas). Ainda hoje faz rir, mesmo àqueles que, como eu, deploram a falta de esplanadas (cafés já há, mesmo que não haja nenhum antigo).
O artigo de Prado Coelho, que já estava bastante debilitado na altura, é um exercício de desonestidade por parte de um nome com provas dadas na sua área de especialização mas que para ganhar uns cobres escreve apressadamente para um jornal (o Público) que aceita placidamente as suas linhas mal informadas porque se trata de um nome famoso.
Fica a consolação de que a Macau que ele queria ter encontrado (e como português teria de ser um cenário nostálgico e passadista à In the Mood for Love) existe e continua bem pastosa e húmida como no filme. Que ele não a tenha visto é culpa dos que não lhe mostraram essa parte da cidade. Tal como Tang, também EPC gosta da palavra hordas: Que é que eu fui descobrir? Milhares de chineses que invadiam o hotel em hordas ruidosas. De que estava ele à espera? De milícias curdas?
Sir David, que não precisa do dinheiro, devia estar quieto ou entretido com os seus trapinhos saudosistas, cuja filosofia espelha o provincianismo dos artigos que por vezes exporta num jornal que não o devia publicar, e que há bem pouco tempo se desembaraçou de modo pouco airoso de um cronista como Harry Eyres, autor da informada coluna The Slow Lane, enquanto mantém, sem sinal de vergonha, The Fast Lane, da autoria de Tyler Brûlé, talvez a coluna mais inútil e vazia de interesse para o mundo de que me lembro.
Estas linhas não são em defesa de Macau, onde a completa ignorância, infantilismo, provincianismo, falta de visão e de gosto das fracas almas que a têm administrado a transformaram em grande parte (falo da parte turística) num cacófato composto por obras intermináveis, ausência de arte e esplanadas, edifícios completamente pacóvios, lojas de sabonetes e relógios, um sistema de transportes públicos caótico, altos níveis de poluição – demonstração de uma completa falta de sentido de qualidade de vida.**
Um dos prazeres de escrever para um jornal é o de dizer mal, o de exibir a irritação ou a indignação junto de um público vasto, e qualquer articulista sabe que por vezes este desejo irresistível e saboroso de maldade faz esquecer o rigor. Felizmente que assim é, a favor do excesso. David Tang exercita-o com gosto, é pena que este se não complemente com mais rigor. Fiquei com muita vontade de ir a Leeds.

* Num livro publicado pela Lonely Planet chamado The Cities Book: A Journey Through the Best Cities in the World, que lista 200 cidades, Macau aparece em 121° lugar, depois de Copenhaga. Nele diz-se que os habitantes de Macau gostam de prazeres simples, such as smoking a pipe or having their palm read in Mediterranean-style cafés filled with caged birds. Também informa que a viagem para Hong Kong leva 4 horas (o livro não é muito antigo) e que entre as principais exportações de Macau se conta mobiliário de ráfia, moedas antigas e cigarros especializados. Nas páginas dedicadas a Hong Kong diz-se que os seus habitantes têm muito orgulho nos sucessos da China.

** Uma cidade que não tem um museu de arte a sério (o M.A.M. é uma anedota) e que em vez de trazer ao público local exposições ou peças de Baselitz, Richter, Anselm Kiefer, Baldessari, Barceló, Tapiés (houve há muito tempo, no Fórum), Paula Rego, David Hockney, Kapoor, Muniz, Abramovic, Beuys, Twombly, Koons ou Ai Wei Wei traz um pato de borracha só pode ser objecto de irrisão. Acrescente-se que o mesmo se passa em Hong Kong. Se vários destes nomes aparecem exibidos em galerias é por razões comerciais e não porque haja uma vontade da administração local de as mostrar aos residentes. Proponho que o Pato fique, permanentemente, em companhia dos Patos Bravos que o trouxeram.

17 Mai 2016

Declínio do porto de Macau

Como prova das boas relações existentes entre as autoridades portuguesas e chinesas, a visita a Macau do Comissário Imperial Lin Zexu acompanhado pelo Vice-Rei de Liangguang (Guangdong e Guangxi), Deng Tingzhen, a 3 de Setembro de 1839 e também do Hopu de Cantão, chefe das alfândegas chinesas naquela província, de 5 a 8 de Setembro. Wu Zhiliang refere que “Na véspera da visita de Lin Zexu a Macau, corriam, por todo o lado, rumores de que as forças militares da China atacariam Macau para expulsar os ingleses. Aproveitando-se desta circunstância, Charles Elliot propôs ao Governo de Macau o auxílio militar britânico”, e , que Silveira Pinto delicadamente recusou. Dias antes, em finais de Agosto, os súbditos britânicos tinham saído da cidade, mas, após uma breve estadia em Hong Kong, regressaram a Macau a 23 de Janeiro de 1840, apesar de ser um acto nada conveniente para os portugueses, que não tinham força suficiente para não o permitir.
Os ingleses, após serem expulsos de Cantão pelos chineses, nada tinham a perder e refugiados em Hong Kong, agora sem víveres, sentiam o cerco apertar-se e por isso, daí remeteram um novo pedido no dia 12 de Dezembro de 1839 ao Governador de Macau para poderem regressar a essa cidade e aí residirem. Não obtiveram tal permissão, pois Silveira Pinto não aceitou. Com Alfredo Gomes Dias seguimos, “as autoridades britânicas decidem então forçar a entrada no porto de Macau utilizando para o efeito a corveta Hyacinth, largada a partir da fragata Volage fundeada na rada de Macau. São os acontecimentos de 4 de Fevereiro” de 1840.
Lembrava Março de 1839 em Cantão; “Entrando de imediato em acção, Lin começou a confiscar milhares de quilos da droga e de cachimbos de ópio, prendendo mais de 1600 chineses. Quanto aos estrangeiros, começou por tentar demovê-los, através de didácticas chamadas de atenção no capítulo da ética. Mas essa técnica persuasiva não resultou e Lin, furioso, decretou, em Março de 1839, um bloqueio completo à comunidade estrangeira em Guangzhou. O cerco só foi levantado quando Lin, que passou a viver num barco, para melhor vigiar os estrangeiros, obteve mais de 20 mil cestos de ópio, a totalidade da mercadoria que então se encontrava nas feitorias de Guangzhou. Em Abril, numa acção espectacular, todo esse ópio foi lançado ao rio da Pérola”, segundo Fernando Correia de Oliveira, no livro 500 Anos de Contactos Luso-Chineses editado em 1998: “O principal negociante inglês, William Jardine, fundador da casa comercial que ainda hoje existe em Hong Kong, foi de imediato a Londres pedir auxílio económico e militar. O parlamento inglês, sem declarar a guerra à China, aprovou o envio de uma esquadra de 16 navios para a zona de Guangzhou”.

Forçar a entrada em Macau

Segundo Marques Pereira, no Decreto de 5 de Janeiro de 1840, o Imperador Daoguang (1821-1850) proibira o comércio com a Inglaterra e a 8 de Janeiro, o comandante do navio de guerra inglês Volage anunciava para o dia 15 o bloqueio do porto de Cantão. A 23 de Janeiro “os ingleses desembarcaram em Macau passando a residir nesta cidade”, segundo Alfredo Dias.
Ao fim de uma semana de estadia britânica em Macau, a 31 de Janeiro de 1840 o novo “Procurador José Vicente Jorge entrevista-se com o Tou-T’ói, pelas 15.30 horas, no Hopu de Macau. O Tou-T’ói veio com o fim de exigir a expulsão do capitão Elliot e dos ingleses residentes em Macau, apoiado com mil homens que, a pedido dos mandarins, ficaram retidos na Casa Branca, dizendo que tal tropa se destinava a proteger os portugueses. Ofereceu-se, porém, para prorrogar a publicação do edital dos Suntós dos dois Kuongs e de Cantão, que ordenava a ele, Tou-T’ói, que viesse, à testa da tropa, prender os ingleses, e ao ajudante-geral Kuam-Chon-Hiae que seguisse com mais mil homens para se juntarem aos mil de Tou-T’ói, a fim de promover o encerramento das alfândegas, a suspensão do comércio português e o isolamento de Macau, bem como a retirada de todos os chineses, dentro de cinco dias, pois a cidade seria invadida. O procurador não cedeu ante a intimidação do enviado chinês”, segundo Luís Gonzaga Gomes.
Já Alfredo Dias refere que, a 1 de Fevereiro há a “Proclamação imperial onde se pretende sossegar as comunidades chinesas e estrangeiras em Macau afirmando que pretendiam apenas cercar e prender os ingleses”. Marques Pereira diz que no dia seguinte, o comissário imperial chinês, Lin, dirige de Cantão, pelo navio Thomas Coutts, uma carta à rainha de Inglaterra (Victória), criminando a insistência dos seus súbditos em trazerem ópio à China, e em espalharem entre a população essa droga nociva, a despeito das justas leis do império contra semelhante contrabando. Esta carta foi, pelo mesmo comissário, mandada publicar em todos os distritos do sul da China.
A 4 de Fevereiro de 1840, segundo Montalto de Jesus, “Tendo começado as hostilidades, o barco Hyacinth forçou o caminho pelo Porto Interior de Macau. Isto provocou um veemente protesto do governador Silveira Pinto, que responsabilizou o governo inglês pelas consequências. Foi salientado que, mesmo sob a aparência de protecção, tal caminho não tinha sido seguido pelo contra-almirante Drury. O Capitão Smith acabou (no dia seguinte) por retirar o Hyacinth, na condição de serem tomadas medidas enérgicas para fazer retirar as tropas chinesas das proximidades da colónia”.

O comércio do chá em Macau

A 6 de Fevereiro de 1840, Lin Zexu foi nomeado Vice-Rei de Liangguang e no dia 11, “Edital publicado em Cantão mandando fechar o comércio em Macau e destruir a Cidade por as autoridades portuguesas permitirem aí a presença de Elliot”, e continuando com Alfredo Dias, a 19 de Fevereiro, “O procurador José Vicente Jorge responde às autoridades chinesas que exigiam a expulsão dos ingleses de Macau dizendo que a Cidade estava preparada para repelir qualquer ataque ou violência da parte dos Chineses”.
Esta mudança de discurso do Procurador de Macau contrariava o que José Baptista de Miranda e Lima em Setembro de 1839 anunciara a Lin Zexu (1785-1850), a neutralidade de Macau na disputa entre a Inglaterra e a China. As palavras do novo Procurador, sem força para contrariar os ingleses, quebravam tal promessa e assim, terminava o período de paz e de comércio que a 29 de Setembro de 1839 o Governador Silveira Pinto referia num ofício ao governo de Lisboa, comunicando a abertura do comércio em Macau, fechado desde Março. Esse bom relacionamento comercial pode-se constatar na resposta dada a 27-12-1839 pelo Superintendente Geral da Alfândega de Cantão ao pedido feito pelo Procurador, permitindo o aumento da exportação de chá para Macau e ordenando ao mandarim de Hèong-Sán que consultasse o Hopu de Macau sobre a conveniência ou inconveniência da entrada dos navios vindos de Portugal, em Vampu (Huangpo); que não fosse permitido aos navios de Macau ficarem fora do porto de Cantão e que, quanto à gravação dos números nos barcos de Macau, continuasse a ser observado o que se encontra prescrito no respectivo regulamento”.
Já como consequência das palavras de 19 de Fevereiro de 1840 do Procurador às autoridades chinesas, vemos na semana seguinte, a 26, “o Procurador do Senado, José Vicente Jorge, reclama(r) junto das autoridades chinesas contra a redução do fornecimento de chá, cuja exportação por navios portugueses era de 6000 picos líquidos, por ano”, segundo Gonzaga Gomes
Não esquecer que, “Por meados do século XVIII, os comerciantes independentes de Macau foram contratados para fornecerem chá da China à EIC, em Madrasta, tal como acontecia com a VOC, em Batávia, à qual também forneciam o chá”, como lembra Leonor Seabra. Estas companhias (inglesa e holandesa) importavam o chá da China e, depois de preparado, vendiam-no para a Europa, sendo em Macau o chá apenas manufacturado e não cultivado, e era essa a principal indústria da cidade. Ressoam as palavras de Sir George Staunton no ano de 1797 pela defesa da estrangulação do pobre marinheiro inocente com o seguinte argumento: “Mas abstraindo de qualquer ideia de lucro, é sabido que um dos principais géneros trazidos da China, e que em nenhum outro país se pode encontrar, é hoje um objecto de necessidade para quase todas as classes da sociedade na Inglaterra. Em quanto pois se não puder ir buscar a outra parte chá de tão boa qualidade e por tão baixo preço como o da China, será forçoso trazê-lo de Cantão e não desprezar precaução alguma para o poder obter”.

Subscrição para presentear o mandarim

Mandado fechar o comércio em Macau no dia 11 de Fevereiro de 1840, pelo Edital do Comissário Imperial Lin Zexu publicado em Cantão, “Por abrigar senhoras e crianças inglesas em Macau, os portugueses foram afastados do comércio de Cantão”, segundo Montalto de Jesus. O comércio em Macau foi restabelecido a 9 de Março pelo Comissário Imperial Lin Zexu, como diz Wu Zhiliang e no dia 20 para Alfredo Dias, “Edital chinês abre o porto de Macau”.
Ainda no Edital de 11 de Fevereiro de 1840, em nome do comissário imperial, um édito especial do mandarim de Chinsan ordenou, então, a prisão de Elliot, expressando considerável espanto pela sua tentativa arbitrária de excluir as embarcações americanas de Macau”, segundo Montalto de Jesus.
Marques Pereira regista dos Archivos da Procuratura o dia 1 de Março de 1840, quando se fez a “subscrição promovida entre os macaenses a fim de presentearem o mandarim Pang, que se retirava para Cantão, depois de exercer nesta colónia o cargo de So-tam”. Alfredo Gomes Dias complementa, “Os macaístas quotizam-se para oferecerem um presente, em sinal de muito respeito e amizade, ao mandarim, que se retirara para Cantão depois de ter exercido o cargo de Tso-tang em Macau”. Luís Gonzaga Gomes refere para 3 de Março o “Edital do Tou-T’ói, declarando ter intercedido pela reabertura do comércio em Macau, que fora fechado, em consequência da guerra com os ingleses”.
Muito mais tarde, já com o resultado definido da primeira Guerra do Ópio, faltava apenas saber por quanta prata, a 18-12-1841 “O Procurador do Senado, de apelido Carneiro, reclamou junto do Hopu Grande de Cantão contra o facto de os anistas (mercadores) de Cantão anteporem dificuldades à livre exportação do chá, tanto mais que os moradores de Macau, conformando com as ordens imperiais, deixaram de comerciar em ópio e pediu que fosse permitida a livre exportação do referido artigo, para esta cidade, sem embaraço algum. Encontrava-se o chá como um exclusivo chinês quando, após a I Guerra do Ópio (1839-1842), a pedido da Companhia da Índia Oriental o escocês Sr. Robert Fortune, do Chelsea Physic Garden, veio à China como botânico para estudar sobretudo os segredos da planta do chá. Aí regressou pela terceira vez em 1848 e clandestinamente entrou nas montanhas de Wuyi em Fujian e com a ajuda do seu criado chinês, fazendo-se passar por mandarim, visitou clandestinamente um dos locais de produção e manufactura do chá, que o esclareceu sobre a planta e as técnicas. Robert Fortune “enviou para a Índia umas vinte mil plantas de chá que arranjou na China Central, com toda a informação pormenorizada sobre tal indústria. Como por mágica da lâmpada de Aladino, uma grande fonte de riqueza foi assim transplantada da China para a Índia e o Ceilão, assim como para Java”, segundo Montalto de Jesus, que refere ter a sorte do chá da China ficado assim selada. E em 1866, já os ingleses importavam chá (4%) da Índia.
Remata Alfredo Dias, “A partir de meados de 1840, conforme a guerra se afastava mais para norte também a importância política de Macau foi diminuindo. Deste modo, ao longo do tempo que durou o conflito, as autoridades do território aperceberam-se gradualmente de que a realidade política da região em que Macau se inseria estava a mudar radicalmente, a uma velocidade que lhes era difícil de acompanhar. As forças imperiais davam provas da sua incapacidade de se oporem aos desígnios britânicos e, por outro lado, os ingleses demonstravam toda a sua capacidade de iniciativa económica e política, consentânea com o seu estatuto de grande potência mundial”.

