Pequim, 5 de Novembro de 1977

*por António Graça Abreu

Talvez seja apenas
a negrura de um corvo,
ou o estertor de um moscardo
enredado numa teia de aranha
humedecida pela chuva.
Talvez seja apenas
a saudade de um sino
no campanário branco
da aldeia onde não nasci.
Talvez seja apenas
o rumor amargo do bafio,
do fel, do vil.
Talvez seja apenas
a memória do sibilar
do vento nos ciprestes.
Talvez seja apenas
um madeiro carcomido
por gotas de tédio.

Pequim, 13 de Novembro de 1977

O meu filho Sérgio, com dois anos e meio, encontrou entre os meus papéis uma fotografia da avó. Olhou para ela, muito atento, e depois pediu-me um lápis para escrever à avó. O rapaz, que vai ao infantário já há dois meses, anda perdido entre duas línguas, o português e o chinês, fala dificilmente qualquer uma delas e quanto a escrever, estamos entendidos.
Mas decidiu escrever à avó. Encheu um postal de riscos enviesados, mais difíceis de entender do que os mais complicados caracteres chineses.
Perguntei-lhe o que aquilo queria dizer. Respondeu-me num português elementar:
“Para a avó ver e lembrar de mim.”

Pequim, 24 de Novembro de 1977

Interessantes estas conferências sobre o V Volume das Obras Escolhidas de Mao Zedong.
Hoje fiquei a saber que em Xangai, entre Junho de 1949 e Fevereiro de 1950 (os comunistas tomaram o poder em Outubro de 1949), os preços dos bens essenciais subiram vinte e uma vezes. Com o advento do novo regime foram presos os especuladores, e a partir de Março de 1950 os preços foram regulamentados e a inflação foi sustida.
Em 1937, sob o governo nacionalista do Guomindang de Chiang Kai-shek, com 100 yuans compravam-se dois bois, em 1939 comerciava-se um porco, em 1943 adquiria-se um frango, em 1945 dois ovos valiam 100 yuans e em 1947, com este dinheiro, comprava-se uma pedra de carvão. Finalmente, em 1949 um bago de arroz equivalia a 100 yuans.
A vida económica em algumas cidades antes da Libertação (1949) dependia do ópio, do jogo, da prostituição. Após 1949, a contradição principal era entre o proletariado e a burguesia, entre a propriedade privada capitalista e a socialização da produção. Houve muitas dificuldades no início da Libertação, no reajustamento entre o capital e o trabalho, entre o privado e o estatal. Existiam cinco males:
1-Subornar.
2- Sonegar impostos.
3- Falsear informações ao Estado.
4-Especular e roubar os bens do Estado.
5- Roubar informações.
Os burgueses, com a força do socialismo, foram obrigados a aceitá-lo, as contradições antagónicas foram resolvidas por meios não antagónicos, mas a burguesia manteve alguns direitos, de voto e de representação política. O homem transformou-se, foi obrigado a viver do seu próprio trabalho.
Mao Zedong defendia a continuação da Revolução após a tomada do poder pelos comunistas, sob a ditadura do proletariado. Acusou Khruschev de trair o marxismo-leninismo no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, ao acusar injustamente Staline. Existiam ainda contradições de classe no interior do PCUS, preparavam-se as condições para a ascensão do revisionismo. Mao Zedong descobriu que ao longo da construção do socialismo continuam a existir classes, contradições de classes, a luta entre duas linhas que se entenderá por dezenas ou centenas de anos. Por isso, segundo Mao Zedong, o nosso Estado socialista é, e não é, sólido.
Dizia Mao que, em 1957, 90% do povo chinês apoiava o socialismo. Seria verdade?