13 Mai 2016

Mundo. Ou cambiantes tonais

Pequenina, quando me sentia triste, cortava em fragmentos ínfimos, um monte de papelinhos e tecidos e lançava-os da janela só para ficar a ver a sua evolução aleatória, o rodopio em subidas e descidas, volutas leves, feitas e desfeitas, descritas no ar mas sempre e inexoravelmente a descer. E queria prolongar essa visão mais do que o possível. Por aqui fora, talvez todas estas palavras, frases ou fragmentos de umas e outras, possam ser de uma forma qualquer, o mesmo mecanismo de lançar pequenas células com um percurso descontrolado e aleatório, com inúmeras recombinações possíveis. Assim o texto pudesse fragmentar-se e reajustar-se sucessivamente aos olhos de quem vê. Formado de todas as possibilidades.
O mundo. Esse conceito estranho que logo resvala para a divergente bivalência interior- exterior e para dela não se emancipar facilmente. Que leitura tem este estranho vocábulo que não implique a existência do olhar, dos muitos e por vezes múltiplos olhares. Que não os invalide que não os inviabilize como perspectivas fechadas em si, e que não os acolha como possibilidades dispersoras de uma necessidade atávica de um ponto de vista uno. Que mundo é este de fronteiras difusas, que nem o corpo, quase mais como matéria simbólica, torna estanques, mas que ao invés, perversamente se diverte em contínuas permeabilidades entre a razão, árdua elaboração orientadora de pendor, para alguns, profundamente lógico, as inevitáveis dores de um plasma emotivo que não conhece razões mas outras armas bélicas que ferem, e como armas que são, irracionais mas certeiras, e outras variadas instâncias de voto contraditório como a vontade, a cegueira parcial que a circunscreve, o desejo, este um sintoma mais absoluto de pendor vectorial, a validade da memória como alimento. Ou resíduo.
A experiencia do mundo que se faz muitas vezes da viagem. No espaço e no tempo exterior ou interior. Levamos mais ou menos bagagem connosco. Dessa, cada vez para mim fazem menos parte, as certezas. Mas uma mala é em si o mundo também. Levamo-lo sempre pequeno ou grande. Há a permanência de um dispositivo ético ou há a fuga. Em frente. Sempre. De si ou de tudo ou de âncoras virtuais, utópicas ou odiadas. Um olhar rotativo. Visão lateral…120 graus de ângulo. Ou tubular.
Desde sempre me lembro de fazer a mala para partir. Em viagens imaginárias. Em criança, este exercício lúdico entretinha-me as noites antes de adormecer. Repetido infinitamente. Até hoje. O que levar numa mala pequenina. Um desafio de síntese repetido ao longo dos anos. Sempre valorizando mais os objectos de afecto, a memória afectiva ligada às coisas, do que as razões práticas. Uma espécie de balanço de essências. Talvez sem pensar, nesse tempo, me reorganizasse interiormente a partir das escolhas. Ainda o faço.
Pensar o que levaria. Mas há momentos, há mesmo momentos em que nada. Nada mesmo. Hoje. Talvez não conseguindo, ou tendo vindo a progressivamente não conseguir e cada vez mais, encontrar âncoras de conforto nos registos que consubstanciam a memória das coisas da vida e das pessoas. Desvalorizando mais do que nunca os objectos. De que me rodeio, de que gosto. Que espelham continuamente tanto do que foi a vida. Algo deste sentir é ainda de forma imprecisa, toldado pela recente emergência substitutiva dos suportes digitais. Tudo quase cabe num disco externo de uns quantos gigabytes de memória. Mas sendo memória, nem por isso acrescenta nada à que se detém no suporto orgânico e com as lacunas imprevistas que ocorrem. Perdi muitas coisas inadvertidamente no espaço digital. Ou virtual. Mas não sei se a memória que se perde faz falta… Perdi a memória duas vezes. Parte da memória. Restaurada depois. Duas vezes no intervalo de dez anos e em virtude de grandes quedas e traumatismos do crânio. Corridas loucas no início da adolescência, primeiro, demasiada susceptibilidade a uma visão chocante, depois. Fatias, níveis ou camadas de memória que deixaram temporariamente outros dados residentes sem contexto alcançável. Uma sensação lúcida e estranha da falta quase palpável. E das memórias, há aqueles dias em que lhes custo a encontrar o perfume.
Mundo. Ou cambiantes tonais. Não. Não o mundo. Ou também. Mudo em cambiantes tonais ao longo dos dias. Das horas. Não como uma folha levada por diferentes aragens, mas pela permanente atenção ao que se desfia ante os olhos, sem estrutura prévia nessa circunstância simples e algo aleatória do olhar. O meu, no momento na circunstância do espaço. Conjugações desmultiplicáveis em variantes, sem sequer se alterar racionalmente a escolha. Pequenos acasos da atenção e da percepção, das rotinas e de acontecimento não controláveis. Um mundo do sensível em constante mutação de cambiantes tonais, pleno de contradições, assim, inapropriável na sua forma invertebrada. Sinal dos tempos. Também. Tão cansativo. Ou seria preciso explicar o inexplicável da amplitude do tempo. Em mim mais lento. Ou pelo contrário sentido demasiado voraz. Sinto-me resvalar para uma abordagem de certo modo desalentada e fragmentária da consciência de mim. Dos outros. Assim me afogo nesta desmultiplicação de escritos em lugares dispares. Assuntos que saltam de tudo para tudo e para nada. O nada. Mas também para nada mais do que este diálogo com uma outra de mim que é o ouvido estoico. De outro modo seria monólogo. Mas anda-se a configurar cada vez mais o ser fragmentário. Em camadas que já não se mantêm sobrepostas para uma leitura em profundidade, mas sim desacertada de um eixo único. Com não uma, mas múltiplas rotações próprias e translacções variáveis em torno de demasiada visões. Preocupações. Fracturantes. Esta minha enorme obsessão pela estrutura, pela organização e pela lógica, anda em ruptura e sofrimento. Estarei a – para além ou deixando mesmo para muito atrás a racionalidade toda que sempre me ocupou – tornar-me pré-socrática por facilidade. O mundo sensível em mutação, a ciência em mutação, as pessoas. Júlio Ver inventou um certo futuro. Mas que teria sido futuro sem ele e o mesmo talvez. À ciência também antecede a imaginação, algum sentido visionário da vida e das questões por resolver. E também no ser, não lhe entender uma estrutura ou intencionalidade e simplesmente a resignação ao registo das sensações, determinantes de emoções. Bem, mal. Bom, mau. Mas a apreensão de um mundo sensível, do sensível, como a abordagem da razão não têm as características nítidas de um interruptor que liga e desliga, acende e apaga em função de causas, consequências.
De ontem para hoje, de súbito, o dia anoiteceu mais tarde. Com a sensação de uma enorme lacuna entre a última vez que terei reparado e o momento de agora. Esta estranha e conhecida propriedade do tempo de se expandir e dilatar ou ser uma porta abrupta de esquecimento de um algo impreciso para outro, figurado nesta simples sensação de estação a mudar todos os dias.
Há uma beleza nas formas naturais, e em algumas em particular a minha alma desvanece-se de espanto. Nas flores. Na estrutura única de cada folha com os seus caminhos para a seiva. Mas a beleza vai até às partes mais recôndidas da sua estrutura celular, das implicações biológicas da organização das partes, dos múltiplos olhares por camadas de aproximação até à máxima transparência das paredes celulares, dos habitáculos das células, por aí fora, ao nível já dos átomos e de todas as partículas recém descobertas. Há no desenho das estruturas uma beleza própria que me fascina e não se fica só pelo visível. Não é só uma emoção estética no plano mais exterior e feérico da exaltação da cor das texturas ou das formas. Encanta-me a estrutura reticular das células. E saber da actividade ininterrupta nelas.
Os filósofos da antiguidade, com a sua preocupação metafísica com um mundo sensível, em constante mutação, inapropriável, cambiante. Num constante nascer e morrer. Ser e não ser. E fora dos limites essenciais platónicos, o que não muda, não é circunstancial e é comum a todos. Aqueles que se perguntavam neste território de contradições haveria um ponto médio do caminho a que se pudesse chamar permanente ou estável. Neste olhar sobre as cambiantes do mundo natural, qual seria o verdadeiro ser das coisas. Abordável através do logos ou da razão e nunca por via dos sentidos que registam um mundo de contradições e meras aparências. Ou que todas as coisas estão cheias de deuses, não como concepção mítica, mas o reconhecimento de que o universo é dotado de animação e de que a matéria é viva. Mesmo a matéria das palavras. Cheia de deuses, também. Escondidos. Que geram reacções insondáveis como se pela sua própria vontade e não por atributos lógicos das mesmas. Mas as cambiantes neutras da alma, as paragens também estão cheias de vida, uma vida mais lenta, ou mais esforçada, ou menos forçada, numa lucidez própria com um movimento que necessariamente também desemboca em algum lugar do ser. Por vezes mais adiante. Mas não demais. A água como o princípio de todas as coisas. E o fluir das partículas ou do caudal, metáfora de intangibilidade dos sentidos. A corrente como oposto à solidez do objecto que ostenta o nome. Anaximandro considerava que o nosso mundo era só um de entre uma infinidade de outros mundos, e que evoluiriam e se dissolveriam em algo de ilimitado ou infinito. Não se referia a uma substância desconhecida para ele mas a algo de anterior às coisas criadas, limitadas, estas. Substituir mundo por sentido.
Há uma imagem.
Aconteceu esta, hoje, mas não perfeita. O caroço de um fruto. No centro de uma camada circunstancial e degradável pelo tempo. Ou ingerida. O que sobra. Onde se reúne em síntese todo o ADN. No fundo toda a informação genética, neste caso. Que detém a possibilidade do recomeço. É talvez o cerne de tudo. Há um núcleo com uma vida potencial própria em que se encontra o essencial. Há que saber extrapolar desta imagem. Talvez assemelhando-se à noção de punctum como a entende Roland Barthes na sua “Câmara Clara”. Relativo à fotografia. O cerne do sentido. Mas sentido nunca desligado do olhar de quem é abalroado por algo que dispara da fotografia que não é inerte, e rompe aquele afecto genérico inicial. Como uma flecha incisiva. Que trespassa o observador. “ O punctum de uma fotografia é esse acaso que nela me fere (mas também me mortifica e apunhala)”. Nas palavras de Barthes. A importância decisiva do acaso que o faz desvalorizar as fotos encenadas. Remete-me para a encenação, mesmo que involuntária do sentimento de si. Do ser. De novo a imagem onírica da mala de viagem. Que leva e o valor relativo. O que se leva na mala. De todos os dias com algum desleixo. Mas a escolha das grandes viagens. Mas parece que a vida se faz do anódino das escolhas do dia. Sem rigor.
E esse núcleo essencial, acredito, por vezes, para além de todas as camadas expressivas, para aquém de toda a comunicação possível – impossível – de todos os padrões existenciais e de todas as circunstâncias, tem o secreto anseio de ser reconhecido em todos os detalhes do seu recorte. Aprofundadamente. E aceite.

13 Mai 2016

O poder de efabulação da ignorância

Calvino, Ítalo As Cidades Invisíveis, Teorema, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Italiana, Fantástico, Fábula, Apólogo, Simbólico, Moradas, Espírito, 160 p.:21 cm ISBN: 972-695-171-2, Tradução José Colaço Barreiros

[dropcap style=’circle’]I[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de setembro de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neorrealista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecidas e mais genial são As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili  de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante.

O poder de efabulação da ignorância
A estrutura de base das Cidades Invisíveis assenta numa hipotética, porém apresentada como factual, conversa entre o grande aventureiro e viajante Marco Polo e Kublai Khan, imperador mongol, chinês da estirpe dos tártaros. Marco Polo, supostamente, descreve ao imperador as inúmeras cidades do império do Meio que conhece e visitou e que o imperador não conhece. A imensidão do império inibe o seu conhecimento empírico. Isso incomoda o imperador, como incomoda toda e qualquer ignorância, mais ainda quando como neste caso a ignorância é provocada pelo estímulo do que de nós se esconde e guarda um mistério que ao longo do tempo se transforma em enigma. Marco Polo inteligentemente estimula esse enigma efabulando longamente sobre o que o imperador não conhece e ele também não. É aqui que reside a meu ver o golpe de génio de Calvino, efabular a partir do poder de efabulação da ignorância. O que não se sabe, o que não se conhece, é sempre infinitamente mais apaixonante e estimulante que o que nos é próximo e que é de nós conhecido e que dentro dessa proximidade se torna banal senão mesmo vulgar, no sentido literal do termo, mas também no seu sentido valorativo. Porém, se aquilo que se ignora possui um valor acrescentado, estranha-se que porfiemos em destruir essa reserva de prazer, esse el dorado, essa pérola de valor inestimável, procurando conhecer. Não obstante, até se percebe, se atentarmos no facto de que é no processo de desocultação que o prazer atinge o rubro. Podemos assim imaginar o gozo que deve ter dado ao imperador, a narrativa fantástica de Marco Polo, a mim deu-me e não sou dono de cidades de nenhum império; mas sabendo eu que a narrativa assenta em bases irreais, porque é que deu tanto prazer, a Kublai Khan e a mim por intermédio dele, a narrativa disso. Porque, como disse Saint Exupéry, o essencial é invisível ao olhar. Eu, até preferia dizer que o invisível é essencial ao olhar, invertendo a lógica da expressão, para assim poder enfatizar que desde logo o invisível existe e que portanto um outro tipo de olhar o vê. Essa visão é que é essencial. A grande cegueira é não ver esse invisível que nos habita de modo imemorial e eterno. 12516P614T1
Voltemos ao texto. A estrutura de base não assenta portanto numa hipotética conversa mas antes numa inventada hipotética conversa o que é apesar de tudo um pouco diferente no plano lúdico. Quando se chega a saber o que se desejava saber, pois é no plano da libido que estes conhecimentos se colocam, o fascínio desmorona. Desmoronaria para os actores e desmoronaria para nós, os leitores, por maioria de razão. Neste caso das Cidades Invisíveis não. E porquê? Porque rapidamente, mal a narrativa começa, se percebe a cumplicidade entre os dois intérpretes e porque para nós imediatamente passa a ser de outra ordem, que não a da verosimilhança, o que pretendemos saber. As cidades não nos interessam, a bem dizer nunca nos interessaram, mas interessa-nos aquilo em torno do qual se dá um acordo e uma cumplicidade entre os dois mentirosos. Chamo-lhes assim, ironicamente e por conveniência da minha própria efabulação. Eles sabem ambos que é de um excesso de verdade que se trata quando falam e se ouvem. Este diálogo poderia aliás ser interminável e aliás é interminável a não ser que num certo momento da nossa atenção lhe possamos e queiramos pôr termo.
O que é que se passa então? Um diálogo apócrifo em que uma personagem fala do que nunca viu e outra finge acreditar no que ouve, quando tudo leva a crer só lhe interessa o modo de dizer, ou seja o modo de falar do invisível, do que não existe. Kublai khan representa-nos simbolicamente. Representa aquilo que em nós resiste à realidade do mundo; resistindo na nossa inesgotável imaginação e na insaciável necessidade de ilusão que sentimos dentro de nós. Por isso As Cidades Invisíveis são um dos textos mais alucinogénios da história da literatura, embora se saiba que a boa literatura nunca é outra coisa, senão uma droga dura, imaterial e abstracta.
Desde o princípio se percebe que a cidade não é aqui de modo nenhum um conceito (e já nem escolho o semantema ‘realidade’) geográfico, pois desde o início que o jogo jogado entre os dois efabuladores procura na sua interacção a complexidade do modo de habitar o mundo, na lógica de uma simbologia da existência humana dentro das suas moradas invisíveis. O que seria de nós sem estas moradas inexpugnáveis. A que perigos não estaríamos sujeitos se nos faltassem as ameias e as muralhas espirituais.
Ítalo Calvino disse a dada altura qualquer coisa como isto: “Se o meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar num único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjecturas”. E esse símbolo só pode ser o invisível.
Na problemática dos géneros eu seria levado a considerar As Cidades Invisíveis no domínio do Apólogo e da Fábula poética, ainda que não haja apologia de coisa nenhuma, mas antes qualquer coisa de onírico e vago. Todos sonharam este texto: Kublai Khan pelo desejo, Marco Polo como ambiguidade da memória, uma lembrança vaga e nós os leitores porque na primeira vez em que o lemos nos fica a sensação de já o termos lido ou mesmo de já termos falado aos amigos de cidades que tais como estas não existem. Mas tudo o que a obra é aparece nos seus subtítulos, o simbólico, a memória, a fronteira, o desejo, etc.
Nem sei por que estou eu a escrever sobre As Cidades Invisíveis. Elas são infinitas e obsessivas, elas estão em nós e até às vezes fastidiosamente, elas são a nossa vida real e a imaginada, mas também morte e tédio e redenção, não acabam nem começam, desde sempre nos habitam com uma nitidez doentia e incómoda, uma morrinha, mas por outro lado também, de uma maneira sombria, esquiva, povoada de relâmpagos, … Habitam-nos a nós que somos parte delas e que sem nós elas não existiriam, mas nós também não, sem elas… É por isto, agora sei finalmente, que gostamos daqueles que nos perguntam pelos lugares que nos habitam e se mostram tolerantes relativamente às mentiras que urdimos. Para nós, que vivemos neste longínquo Oriente, não é a verdade ou a mentira dos lugares que nos preocupa é antes o podermos ou não ser capazes de corresponder à expectativa daqueles que nos interpelam, ávidos de mistério, sedentos de ser enganados tal como Kublai Khan. Seremos capazes de pelo menos uma vez sermos dignos de Marco Polo ou Calvino? Eu, por mim, já descobri mesmo em Macau, cidades como Leónia, Cecília, Pentesileia. Se me fosse dada a possibilidade de falar sobre as minhas cidades a oriente eu poderia organizá-las não segundo o critério de Calvino que explorou tópicos como: “as cidades e a memória”, “as cidades e o céu”, “as cidades e o mortos” etc., mas antes, de acordo com as minhas obsessões, em tipologias literárias ou cinematográficas, do género “As cidades com Lanternas Vermelhas”, “As Cidades com Aquários”, “As Cidades de Casas Vazias”, “As Cidades dos Candeeiros”, “As Cidades com gaiolas de Areia”, etc. De algum modo já as visitei e portanto poderei falar sobre elas. Talvez um dia o faça.

Manuel Afonso Costa

12 Mai 2016

Todas as cartas

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]stamos num tempo muito real e de tal ordem pragmático que tudo se torna concreto a partir das bases de cada comunicante. Um tempo de grande fervilhar de signos, sinaléticas, sinais, imagens, roteiros, rotas… Somos um elo de ligação construtiva em vários pontos cardeais e nem por isso nos unem focos de interesse ou mesmo uma íntima correspondência entre os pares. Interagimos, é certo, mas não ao modo da outrora relação epistolar por vezes intermitente mas plena de conteúdo humano e capacidade de diálogo afectivo: Pascoaes, Sousa Cardoso, João de Barros, Patrício, mais toda aquela Geração de Setenta, os do grupo do Orpheu, desenvolveram esta linguagem, um culto que fez da amizade entre os pares uma prática sistemática de um fervilhar de ideias e quase um roteiro de viagem junto das jangadas, quantas vezes difíceis dos seus dias.
Era esta uma intensa troca de informação orientada, um registo fértil de ditirambos e vozes que nos legaram na sua preciosa herança, e quase ficamos desarmados e incautos pela forma civilizadora deste tratamento, pelos interesses comuns e a forma elegante de os nomear , interesses vastos, que conservam uma linha de progresso muito forte, um certo estar na barricada do destino comum. Esta modernidade é também o princípio de uma fraternidade que não foi posta em causa, não estimuladas pelas incursões da vida pública, que é talvez um eufemismo, dado que eram gentes sem o afã das exposições pessoais das suas próprias, que uma exposição demasiado pública nunca permite conservar.
Vistas à distância do nosso virtualismo damo-nos conta que não há desleixo, abreviaturas, códigos encriptados, estavam ali como anunciantes e anunciadores dos seus laços e das suas capacidades. Este país perdeu a estrutura do laço, dos laços, da roupagem dos Vice-reis das Índias, dos entrelaçados Manuelinos, dos laços de amor que os nós transmitem «Nós e os Laços», querido Alçada Baptista. Perdeu o arrendilhado do estar, este sentimento que o formou e esculpiu… no fundo é a graça de se dar, entrosar, comunicar a outro fio a capacidade de transmitir a força. Há uma delicadeza que não obedece a formulações intimistas parecendo todos dignos uns dos outros, atentos e em seus postes, quais escudeiros de uma velha guarda, talvez se chame a isto um grande asseio de alma que nos faz tão bem!
Maria Lamas- Eugénio Monteiro Ferreira. «As Cartas» que fizeram os resistentes e este magnífico excerto: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo – sem receio de exagerar, renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba para a renovação do mundo”.
Ninguém se expressa assim na comunicação com outro numa tão alta nudez e sentimento de se ultrapassar por meio do fenómeno da dádiva, não há muito por onde nos transmutarmos nem sequer anunciar a outrem essa imensa necessidade: é tudo real, muito real, as nossas impressões digitam a necessidade momentânea que um tempo imprime por exigência de uma continua necessidade, temos necessidade de tudo todos os dias, de ganhar o dia não como um «carpem diem» mas como ultrapassagem, as nossas cartas são agora um jogo da própria capacidade para viver o desânimo que a agitada turbulência entre nações impõe. O interlocutor perdeu-se das suas vozes, somos as naturezas compulsivas de um escriba louco, escrevinhando a nossa situação, pois ela catarticamente se faz como os despojos em terreiros sem rosto, quase sem nos darmos conta que a escrita é uma comunicação grave e pejada de sentido entre os seres falantes.
Quando a Língua já são todas e todos falamos a mesma língua, há o ribombar de um coro inaudível e uma perda gradual dos próprios signos visuais: “Onde se perde a simpatia perde-se também a lembrança” (Novalis). Que ninguém se esqueça do «Banquete», aquele diálogo que todos gostaríamos de ter falado como se procurássemos o fluxo divino de cada palavra… Talvez que «A Máquina do Mundo Revisitada», na qual Camões colocou grande ênfase, seja essa linguagem que se adensa para além da necessidade pragmática e que escreve no Homem o que tão rapidamente tende agora para o esquecimento. Teremos talvez um Corpo que se abre a um verbo ardente, a uma palavra mágica… teremos talvez um tempo para repensar os nomes que nomeiam estados outros e porque os nomeamos assim. Sermos entendidos “pour la beauté du geste”, interrompendo de quando em vez de utilizar a linguagem como uma corrente macerada de conceitos automáticos, porque tempo há-de vir em que os seres que ainda somos passam a telepáticos e todo o discurso se encerra e estes sinais deixados serão olhados como um antigo tabuleiro de infinitas probabilidades.
O acto da leitura, a noção do escriba, desocultaram ao longo da Civilização o espírito do Amor, sem ele não há causas e nada que apeteça lembrar, sabendo nós que o Verbo encerra aquela “carne” que a carne não dá, a razão não quer, mas o Homem precisa. Numa longa «Carta a um jovem poeta» escreveu Rilke uma dissertação de bem sentir, nas Cartas de Heloísa e Abelardo se fez a parte que as relações impedem, de Juan de La Cruz e de Teresa D´Ávila se falou de Deus com uma pujança erótica que nos ultrapassa . Todos se encontraram no dizer destas missivas e nem Soror Mariana desistiu do seu amor em viagem calando-se entre claustros, melhorando em todos nós o que de secreto e puro, bom, bem-dito, e sussurrantemente a língua transmite a todos aqueles que se querem bem.

12 Mai 2016

Momentos de descontracção: grafittis, WC & Wu Wei 亲密无间(为)

* por Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]W[/dropcap]u Wei (无为, (literalmente “não-fazer”) é um importante conceito Taoista e significa acção natural, ou por outras palavras, acção que não implica qualquer luta ou esforço excessivo. Na cultura ocidental dos nossos dias, eminentemente competitiva, este conceito pode vir a ser muitíssimo útil e eu proponho que a noção exótica de Wu Wei passe a significar tout court “sucesso sem esforço”.
Ruth Benedict, pioneira da Antropologia, escreveu: “Ninguém olha para o mundo de forma despreconceituada. O que vemos é filtrado por um conjunto de tradições, instituições e maneiras de pensar.”
Posto isto gostaria de vos guiar numa visita a alguns graffitis que podem ser encontrados em urinóis chineses, para compreenderem o Wu Wei e como este conceito tem tudo a ver com as expressões de intimidade, fenómeno raramente observado na China.

Na China, em todas as casas de banho públicas existem cartazes a avisar que é proibido fumar. Mas o meu preferido foi escrito pela senhora que faz a limpeza de uma casa de banho masculina. Reza assim:
“Cavalheiros de bom coração, por favor não fumem no WC, OK? Esta irmãzinha pede [vos].” Por favor reparem no bonequinho de joelhos e a chorar, que está no canto.
E porque será que a maioria dos homens chineses adora fumar na casa de banho? Se partirmos do princípio que no Leste o que se passa na privacidade é considerado vergonhoso, escondendo e revelando simultaneamente essa mesma “vergonha” – e o equivalente da vergonha, penso eu, no Ocidente será o pecado – então o mistério resolve-se facilmente: funciona como um consolo que acompanha um momento de descontracção. Este momento desafia duas regras sociais ao mesmo tempo, a exigência de ser deixado em paz, porque a privacidade é praticamente algo nunca visto, e a insubordinação (fumar), sem que isso ponha realmente em causa a reputação de uma pessoa. E isto, apesar do ambiente (casa de banho) não ser propriamente propício a.… digamos, pensamentos poéticos.
A propósito lembrei-me que Sigmund Freud, cujo 160º aniversário do nascimento se celebra este mês, teria tido muito trabalho na minha terra natal. Na verdade, os estrangeiros podem dar-se conta destas “rebeliões” em todo o Império do Meio; são estas pequenas transgressões e consolos que as pessoas procuram que, paradoxalmente, mantêm o equilíbrio da sociedade chinesa, como cuspir para o chão e atravessar a rua onde não se pode. Muitas pessoas (decentes) o fazem, mas ninguém pensa nisso com um comportamento anti-social, excepto, talvez, Lee Kuan Yew, natural de Singapura, mas que estudou em Cambridge, no Reino Unido!
Os avisos que se encontram nas casas de banho públicas em toda a China são uma amostra dos consideráveis esforços desenvolvidos pelo Governo para incentivar os cidadãos a comportarem-se em sintonia com as grandiosas aspirações do País, enquanto super-potência emergente. Hoje em dia na China, em todos os centros urbanos, estão a ser implementadas novas formas de comportamento, através de um projecto patrocinado pelo Governo, que tem como objectivo a criação de “Cidades Civilizadas” (文明城市). A responsabilidade de orientar este “nobre anseio civilizacional” fica sob a alçada do Comité Central para a Civilização, em colaboração com o Departamento de Propaganda. A finalidade deste programa é a construção de uma consciência cultural que complemente a visão do antigo Presidente Hu Jintao de uma “Sociedade Harmoniosa” (和谐社会), a súmula teológica da ideologia do “Desenvolvimento Científico” (科学发展观).

向前一小步/ 文明一大步
Um pequeno passo para um homem/Um salto gigantesco para a Humanidade

Na verdade, o que diz literalmente, é: um pequeno passo em frente (em prol de) um grande passo (em frente) até à civilização. Podemos ver este slogan em diversos urinóis ao longo de toda a China continental.
Por isso se chegar a ser convidado para uma casa chinesa, quando estiver de visita ao País, não deixe de ver a casa de banho. É a expressão máxima do Wu Wei chinês – “Tentar Não Tentar” – a derradeira forma da intimidade chinesa. Juro-vos que passarão a compreender muito melhor o País e o seu povo e a estar preparados para desculpar os seus defeitos mais facilmente, ou então para esquecê-los de todo. Mas por favor partilhem comigo as vossas descobertas, gentis leitores!

E finalmente, para vocês, um conselho sábio:
Ilu3

11 Mai 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 12 – Ele

*por José Drummond

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap], de repente, o tempo pára. Porque estás aqui? O que aconteceu? Porque me perguntas se te vou magoar? Porque me perguntas isso quando esse tipo de coisa não pode ser previsto? Quando provavelmente vou-te magoar. Porque é isso que acontece com as pessoas. As pessoas magoam-se quando se tornam mais íntimas. Porque me preocupo? Tu ficaste mais brilhante e bonita. Será a maravilha da idade? Porque tenho este apetite? Porque se tornou mais agudo?
Perguntas-me porque tinham as coisas corrido mal com aquela que toda a gente julgou ser a mulher da minha vida. E eu não te soube responder. Porque queres saber isso? O que importa? Quando me perguntaste eu pensei que foi porque eu deveria ter sido mais aberto e compreensivo com ela. Eu deveria ter correspondido os sentimentos dela e deveria ter sabido como a manter sempre interessada em mim. Quando me perguntaste eu pensei que a única coisa que ela queria era ser amada, e aceite incondicionalmente. Ser consolada por alguém. Por alguém como eu. Alguém que fizesse sentido. E eu fazia sentido. Ou fiz sentido mesmo que apenas por um momento. Mas o meu instinto de destruição fez evaporar tudo é todo o sentido já não existia.

Porque estás aqui? Neste quarto? Comigo? Porque me deixei levar? Não é para lhe fazer ciúme. Não gosto de usar o ciúme como arma. Porque estás aqui quando eu não consigo falar sobre alguém que amo com alguém como tu? Porque estás aqui? Começo lentamente a odiar-te e pergunto-me por que a deixei ir. Estou a falar sério. Tu és um erro. Um erro que provavelmente me vou arrepender pelo resto da minha vida. Para com isto! Não te mexas. Deixa-me agarrar-te pelos ombros e sacudir-te. Estremeces convulsivamente e vomitas. Comias de novo. Algo amarelo. Colocas as mãos no rosto e choras em voz alta.
Porque se recusou ela a ouvir-me. Bastou apenas uma semana estudo se estragou. Tudo teve de ser terminado. Podia dizer-te que ela teve um aborto espontâneo. E que foi essa a razão. Podia dizer-te que a causa foi o choque emocional da solidão. Podia dizer-te que ela permaneceu na cama dias e dias, e que o seu cabelo macio fiou sujo e que tudo parecia diluído, incolor. Podia dizer-te que está tudo enterrado no passado. Que a relação de duas vidas foi arquivada, que esse arquivo foi enterrado na escuridão.
Provavelmente não estarias aqui se eu não tivesse saído naquela noite. E em todas as noites depois. E me tivesse sentado sempre no mesmo banco do bar. E se tu não mendigasses servido sempre. Até nós poderíamos ter conhecido de modo diferente. Poderíamos ter ido a um lugar diferente.

Mas a verdade é que são quase quatro horas da manhã, e imagino que ela descobre que já não suporta ficar sozinha no nosso apartamento. Que calça um par de sandálias e sai, sem rumo, pelas ruas da dor, vestindo apenas shorts e um top. Imagino que alguém lhe grita. Que ela está no meio da estrada, mas que continua a andar para a frente. Que anda e anda sem destino até que fica com sede. Que pára numa loja de conveniência, e, que repentinamente tudo se torna laranja, como se a luz florescente se tivesse tornado num receptor das suas emoções. Um sinal que ela pressente e agarra e quer seguir. Porque a deixa interpretar as emoções. Imagino que ela entra como que atraída pela luz que mudou de tom para um rosa pálido. Que depois de minutos e minutos de indecisão resolve comprar aquilo que, por ela nunca beberia, mas que seria aquilo que eu beberia nas minhas isoladas deambulações nocturnas. Imagino que sai com uma garrafa grande de cerveja Tsingtao. Que tenta imaginar-me à porta da loja e, na sua cabeça, imito-me bebendo rapidamente por entre um cigarro toda a garrafa. Imagino-a a deambular e a esconder-se dos olhares das pessoas. E que volta para o apartamento. E que continua a chorar. Eu amei-a. Amei-a mais do que percebi na altura. Hoje sei que ela queria tocar. Hoje sei que deveria tê-la deixado tocar-me, em qualquer lugar que quisesse, tanto quanto quisesse. Imagino tudo isto mas não te digo nada.
Porque quando me perguntas porque tinham as coisas corrido mal com ela e eu não te soube responder eu pensei em tudo isto e não poderia nunca contar. O que estás aqui a fazer? Perguntas-me se te vou magoar? Apetece-me dizer-te que as pessoas que te conseguem magoar, aquelas que te magoam mesmos, são aquelas que estão perto de ti o suficiente para o fazerem. São aquelas te entram no coração e que o rasgam. São aquelas que te fazem sentir que nunca vais recuperar. Isso não acontece muitas vezes. Apetece-me dizer-te que se alguma vez tiveres para te agarrares com todo o teu corpo e coração porque não existem muitas pessoas que consigam viver no nosso coração dessa forma e que a maior parte das vezes o coração cresce frio e indiferente. Mas não digo nada. Irritas-me. Dou-te palmadas no rabo até começares a ficar com a pele vermelha. Chupa, digo com um rosnado, e puxo os teus lábios quentes contra o meu pénis. Irritas-me. Mas dás-me tusa.

11 Mai 2016

A propósito de alguns filmes recentes

Tenho dedicado parte do último ano, ao contrário do que acontecera antes, ao visionamento de filmes contemporâneos. A colheita não tem sido boa. Com a excepção de filmes cujo aspecto visual é extraordinário, como Shirley, Hard to be a God ou The Forbidden Room, cujo interesse pouco mais vai para lá do peculiaridade do aspecto, o resto tem-se resumido a filmes interessantes por um ou outro aspecto mas que rapidamente caem no esquecimento.
Da América do Norte não lembro um filme recente que mereça menção. Do Japão, da Coreia ou da China há bastante tempo que também não vejo nada de excepcional. Da Tailândia permanece apenas Apichatpong Weerasethakul, cuja última instalação ainda não vi.
Da Europa os sinais são contraditórios. Registo com agrado, de Lars Von Trier, Nymphomaniac I e II, o último filme de Polanski, envolvente, sedutor e teatral, Venus in Fur, Filme Socialisme, de Godard, ou, um pouco mais antigo, Vous n’avez encore rien vu, de Resnais, no sentido em que se erguem (e é isto que é muito raro) como filmes de referência futura, filmes que contêm matéria para uso futuro em comparações ou tentativas de entender ou criar um quadro modelar. Le Quattro Volte, de Michelangelo Frammartino, 2010, também pode ser uma boa ajuda.
Filmes giros tenho visto alguns, como Tangerine, Bande de Filles, Ida, Victoria, Love, The Lobster, Mr. Turner, Locke, Timbuktu, Catch me Daddy ou L’Enlèvement de Michel Houellebecq, mas fica uma impressão de embrutecimento. Fica a impressão de que há muitos filmes interessantes mas poucos filmes que interessem verdadeiramente e que se torna desgastante ver muitos filmes que pouco mais sejam que giros.
Sou levado a pensar, mais com surpresa que com irritação, que as pessoas (os espectadores) deixaram de ser exigentes e se acomodaram confortavelmente à opalescência do Cinema Giro, como se acomodaram ao latte e ao croissant e mostram algum sobressalto quando alguém vem agitar o seu mundo certo e seguro. Talvez por estas razões os filmes de Fassbinder têm sido aqui tantas vezes objecto de admiração, a prova perfeita de que um filme pode ser exigente – porque exige muito do espectador – e ao mesmo tempo popular e viável comercialmente.
Do Irão ou da Turquia continuam a chegar filmes bons e densos mas repetitivos nas temáticas e na estética.
Autores que não conheço mas que têm provocado uma curiosidade que tem sido difícil de saciar são os filipinos Lav Diaz e Kidlat Tahimik. O recente cinema romeno é um filão que não tenho conseguido explorar igualmente por falta de acesso aos filmes.
Alguns documentários de Errol Morris ou John Gianvito não são suficientes para entrar em grandes entusiasmos. O contrário poderá ser dito dos dois filmes em jeito de documentário de Joshua Oppenheimer sobre as atrocidades cometidas sobre os comunistas na Indonésia na década de 60. Ao contrário de muitos, prefiro o absurdismo um pouco desarticulado do primeiro deles.
O único filme relativamente recente que se institui, com pompa e brilho, como um filme de referência, é Japón, de Carlos Reygadas (mas é de 2002). Nele pode falar-se de um universo, um que tem um valor exemplar, no desenho cru e agressivo das personagens e das intenções que exibe e da aridez violenta da paisagem. Em Japón o céu junta-se à terra para nos explicar as nossas insuficiências e a nossa pequenez e para nos expulsar do paraíso da inércia.
Lembre-se que este vosso escritor não é crítico de cinema (o que o iliba de muitas obrigações) nem tem acesso a muitos filmes que se lançam pelo mundo fora. Mas dos exemplos que tem visionado não retira motivo para muitas alegrias. É suficiente para escolher uma dedicação exclusiva ao documentário ou ao cinema avant-garde ou, mais sensatamente, a uma arte a sério como a música.
Vi com um carinho que raramente dispenso ao cinema brasileiro, Girimunho, 2011, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. (faz lembrar Clarice Lispector, muito) e O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho, 2012. Nunca me decidirei, creio, a divulgar um dos meus filmes mudos preferidos, Limite, 1931, de Mário Peixoto, preferindo continuar agarrado a um medo (que se estende a outros filmes preferidos) de não lhe fazer a justiça que merece.
Este medo estende-se a outros filmes mudos e pode revelar também uma incapacidade para escrever sobre algo tão puro (e, ironicamente, avançado) como o cinema mudo, na sua vertente avant-garde de filmes de Man Ray, Walter Ruttmann ou Hans Richter (um fotógrafo e dois pintores) ou em exemplos mais acessíveis como Ménilmontant, de Dimitri Kirsanoff, A Paixão de Jeanne d’Arc ou Vampyr, de Dreyer, The Wind, de Sjöstrom ou Schatten, Eine Nächtliche Halluzination, de Arthur Robison (lembro, com brutalidade, que este sim, já foi alvo de atenção).
Não tenho encontrado grande eco junto a outras pessoas para a ideia de que hoje em dia, graças ao digital e à qualidade de equipamento de filmagem e montagem relativamente barato e de fácil transporte, há relações de semelhança com a época do cinema mudo. Divago.
Deve agora o leitor preparar-se para aceitar sem indignação uma ideia digna de uma séria Acção Patriótica. Do mais interessante que tenho visto são alguns filmes portugueses e registo com agrado a internacionalização de nomes como João Pedro Rodrigues, Gabriel Abrantes, Pedro Costa e Miguel Gomes (que eu ainda não percebi, desde Tabu, um dos melhores filmes que vi nos últimos anos, se ele anda ou não a gozar connosco, um dos maiores elogios que lhe posso fazer).
Uma vez que Pedro Costa parece ter, com Cavalo Dinheiro, esgotado o filão que tem vindo a explorar, não havendo nele a sincera invenção e sentido de cerimónia dos filmes anteriores mas uma estilização esperada que bastará a um filme apenas, a expectativa sobre o que fará a seguir é enorme. Por que não um musical?
Sobre Miguel Gomes e sobre o longo e necessário As Mil e uma Noites falar-se-á em breve.

10 Mai 2016

Constança

[dropcap style=’circle’]G[/dropcap]ostamos nós, os de pendor romântico insaciável, da transgressão amorosa, desse culto diamantino dos amantes, e também do sabor epicurista da via dos sentidos, desses seres excessivos onde a paixão impera e os poros dilatam, exultando luxúria e pragmatismo. Mas o amor é um tecido ainda mais duro no jogo quase sem fim das probabilidades, é um dador requintado que mede o pulso aos medos e, nesta sua aplicação de muitas variantes, de quebras e de equívocos, há os que ficam reféns destes efeitos probabilísticos: os chamados amantes esquecidos, repletos de uma dor que aos outros não interessa, dado que a remetemos para o sujeito da perda, que não aglutinou o efeito vital de um outro, mas que não deixa de ter por detrás uma maravilhosa dádiva e altruísmo na completude dele.
Falo de Constança Manuel, a partir da obra de Eugénio de Castro de 1900 e que se chama «Constança». Mulher do infante Pedro I e amiga pessoal da sua aia Inês de Castro (o resto todos sabemos) Constança foi repudiada pelo infante, morre de parto de Fernando, e ela, emblematicamente, guarda o segredo de um sacrifício, também ele de amor. Este poema elegíaco é uma reflexão poderosa: Constança também estava enamorada de Pedro, vivendo o martírio dos abandonados, num desterro duas vezes repetido, que reclama o amor do príncipe e a ternura da aia, amor esse, a que renuncia, alagando-se em pranto, e Eugénio de Castro põe aqui nesta imagem a alma sagrada de um país, uma metáfora interior, que se faz pela dor , onde disposto a ser a vítima, tenta fugir com alguém ou alguma coisa, para deixar os que se amam felizes e sem remorsos. Esta verdade inscrita no mais silencioso da alma lusa, este poder de se ultrapassar, esta inqualificável dádiva são lembranças de réstias de santidade.
Constança, como todas as mulheres, aqui tão bem esculpida pela índole de um poeta (pois só eles sabem destas vertentes de olhos abertos em abismos vários), embeleza-se na sua pouco atraente figura para reconquistar o amor do príncipe, pela dignidade que lhe é devida, muito mais que por mera competição, e o poema segue como uma Oblata sabendo do louco amor que este tinha por Inês, pedindo auxílio à própria dor. “Quero-te muito ó Dor, amo-te imenso».
Ela, moribunda, cercada pelos dois… Pedro sente a perda daquela a quem não pôde amar. O beijo que dá a Pedro devolve-o a Inês como se não fosse seu, quando esta vem… É esta uma obra que não está nos trilhos do tempo – deste tempo – pois aborda um amor diferente, estando muito perto de uma concepção litúrgica do próprio sentimento amoroso. Aqui produz-se um acto sacrificial, uma grandeza em que não reparamos, dado as figuras centrais onde se escrevem e reescrevem todos os diálogos, pois que de vínculos bem mais perceptíveis estão munidas. Nesta periferia, nesta sombra, há algo de memorável, atalhos por onde delicadamente nos vamos adentrando para reabilitar a dor dos supliciados e dos abandonados, cujo drama não é menos pujante. Para tal, serve este labor, reabilitar o lado invisível de uma saga e colocá-la na mesma missão, pois que todos sofremos por causas e posições diferenciadas, e todos somos agentes das forças vivas. O drama da vida é legítimo para todos, e há depois esferas de entendimento que nos fornecem aqueles que o sabem explicar.
Vamos encontrar na literatura portuguesa esta imagem no «Amor de Perdição», de Camilo Castelo Branco, em Mariana, que passando para um plano secundário do drama, fez esta história mais rica pelo apelo ao sacrifício, uma presença emblemática de incondicional amor. Quando desenrolados os factos, é ela que está lá, ao lado de Simão, como alguém que abraça a morte com a volúpia de uma rendição de onde jamais pensou ou pôde sair. E não sofre apenas – a amante, a amada, o amigo, e o amante… – até Deus parece sofrer…

( …..) E nela está
Pregado e ensanguentado
OS CRAVOS são quem os sustenta sobre a cruz.
O seu corpo divino é escuridão
Swinburne, « A Sombra do Amor»

Que enorme e casual demonstração do sentido oculto de uma nação!
Esta dor tem sem dúvida a reminiscência crística e os Cravos ainda sustentam o corpo morto por amor a uma deidade que a abandonou. Pelas palavras de Teixeira de Pascoaes, um torrão imenso de densidade ibérica expressamente dita na «Sombra da Dor»:

Para que estejas em cada ser humano
Sempre presente a dor da Humanidade!

Parecendo matéria grave, no entanto não o é: é um tecido que deitamos para os cantos da memória colectiva onde o sucesso não entrou e somos sensíveis aos fortes que desbravam caminhos, ficando os outros num limbo de ingrato desconhecimento quando não de opressivas abordagens. A grandeza das Nações está cada vez mais no tecido da sua alma, quando o embuste da heroicidade for vencido. Está nesta ternura pelos que perdem, nesta imensa capacidade de dádiva e olhar na sombra. Os ângulos destas leituras continuam viciados dado que a Cultura que partilhamos é por vezes um vício e um embuste, pois nós seríamos bem mais felizes nestes atalhos onde as coisas se dão, do que nas janelas douradas que nos tiram o melhor da vista e da visão do todo. Estamos contaminados de imagens todas poderosas e de seres que são mitos, e queremos ver no nada que representam alguma coisa, e essa coisa, não mais nos devolve aquilo que aos poucos a todos foi tirando.
Acho que esta dor é aquela que se deve impedir, não sofrer por ela é já uma grande conquista. O amor, esse, é um assunto que segundo aquele que tiverdes, compreendereis melhor os Camões de um reino que, parecendo por vezes feliz, é de trevas.