Pequim, 26 de Novembro de 1977

Visita ao Instituto das Minorias Nacionais.
A China é um país multinacional, um puzzle mais complexo do que à primeira vista pode parecer. Conta com uma grande maioria, os han汉, os chineses propriamente ditos, 96% da população. Os restantes 4% são gentes não chinesas que ocupam quase 50% do território, as grandes regiões montanhosas ou semi-desérticas, a Mongólia Interior, Ningxia, Gansu, o Tibete, o Xinjiang. Como entrosar e harmonizar estes povos, por exemplo, os kasakhs, os quirguizes, sobretudo os iugures do Xinjiang, — muçulmanos ainda aparentados com os turcos, que são cerca de sete milhões de crentes em Maomé e Alá –, com um todo chamado República Popular da China, predominantemente han? 1816P13T1-B
Falam-me do respeito pelos hábitos e costumes de cada nacionalidade, da igualdade e unidade entre as etnias, conseguida em 1949, após a Libertação. Dizem-me que na Assembleia Popular Nacional que reúne uma vez por ano para discutir os assuntos de Estado, 17% dos quase quatro mil membros pertencem à minorias nacionais.
Nestes Instituto das Minorias Nacionais (há nove em toda a China) formam-se os quadros que irão gerir o tal harmonioso encontro entre gente tão díspar e com vidas tão diversas. Não será fácil, haverá sempre problemas. Os estudantes frequentam diferentes cursos, de três ou quatro anos, estudam política, a língua chinesa, arte, dança, pintura. Este instituto em Pequim, uma espécie de universidade, conta com 1900 alunos de cinquenta nacionalidades diferentes, com uma idade média de 20 anos. Já formou 12.000 quadros.
Fomenta-se o desenvolvimento e crescimento das minorias nacionais que me dizem poder ter muitos filhos, ao contrário dos han limitados ao filho único. Acusam o “bando dos quatro” de ter praticado o chauvinismo han que considerava os nacionais não chineses como estrangeiros, gente atrasada que habitava para além das fronteiras da Grande Muralha. Jiang Qing, a mulher de Mao, atacava os cantos e danças das minorias, não autorizava que ao dançar os uigures oscilassem as cabeças, que os mongóis abanassem os ombros.
Os alunos são recrutados por professores (2/3 de nacionalidade han) que se dirigem às regiões habitadas pelas diversas etnias e aí seleccionam os jovens que virão estudar para este Instituto.
Interessante a visita, com alguma propaganda de permeio.
(continua)

1 Ago 2016

Dantes o mar e o mundo

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]sonhar com viagens. E então saio do olhar poisado na mesa e da ideia desse mapa. Sair à procura dessa sensação boa de lugar real estendida então por toda a cidade nocturna. Ruas calmas, numa noite que ainda não é tarde, mas já solitária. Silenciosa a intervalos longos. Lenta nuns pontos e adormecida nos mais esquecidos. Ou vigilante mas com a calma das horas próximas do sono. Íntimas. Luz de candeeiros de cidade. Limitada no respeitar cantos secretos que qualquer rua deve e tem. A entornar luz como cortinas suaves nas pedras limpas e secas do calor. Luz líquida. No chão. A dureza sólida do chão. Nos pés. E uma poalha gasosa de indefinição, a entorpecer a vista para longe. E o longe. O ar, tépido tão esperado e desesperado que neste verão avança e recua. Pensamentos escorregadios também. E sempre que saio é qualquer coisa indefinida de tempo a mudar. Como um relógio esquecido e que retoma o ritmo dos seus batimentos quase cardíacos. E as arritmias. As pequenas síncopes. Mas descer ansiosamente ao rio e é uma outra noite, quase. Esta noite é noite em que a cidade se virou do avesso e as pessoas entorpecem as ruas sem igual. Não olho ninguém e não vejo ninguém. Assim. Não sei se quem ouve o meu olhar, ouve o meu lamento. Solto para dentro, silencioso como um suspiro único que se perde. Nada a dizer que não o dito já. Não gastar as palavras frescas que estão impressas no ar denso de uma memória. Umas de pesadelo, outras porque tinham de ser.

(Mesmo flores. Às vezes grandes como pesadelos. Túlipas a pairar no seu aveludado denso e negro sobre a luminosidade hesitante do dia. Sobras de noite. De momentos nocturnos de qualquer hora. Súbitos ou arrastados como um peso que se tem que levar. Para coar as pequenas pedras preciosas. Sempre lá. Sujas de uma lama de dias menos. Lama que é argila depuradora. Também é.)

Dantes o mar, e a terra mais mundo. Essa inquietação de gente, e de mundo por marear. A descobrir. Fui vê-los, se dormiam. Àquela hora da noite. Encostados à cidade como cão ao dono. E no calor da noite. Podia ser no frio. Esperava encontrá-los na sua vida de barcos, talvez a ser afagados no convés por marinheiros amorosos no dever. Mas em festa, afinal. Iluminados, engalanados, cheios de visitas demais e sons a mais. Só queria vê-los, nobremente como barcos grandes, anacrónicos, e sonhar com coisas de outro tempo. Um, solitário, e só um, no meio do rio e da noite, parcas luzes a iluminar vagamente as velas desfraldadas, um pouco fantasmagóricas. Quase como um navio fantasma, então. E ali, só, no meio das águas, a lembrar quem se afasta das multidões para sentir o rio, o mar, a noite ou um simples som. Porque vieram para correr. Para ganhar. Dantes o mar e o mundo agora uma taça. Talvez e só. Como uma taça de vinho em que se mergulha de olhar e coração. Uma eternidade num e noutro copo como se sempre o mesmo. Não ajuda a passar a mágoa mas ajuda a passar o tempo. A pensar o que é a raça dos grandes navios. Que não é – queria – a de, amodorrados, na noite servirem de atracção de feira como barquinhos em lago artificial. Antes poiso de marinheiros com uma arara esplendorosa ao ombro em vez dos fios do ipod. E os olhos limpos do visor de um iphone. Limpos, para sonhar. A melancolia, a recobrir esta frase de anacronismo e rejeição.