9 Mai 2016

Contraste simultâneo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]star triste. Estar tão triste, que mais nada se apresenta nítido. Por momentos. Tão triste quanto a alma permite como limiar do impossível. Quase a tocar. Tanto que quase se sente inviável a ligação a um corpo que parece teimar, com uma energia própria, em não sucumbir. Alienado dessa paragem de toda a vontade que não seja ficar ali. No território de uma tristeza sossegada. Legítima. Quase confortável. Ou tão inquieta, que às vezes a alma parte por aí tumultuosa e em desespero. E eu vou atrás dela para que não se perca, como criança desassossegada e inconsciente. Numa corrida em que nem a apanho nem a perco de vista.
E depois, estes dias de um sol brilhante e de um céu azul, denso e sem mácula. Os brilhos intensos em tudo e mesmo na mais ínfima folha de uma planta. Virada para a luz. Com uma intencionalidade que não vem da consciência impossível de uma planta, mas de um outro saber. Saber da matéria orgânica. E é tão bom. E não haver melhor do que dias assim. E mesmo assim estar triste. Triste e bem disposta. Ser triste que sou. E depois, voltar aqui. Bem ao meio deste longo lamento contra os optimistas bélicos. E já ter que dizer os dias como hoje envoltos também numa película nebulosa de cinzento. E voltar de novo a este lugar do texto para dizer que já chove.
E nesse retorno, sentir que grande parte destes parágrafos é um refrão que se repete e de que é preciso recortar figuras ou formas e guardar para outros dias. Às vezes guardo pequenas frases, palavras bonitas e soltas, de que gosto como contas ou pérolas. Que não ficam bem neste colar mas quero guardar para um outro. Há detalhes fúteis em qualquer emoção existencial. Que o pudor teima em relegar para locais menos nobres. Caixinhas como de bijuteria da vida. Mas o refrão que por aqui abaixo começa por se repetir, vi-o depois excessivo. Preciso para mim como na música. E, mesmo aí, de tão insuficiente que repito por horas quando a alma mo pede, a mesma, sempre a mesma música. Sem desfitar de uma mesma emoção. Sem saturar. Até um ponto. Mas demais aqui. E recorto a custo. Figurinhas como de papel. Tristes.
Sim, às vezes o mergulho é a pique e só a música condiz com a forma da minha deriva. Instrumental às vezes. Vozes roucas quase humanas como a de violoncelo, que parecem desentranhadas da alma. Ou não. Outras vozes. A encobrir as que temo e me possam enlouquecer. Desarticular. Perder fragmentos. Ou perder-me em fragmentos, talvez. Uma harmonia que custo a encontrar na longa lista de possibilidades. De músicas. Que procuro de cabeça meio perdida e impaciente de encontrar. Depressa, para poder parar. Estacionar no lugar dos sons. Voltar à tristeza. Específica como nenhuma, na voz em que preciso de a encontrar. Do momento. Que acolham o que sinto sem oposição e sem luta. Num embalar ao que anda desvairado, sem casa e sem apaziguamento. Como um antídoto particular e, como estes, feito da mesma matéria química ou sensível, mas não para que anule o veneno. Só para não fazer demasiado mal. E, é na música, quando tão sóbria quanto preciso, que se desfazem nós de angústia. Não da angústia de estar triste mas de toda a impossibilidade dessa paragem que não pode ser. Desse desalento confuso e maior, que de tão volátil, impreciso e esquivo, se mantém intratável até ao momento de uma certa calma. Um certo silêncio de todos os desesperos e o retomar das necessidades básicas. Comer, por exemplo. Ou dormir, que é uma coisa de abandono. E às vezes começa a insinuar-se uma certa indiferença fria e distante. Outras vezes um sentimento já de quase mesmo aversão àquilo ou a quem nos faz triste. À vida de todos os dias. Ao esforço que exigir sempre cada objectivo.
Mas ser o estar triste não uma doença, e não contagioso ou contagiante. Alimenta-se de dentro. De sonhos e expectativas. De passado e de futuro. E de perdas. Passadas – como passadas foram as do caminho percorrido – e futuras. Onde me levo de novo à eterna questão de ser ou não o passado perdido. De ser ou não ser, ter sido, o ganho que se tem garantido. A alegria é-o do momento presente. Quando é. Mas a tristeza, a minha é um substrato inerente ao meu modo de não desistir do muito que gostaria que a vida fosse. Que existe na base da minha alegria de às vezes e da minha boa disposição. Mas não é que seja um pessimismo teimoso. Nem estar triste por convicção, nem feliz por religião. Às vezes, acho-a uma tristeza boa. Como um bom cão, de guarda a sonhos que não quero perder. E um bom cão, guarda o dono até na morte. Talvez também os sonhos.
Ou dizendo de outro modo, que os sonhos, mesmo os impossíveis, não podem ser como castelos de areia. Há os que se vão com a primeira onda e os que são a estrutura do que somos coerentemente. Mesmo nas impossibilidades que reconhecemos em nós. Que estruturam a partir de um ponto no infinito. Esse abismo. Para dentro ou para fora. Longe ou perto. Perto ou longe.
Dias há, de caminhar sem rumo. E dias sem sair. À procura de algo que se afastou da paisagem avistável. Noites compridas sem sono. Sem vontade. Sem vontade do sono. Sem querer um dia novo de caminhada sem norte. Procuro as brasas do fogo de sempre e perdi-as. De vista. Perdi as coordenadas que sempre me levavam ali mesmo na cegueira. E caminho para esvaziar a mágoa indistinta, imprecisa, ténue. Sem lhe saber contornos diferentes de outros dias, a mais do que um vazio que se vai instalando. De ausência palpável do que não estava lá. Talvez sonho. Talvez mesmo aquela força subterrânea que faz do sonho uma espécie de realidade paralela. Possível. Tão imaginável. É talvez isso que se desfez sei lá como. Uma intuição ou uma fraqueza de fé. Caminho pela noite à procura das luzinhas ténues de um fogo já rarefeito. Brasas quanto muito. E deparam-se-me muros. Fechados. Com gente ali. Mas eu sei que este não é meu caminho. Longe de tudo. Caminho pela noite de braços cruzados e cabeça baixa contra uma aragem fria. Ou não saio. E é o mesmo. Não sei quanto estou perdida e longe. Não sei. Não sei se posso voltar ou de onde. Não sei. Não vejo. Dias assim. Ou momentos que nem minutos têm de vida. A esperança, talvez. Essa espécie de ciência da adivinhação que nos projecta em possibilidades e de algum modo dá sentido à, aquém dela, inexistência de algo. Dizer que adivinhar não é uma ciência, afinal. Mas que dizer de Júlio Verne ou da capacidade de sonho e antecipação que estão na base do labor científico…Que inventa antes de descobrir. A diferença entre uma verdadeira pergunta com um ponto de interrogação no fim, ou um devaneio a não querer mais do que o sonho da possibilidade de perguntar sem uma resposta fechada em si.
Dias assim. Ou momentos que nem horas têm de vida. E depois, subitamente ou devagar, o desgaste. A erosão própria a estruturas complexas e de muitas texturas incertas. Nada no ser é liso em termos existenciais. Redondo sim e etéreo na sua geometria de forma abstactamente redonda. Arquétipo de tipologia esférica. Mas a existência recobre de irregularidades múltiplas e que são mais frágeis à corrosão. Estar triste e depois já não estar. Sei lá…
Mas às vezes era preciso que alguém dissesse: Não faz mal. Estar triste. A tristeza é natural e a tristeza não é má. Porque estar triste é resistir à fragmentação de um eu que, ou não sente, ou não é filho de boa gente. Como o luto. Tudo faz parte da unidade facetada do que se é, e é numa harmonia em que é proporcional a tristeza, à importância que se dá às coisas, às pessoas e aos sonhos de vida. Que se perdem que desiludem que desamparam. E a nós próprios naquilo que sabemos não ser, que não sabemos ser, mas que não perdemos de vista. E é assumir que isso teve um valor positivo mesmo que em sonho ou expectativa.
Contraste simultâneo ou o elogio da tristeza. Ou a felicidade de gostar, em contraponto com a tristeza de não ter. Não por se gostar de ser triste. O elogio da tristeza porque é fundamental viver os paradigmas. Neste mundo infernal o paradigma é a alienação possível. Daqueles que se não vitimizam. Fugir à fragmentação da alma de cada vez que se vê contrariada, frustrada e triste. À tentação de deixar descartados sentimentos e sonhos como se de nada tivessem valido, de cada vez que são frustrados e contrariados. Rejeitar a troca da coesão de um ego amante de coisas amáveis, pela constatação de que não estão maduras para si. Estão verdes. Não prestam? Porque a utopia é esse oásis da melancolia, sempre à espreita, esta, de cada insucesso. Ou a tristeza. Ou ser triste. Digo. E contradigo. O que não é diferente ou contrário a ser bem disposta. Ser as duas coisas. Como uma avaria lógica. E alegre também. Independentemente. E muitas vezes – quase sempre – as duas em simultâneo. Contrastes. Só nunca fingir.
Tenho esta maneira de estar triste, e eu estou tantas vezes triste, mas muitas vezes triste e bem disposta. É isso que é para mim uma estranha combinação. Tento que os meus lábios não curvem para baixo para sempre. Como forma de resistir à devastação da mágoa, tento encontrar a disposição que retém alguma da ternura que me constituía dantes, como antídoto à mágoa. E todos os dias há situações que magoam. Algumas mais indeléveis do que outras. A desilusão em crescendo. Mas fazer o impossível para me não afundar nela e construir o desenho do que amo e quero reter, mesmo que à custa da memória, mesmo da que dói, mesmo que à custa de um olhar distanciado. Segurar-me nas franjas de uma realidade que posso reter com os olhos. E às vezes advém daí uma inesperada sensação de euforia vital. Que não anula a tristeza subjacente mas a desfoca momentaneamente mantendo a certeza de que lá está mas um pouco recoberta de outros pensamentos e da energia necessária a vencer a inércia da mágoa. Não vou dizer o indizível da esperança sem nome e da inabalável fé no devir. Vou antes serenar no lirismo possível de tudo ser possível até prova em contrário. E que ao fundo não se avista beleza certa, mas há uma curva no caminho que desculpa a invisibilidade e deixa em aberto o que para lá se desdobra no tempo. Essa ocultação necessária, porque a vida se faz de epifanias pontuais e precárias e de ocultações misteriosas e aliciantes, e que é a pedra de toque de um sentir em aberto e triste, muitas vezes. Mas não sem redenção. Gosto da crueza do real sentido. Tal e qual mesmo a doer. Ou de, noutros momentos uma certa indefinição. De não pensar e não sentir nem desistir. Estar triste e pensar que vestido levo ao aniversário de N. Que dê com aquele batom. É a vida. Que é cíclica como as marés que não se suportariam sem a alternância de cheios e vazios. E feita de todas as cores.

Não sei porque se diz de cores, serem tristes. Tristes umas, contentes outras. Alegres. E destas: vivas saturadas ou puras. Sem quebra. Sem misturas. Do branco, do negro ou do cinzento. Porque se diz das que são suaves, estáticas, mudas… Não sei por que analogia se lhes chama tristes. Sei. Já as que se chamam alegres, vivas, dinâmicas, violentas, mesmo. Contrastantes como excessos. Mas vejo uma estranha variedade de cromatismo nas emoções tristes. Que vai desde o maior silêncio ao maior tumulto. Porque também este é um sentimento que se envolve de razões e causas de emoções que se fiam num mesmo cordão. Como se, nesse paralelo de calor e intensidade, a alegria fosse um conjunto de paralelos a partir do equador. A partir de um ponto tórrido e desvanecendo-se progressivamente de violência. E a tristeza fria e informe como as cores diluídas. Sempre de uma mansidão calma e desmaiada. Em hipóteses contrárias me perco na memória, de muitas tristezas diferente. Ao longo dos dias e das horas. Com os contrastes possíveis como os das cores. Lembrei-me dos Delaunay. Sobretudo Sónia. Os contrastes simultâneos entre cores puras. Quentes e frias. Como segredo para intensificação mútua. Mais ainda se forem complementares. A estonteante dinâmica perceptiva criada pelos grandes discos concêntricos. Uma euforia de vida. Uma agitação que se liga ou mesmo confunde com alegria. E a sua contribuição para um cubismo a que faltava lirismo, cor e luminosidade, por tão intelectual e austero. Mas não para mim. Em que tudo se faz de tudo. A sobriedade que pode haver na alegria suave e a violência do apagamento na tristeza ou a dinâmica do tumulto interior. Quando não se aliena o sentir só porque está na moda ser alegre e positivo. O que há de pessimismo em estar triste quando se está em perda, mas se gosta daquilo que se perdeu. O que será tão contrário ao optimismo, no assumir o valor da demolição de um sonho, enquanto se sente, em vez de mobilizar um alheamento alienado daquilo que nos constrói e caracteriza. Como se só a victória de um sonho o tornasse válido. Ou se do desapontamento não sobrasse o gosto de se ter esperado o melhor. Até uma suave impressão de ter sorte na tristeza porque significa que algo foi preenchimento. De novo como a imagem das marés. Sem uma a outra não faz sentido.
Gosto daquele nome que ganhou o movimento dos Delaunay. Orfismo. De Orfeu o poeta mítico. Ou cubismo órfico, ou lírico. E da sua raiz conceptual na enorme semelhança entre a música e a exaltação da cor. O mesmo lirismo. Feito de contrastes, ou harmonias suaves. Mas como se poderia exaltar a cor sem o reverso que a faz brilhar. E de novo, como as marés. A vazia a criar um arrastamento do qual só aquele momento de paragem e a imediata e inexorável subida que se lhe segue, torna suportável. E o contrário. Nas pessoas também. Em cada uma. Só.
Contraste simultâneo ou a última palavra. Entranhadamente triste. Devia ser esta. Ou voltar em síntese, ao optimismo e ao pessimismo como faces reversíveis. Ou ao quase paradoxo de haver de ambos na tristeza. E de não se querer facilmente que nos arranquem dela como de casa. Porque, diria triste, as pessoas não gostam da tristeza. Como um bicho feio. Incomodativo. Como um espelho a arrastar para baixo. E querem empurrá-lo à força para fora da sua visão e de nós. Mas não é um bicho feio nem mau. Tem de todas as tonalidades como a música. Ou as cores. E marés como o mar.
Os dias são assim. Texto tecido.
To be continued…

6 Mai 2016

Ruptura revolucionária e cosmopolitismo

Cardoso Pires, José, Alexandra Alpha, Dom Quixote, Lisboa, 1992
Descritores: Literatura, Romance, Portugal, Anos sessenta, Revolução, 447 p.:21 cm, ISBN: 972-20-0086-1

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]2 de Outubro de 1925, nasceu José Cardoso Pires em São João do Peso, no concelho de Vila de Rei, na parte beirã do Pinhal. Frequentou o Liceu Camões e a Faculdade de Ciências onde, porém, nunca se viria a formar em Matemáticas. Em 1945 alistou-se na Marinha Mercante, mas também não foi muito bem sucedido nesta actividade tendo acabado por se tornar jornalista. A dada altura tornou-se director das Edições Artísticas Fólio onde promoveu alguns escritores nacionais e estrangeiros que marcaram a literatura do século XX. O Delfim, é geralmente considerado a sua obra-prima. Faleceu em 1998 e repousa no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Do conjunto da sua obra destaco a novela O Anjo Ancorado de 1958, o ensaio de 1960 intitulado A Cartilha do Marialva, O romance O Hóspede de Job de 1963, em homenagem ao irmão falecido em acidente de aviação militar, o livro de crónicas na antecâmara da morte De Profundis, Valsa Lenta e finalmente o aclamado romance A Balada da Praia dos Cães de1982.

Modernidade e Cosmopolitismo. Anatomia de uma Revolução Cultural

Conjuntamente com o Delfim e a Balada da Praia dos Cães, este romance Alexandra Alpha faz parte da trilogia das obras primas de José Cardoso Pires.
O Delfim simboliza a figura do cacique ou marialva do país rural, arcaico e paternalista, vagamente heroico, mas serôdio, no seu desajustamento com a realidade. O romance é contudo mais premonitório que realista e sobretudo através das suas micronarrativas ideológicas onde se confrontam dois mundos, aquele que é mostrado através do olhar irónico, do escritor urbano, culto e progressista, e o mundo da Gafeira baseado só em preconceitos. Muitos intelectuais progressistas e urbanos entretinham este tipo de relações com o mundo rural, através de laços familiares ou de relações de amizade e podiam portanto exercitar sentimentos críticos, contudo não radicais e almofadados sempre por um desencanto suave. Cardoso Pires mostra bem com ironia quanto baste o espectáculo de um mundo em declínio que procura agarrar-se a pedaços de retórica ideológica e axiológica, sobretudo moral, e que estrebucha para explorar ainda, mas já em desespero, as contradições inerentes ao progresso. Ora isso sendo da ordem da modernidade e das suas contradições, é também e já um dado da nossa cultura pós-moderna. Nesse sentido o Delfim é o romance de um mundo que terminou, e cujo anacronismo levou à desintegração do próprio discurso do narrador, o que é uma característica do pós-modernismo (Seleste Michels da Rosa). jcp
A Balada da Praia dos Cães será provavelmente o retrato do regime enquanto sombra, sombra fria que só pode desocultar-se com a mesma frieza. Tudo aquilo se passou em tempos que foram tão sórdidos e tão inqualificáveis do ponto de vista moral que só podem ser investigados com a mesma objectividade e frieza com que um anatomopatologista disseca um cadáver putrefacto. A primeira página do romance, o relatório da descoberta do cadáver, é a este título exemplar e o facto de o cadáver ter sido descoberto por cães amplifica este sentimento de desprezo. Que a isto se tenha chamado uma balada, apresenta-se como o clímax do requinte em termos de sarcasmo. Um sarcasmo corrosivo, contudo frio. Um sarcasmo à Cardoso Pires.
Finalmente Alexandra Alpha mostra o país dos paradoxos, o eclectismo de um tempo em que o novo e o diverso coabitam com as sobrevivências grotescas do passado. É um tempo de transição que integra já os ideais e os sonhos utópicos dos anos sessenta asfixiados porém num universo de valores que lhe era hostil mas também a utopia social e política que alimentará a revolução. A desmontagem dos mitos continua mas agora, muito curiosamente, os mitos do regime aparecem lado a lado com os mitos libertários, eles também diluídos no seu tempo e tratados igualmente sem contemplações. Entretanto o 25 de Abril vem pôr isto tudo em cacos através da súbita emergência do pathos.
A personalidade que faz a ponte entre estes dois mundos é uma das melhores personagens da galeria de José Cardoso Pires, a publicitária de sucesso, Alexandra, a publicitária da Alpha Linn. Alexandra não é apenas a personagem que faz a ligação entre dois mundos, ela é verdadeiramente o lugar geométrico que tal como numa estrutura de articulação confere coerência à gravitação das personagens, assim como às oscilações que simbolizam. Em Portugal os anos sessenta e os anos setenta aparecem mediatizados pela transformação política. Como seria se essa mutação não tivesse ocorrido, isso nós não sabemos. Mas ela aconteceu e tornou-se motriz de todas as outras tendências ou erupções súbitas.
Quem viveu esse tempo em plena maturidade e juventude sabe dar o valor às personagens deste romance, pois de facto todas elas significavam um segmento da sociedade portuguesa no, doloroso para uns, exaltante para outros, processo de rotura. O autor poderia ser mais agressivo na composição dos personagens e poderia ter implementado outras figuras emblemáticas, mas isso provavelmente exigiria uma distância que ele ainda não teria na época em que escreveu o romance. Muito provavelmente o romance da rotura, em Portugal, estará ainda por escrever. Estou a referir-me ao grande romance. Alexandra Alpha será provavelmente um dos melhores que se escreveu a par seguramente do Cavaleiro Andante de Almeida Faria e do Auto dos Danados de Lobo Antunes. Estes são mais localizados, enquanto Alexandra Alpha será talvez mais cosmopolita. No caso do Cavaleiro Andante há ainda a considerar que ele estava agarrado à visão de conjunto da Tetralogia e no caso de Lobo Antunes ressalve-se o facto de que ele não escreveu sobre esta época apenas um romance, mas vários, como é o caso do Fado Alexandrino, por exemplo.
No romance de José Cardoso Pires, são personagens notáveis por exemplo, o marialva do Alentejo (o tio Berlengas) e o marialva de Trás-os-Montes (Sebastião Opus Night), dois remakes do Palma Bravo de O Delfim, mas que metem o Palma Bravo num chinelo. A verdade é que a realidade era agora muito mais quente e havia muito mais a perder ou a ganhar, além de que o autor já possuía agora uma tarimba que os romances e os ensaios anteriores lhe haviam fornecido.
E que dizer dos outros: A bonecreira Sophia Bonifrates, a Maria, professora revolucionária, Bernardo Bernardes, na pele do intelectual típico da época… Cada personagem capta a realidade nos seus desígnios óbvios ou secretos, o melhor e o pior de um certo tempo, enriquecido pelo facto de que o autor não cai no maniqueísmo, pois todos os sonhos e ideais assim como os desesperos e cegueiras radicais são atravessados por um olhar irónico, distanciado e sereno. Em boa verdade só Alexandra se salva. Ela é a heroína por excelência de um tempo que prometia muitos heróis mas que com o tempo se eclipsaram. Talvez por isso a sua heroicidade não seja social e política, mas antes da ordem da mutação mental e dos costumes; pois essas é que são as grandes revoluções, as que ficam, as que sendo lentas, são contudo eficazes e perduram no tempo.

5 Mai 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? – 11 – A viúva

* José Drummond

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u sabia que ele não se ia conter. Mas deixemos o vídeo para depois. Estava eu a contar-te sobre aquele meu trabalho. Dizia-te que estava no lobby do hotel e que tinha esta estranha sensação de que tudo poderia correr mal. Apesar disso ali fiquei parada e antes que pudesse abandonar tudo e virar as costas o meu alvo estava a olhar para mim, à minha frente, como se tivesse sido hipnotizado. Havia algo de sinistro naquela cara. Uma cara com uma presença persistente de morte. Uma cara que transmitia uma morte lenta, inescapável e tortuosa. Eu percebi naquele momento que não podia simplesmente fugir. Foram uns longos dez minutos como se, repentinamente, o tempo se recusasse a seguir em frente. Fiquei suspensa no tempo, a tentar controlar a minha respiração. O fantasma de falhar a missão ocupou a minha cabeça e naquele lobby todos os sons jorraram com reverberações ocas. Os passos de pessoas sobre o tapete grosso soaram como almas perdidas, tacteando em direcção para os seus lugares de descanso eterno. O único ruído real a chegar aos meus ouvidos foi o tilintar de um conjunto de chá na bandeja de uma empregada que passou no café ao longe. Mas mesmo esse som continha um som secundário dentro dele. Se eu já estava tensa, naquele preciso momento achei que não iria ser capaz de cumprir a missão quando chegasse a hora. Fechei os olhos e quase por reflexo entoei uma oração inventada no momento. Qualquer coisa que eu pudesse achar que me tinham ensinado a recitar antes de cada refeição. Qualquer coisa que eu pudesse imaginar de um tempo atrás. Tentei iludir-me que toda gente morre mas ninguém está realmente morto.

Ali estava o líder de um subgrupo das tríades que tinha que desaparecer naquela noite e eu tinha sido selecionada para o fazer. Ele soltou umas palavras breves ao ouvido de um dos acólitos virando-se para mim disse-me “convido-a a ficar numa das minhas suítes”. Antes que desse por mim, e sem que pudesse dizer nada, estava a ser dirigida até à porta do elevador, que abriu sem fazer ruído. Com rabo de cavalo o acólito manteve-se a pressionar o botão deixando-me entrar primeiro. Aquele homem não nos seguiu. No elevador tive um ‘blackout’ pois é como se não me lembrasse de nada até que o elevador abriu as portas e o acólito de rabo de cavalo voltou a pressionar no botão para que eu saísse. Logo após ter saído do elevador adiantou-se e passou a liderar o caminho. O corredor amplo e totalmente deserto. Perfeitamente silencioso. Completamente limpo. Existia um cuidado especial em cada detalhe, de uma diferença total com os restantes hotéis na altura. Ao fundo do corredor imensos vasos com flores. Deixei-me inebriar pela sua fragrância. No caminho não vi nenhuma escada e nenhum outro corredor para poder escapar. De repente este homem de rabo de cavalo parou à frente de uma porta e sem esperar abriu-a. Entrou, olhou em volta para se certificar de que não havia nada de errado, e com um breve aceno de cabeça deu-me direcções para entrar. “Estou sozinha”, pensei. “Não me vou conseguir escapar desta”.

Entrei e ele fechou a porta logo de seguida, trancando-a com a corrente. Não havia forma de escapar sem que envolvesse uma série de acções suspeitas. A suíte tinha uma vista deslumbrante de Macau. Alguém bateu à porta. Ele levantou-se, do sofá, onde se tinha sentado de imediato, dirigiu-se para a porta, abriu a corrente, deu a volta à maçaneta, e, sem qualquer outro som, mais dois subalternos entraram. Todos eles eram homens bem constituídos e iria ser muito difícil eu conseguir escapar sem passar por eles. Ele voltou a trancar a porta com a corrente. Dirigiu-se para o quarto e depois de confirmar que tudo estava bem o homem de rabo de cavalo disse-me para me sentar na cama e esperar. Os outros dois homens sentaram-se no sofá e ligaram a televisão. Perguntei se podia ir à casa de banho do quarto para me preparar com roupas mais confortáveis. Ele disse que sim e permaneceu à porta do quarto a controlar os meus movimentos. Fui até à casa de banho e insinuei um andar sexy e descontraído. Mal entrei, e depois de fechar a porta, comecei a inspecionar tudo. Senti que ele talvez se tivesse aproximado da porta da casa de banho. Quase poderia apostar que o fez. Comecei a cantarolar uma canção da Faye Wong enquanto escondia o fio de aço dentro do autoclismo. Enquanto me vestia escondi a pequena pistola por entre as toalhas. Abri a torneira, simulando que lavava as mãos e a cara e espalhei vários itens de maquilhagem no mármore frio. Enquanto continuava os versos do “fragile woman” escondi o pente com a agulha fina por detrás do espelho. Restava-me o batom de defesa e não sabia o que fazer com ele. Tinha a certeza que eles me iriam revistar antes que eu pudesse chegar perto do seu líder. A pistola estava no lugar mais perigoso e visível mas, no caso de tudo correr mal, também poderia ser a minha única defesa. Fechei a torneira e escondi o batom de segurança, que continha uma lâmina suficiente para cortar a carótida de alguém, fechado, num penso higiénico que introduzi na minha vagina. Abri a porta sorridente. Dirigi-me até à porta do quarto e lancei um olhar sedutor ao homem de rabo de cavalo. Perguntei-lhe se ainda tinha que esperar muito dizendo-lhe que queria descer até ao casino para jogar. Não tive qualquer resposta. Apenas um olhar que dizia “cala-te puta”. De seguida puxou-me para a sala da suíte e apalpou-me toda enquanto entregava a minha mala aos outros dois para revistarem. Um só calafrio poderia deitar tudo a perder. O ‘timing’ não poderia ter sido mais perfeito. Não só havia conseguido esconder a pistola, o fio e o pente na casa de banho como a porta da suíte se voltava a abrir com o líder a entrar.

5 Mai 2016

Shakespeare na China 莎翁的命运

*por Juile O’Yang
“Oh tempos desacertados – Oh, amaldiçoado rancor,
que eu tenha visto a luz do dia p’ra vos acertar outra vez!” Hamlet
“这是一个礼崩乐坏的时代,唉!倒霉的我却要负起重整乾坤的责任.”《哈姆雷特》

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Abril deste ano um escritor chinês, um tal de Zhang, deu alegadamente entrada na sala de operações de um cirurgião plástico. Quando saiu, parecia-se com… William Shakespeare. Para proceder a este tratamento Zhang gastou as poupanças que tinha feito durante mais de 10 anos, num total de 1,4 milhão de RMB. E reparem que não é uma piada do dia das mentiras!
E mais: os cibernautas chineses acham que, nesta versão “Zhanguiana”, Shakespeare fica ainda “mais bem-parecido” do que no original. Este escritor de “best-sellers” afirmou identificar-se com Shakespeare por ambos terem tido infâncias trágicas e experienciado muitas desilusões e, sendo escritor, sentia-se na obrigação de impressionar os seus leitores, mas de uma “maneira fixe”!!!
O desejo de ser belo é actualmente uma prioridade na China e as selfies abriram caminho a uma epidemia de cirurgias plásticas no País mais populoso do mundo. Segundo um relatório recente, na China, as redes sociais e a obsessão das selfies estão a criar uma nova mania, a vaidade, e também um novo mercado para os cirurgiões plásticos, com facturações que duplicarão para 800 biliões de yuans (122 biliões de USD) em 2019, a partir dos 400 biliões de yuans registados em 2014. “Ter a aparência certa é a chave para uma vida melhor”, deixou de ser uma mania de adolescentes e passou a ser uma filosofia de vida deplorável.
Mas regressemos às Ilhas Britânicas renascentistas, que viram nascer Shaweng莎翁 (Shakespeare em chinês, que significa Senhor Sha) há quatrocentos anos atrás.
As obras de Shakespeare tiveram desde sempre um grande impacto na China. Os chineses ouviram inicialmente falar do dramaturgo britânico em meados do séc. XIX, através de missionários Europeus.
Yan Fu, um filósofo e reformista chinês, referiu-se-lhe pela primeira vez em 1894 e, posteriormente em 1907, o grande escritor modernista Lu Xun escreveu sobre ele, num ensaio traduzido. No entanto, o trabalho de Shakespeare foi apresentado ao público chinês através dos seus sonetos. A antiga Dinastia Qing considerou de alguma forma importante fazer um esforço “imperial” para realçar a tragédia como um género, pelo que as peças de Shakespeare, recheadas de desgostos de amor e de catástrofes de ordem vária, pareciam perfeitas para o efeito. Em 1921 Hamlet foi traduzido para chinês.
Até 1949, ano da fundação da República Popular da China, tinham-se passado quase 30 anos. Cao Yu, um famoso dramaturgo chinês, não conseguiu traduzir as Obras Completas de Shakespeare antes de morrer. Um outro tradutor do mesmo período, Zhu Shenghao, transpôs para chinês 27 peças, em circunstâncias muito difíceis. Apesar de tudo a popularidade de Shakespeare foi sempre crescendo a partir de 1949. As suas peças têm sido estudadas em instituições académicas de todo o País. As suas palavras líricas e expressões românticas não são desconhecidas dos estudantes universitários chineses.
Na realidade, o homem de Stratford-upon-Avon é frequentemente citado em parceria com Guan Hanqing (c. 1241–1320), um célebre poeta e dramaturgo chinês da Dinastia Yuan. O Mercador de Veneza, Romeu e Julieta, Hamlet, O Rei Lear e Otelo tornaram-se peças de referência e são apreciadas por audiências com notáveis níveis de conhecimento da obra de Shakespeare.
Durante uma visita ao Reino Unido em Outubro de 2015, o Presidente Xi Jinping citou A Tempestade, no discurso que proferiu no Parlamento:

凡是過去,皆為序章 – O passado é prólogo.

4 Mai 2016

Welt am Draht (World on a Wire), 1973, Fassbinder.

“(…) o homem é um ser que suporta tão mal a suspeita como o papel de seda a chuva.”
Musil. O Homem sem Qualidades.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]té que ponto o estimado leitor, que manuseia o jornal com tanto carinho, está certo da sua real existência? Certamente seria um choque vir a saber que este, o jornal, não existe verdadeiramente porque não passa de um conjunto de impulsos electrónicos. Ou, não como choque, a suspeita de que este não existe pode transformar a sua visão do mundo à medida que esta se estende para uma desconfiança sobre os que o e o que o rodeia e sobre si próprio.
Stephen Hawking já nos avisou de que poderemos não estar a viver na realidade: how do we know if we are living in our dreams or reality – well, we just don’t and perhaps can’t.
Estas considerações de Hawkins, muito recentes, surgiram a público a propósito da leitura de textos do filósofo chinês antigo Zhuangzi. Depois de um sonho em que se tornara uma borboleta, o pensador sínico perguntou-se se ele seria um homem que sonhou em tornar-se uma borboleta ou uma borboleta que sonhara ser um homem.
Pelo sim pelo não, enquanto não nos chegam certezas, ver uns filmes é uma maneira como outra qualquer do leitor passar o tempo até morrer e ir pensando na sua condição – se é que a morte, ou o próprio leitor, existe verdadeiramente.
Estas linhas servem como aviso. Welt am Draht, de 1973, é um filme de ficção científica de Fassbinder que permaneceu pouco conhecido até há pouco. É um filme feito para televisão, como muitos outros que Fassbinder compôs. Melhor, é uma série de duas partes, uma de apenas duas que ele fez. A outra, de 1972-1973, é Acht Stunden sind kein Tag (Eight Hours are Not a Day), uma série de 8 episódios que se viu cortada para 5 por razões políticas. Ambas foram feitas para a WDR.
É um ponto que por vezes é descurado nas exegeses de Fassbinder, um de que me culpo também. Se bem que Nora Hellmer seja um dos meus filmes preferidos de sempre, nos vários textos que já aqui se fizeram sobre este autor não se tem chamado atenção suficiente para a colaboração intensa que manteve com a televisão. Berlin Alexanderplatz é uma das suas criações mais ambiciosas.
Welt am Draht serve muitos gostos. O de ficção científica; o de filmes em que uma personagem inocente se vê perseguida pela injustiça do mundo; o da revisitação da estética dos anos 70; o de filmes sobre a substituição de humanos por máquinas; o de filmes sobre o imenso poder do dinheiro e das grandes corporações; ou, para quem encontra satisfação nisso, uma série onde se mostra um número elevado de actores alemães famosos da época, uma verdadeira caderneta onde se incluem 3 ou 4 planos com a presença de Werner Schroeter e da sua enigmática musa Magdalena Montezuma.
Também nesta série, onde se coloca a questão da existência do nosso mundo, Fassbinder continua a sua propensão para a utilização de planos com superfícies vidradas e espelhos (em Nora Hellmer esta é quase nauseante, em Effi Briest muito presente) que deformam os rostos ou nos dão a ver apenas a sua imagem reflectida e não o verdadeiro rosto ou corpo. Transformam a nossa percepção não apenas da imagem física mas psicológica das personagens. O espelho é um caminho para a desconfiança e o vidro interposto um caminho para a distorsão (aquários, por exemplo). É fácil de perceber que em Welt am Draht estes sejam um adereço em uso permanente. Christian Braad Thomsen pergunta, no livro Fassbinder The Life and Work of a Provocative Genius, a propósito desta série de sci-fi: “Are we nothing but projections on a screen, produced by a sick society, computer-generated figures which, incapable of reflection, confuse artificial existence with real life?” (pág.28).* O leitor pode neste momento escolher largar o jornal e ir dar um mergulho numa piscina.
Vollmer é um cientista que trabalha num projecto de grande dimensão, o Simulacron, um programa de computador que cria unidades aparentemente humanas (unidades identitárias) num mundo paralelo. Vollmer descobrira algo que ninguém sabia mas antes que o segredo deixasse de o ser morre em circunstâncias pouco claras. Stiller, o seu sucessor – e a personagem central de toda a história, tirada de um livro de ficcção científica americano de Daniel Galouye chamado Simulacron-3 (1964) – assume a sua posição e começa a ganhar as mesmas desconfianças.
As questões filosóficas da interrogação da existência do mundo de Stiller fundem-se com as questões muito actuais dos perigos da criação da inteligência artificial e com as preocupações da utilização comercial por parte de uma grande empresa de um programa cujos frutos deveriam ser apenas científicos. A United Steel, uma companhia de aço, pretende usar o Simulacron para proveito próprio, fazendo projecções sobre o uso do aço no ano 2000. Desta feita a WDR autorizou um texto que se mostra contrário às ambições de uma grande empresa alemã.
Welt am Draht é uma história policial e política. Um jornal investiga as ligações pouco claras dos responsáveis administrativos pelo Simulacron com a United Steel, uma associação a que Stiller se opõe. A primeira parte da série termina com a suspeita de que o seu mundo não passe de um mundo artificial composto por sistemas de simulação electrónicos – incluindo o próprio Stiller, o nosso ponto de contacto narrativo e afectuoso com o mundo.
Há muitos filmes sobre a criação de inteligência artificial e mesmo alguns sobre o desejo de ser verdadeiramente humano, o mais sedutor e mais conhecido dos quais será Blade Runner (1982). É também alemão um dos que primeiro chama a atenção para a ambição e o poder da máquina: Metropolis (Fritz Lang, 1927).
Chamo apenas a atenção para um filme recente que não vi mas que parece reunir vários pontos de interesse estético e filosófico: Ex Machina, de Alex Garland.

* seria interessante saber qual a reacção fílmica de Fassbinder à estupidificante obsessão actual com a constante reprodução fotográfica, a facilidade da sua manipulação e a exposição pessoal através dos novos meios de comunicação.

4 Mai 2016

Regras da decência pura

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espirito de fraternidade.
Artigo número um da declaração Universal dos Direitos Humanos

Não matarás… Não furtarás…. Não adulterarás…..
Mandamentos de Moisés

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odas as naturezas se vão unindo por vínculos de compatibilidade mais ou menos discutíveis, mas sempre tendo em vista as semelhanças e a lei da empatia. O chamado “corpo estranho” não é infiltrável no aparelho das leis e dos mandatários que requerem aquele “fio de prata” com as fontes destes princípios. Há tratados, obras, ensaios, poemas, análises que as abordam de todos os ângulos visíveis e possíveis e, não raro, é sonegado no emaranhado da retórica (dado que o grau de pureza analítica pode ser considerado dogma) um lastro de afinidades vitais.
Pois há formas de ser que: “verdades puras são e não defeitos”…. e “Afinidades Electivas” que: sim, sim, sim… estão melhoradas. Nem Camões nem Goethe, nas suas maturidades olímpicas, estão unidos ao vínculo experimental. O sacerdócio da escrita deixa poucos interesses para a propagação das reformas em curso em qualquer tempo e nós devemos sempre duvidar de tanta receita, tanta oferta, tantas tentações de Antão, de antanho, e vibrar, caso possamos também, esse limite da dor e do urgente, porque no limite tudo reverte em novo princípio, pois que a maioria das regras são tão impactantes, que impedem de ver frechas da mesma realidade.
Para sermos entendidos usamos códigos, signos linguísticas, formas gestuais, mas imaginemos um mundo onde todos dizem a mesma coisa com algumas variantes, uma Babel de sons tresloucados e cuja funcionalidade de entendimento é zero… um baralhar, tornando a dar. Será preferível dar e baralhar depois!
Este limite foi alcançado em parte pela facção indecente, senão vejamos o tresloucamento singular dos dias de hoje em que não podemos tirar fotografias com as nossas crianças dado que exercitamos a libido de gente que não estava inscrita em nenhum ramo da existência e, passou a existir. Por medo, pelo temor que temos face a elas, um código sem dúvida de indecência pura!
A pureza não é contudo aquele estado imaculado todo de febris graças e recato, muito embora ninguém saiba explicar sem um forte estilo de vida a nascente tamanha de tal estado… é uma distinção tal que houve mesmo necessidade de a representar em imagens (embora esta seja impedida na lei mosaica) e quem como Miguel Ângelo para a representar no doce e intemporal e sempre jovem rosto de Pietà?! Ela tem ao colo um homem morto que é seu filho, mas ambos têm no tempo a mesma idade. É uma sustentável beleza de ser que atingiu um propósito tão raro de pureza tamanha, que ninguém aguenta contemplar por muito tempo. Ficamos como que cegos, penosamente pesados pela combustão da vida. Atingir deleites tais não é obrigatório para a prática dos dias: pode-se bem viver uma vida inteira sem que saibamos que existam, pois que não somos nós que as buscamos, mas sim eles que nos elegem para dizer de si segundo o grau de resistência de cada um a esses domínios até electrizantes: quanto mais perto mais terrível, quanto mais belo mais medonho…
Sabemos que sós, plenos de postulas, de vícios, sujidade e disfarce, podemos aguentar por aqui. O tempo passa, ele é um programa que cada um processa consoante o seu estar podendo mesmo anunciar que ainda não nasceu, nascer, só quando algo acontece entre o que somos e as nossas afinidades, e há vidas onde não acontece nada. Adaptar verdades simples requer vidas por vezes complicadas, o transtorno de misturar tudo, pode levar a que sejamos por vezes lianas trepadoras com raízes no ar.
Passámos a adaptar princípios – puros princípios – nas Constituições Mundiais, adaptando-as às circunstâncias contemporâneas como forma de operação contra o insalubre e estático momento da jornada humana, essa massa com uma organicidade excessiva nascida não raro entre o caos e propósito nenhum, elas estão lá como as estrelas estão no Céu, tentar que baixem é um movimento estranho, porém, nós temos os guindastes laváveis que depressa fugiram a esta grande massa de despojos: até já tivemos uma Escada, a de Jacob, mas por ela desceram mais do que subiram; nestes parágrafos há até códigos que exultam a santidade, e hoje a Alquimia também tomou lugar através do tratamento dos resíduos tóxicos, mas, viveu-se entre eles como entre roseiras bravas, incorporando-os em nós, essa guerra de bactérias que por atracção se desvelam e deslindam sem que ainda saibamos do amor que as atrai.
Os “corpos estranhos” por vezes também se entranham e vão acrescentar tecido, mudar a forma ao que estava, por isso, nunca sabemos como terminam as invasões …um organismo tanto pode expulsá-los, como integrá-los, como mimeticamente dizer que são o mesmo. – Quem mata um homem mata a Humanidade inteira – Quem admite um homem viaja por ela toda – nesses simples gestos puros, o de aceitarmos e salvarmos, estamos a definir os contornos das nossas fontes. E se é grande ser-se ecuménico, universal e abrangente, a curva do meu destino é contudo pequena para consentir passar por tão alta manifestação como um sonâmbulo que gera em seu redor uma pequena combustão que visa a vã desesperança de viver.
Nos momentos que se cruzam até as casas são venenosas com sua construção de materiais que se infiltram em zonas do nosso frágil organismo. Elas são cogumelos onde não convém ser-se tão elementar que tenhamos nelas abrigo, já adaptámos os órgãos às funções, mas não somos cobaias de um impuro sistema da resistência aos materiais.. Os nossos ais podem estar domados, mas as nossas mortes são concretas, na morte só há impureza, dizem, mas, pode haver um grau de decência que não nos permita esta falta de carinho por uma matéria que outrora fora animada. De uma centelha. Por ele, corpo, passou um deus, que nós depusemos na ânsia de o suplantar.