Quantas vezes, vou ver o mar, muitas mais, o rio. Também porque corre para lá. Estender a alma longe e desligar-me de mim. Mais ainda o céu por todas as janelas em que me fecho. E quando mesmo este se me fecha de humor soturno, fecho eu os olhos e vou. Onde não posso deixar de ir. Sempre e para sempre.

Algo em mim apela à vingança de estar parada. Vingo-me no sonho. E só. Mais ninguém tem culpa. De uma coisa e da outra. Vingo-me sonhando o sonho e deixando-o sonhar-me. E defraudando ambos. Para consumo privado. Essa palavra de horror. Só em circuito fechado. Na direcção de mim. Não mais do que isso. Castigo-me de impossibilidades. Quem alguma vez viveu entre dois fusos do meridiano do tempo, ficou talvez para sempre com a alma partida em duas. Partida e chegada. Partida para chegar e retrocedendo. O eterno dilema de partir e ficar. Mas ficar é uma noção que só se alimenta em sentido, da noção de partir. Por oposição, se o fosse possível, a isso. Ninguém que nunca tenha partido e sentido a partida, sente a impressão, a possibilidade, a necessidade, ou a inevitabilidade de ficar. Quem nunca sentiu a pátria ao longe, quem nunca gostou de sentir a pátria, pátria, mas ao longe, não tem talvez esta ânsia antiga de partir. Dos antigos, nada sei da demanda de enormidade transcendente. De perigos irrepetíveis, noites do desconhecido e histórias ouvidas e contadas. A seguir estrelas e sonhos. Dos menos antigos a fuga a uma vida difícil. E sempre a ideia de partir à salvação. Ou partir simplesmente. De si. Para si, numa distância reveladora. Como um químico fotográfico. Fotossensível. E partir. E há um único momento na vida em que se nasce outra vez. Sem morrer. Como nos ciclos de Saturno. E para sempre duas pátrias. Sendo que uma é sempre a da partida.

Mesmo naquela minha paixão por mapas. E a apontar o dedo a desfiar e espiar as cartografias possíveis deslisando para sul, imagino itinerários lunares e desesperados. Encontros e reencontros de filme. Emoções adolescentes de esquecer as pernas. Seguindo as estrelas ou uma lua egínica, orientadora sem garantias. Para sul, sempre para sul. Mas sem certezas. Em centímetros meço horas. Comparo dados e faço os cálculos da fantasia provável. Que não é minha como as cartografias do dia de hoje não são minhas. Estou aqui. Dentro de casa e sem a lua ao alcance. O mapa que não chegou a poisar na mesa para o ver nitidamente, e o lugar que não é meu. E agora ir. Aqui dentro. A lado nenhum.
E pensar que alguém os foi desenhando, aos mapas, anos aturados de descoberta e erro. Desenhados, linha a linha como passadas de gigante a definir o mundo adivinhado. A emendar o mundo. Imaginado. Desenhado sobre ondas e terrores de tempestade e monstros. Como hoje.

Por isso fui vê-los. Esperava encontrá-los de velas arregaçadas, olhos sonolentos ou, vivos, a fitar o longe e a foz. Silenciosos em fundo a, talvez, velhas canções de marinheiros. Vozes grossas e bêbedas, muito bêbedas e líquidas. E líricas, digo. A ecoar paradoxos de ir e de vir e querer e não querer ir e voltar. Coisas de marinheiros. Em contacto com terra firme num estender a mão. A temer o balanço e a tontura que os segue a terra firme. E talvez também umas poucas raparigas livres, do porto, de xaile descaído e vozes quase capazes de cantar um fado vadio, líquidas e líricas também. Uns rapazes, lânguidos. Também. A vender o corpo por uma canção e mais uns trocos. Ou nem isso. Se a serenata for de marejar os olhos, almarear a mente, os ombros. Levar. Marear. Os olhos, dizia, em ondas mansas que sobem acaloradas e se desprendem quase invisíveis como um vidro ténue sobre o globo ocular. Uma maresia íntima. Ou uma calote maior sobre o globo terrestre. Uma névoa húmida que vem do mar. Sempre. E com esse sal que só vem do mar. E volta. Que “los marineros besan y se van”. Diz Neruda. E assim também os grandes barcos.