3 Mai 2016

Os homens do meu país

Carlos André

vêm da raiz do tempo
os homens do meu país
já não sabem
já não lembram
a raiz com sua chama

[…………………..]

foram ossos a arder em piras de chamas que chispam ódio
ódio surdo e cego de lei
que manda que se não diz
que nos homens deste povo
há país e há raiz!
mas na cinza desses ossos
nos restos desses brasidos
crepitam olhos e gritos com ecos na voz do vento:
‘ainda não fomos vencidos!’

sentiram correr nos corpos a seiva do pensamento
tiveram nome de antero de martins ou de queirós
e viram que a voz de dentro
só é viva se for voz
deram tiros
conspiraram no segredo das conjuras
e mataram
e gritaram ao seu povo que era sua a praça pública
que viesse
que estivesse
que dissesse que era gente
e que ser dono de um país
seu
era imperioso
e urgente

acreditaram
na força de sua mão
e ao porem pedra por pedra
nessa nova construção
descobriram que um país
com homens feitos raiz
não é vão

rasgaram em barcos novos os sonhos despedaçados
fincaram olhos num gongo ouvido em nambuangongo
estiveram em bissau
em terras desconhecidas
foram alcântara-partidas
e alcântara-chegadas
e partiam
regressavam
e iam
e não voltavam
combateram sem vontade
contra a vontade dos outros
e mataram
e espancaram
incendiaram queimaram ceifaram e deceparam
deitaram fogo a choupanas
sem saber serem humanas
uns foram voz de metralha
voltaram outros mortalha

ficava a terra viúva
dos homens que ia perdendo
dos homens que iam partindo
rumo ao norte
em busca doutras paragens
outro vento
outras aragens
com a sorte a soprar mais forte
saíram em austerlitz
povoaram champigny
construíram com suor
o futuro de morrer aqui

também ficaram
apodreceram aos poucos nos poços doutras masmorras
perderam o sono
e o sangue
no sol que nunca viam
mas mantiveram de pé a certeza da vontade
doutro sol que acreditavam
com nome de liberdade

uns foram nomes pra sempre
outros pra sempre sem nome
nome de sérgio
de bento
de humberto
de catarina
nas balas doutra metralha
mandada ser assassina
usaram armas
e redes
e martelos
pás
enxadas
terras crestadas de sedes que esperam ver saciadas
e de novo guitarras
e violas
e vozes que valem balas
e esfarrapam as mordaças com que as querem caladas
voz de zeca
voz de graça
de zé gomes
de adriano
palavras que a gente ouvia
sentia
repetia
que a vontade de ser dia
não pode chamar-se engano

foram alvoradas novas
nas ruas
nas avenidas
nos canos das espingardas
empunhadas
por esperanças reacendidas
e floridas

acreditaram possível uma nova construção
e em volta da liberdade
com vontade de querer
apertaram mão com mão

sem estar certos do caminho estão certos de caminhar
e nas veias misturadas
no sangue que ferve fundo
a esperança
a vontade
a certeza
de ser gente
de ser mundo

vêm da raiz do tempo os homens do meu país
sem que saibam
sem que lembrem
têm bem fundo de si a raiz e sua chama

2 Mai 2016

Lin Zexu visita Macau

No anterior artigo procuramos a data do início da Guerra do Ópio pelos episódios que ocorreram durante o ano de 1839. Se até 18 de Março, os chineses tentaram por palavras convencer os ingleses a deixarem de trazer ópio para a China, ilegalizado já há muito tempo, por Édito dessa data o Comissário Imperial Lin ordenou que lhe fosse todo entregue. Assim fez o capitão Elliot, ao ópio armazenado nos cascos dos navios ao largo de Lintin. No dia seguinte, o exército chinês cercou as feitorias e proibiu todos os residentes estrangeiros de daí saírem e só a 24 de Maio os negociantes ingleses, com promessa escrita de nunca mais voltarem à China, partiram de Cantão para Macau, acompanhados pelo superintendente do comércio britânico na China, Charles Elliot.
Outro momento referido para o início da Guerra do Ópio ocorreu entre 3 e 25 de Junho de 1839, quando Lin Zexu, como Qin Chai Da Chen, mandou queimar as caixas de ópio em Humen, província de Guangdong. Sendo ainda outra das datas, a relacionada com a recusa dos ingleses de entregar um dos seus marinheiros que, nos distúrbios entre marinheiros ingleses e americanos e alguns chineses, assassinara em Kowloon o nativo Lin-uei-hi. Como represália, no Edital de 15 de Agosto de 1839 o Vice-Rei de Cantão proibiu qualquer espécie de alimentos aos ingleses residentes na China. No dia seguinte, Lin Zexu e o Vice-Rei Deng Tingzhen, entraram no distrito de Xiangshan e imediatamente foi declarado o bloqueio a Macau para forçar os ingleses a deixarem esta cidade.
O Comissário Imperial Lin prevenia os portugueses dos perigos que corriam ao abrigar na cidade ladrões ingleses e proibiu o fornecimento de provisões, assim como de mão-de-obra chinesa, aos residentes ingleses em Macau. Já as autoridades chinesas contavam com a lista da população aí residente e o Comissário Lin ordenou ao Procurador de Macau para investigar onde se encontravam os traficantes, dizendo que viria para deles tratar quando terminasse de colectar o ópio em Humen. E por isso, a 26 de Agosto, após uma reunião dos súbditos ingleses residentes em Macau, por conselho do superintendente do comércio inglês na China Charles Elliot, decidiram retirar-se para Hong Kong. Segundo Montalto de Jesus, “Silveira Pinto declarou que, apesar da provação, nunca pressionaria os ingleses a deixar a colónia e, embora consciente das poucas forças à sua disposição para repelir um esmagador ataque chinês, prometeu defendê-los até ao fim no caso de eles ficarem. Mas eles preferiram partir para o ancoradouro de Hong-Kong, e enquanto embarcavam, a guarnição, com Silveira Pinto no seu uniforme militar, esteve presente para impedir um receado ataque chinês”.
Em Cantão, no último dia de Agosto as autoridades da cidade fizeram uma proclamação ao povo, chamando-o às armas contra os ingleses. Assim 31 de Agosto poderá também ser outra data para o início da I Guerra do Ópio.
“Mal tinha terminado a provação de Macau quando, num despacho datado de 1 de Setembro de 1839, Elliot informou Silveira Pinto de que o barco Volage tinha ordens para cooperar na defesa da colónia contra a agressão chinesa. Foi também oferecida a assistência de oficiais e civis ingleses em Hong-Kong e a protecção portuguesa foi mais uma vez solicitada. Ao propor o regresso dos ingleses a Macau, Elliot contradisse formalmente um rumor chinês, segundo o qual a sua retirada tinha sido devido à pressão dos mandarins. A razão, declarou, era porque tinha querido comprometer a colónia sem nenhuma força à mão. Já não era esse o caso: oitocentos mil homens podiam ser imediatamente colocados à disposição do governador.
Mas a situação era delicada; e embora desconhecedor da pretensão de anexação de Macau, Silveira Pinto reiterou que, na ausência de ordens expressas e definitivas do seu governo em sentido contrário, não podia deixar de manter uma estrita neutralidade”, Montalto.
Continuaremos aqui a usar sobre este assunto o que Marques Pereira escreveu nas Ephemérides e Luís Gonzaga Gomes na sua Cronologia, acompanhando com o que Montalto de Jesus apresentou no Macau Histórico.

No Templo de Lin-Fong

Em viagem de inspecção a Macau, o Comissário Imperial Lin Zexu acompanhado por Deng Tingzhen, Vice-Rei de Guangdong e Guangxi, vieram de Qianshan no vigésimo sexto dia da sétima Lua do 21º ano do reinado de Daoguang (1839) e, acompanhados por centenas de soldados, chegaram a Guanzha. Essa barreira conhecida pelos portugueses por Porta do Cerco, foi construída como uma delimitação de fronteira pelos chineses em 1573, ano do começo do pagar foro, que se estendeu até 1849. Montalto de Jesus ao referir-se às Portas do Cerco construídas pelos chineses diz: “No istmo, entre a península da Macau e o continente, os chineses construíram então um muro-barreira com um portão, onde um mandarim e uma esquadra de soldados impediam aos estrangeiros a passagem para o continente, exceptuando aqueles a quem o mandarim fornecera um passaporte. A barreira foi construída, em 1573, claramente como uma delimitação de fronteira, mas servia também para controlar o aprovisionamento da colónia, embora o objectivo declarado fosse apenas o de evitar a incursão dos negros fugitivos de Macau. O portão-barreira, conhecido pelos portugueses como Porta do Cerco, era aberto periodicamente para abastecer a colónia de provisões, numa feira, celebrada num espaço cercado para além da barreira, após a qual esse portão era fechado e selado com seis papéis carimbados. Sobre o portão havia uma inscrição chinesa: “.
Ainda antes do amanhecer do dia 3 de Setembro de 1839, nessa Porta, de Guanzha, do lado da península de Macau, à espera do Comissário Imperial Lin Zexu estavam o Procurador [e não o então Governador português, Adrião Acácio da Silveira Pinto (1837-1843)], o sub-Prefeito e o Magistrado da cidade, assim como um oficial chinês. Com estes representantes de Macau encontrava-se uma guarnição de cem soldados alinhados ao longo dos dois lados da rua e três bandas de música.
Às oito horas da manhã, a comitiva chinesa passou por Guanzha, a porta que fazia de fronteira, e após as boas vindas e uma salva de dezanove tiros de canhões proveniente das fortalezas de Macau, seguiram em cortejo ao som de música para o Templo de Lianfeng. Conhecido por Pagode Novo, o agora Lin-Fong Miu, era o lugar de hospedagem dos mandarins superiores que vinham a Macau.
Estava um dia límpido e o percurso foi feito rapidamente, pois era curta a distância da Guanzha ao Pagode da Porta do Cerco, como também era chamado este templo devido à proximidade com a fronteira.
Batendo nos gongos e transportando bandeiras, uma divisão das tropas chinesas antecedia o Comissário Imperial transportado na cadeirinha por oito chineses e um português como guarda de honra para o servir. A seguir, uma pequena divisão de tropas nativas, que antecedia o Vice-Rei de Liangguang (Guangdong e Guangxi) acompanhado por outros oficiais e mais tropa. Se ao longo do trajecto muitos eram os espectadores, habitantes nas aldeias da península de Macau existentes fora dos muros da cidade cristã, uma multidão aglomerava-se, sobretudo em redor do pátio do templo, tanto na parte exterior como no interior, onde estacionou o cortejo.
Recebidos por oficiais a aguardá-los à entrada do edifício do templo, foram logo as entidades chinesas conduzidas ao interior para se refrescarem. Aí se efectuou a reunião entre o Comissário Imperial e o Procurador.
O Procurador era a pessoa mais importante de Macau e representava a cidade perante as autoridades chinesas e sendo ele Superintendente dos Estrangeiros, tinha o grau de mandarim outorgado pelo Imperador Wan-Li (1573-1620).
Era então Procurador de Macau José Baptista de Miranda e Lima, poeta e professor régio, que estava sentado de frente para o Comissário Imperial Lin Zexu e entre eles, um intérprete português. No interior do templo, pequenos destacamentos com cerca de vinte soldados chineses armados e usando diferentes uniformes e bandeiras.
Lin Zexu declarou a Miranda e Lima a proibição do armazenamento e comércio de ópio dentro da cidade e se fosse encontrado algum estrangeiro com essa substância, deveriam reportar às autoridades chinesas e prenderem-no. Em nome de Macau, o Procurador concordou e prometeu cooperar com o Governo do Império Celeste, aceitando ficarem os portugueses neutrais no conflito sino-britânico e não permitir às forças invasoras inglesas usarem como base Macau durante o conflito. Por fim, Lin Zexu lembrou que os portugueses estavam em território chinês, pois tinham alugado Macau aos governos imperiais Ming e Qing.
Após esta reunião de meia hora, o Comissário Lin ofereceu, aos oficiais, seda, leques, chá e açúcar-cande e aos soldados, quatrocentos yuan de prata, vacas, ovelhas, farinha e vinho, após o que foi fazer sacrifícios no altar de Tian Hou (a deusa dos mareantes e conhecida localmente por A-Má) e Guan Di (Deus da Guerra e da Riqueza, representado por Guan Yu, um guerreiro do Período dos Três Reinos e conhecido em cantonense por Kwan Tai).

Às voltas em Macau

Eram nove horas da manhã quando saindo do Templo de Lin Fong, foi o Comissário dar uma volta pela cidade a inteirar-se da cultura portuguesa e a maneira de viver da cidade, assim como para inspeccionar alguns locais e ver se as suas ordens estavam a ser cumpridas.
Passando pela aldeia do Patane e junto à praia com esse nome, subiu até Baige Cao (hoje Jardim de Camões) e pela Porta de S. António entrou na cidade cristã, sendo saudado com uma salva de tiros pelos canhões da Fortaleza de Nossa Senhora do Monte de S. Paulo. Continuando pela longa rua até ao porto interior, passou pela Alfândega chinesa e depois junto das igrejas de S. José e S. Lourenço, chegando ao templo próximo da Fortaleza de S. Tiago da Barra. Daí retornou e seguindo pela Calçada do Bom Jesus (Gaolou) e Fonte do Lilau (o poço Yapo) de novo cruzou S. Lourenço e desceu por uma viela para a Praia Grande. Percorrendo-a, ao chegar à Rua do Campo foi até à Porta de S. Lázaro, de onde voltou pela Rua do Hospital, hoje Rua Pedro Nolasco da Silva (conhecida também por Rua das Mariazinhas). Contornando a Colina da Nossa Senhora do Monte, passou por Yingdi (S. Domingos), seguiu por Yingdi (Rua dos Mercadores) e Guanqian (Rua dos Ervanários) e saiu da cidade pela Porta de S. António, onde foi saudado com 21 tiros de canhão, segundo referencia o Chinese Repository, de onde retiramos algumas destas informações, refeitas pelo que se pode encontrar no Museu de Lin Zexu, situado ao lado do Templo de Lin Fong e de fontes chinesas. De lembrar que estas duas Portas da cidade davam para as várzeas, cultivadas pelos chineses das aldeias fora da muralha, mas ainda na península de Macau.
Neste passeio pela cidade cristã e seus limites, algumas casas foram vistoriadas. Os habitantes chineses ergueram em muitos locais do percurso uma série de arcos do triunfo, assim como, fora das suas residências e lojas colocaram mesas com vasos de flores, demonstrando gratidão pela visita do Comissário Imperial.
Lin Zexu e o Vice-Rei de Liangguang Deng Tingzhen apenas ficaram três ou quatro horas em Macau, pois, segundo o que lemos no Museu de Lin Zexu (que não refere a hora de entrada na península de Macau), ao meio-dia desse dia o Comissário retornou para Qianshan, sendo acompanhado pelos portugueses até Guanzha.

2 Mai 2016

Pela calada da noite

Gosto desta expressão. Tão ao jeito das noites no Alentejo, pejadas de cigarras ruidosas mas feitos ruídos estes, da matéria daqueles campos e quase parte do silêncio. Uma estridência ininterrupta a que o ouvido de vez em quando se acostumava. Aquela terra grande, sem vestígios de grandes sobressaltos geológicos, topográficos.
O Alentejo que é a minha terra, embora não a terra em que nasci. Que foi a minha terra, uma, naquele sentido em que, na cidade, muitos têm uma terra remota donde vieram e onde voltam sempre na melancolia de ser divididos. Da família. E de um tempo perdido lá atrás à medida que uma geração mais próxima foi desaparecendo no destino incontornável em que desemboca cada vida. E que é já quase só memória, inalcançável senão como tal. Perdida. Amada mas perdida. O sol inteiro possível em 360 graus de horizonte. Tórrido naqueles meses de agosto. Lá muito atrás as tardes em que se atravessavam ruas brancas da cidade, de uma luz quase insuportável. Um vazio de gente e o silêncio inconfundível do calor abrasador. Ou, nos fins de tarde, as terras amareladas e secas do campo direito. Onde as sombras se projectavam para a frente ou para trás a partir dos pés e até tão longe, que pareciam querer destacar-se desta amarra. O Alentejo sempre me deu aquela impressão benfazeja de que o mundo é grande e nele as dores, ínfimos pormenores.
A cidade de pais e avós e de uma família enorme com uma margem imensa de ramificações, já só conhecida dos relatos e histórias retiradas dos álbuns da memória e daquelas fotografias muito pequeninas, focadíssimas como uma filigrana. Memória enraizada ali, entre a cidade e o campo. Em redor de Évora. E porque as raízes não se podem arrancar da terra, éramos nós que sempre voltávamos para as visitar. Eu decidi que era de lá que eu era, há muitos anos. Quando entendi que mesmo essas coisas se podem escolher. Só não se pode escolher, às vezes, reter para sempre uma memória que já se liga à vida por laços demasiado ténues. E aí é o momento de deixá-la partir. Com a partida dos pais. Um para os espaços etéreos do céu, outra para os confins longínquos, alheios à memória. Já não há a quem perguntar.
Mas deixá-la partir para o seu canto, e habitar para sempre o álbum, custa. Revira-se de todos os ângulos a estranheza de ser assim. Que tem que ser. Sem naturalidade. Ou entendendo a inacreditável naturalidade inerente. Afinal. Como se todos os actos de simples respiração, em determinados momentos, fossem difíceis de vencer sem deixar de pensar no movimento que a produz, como se assim o corpo se esquecesse de respirar pela inércia de sempre. Como se todos os passos não dados fossem o amor às margens mais do que ao rio. Diferentes olhares. O do lado da margem, um estar mais pessoano, em Reis, por exemplo. A desistência prévia e a contemplação estoica do não ser, não querer, não fazer, não sentir. Ou a ausência de tudo numa síntese de plenitude muito mais perto do cerne do ser. Um pouco cósmico e alheado das amarras circunstanciais de uma existência enredada em mecanismos. Porque diremos margens de sonho, se é o rio que é mais livre e na sua fluidez imparável, eternamente renovado e o mesmo em si apesar de tudo. Como entidade. Independentemente de as águas serem indistintamente outras. Que tem este rio que contemplo em comum com o de anteontem ou de há um ano. Tudo e nada. E no entanto também os rios envelhecem. E os sonhos. Porquê nas margens, excepto naqueles momentos de violenta rebelião dos elementos, em que extravasa por elas adiante tumultuoso e sem percurso ou caminho que não caos e acaso.
Os meus tios José e Maria. De nomes simples e bíblicos, e pele de rugas marcadas como à faca, castigada pelo sol imenso. Ele de olhos pequenos e fundos de um azul inesperado e ela muito pequenina, muito gordinha, e que nos dava uns beijos rijos, repenicados e húmidos, como ninguém. Maria Rosa. E, encostada à empena cega do monte, a maior roseira, de rosas salmão, que me lembre de ver. Carregada de cima abaixo daquelas rosas, perfumadas de uma doçura ligeiramente ácida, e que o meu tio José, talvez a disfarçar o secreto orgulho, dizia ter de podar para fortalecer. Coisa estranha para mim, imaginá-lo a cortar aquele fenómeno lindo e pujante…
A vida destes meus tios, dava um romance. Mesmo depois da morte daquele sonho de cooperativismo e da reforma agrária em que embarcaram, quando desembarcaram vindos de África. Para onde fugiram da pobreza e de onde o 25 de abril os fez regressar. Dava um romance, sobretudo a dele. Até ao fim, recentemente. Ele que teve durante anos um enorme Mercedes em segunda mão, dos anos setenta, encostado à horta no meio do nada. Que conduziu muito tempo sem carta porque não sabia ler. E que, quando a minha tia se foi para o céu – porque foi – guiava por aqueles montes e bairros limítrofes, imagino eu, para seduzir com intensões sérias, viúvas de negro. Todas elas idosas, estranhas e deprimidas, uma de cada vez, e com quem vivia até ao limite do suportável daquelas depressões alentejanas. Que não eram para ele.
Os meus tios em cujo monte, muito mais lá atrás, em pequena, dormia sob enormes cachos de uvas e réstias de cebolas, pendurados nas traves dos tectos de telha vã dos quartos. E que tinham com eles aquele enorme cão preto que era nosso mas vivia ali, o Nilo, que lembro como um pequeno oásis, como desértico era aquele pedaço de Alentejo. Aqueles meus tios, que viviam sempre num estranho limiar a rondar a pobreza, porque o Alentejo era duro. Uma terra ampla, mansa e parada. E que um dia, bem mais tarde, num outro monte, mandaram abrir um poço na ânsia de vencer aquela aridez. Explodiram a terra quase arenosa deixando uma enorme cratera, larga e funda como a cicatriz de um meteorito gigante, e lá bem no meio e no fundo um pequeno espelho de água. Como um olho um pouco encovado numa órbita enorme de recorte incerto e tosco. Pequeno para a sede incurável da terra e para aquele céu imenso.
E um dia desistiram dessa luta para saciar um enorme pomar de frutos pequeninos que custavam a vingar, e investiram, do que tinham e do que não tinham, as poucas economias, em vacas que davam um leite espumoso como nunca bebi igual. E uma vacaria segundo as normas, bem na extremidade oposta à casa. Sabe-se lá porquê com tanta terra. Talvez uma espécie de ampliação das margens do sonho que logo de madrugada os levava a subir, embalados nele mas também no frio cortante dos invernos interiores, o enorme atalho de terra entre a casa deles e a das vaquinhas. E numa noite, seguramente de cães a ladrar como sempre – ou não – dispersos na amplidão da noite, como num quase passe de magia, desapareceram todas de uma vez para sempre e para nunca mais. Noites curtas de sono, para eles, que se levantavam ainda com estrelas. Como desaparecem dezoito vaquinhas enormes e doces, com aqueles guizos de uma sonoridade linda, no curtíssimo intervalo da noite…
Pela calada da noite. E calada foi a noite em que aquele sonho emudeceu para sempre. Calada a noite, as vaquinhas, os cães, os ladrões, as pereiras esquálidas, as estrelas do céu, os pneus da camioneta. Que levaram em cumplicidade única, e no segredo daquela noite, não sei já se de verão remoto, dezoito vaquinhas de olhos agigantados e doces. Assustadas ou ingenuamente confiantes. Como se rapidamente escondidas num enorme saco de gigante. Numa noite em que não ladraram cães. Ou, mesmo que ladrassem, diz o ditado que às más horas não ladram cães. Ou ninguém lhes ligou mais do que nas outras. Ninguém ouviu, só a terra, que tudo presencia, e aquele olho de água, que, resguardado e virado para o céu sem desfitar, seguramente as viu voar e esfumar-se. Histórias de um Alentejo solitário. Pela calada da noite. Como tantas outras noites. Caladas, lisas e sem sobressaltos.
Foi um golpe duro e que nos entristeceu a todos. E no entanto, nesse tempo como agora, um lado de mim sempre viu ali um certo ângulo profundamente cómico. Não sei porquê. Porque sei que a pena enorme pelo que lhes aconteceu era verdadeira. Mas é talvez o insólito das vaquinhas – dezoito – enormes, lentas e bojudas, cheias de chocalhos, a desaparecer assim. No ar. Evolando-se como um sonho que eram. Como os sonhos. E tornando-se realmente da matéria dos sonhos.
A propósito da enormidade do fosso que separa o ter do não ter. O saber acreditar e o esvaziar de um sonho. Que num curtíssimo intervalo de tempo desapareceu sem aviso. Sem ninguém o saber, já não estava ali. Mas as noites no campo são curtas de sono. E a madrugada chegou já com a nova paisagem instalada para sempre. Mas não os lembro desalentados por muito tempo. Antes com um estoicismo feroz de continuar em frente. Sem ilusões de que haveria outras horas como aquelas. Más horas. Em que não ladram cães.

2 Mai 2016

Exílio e Desgraça. A Ruptura Trágica

Coetzee, J.M., Disgrace, Penguin Books, New York, 2000.
Descritores: Literatura Sul Africana, Ficção, O Politicamente Correcto, 220 p., ISBN: 0-14-029640-9.
Cota: 821.111(68) -31 Coe

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]escritor sul-africano John Maxwell Coetzee nasceu no dia 9 de fevereiro de 1940 na cidade do Cabo numa família de origem alemã e inglesa e recebeu o prémio Nobel de Literatura em 2003, sendo o quarto escritor africano a receber esta honraria e o segundo no seu país depois de Nadine Gordimer, em 1991. Coetzee estudou Língua Inglesa e Matemática e veio a doutorar-se em linguística das línguas germânicas na Universidade do Texas, em Austin, com uma tese sobre os primeiros trabalhos de Samuel Beckett no ano de 1968. Actualmente depois de ter leccionado na Universidade em Búfalo no Estado de Nova Iorque, fixou-se na Austrália ensinando na Universidade de Adelaide. Era filho de um advogado e de uma professora primária e cresceu num meio afastado da vida urbana, marcado por alguma rudeza, no seio de uma família disfuncional, como são afinal quase todas as famílias, e é disso que nos dá conta no livro, Infância. As suas obras mais importantes são porém no domínio da literatura de ficção e delas eu destacaria: À Espera dos Bárbaros, Vida e Tempo de Michael K .” (Booker Prize de 1983), Desgraça” (Booker Prize de 1999), Homem Lento, Diário de um Ano Ruim e Verão.

Disgrace, em língua portuguesa desgraça, não me refiro ao título do livro, mas ao conceito, subentende uma perda da Graça. A Graça não é uma palavra ambígua. Procede do termo latino gratia, gratus, que como se sabe nobilita aquele que a possui, como se fosse um dom. Em todos os casos os conceitos ganham a dimensão semântica do que lhes é simétrico e sendo assim a graça é qualquer coisa que se recebe e ao mesmo tempo a gratidão que se exprime, como no caso do nome recebido pelo baptismo. A Graça é o dom que se recebe mas que se exprime como se fosse nativo. Em qualquer dos casos não tem preço nem valor de troca, é inalienável e grátis. É grátis e gratificante. O conceito de Graça anda muitas vezes na perspectiva de uma compreensão da condição feliz ligado ao conceito de Ventura, pelo que aquele que a perde passa a ser um desgraçado, cúmulo de desventura e infelicidade.
A desgraça exprime portanto uma situação radical e não é um conceito ligeiro numa fenomenologia da condição humana. É provavelmente o conceito mais radical para exprimir uma perda irreparável e até definitiva, pois o Estado de Graça é da ordem da estruturalidade do Ser. Coetzee mediu bem as consequências da sua escolha. A África do Sul há muitos anos que não vivia em estado de graça, provavelmente nunca terá vivido, mas só agora no período post apartheid soltou os demónios que a habitavam e mostrou a sua imensa e constitutiva Desgraça. Esse é o momento em que ontologia e história se reencontram nos indivíduos sem os mecanismos ideológicos e repressivos de amortecimento, sem os alibis justificativos. Disgrace é portanto mais do que uma narrativa com agentes sociais determinados, é o relato de uma epopeia numa situação post lapsária acompanhado do relato das várias formas de sobrevivência perante a desgraça ou a queda. Como é que indivíduos desgraçados lutam ainda pela dignidade numa sociedade doente, decadente, desgraçada ela também. Talvez que seja essa a intriga — no sentido de intrigante —, do romance. O romance ocorre no ambiente pós-apartheid, mas o que o justifica é ainda a presença tutelar do mal que o apartheid simbolizava.
Este é considerado o melhor romance de J. M. Coetzee. O livro conta a história de David Lurie, um professor de literatura que não sabe como conciliar a sua formação, o seu desejo e as suas frustrações com as normas politicamente correctas e portanto hipócritas da universidade onde lecciona. Disgrace navega portanto no mar turbulento das relações sociais, de género e de raça no ambiente agora clarificado da sociedade da República da África do Sul.
Os elementos mais presentes na estrutura de Disgrace são a inversão de forças ocorrendo em várias situações, cujos resultados são as muitas perdas e o deslocamento da identidade dos brancos em oposição ao fortalecimento dos negros; a associação da figura do protagonista com imagens demoníacas; e o reconhecimento do fim do apartheid e seus resultados como consequência da circularidade da história, levando a um pessimismo revelado na análise que o autor faz da sociedade branca sul-africana e do futuro que a espera. 28416P10T1
Percebe-se que os elementos possibilitadores do mal presentes em outros do seus romances se reposicionam, transmutam-se, vestem outros discursos, mas não desaparecem. Constrói-se uma nova abordagem, em que há a reversão da história construída pelos mais fortes, cujo resultado havia sido o apagamento ou a distorção da história dos mais fracos. Desgraça leva o leitor a perceber que não importando de que lado se está, a vitória de uns significa a derrota para outros. Isso implica não só a reescritura da história, mas a redefinição dos discursos permitidos e daqueles proibidos. Coetzee, no romance em questão, reconhece a culpa histórica dos seus antepassados, mas retrata uma sociedade em que as inversões se deram em todas as esferas, inclusive na agência da violência, o que acarretou profundas transformações na subjectividade dos sujeitos envolvidos nesse processo.
Observa-se no romance de J. M. Coetzee a figuração de uma tragicidade possível no mundo contemporâneo, porém com incidência distinta dos exemplos gregos (sem, contudo, perder pontos de contacto). Quando se fala em trágico, aqui, remete-se ao termo conforme a acepção moderna, formulada no romantismo alemão, que em linhas gerais se refere à afirmação da individualidade ante o mundo. Tal afirmação resulta quase sempre no aniquilamento do indivíduo. Em Desgraça, o cenário desse aniquilamento (o evento trágico) é a África do Sul pós-apartheid.
Ao ler este livro não pude evitar o sentimento de que algures existiria uma certa semelhança com a Mancha Humana de Philipe Roth e contudo não existe nenhuma proximidade de tempo e lugar, quer dizer relativamente ao tempo global, sim, é o mesmo, mas o tempo global é uma abstracção, é sempre de espaço tempo que se trata. E, nesse plano as diferenças são enormes. Ainda assim o destino das personagens principais dos dois romances, ambos curiosamente universitários e ambos apanhados na ratoeira da nova ideologia do “politicamente correcto”, é parecido.
Gostaria ainda de deixar aqui uma pista sobre o meu próprio texto que possa ajudar o leitor a descodificar melhor o breve excurso sobre a questão da ‘Graça’. Para lá da inevitável relação com a literatura teológica, sobretudo patrística e com Santo Agostinho em particular, tive muito em conta um texto de Giorgio Agamben, do livro Profanações, intitulado Genius. Existe na relação de cada pessoa com o seu Génio uma gravidade e um cuidado que em mim conecta com o sentimento de perigo (trágico) associado à eventual perda da Graça. Vivemos, provavelmente, nesta fronteira, tão precária, por vezes de modo algo leviano e porém o essencial da nossa vida estará eventualmente aí, nessa relação misteriosa com uma forma de transcendência que nos é constitutiva. “Os latinos denominavam Genius o deus ao qual cada homem se encontra confiado no momento do nascimento. A etimologia é transparente e permanece ainda visível na proximidade de ‘Génio’ e do verbo engendrar” (Agamben). O tema é muito exaltante e através dele podemos fazer esse itinerário que vai ao encontro do conceito de ‘Graça’, passando naturalmente pela célebre frase de Heráclito: “O carácter de um homem é o seu Daimon” (ethos anthropó daimon). Heidegger viria na Carta Sobre o Humanismo a explorar esta frase num sentido mais próximo da ideia de Graça cristã ao dizer que o “homem mora enquanto homem na proximidade de Deus”. Isso resulta do facto de que Heidegger ao procurar encontrar uma fundamentação ontológica para a ética, isto é para o ethos, conferindo-lhe a dignidade de um lugar, melhor de uma morada, isto é, de uma relação de vizinhança, forçou talvez o sentido heraclitiano da frase, mas seguramente não muito tendo em conta que o sábio de Éfeso gostava de se exprimir na proximidade da linguagem dos Mistérios e ele mesmo atribuía ao carácter o sentido da morada mais íntima do homem. O estado de graça confere essa vizinhança e essa morada, radicalmente, a sua perda adquire portanto a conotação de uma expulsão da morada e portanto de um exílio, etc. etc. Ora uma das palavras que na cultura grega exprimia e exprime ainda a ideia de felicidade, é Eudaimonia, que justamente exprime a ideia de um bom Daimon. Assim se percebe portanto a relação que pretendemos estabelecer entre a transcendência e o mundo, entre a ontologia e a ética. Os romances que citei exploram ambos esta problemática. Quando alguma coisa se rompe e não se devia ter rompido, quando um elo se quebra e uma vizinhança vital se deteriora, algo de trágico pode ocorrer…
Em Disgrace e na Mancha Humana é de exilados que se trata. Agora, porém, trata-se de um exílio sem a ambivalência construtiva que eu geralmente lhe atribuo, mas de uma queda, de uma perda da vizinhança com o Génio ou o Daimon. O ser desconecta da Graça… e portanto o que pode sobrevir é da ordem da Desgraça.

28 Abr 2016

Lembranças de longe: ou a música chinesa de intervenção 遥远的呐喊

*Por Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste ano comemora-se o 50º aniversário do movimento, formalmente designado por Grande Revolução Cultural Proletária, que teve uma duração de 10 anos.
A Revolução Cultural começou oficialmente em Maio de1966, quando Mao Tsé Tung lançou um ataque contra os seus adversários na liderança do Partido Comunista e promoveu uma vaga de crítica estudantil à classe docente. A década sangrenta e anárquica que se seguiu desacreditou o líder aos olhos de muitos chineses e abriu caminho às reformas económicas levadas a cabo por Deng Xiaoping, após a morte de Mao.
A última revolução do Presidente Mao tornou-se um dos acontecimentos mais controversos na história da China moderna. A campanha política desencadeada a nível nacional, e que incentivava a juventude e a classe trabalhadora a rebelarem-se contra o aparelho de Estado resultou, em finais de 1966 e durante o ano de 1967, em confrontos violentos entre as diversas facções. Para restaurar a ordem Mao convocou o Exército de Libertação do Povo o que deu origem a um período de grande repressão. Muitas das pessoas que apoiaram Mao no início da Revolução Cultural acabaram posteriormente por ser seus mártires.
A Revolução Cultural deixou traumas e feridas profundas. Foi preciso esperar pela década de 80 para que muitas das vítimas pertencentes às elites política e intelectual fossem reabilitadas pelo Partido Comunista e para que decisões dos Tribunais contra cidadãos comuns fossem revistas. No entanto, ainda hoje em dia muitas das pessoas ligadas a antigas facções se sentem discriminadas pelo PCC, o que faz com que seja tabu falar sobre a Revolução Cultural. O Partido evita o assunto e prefere falar sobre a abertura da China, as reformas económicas de Deng Xiaoping, e por aí fora. A censura dificultou desde sempre uma discussão pública e aberta sobre o assunto e o povo, quer por ignorância, no caso dos jovens, quer por apatia, no caso das pessoas de meia idade, evita-o. A crítica pública de matérias sensíveis não é tolerada. No entanto, em privado, as línguas soltam-se com mais facilidade.
Num reality-show, em Novembro do ano passado, um homem grisalho pegou na guitarra e fez ouvir o seu lamento, numa canção em que falava da morte do pai e da dissolução da sua família durante a Revolução Cultural. Yang Le楊樂,conhecido como o Johnny Cash chinês, actuou ao vivo, demonstrando publicamente uma rara expressão de dor por um dos mais trágicos episódios da história recente da China.

A canção de Yang Le, “Desde então” 從那以後 diz o seguinte:
bit.ly/1SvPTB8

Letra:
Quando era criança,
Eramos seis,
Irmãos e irmãs mais velhos, eu era o benjamim.
O pai era belo e valente,
A mãe, jovem e linda.
Trabalhavam honradamente e eram bondosos,
Depois da Revolução Cultural, ficámos apenas cinco.
O pai, vítima de um erro, acabou por morrer.
A mãe não teve alternativa, casou com alguém doutro lugar.
Os meus irmãos espalharam-se por montanhas e vales.
Desde então, a minha família dispersou-se,
Irmãos e irmãs pelos quatro cantos da Terra.
Nos feriados, só podíamos enviar lembranças de longe
Lembranças de longe,
Lembranças de longe,
Muitos anos depois, ao olhar para trás,
Meus irmãos e minhas irmãs, não precisamos de nos consolar,
Todos nos lembramos, o Pai queria que fossemos honestos e amáveis,
Nunca devemos mudar.
Lembramo-nos, a Mãe queria que fossemos fortes
E felizes
Mesmo hoje,
Cantamos a canção preferida dos nossos pais
Fortes e felizes
Amáveis e Honestos
Cantamos a canção preferida dos nossos pais
Bons e Amáveis
Com vidas felizes

É preciso mencionar que Yang Le foi descoberto num programa de televisão apresentado pelo célebre Cui Jian, o Godfather of Chinese rock-n-roll (saiba mais em:on.wsj.com/1WFOF6c), que em 1986 agitou as águas e expressou os sentimentos de toda uma geração com a sua canção icónica Nada Em Meu Nome 一无所有, que pode ser ouvida aqui:
bit.ly/1rl1p6B
(A letra encontra-se no link do youtube)

27 Abr 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? 10. A empregada do bar

* Por José Drummond

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uarenta e cinco minutos e muitas bebidas depois, levantas-te. Dispersas-te até à varanda do bar e inclinas-te contra uma parede. Acendes um cigarro. Está abafado. Apesar disso tens um blusão de cabedal vestido sobre uma camisa preta. És um homem não muito alto e magro. Quando fumas dá ideia de que estás ainda mais perdido. Imagino que muitas vezes as tuas noites sejam completadas com prostitutas ou mulheres desesperadas e que tu entediado as permitas preencher os seus desejos. Não que me ache desesperada. Mas se calhar estou. Se calhar estamos todos. És um homem que, como defesa, irás  ferir mais os outros do que curar as tuas feridas. Como se as tuas feridas se alimentassem das feridas que infliges. Como se essas feridas fossem a razão da tua existência. Sopras uma nuvem de fumo no ar e vejo-te em profundo suspiro. Vou ter contigo. Sorrio. Mas tu não me vês. Sorrio de novo. Nervosamente. Passando com a mão pelo meu longo cabelo preto que hoje está mais rebelde. Finalmente olhas para mim e é como se o tempo parasse.
Sem que me dê realmente conta da sequência acabo no teu quarto. Um quarto confuso e desarrumado que espelha bem aquilo que sinto passar-se na tua cabeça. As tuas intenções são claras quando me agarras e me empurras para a cama.  Tínhamos acabado de chegar, e, como que apanhado no rodopio da tua própria confusão, paras. Por um momento ficas imóvel como se não soubesses o que fazer de seguida. Tomo eu conta da situação e rapidamente liberto-me da minha camisa, expondo parte dos meus seios por entre as rendas do meu sutiã. Os teus olhos mudam de expressão, como que em surpresa pelo meu movimento rápido.


Lanças-te na cama, cativado pelo inchaço dos meus seios, mal contidos no sutiã. Sem falar aproximas-te de mim e olhas-me profundamente nos meus olhos cor de avelã. Deixo os teus dedos frios acariciar o meu rosto. Os nossos lábios encontram-se, e tu, mordes-me gentilmente o lábio inferior. Sinto o sangue a fervilhar e não resisto ao impulso de te empurrar de leve e rodopiar sobre ti. Agarras a parte de trás da minha cabeça e puxas-me para ainda mais junto.
Com dedos ágeis soltas-me o sutiã, deixando-o cair no chão. Os meus mamilos roçam endurecidos contra a tua camisa. Os teus lábios quentes beijam-me. Sinto o hálito a whisky e tabaco a inundar-me a boca. Os teus dedos acariciam-me os seios e descem lentamente até às minhas ancas. Sussurras que a minha pele macia e quente te está a pôr louco. Os teus lábios descem ao longo do meu pescoço e em modo animalesco voltas a rodopiar assumindo de novo a posição de topo. Eu tento  empurrar-te em falso porque quero que me agarres ainda com mais força. Os teus dedos prosseguem de modo livre o reconhecimento do meu corpo. Solto um pequeno gemido e não consigo resistir à vontade de  te desapertar a camisa e arranhar-te as costas. A tua boca desenha um círculo à volta do meu mamilo direito antes de o chupar fazendo-me gemer ainda mais.
A minha mente está num sentido permanente de rebelião. Preciso disto. Preciso tanto disto. As tuas mãos não param e retiram-me a saia fazendo com que me contorça até aos tornozelos. As minhas cuecas rosa estão húmidas, e  grito quando as tuas mãos acariciam delicadamente o clítoris. Vejo-te sorrir levemente. Pela primeira vez tens outra expressão e toda a tua dor parece momentaneamente esquecida. Observas-me a gemer. Voltas a beijar-me enquanto nos libertamos da roupa restante. A tua erecção está no auge, pressionando firmemente contra o meu corpo. As minhas mãos empurram-te um pouco até que te agarro o pénis. Sinto-o na minha mão a pulsar violentamente. Dirijo-o para o ponto certo. Mordes-me a língua com força quando me penetras. Começas a apertar-me o pescoço. Não consigo respirar. Não consigo gemer. Não consigo fazer nada. Os teus olhos são agora de um animal. Estou perto do clímax quando subitamente te retiras. Olho para ti confusa. Mas essa confusão dissipa-se quando me voltas a penetrar. Choramingo. Recomeças cuidadoso e lento mas, de repente, sinto -te ofegante a aumentar o ritmo, sorrindo, como um louco, sem retirar as tuas mãos do meu pescoço. É neste momento que tudo se torna vago e perco os sentidos…

Dou comigo a abrir os olhos. Estás a olhar para mim. Choras. Como secar uma face cheia de lágrimas? Não sei quanto tempo estive inconsciente. Sinto uma dor na cabeça. As constelações impávidas que antes observei na varanda estão agora esquecidas. Os teus olhos não são duas luas cheias. Leio culpa nos teus olhos. Uma mulher sabe quando um homem olha nos seus olhos e vê outra pessoa. Tu tens problemas. És complicado como a maior parte das pessoas. Uma pessoa difícil de conhecer, de saber o que se passa no teu interior. Sinto os teus sentimentos como um turbilhão com imensas coisas. Ingredientes estragados de um qualquer prato amargo. Não é amor. Tu és o tipo de homem que magoa as pessoas, que as parte, que as danifica. És o tipo de homem do qual  as mulheres devem ficar afastadas. Percebo que tudo foi um erro. Quero-me ir embora. Quero-me levantar. Não consigo. Não me consigo mexer.