Porque vieram, pergunto. Acordar saudades de séculos.

29 Jul 2016

Ningbo e a cidade de Liampó

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a província de Zhejiang encontramos a cidade de Ningbo, situada no Delta do Rio Yangtzé. Com uma estratégica posição na costa marítima a meio da China, usufrui de três portos, o Beilun banhado por um canal de águas profundas, o Zhenhai e o antigo porto de Ningbo, equipado para petroleiros e outros navios de grande porte.

Se a razão da visita é ser Ningbo a última cidade do Grande Canal e encontrar-se na lista das cidades chinesas ligadas à antiga Rota Marítima da Seda, confesso trazer a curiosidade desperta pela Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e Tratado das Coisas da China do Frei Gaspar da Cruz, cujas informações recolhidas em meados do século XVI, me colocavam a imaginação às voltas ao pretender entender como seria Liampó, “estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü”, como o classifica Rui Loureiro numa das notas redigidas no Tratado das Coisas da China. Por isso, aqui não vamos escrever sobre a actual Ningbo e seus arredores, nem da cidade esplendorosa desde a dinastia Tang até à Song do Norte, que com o nome de Mingzhou foi um dos principais portos da costa chinesa, o que continuou na dinastia mongol dos Yuan. Com a abertura dos caminhos terrestres, a cidade começou a perder importância e caída no esquecimento, quando em meados da dinastia Ming, o , dominicano Frei Gaspar refere, os portugueses “a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”.

Tal estabelecimento inicial dos mercadores portugueses em Liampó terá ocorrido em 1540 e segundo Rui Loureiro, Liampó tanto designava nas nossas fontes quinhentistas a cidade de Ningpo e área circundante, como o estabelecimento português que floresceu entre 1540 e 1549 em Shuang-hsü, uma das ilhas do arquipélago de Chu-san, no litoral fronteiro a Ningpo.

Complementa Victor F. S. Sit, ” Em Shuangyu, os portugueses envolveram-se com piratas chineses e japoneses (wokou) em negócios ilícitos de elevados lucros, dando, assim, origem a uma colónia portuguesa, a segunda maior da Ásia, de importância apenas inferior à de Malaca. Lá viviam 10 mil comerciantes, entre os quais 1200 portugueses. Havia mil casas, uma municipalidade, uma assembleia, um tribunal, várias igrejas e um hospital. Esta povoação mais parecia um estado dentro da China”.

A muy nobre e sempre leal cidade de Liampó

Ainda antes do estabelecimento em Macau dos portugueses, segundo Montalto de Jesus refere, “da leitura de outro relato contemporâneo, a famosa Peregrinação de Mendes Pinto, ressalta que Liampó foi sempre considerada como a mais bonita, a mais rica e a melhor abastecida colónia que os portugueses tiveram na Ásia – um município oficializado como cidade portuguesa e intitulado, nos testamentos e escrituras, Esta muy nobre e sempre leal cidade de Liampó, pelo Rey nosso Senhor, como se se situasse em Portugal. A colónia atingiu o auge da sua prosperidade depois da descoberta do Japão (ocorrida entre 1542 e 1543). O comércio, calculado em mais de três milhões de cruzados de ouro, rendia três ou quatro vezes o capital investido. A comunidade era de mil e duzentos portugueses e mil e oitocentos orientais, que por ali prosperavam sem ser molestados pelos piratas. Ao Sul, no entanto, os portugueses eram muitas vezes vitimados e o comércio entre Malaca e Liampó disso se ressentia fortemente. Certa vez calhou a António de Faria, que arruinado resolveu vingar-se. Com o apoio dos seus companheiros equipou uma expedição contra o seu saqueador, o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa. A partir do Sião, Faria esmagou muitos piratas poderosos – e uma das vitórias impressionou tanto os chineses que estes lhe enviaram uma deputação, oferecendo-lhe um tributo de vinte mil taéis e solicitando a sua protecção como rei dos mares. Ele de boa vontade aceitou e emitiu salvos-condutos, pondo como condição que os portugueses fossem tratados de forma fraternal pelos chineses sempre que se encontrassem.” (…) “a expedição teve a seguir a fatalidade de naufragar numa ilha deserta – e a perseguição teria terminado aí não fosse o apresamento de um barco que casualmente lá aportou para se restabelecer de água. Então, com a frota de um pirata chinês, Faria terá eventualmente conseguido alcançar, derrotar e matar Coja Acém e a sua horda, não dando quartel nem aos feridos e doentes encontrados em terra. A frota vitoriosa, carregada de ricos espólios, perdeu-se parcialmente num tufão”. Tal terá ocorrido por volta de 1541 e é preciso lembrar que por essa altura, e desde 1521, após a primeira das duas batalhas navais ocorridas entre navios mercantes portugueses e a armada chinesa, as autoridades chinesas decretaram a expulsão dos portugueses e por isso, eram estes ali considerados piratas.