27 Abr 2016

Dois filmes peculiares, Shirley und Victoria

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]hirley Visions of Reality, 2013, de Gustav Deutsch, é peculiar a vários níveis. O seu programa consiste na animação, lenta, de um grupo de 13 quadros de Edward Hopper. A partir de cada um deles o realizador inventou uma ficção que rodeou de apontamentos históricos de época, desde os anos 30 aos anos 60, e que no seu conjunto contam uma história atraente sobre uma mulher determinada. Uma peça de teatro para dizer a verdade – porque esta mulher é uma actriz de teatro.

A introdução de uma dose significativa, num texto que não é muito extenso, de aspectos políticos, como referências à Guerra do Vietname ou às famosas delações de Elia Kazan, poderá chocar alguns puristas mas constitui uma adição enriquecedora a quem não se deixar prender por parvoíces.

A outra peculiaridade, que é a mais impressionante e a que marca verdadeiramente o filme como um objecto fora do vulgar é o seu aspecto visual – um conjunto de quadros, feitos em estúdio, em que o cenário e as figuras têm uma textura impressionantemente pictórica. Por isso é que estas são visões, visões da realidade que Deustche constrói. Não sendo particularmente sensível à melancolia americana de Hopper, parece-me que prefiro a de Deutsche.

Neles construiu-se um desenho cheio, de contornos muito bem definidos (mais do que os quadros de Hopper) que fazem lembrar a banda desenhada de linha clara e cores fortes, especialmente atraentes no efeito que a luz do sol imprime nos objectos dos vários lugares imaginados (vários deles quartos, lugares de trânsito e sonho).

Se se insiste na descrição do desenho é porque esta é a especialidade que marca o filme, muito mais que a sua mecânica narrativa, e é ela que ficará para sempre na memória e na história.

Shirley é um filme de actriz e a sensualidade e o calor rigoroso dos quadros de Hopper transpõem-se perfeitamente para a figura de Stephanie Cumming, muito bonita, quente mas com a determinação e firmeza de uma mulher com convicções fortes.

Não há muito falou-se aqui de alguns filmes que se relacionam com pintores ou quadros, como sejam Caravaggio, de Derek Jarman, The Mill and the Cross, de Lech Majewski e Mr. Turner, de Mike Leigh e este filme de Gustav Deutsche, mais um filme de um austríaco de que se fala aqui, pode ser visto pensando naqueles e nos modos como o cinema pode falar da pintura (mais do que propriamente sobre os pintores, no fundo muito menos importantes que aquilo que fica).
O que Shirley nos dá é, para além do efeito de novidade, a parte que tem que ver com o cinema, que é muito mais intensa que nos outros filmes que em cima se referem, muito mais que no filme de Lech Majewski (de 2011) que segue uma vontade que por vezes se assemelha a este.

Victoria, 2015, de Sebastian Schipper, figura junto de Shirley porque vem igualmente acompanhado de uma curiosidade técnica, esta a de ter sido todo filmado num take de 138 minutos na madrugada de 27 de Abril de 2014 (Russian Ark, de Sokurov, tem 96 minutos e o filme iraniano de 2013 Fish and the Cat, de Shahram Mokri, tem 134. Há outros).

Victoria passa-se durante parte de uma noite, uma concentração que notara num outro filme de interesse médio que também se prende com marginalidade e que foi há pouco aqui revisto, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Para criar algum desconforto pode pensar-se igualmente em Kinatay, de B. Mendoza, que acompanha uma inquietante (e sangrenta) viagem perto de Manila e que termina igualmente de madrugada.

Victoria, como o filme de Wolfe e Shirley giram em torno de uma mulher e os dois que aqui se apresentam são realizados por autores de origem germânica, austríaco o primeiro e alemão o segundo. O de Schipper parte da possibilidade de uma fragilidade, a fragilidade de Victoria, uma rapariga espanhola embriagada que não fala alemão e que se vê imersa em aspectos negros da noite berlinense.

É um filme sobre Berlim, um filme sobre um aspecto da cidade, à noite, conduzida por um grupo de “verdadeiros” berlinenses – de Berlim Oriental. Seria interessante perceber a que outra Berlim, menos verdadeira, é que esta visão se opõe.

O que se transforma é o tipo de fragilidades que encontramos ao longo da noite e o que parecia ser apenas uma noite de crime transforma-se numa vinheta comovente sobre a amizade e a fragilidade de quase todos os intervenientes numa dose suficiente de amargura e ingenuidade.

No fim, fica a impressão que com as câmaras de hoje a euforia que se criou em redor do filme de Sokurov, de 2002, deixou de ter razão de ser. Por que não filmar em apenas um take e, como aqui acontece, com diálogos em grande parte improvisados? Já não parece um empreendimento tão difícil.

Isto pode ser entendido como um elogio (porque no filme de Schipper não se nota nenhuma linha forçada de continuidade) ou uma leve desconsideração (porque afinal não é um problema técnico assim tão difícil de superar, as maiores dificuldades situando-se certamente a nível da manutenção de uniformidade a nível da iluminação e da cor e da organização das massas).

Victoria vem provar mais que este é um processo a ser seguido (e se não for num take poderia ser em 2 ou 3 ou 4 como o autor considerou fazer enquanto plano B) do que vem provar que este é um grande acontecimento técnico.
É difícil falar de Victoria sem rodar em torno da sua proeza técnica mas que isso não faça esquecer que tem qualidades a nível da firmeza do desenho da sua protagonista, da cidade de Berlim e dos seus habitantes que justificam a sua visionação. Aproveite-se este filme numa altura em que pouco de interessante parece vir da Alemanha em termos de filmes de larga circulação.

26 Abr 2016

Na apresentação de Li Bai – A poesia é o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada

Intervenção inédita de Natália Correia sobre o poeta Li Bai (701-762) e a poesia clássica chinesa, na apresentação dos Poemas de Li Bai, trad. António Graça de Abreu, na Missão de Macau em Lisboa, a 6 de Julho de 1990

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ui convidada para dizer algumas palavras sobre Li Bai, mas eu não sou especialista em literatura chinesa, sou uma pessoa curiosa como qualquer poeta, e mais nada.
Li na imprensa que vinha aqui fazer uma palestra sobre o poeta Li Bai, imaginoso exagero que me força a esclarecer que as palavras sobre esse magnífico anjo abolido da poesia chinesa, as palavras que ouvireis, nem de longe, nem de perto têm uma dimensão palestrante. Feito este esclarecimento que me iliba da precariedade do meu discurso, começo por lamentar que a actividade editorial portuguesa não venha acompanhando a larga difusão que editoras estrangeiras, nomeadamente em Inglaterra, têm dado à literatura chinesa, lacuna porventura ou certamente causada pelo velho fantasma da exiguidade de recursos económicos — para não dizer a palavra exacta que é miserabilismo —, que ensombra a nossa cultura.
Contudo, em boa hora desta omissão nos vem ressalvar o Instituto Cultural de Macau, dando-nos a conhecer através da excelente tradução acompanhada de valioso prefácio e notas, de António Graça de Abreu, a poesia de Li Bai.
Este poeta é considerado pelo seu tradutor “talvez” o maior poeta da China. A reserva do “talvez” não será alheia ao reconhecimento do génio de outro poeta, Du Fu, coevo de Li Bai no século VIII, ao tempo da dinastia Tang, período de “ouro” da poesia chinesa, florescendo num universo de paixões, refinamentos e extravagâncias que atingiu a perfeição numa produtividade espantosa.
A China bem se podia orgulhar de possuir este extraordinário património poético quando o pensamento europeu obscuramente ruminava aristotelismos ou devocionismos agustinianos à volta de sentenças patrológicas. Mas não me cabe aqui dilatar conhecimentos em que não passo de modesta amadora, e que são da área de António Graça de Abreu a quem já devíamos, de resto, o grande préstimo cultural de dar a conhecer, por iniciativa do Instituto Cultural de Macau, a peça de Wang Shifu “O Pavilhão do Ocidente” que também nos convida à humildade de reconhecer que já no século XIII o teatro era um património da cultura chinesa quando na Europa germinava em dramas litúrgicos, tutelados pela igreja.
Não resisto a realçar na poesia de Li Bai, esse grande poeta chinês, dois aspectos que algo têm a ver com a nossa literatura.
O primeiro constitui um traço importante da poética chinesa enaltecendo como valor supremo da poesia a brevidade, valorizá-la-á mais pelo que sugere do que pelo que diz. A quadra tem assim um relevo muito significativo no discurso poético chinês, pois que cessando a palavra por imposição da economia formal, o sentido prossegue. Ora é de assinalar que esta valorização da quadra dentro do conceito do “pouco que diz muito” é idêntico ao critério que na nossa poética popular elege a estância de quatro versos, a redondilha menor, como a quinta essência da expressão lírica conceptualista e satírica, ou seja, tudo aquilo que realmente traduz o génio português, Um elemento que a sabedoria popular agrega ao valor da quadra é o dom de a improvisar. Do repentismo de Li Bai nos dá notícia o seu tradutor que nos informa que as quadras breves de cinco caracteres por verso eram improvisadas pelo poeta, sendo só depois passadas ao papel.
Outro aspecto incide sobre Fernando Pessoa, sobretudo na sua hipóstase Alberto Caeiro. Observa com justeza António Graça de Abreu que este verso de Pessoa, enquanto Caeiro “a vida é sombra que passa sobre um rio” podia ser da autoria de Li Bai. Assim é. E direi mais, a identificação entre a temática da perenidade da sábia natureza e da fugacidade da vida no lirismo de Li Bai, e a tópica que caracteriza a poesia do heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro, mesmo a de Ricardo Reis, pode ser reduzida a este principio taoista “se queres conhecer o Tao, expulsa de ti o teu pensamento, tal como a serpente larga a sua pele.” É o que por outras palavras Caeiro nos diz “compreendi isto com os olhos, não com o pensamento.” Ora neste apelo ao outro compreender que o pensamento interdita, seria de estimar o vinho como desorganizador da máquina pensante. Li Bai – outro paralelo com Fernando Pessoa que era beberrão –, junta assim à glória de astro da poesia chinesa, a fama de emérito beberrão. Fama e proveito pois que na sua errática biografia são pitorescamente frequentes as bebedeiras que o poeta translada, de forma encomiástica, para os seus versos. E nisto, repelindo o moralismo confuciano como muito bem acentua António Graça de Abreu, o poeta Li Bai prossegue na senda da poesia dos taoistas em que anteriormente brilha entre os sete Sábios do Bosque de Bambus o amante do vinho Liu Ling, numa busca da evasão que liberta o espírito dos entraves da visão racional. 01
O fundador do espírito da poética moderna, Arthur Rimbaud, far-se-á eco, sem o assumir, sem o conscencializar, desta conexão da embriaguez e do olhar poético ao dizer “Proceda-se ao desregramento dos sentidos para atingir o desconhecido.” A prática poética do surrealismo que em Portugal foi uma cumeada da poesia das últimas décadas seguiu esse princípio criador do desconcerto dos sentidos que, libertando a imaginação, a investe de plenos poderes.
Por fim uma importantíssima e pouco conhecida identidade nos alvores do nosso lirismo, nas Cantigas de Amigo, as paralelísticas, com as poesias chinesas do Shi Jing, o clássico Livro das Odes. O processo rítmico é idêntico e para a semelhança ser perfeita ambas executavam-se por coros alternados. Nas poesias do Shi Jing, tal como nas Cantigas de Amigo, a voz era dada à mulher. Prova-o este poema traduzido para o francês por Marcel Granet:

“Oh, tu, senhor de belo rosto,
que me esperavas na rua,
ai de mim,
não te segui…

Oh, tu, senhor bem talhado,
que me esperavas na sala,
ai de mim,
não te segui…

Compare-se com esta cantiga que Pêro Gonçalves Portocarrero pôs na boca da amiga, como era habitual nas cantigas de mulheres do nosso lirismo medieval, visto que não faziam mais do que reproduzir temas arcaicos, uma poesia arcaica em que era a mulher quem compunha as poesias. Os trovadores eram muito gentis com as damas, como se sabe, de maneira que lhes faziam essa homenagem. Eis, portanto a poesia comparada:

O anel do meu amigo
perdi-o sob o verde pino
e choro,
eu, bela.

O anel do meu amado
perdi-o sob o verde ramo
e choro,
eu, bela.

O facto de uma poesia semelhante à nossa Cantiga de Amigo paralelística ter aparecido na China alguns séculos antes de Cristo tem causado perplexidade aos historiadores, aos investigadores dos cancioneiros medievais. Atenua-se porém essa perplexidade se averiguarmos, como eu averiguei em porfiados estudos, que a nossa cantiga paralelística tem remotas origens, o que é confirmado por Theodore Frinz que enriqueceu os estudos desse lirismo demonstrando que a cantiga feminina é o género lírico mais arcaico com que deparamos nas mais diversas culturas. Pergunto: Um ponto comum, esse perdido ponto do espírito? Um horizonte de poetas, uma desaparecida unidade, todos os povos despedaçados por catástrofes e guerras?
A poesia tem direito a admitir que é sua vocação unir o que está separado. E a própria realidade histórica que vivemos nestes dias de aceleradas mudanças aconselha-nos, a nós ocidentais, que abdiquemos desse logocentrismo, dessa encapotada transferência do moribundo imperialismo histórico para o imperialismo do pensamento ocidental que tem dado frutos aberrantes. Vou citar só um. Recordarei o conceito de primitivo adoptado por Lévy Bruhl, nomeadamente no seu livro As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores. Pois bem, esse pilar das teorias sobre a mentalidade primitiva tratou, por assim dizer, como primitivos e inferiores todos os antigos povos extra-europeus, incluindo nestes os chineses e japoneses.
Importa pois varrer, de uma vez para sempre, das mentes europeias os resíduos deste dasaforado logocentrismo que até se metamorfoseia agora na inculcação de modelos políticos em territórios culturais a que eles são espúrios. O mesmo é dizer que devemos acolher as mensagens de outras culturas como uma dádiva feita ao universalismo que se alimenta de diversidades culturais, políticas e civilizacionais.
É dentro deste espírito que deve iluminar todas as nações que saúdo o Instituto Cultural de Macau e o António Graça de Abreu por revelarem aos portugueses os Poemas de Li Bai, expoente da poesia dessa China que, passando por enigmática, nela, poesia, mostra a sua alma, porque a poesia é isso mesmo, o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada.

Lisboa, 6 de Julho de 1990
Por Natália Correia

26 Abr 2016

Uma canção de gesta

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]rimavera sabe a jograis e a mesteirais, a esta saga épica passada entre florestas europeias para ser cantada contra pagãos e muçulmanos a «Canção de Rolando» mais «El Cid o Campeador». A épica medieval sabe-nos sempre a flor de laranjeira e a frutos silvestres no tempo da “flor”. É bonita a ideia de canção, esta noção de que o poema é canto, ritmo e dança, combate, barca que abarca amantes no tempo gentil das cotovias, pois que ninguém vem a terreiro nos mosteiros que têm nome de Rosa nos Invernos duros, dado que aí brilham as sombras e as cinzas que vão também dar origem aos fertilizantes das «Coitas de Amor» fazendo parte da iniciação e do renascimento como um antigo culto Eleusino… Aqui estamos entre cavaleiros, homens de façanhas, servindo causas e combatendo bem ao jeito do belo livro de Sampaio Bruno «Os Cavaleiros do Amor».
Numa época em que tudo avança desgovernadamente para uma reabilitação muçulmana, são estes cavaleiros, quase, uma doce memória… a Estação presente agudiza-nos estas temáticas, já que foram estes os Cantares que nos trouxeram até ao que somos e podemos vir a perder. Nós já não dimensionamos o Canto, nem o poema de agora, esse longo fonema, o deseja reabilitar, a nossa acústica está morta para o despertar dos longos encantos. Não há nada que nos sugira um sopro mais abrangente do que a nossa pequena evocação de entes perdidos entre muitos, nem o «Amor Cortês» está valorizado no seu mais nobre apelo de “courtoisie” um enamoramento da exaltação do romance na sua fórmula literária, nem tão pouco a delicadeza idílica parece uma suave explicação…
Todos estes estilos se narram em paralelo numa muito feliz manifestação a que até hoje não somos indiferentes e tudo devemos de civilizado: amar, saber amar, era uma disciplina como outra qualquer, há seres com vocação, outros não: saber produzir estímulos será mais uma matéria Pavloviana. Efectivamente estamos num universo em que a noção sexualizante não era marcante, mas sim, o namoro, o desejo, a excelsitude do sentimento como força maior. O resto devia ser um segredo dos amantes. Nós que estamos atentos, entendemos por que é que o poema dura. Estamos na Primavera e longe andam os madrigais e esta «Coita de Amor» que quase nos parece “coito de amor” tal a simbiose fonética onde só o género muda, porém — coita — sofrimento amoroso, cantiga de amor, são os seus sinónimos, esta estrutura, este encaminhamento, e também organização emocional, são as bases da nossa natureza onírica que herdamos e não sabemos desvincular-nos, mesmo que queiramos ser outra coisa, por vários imperativos da vontade encontramo-nos nos “nichos” destes temas, agora tão floridos como outrora.
Com o passar dos séculos estas estruturas ritualísticos pareceram-nos cada vez mais ténues, também é certo, quase mesmo, rasuradas, num clima de laicidade tamanha, qual “natureza-morta” cheia de frutos e troféus de caça, mas sem a seiva deste imenso legado: onde estivemos mais perto foi sem dúvida no 25 de Abril que é o grande «Cantar de Gesta» ressurgido, farto e pleno como a germinal Primavera. Muito mais que a queda de um regime, sim! Ali naquele espaço de tempo concentrámos todos os mitos, todas as heranças mais gentis, todo o legado mais civilizador e o amplo amor contido que se fez em todos carne e fruto. Os regimes pouco interessam quando temos a sorte de viver numa vida o conteúdo do melhor de uma Civilização. Sim, e cantámos, e houve Cânticos, e amámos, e houve seiva, e sonhámos, e éramos Gente, e as flores não nos deixavam… Quase digo adeus neste silêncio de barcas naufragadas a esse Touro bendito de escarlate vivo, e a tanta robustez sadia e boa.
Todo este canto da «Canção de Gesta» nasce também da singularidade da cultura celta e do mito bretão: da Candelária até à Páscoa assistimos à morte de Artur e só depois ao enamoramento seguido de cópulas festivas, que estão absolutamente inseridas no contexto vibrante do momento. Nós tivemos tanta sorte que tivemos um Maia… nós somos o mito bretão numa alvorada redentora. Camões soube como nenhum esclarecer a boa chegada com sensibilidade medieval, e fê-lo com graça e ainda muito terreno livre para espraiar estes cânticos; campos que se estendem com verdura bela…
Há poemas célticos que deviam ser gravados nas rochas… e nem uma folha de carvalho se perdeu em Yeats seu descendente directo. Não raro existe ainda um Mago Merlim viajante nos caminhos por onde passamos procurando o jovem amante, talvez ele se tenha transformado em mago e seja o mesmo em outro tempo.
Por cá, fazia Afonso X as Cantigas de Santa Maria e a Primavera chegava para todos como se fosse afinal o verdadeiro Messias, o Cálice Sagrado, a nossa formosa vitória que tinha de ser servida rapidamente antes de tudo abrasar. As Primaveras hoje são árabes e também designam a libertação. Nós suavemente não temos Cânticos que nos retornem à vida dado que o amor nos abandonou (não compreendendo bem o porquê de uma tal desdita) pois não é por amor que as coisas se escrevem: acho que escrevemos para esconjurar o medo. A última grande Primavera foi a última vez que ouvimos a Canção de Gesta sobre a forma de retorno — a Primavera árabe — que tal como nós, algures, despontaram na grande alvorada do tempo.
Se estivermos no meio de uma tormenta e a Primavera se for, talvez cantando, todos juntos, possamos trazer à praça do mundo outra realidade, de novo em Abril, e claro, Abril um mês em que se ensaiam os cantares de todos em volta, o mundo em volta chilreia, é uma ave que dança, um céu que acasala, um bosque que busca, e em buscando nos bebe como as coisas mais bonitas.
Neste instante somos água correndo nas intempestivas chuvas do mês como lágrimas de uma fonte orgânica carregada de densas fomes, podem mesmo crescer-nos flores entre os cabelos, raízes no peito e ainda escutar um sussurrante Lancelot convidar-nos para a montaria entre um soberbo céu e um pasto verdejante. Como se um a um, os sentidos se organizassem, e todos juntos cantassem de novo um Hino de Vida tão distante… que a própria Primavera se nos consubstancia como um registo da eternidade.
E se amor é assim, um duplo instinto melhorado, a Cultura que ele erigiu, fez-nos tão raros, que seria desassossego e praga esquecermo-nos das suas memórias neste momento. Mas lembro-me agora deste verso de Tagore «No Coração da Primavera».
Noite de Abril.
A lâmpada arde neste meu quarto
Que a brisa do Sul
Enche suavemente
O meu vestido é azul como o pescoço de um pavão,
E o manto verde como a erva nova.
Sentada no chão, perto da janela, olho a rua deserta….
Passa a noite escura e não me esqueço de cantar:
– Sou eu, caminhante sem esperança.
sou eu.

26 Abr 2016