Os piratas japoneses

Tributários da China no século V a.n.E., durante a dinastia Zhou do Leste, os japoneses ao longo dos tempos até à dinastia Ming continuaram a receber do erudito país constantes influências, tanto culturais como religiosas, de onde lhes veio na dinastia Tang, o Budismo, o modelo com que estruturaram a sua hierarquia Imperial, a arquitectura das casas e muitas outras influências. Já na dinastia Yuan, por os japoneses não quererem em 1266 ser tributários da dinastia mongol, em 1274 e 1281 foram invadidos pelas tropas de Kublai Khan. Nessas duas vezes, na primeira invasão os 30 mil mongóis e coreanos foram repelidos por uma tempestade e na última, com 140 mil soldados, “ao fim de dois meses de luta, nova tempestade – Kamikaze, vento divino – dispersa a frota invasora. Novamente Kubilay se prepara para tomar as ilhas, organizando um quartel-general para o ataque em 1293. A sua morte em 1294 susta esta tentativa. O regente dos Hojo, mantém, no entanto, o alerta militar até 1314”, segundo Gonçalo Mesquitela. Estas tentativas mongóis de invasão levaram os japoneses à construção de embarcações, ficando assim guarnecida a capacidade marítima do Japão. Anteriormente e desde longo tempo, “o comércio exterior japonês estivera entregue a navegadores coreanos e chineses. A ameaça mongol, como dissemos, desenvolveu a classe marítima nipónica. Nas décadas que se lhe seguiram, instituíram-se numerosas comunidades japonesas na costa, (…), aventurando-se depois no mar da China”, como refere Mesquitela. E com ele continuando, “Nos princípios do século XIV, os japoneses começaram as actividades de pirataria e saque das costas, tendo daí advindo para estes barcos japoneses o nome de Wako, oriundo da bandeira invocadora do deus da Guerra que ostentavam. Este carácter de pirata resultava também da clandestinidade a que as autoridades da Coreia e da China obrigavam o comércio marítimo, considerado indesejável, pelo que o pretendiam suprimir ou, pelo menos, restringir fortemente”.

Logo desde o início da dinastia Ming, em 1373 o Imperador Hong Wu (1368-1398) “mandava ao Japão dois monges como seus enviados, pedindo que cessassem as actividades Wako contra a navegação e as costas chinesas”, Mesquitela e continuando com a sua ideia, em 1401 o Japão tornou-se de novo tributário da China, prometendo acabar com os wako a troco de uma viagem de dez em dez anos. Nesse decénio houve seis. “Com um acordo comercial mais liberal, recomeçou o comércio em 1432, sob a mesma base de uma embaixada decenal, mas com mais navios”. Por essas ligações de barco receberam então os japoneses a influência chinesa nas artes e na técnica.

Navegação marítima interdita

Após a chegada da última das sete viagens do Almirante Zheng He, em 1433 o Imperador Ming, Xuande (Zhu Zhanji, 1425-35), “desencorajara abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que, no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”, segundo Rui Manuel Loureiro. E continuando com Frei Gaspar: “E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China, lhe é lícito ir sem certidão dos loutiás da terra donde partem, na qual se relata para onde vai e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem. Se não leva esta certidão é degradado para as partes fronteiras”. (Existiam os passaportes internos para os chineses viajarem dentro na China). “O mercador que leva fazenda leva certidão da fazenda que transporta e como pagou direitos dela. Em cada alfândega que há em cada província paga uns direitos, e não os pagando, perde a fazenda e degradam-no para as partes fronteiras.

Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros no Sião, outros em Patane e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhes despache os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem mui escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora e tornam mui escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chineses, com achaque de navegarem para fora, se faziam ladrões e salteavam as terras de longo do mar”, segundo escreveu o Frei Gaspar da Cruz.

Foi após os problemas ocorridos entre 1521 e 1522 e sobretudo pelos desmandos de Simão de Andrade, que levaram à expulsão dos navegantes portugueses da costa chinesa, que estes chineses a viver fora da China os encaminharam “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses. E como estes chineses que andavam entre os portugueses eram os que terçavam (interceder a favor) entre os portugueses e os mercadores da terra nas compras e vendas, tinham deste negócio mui grande proveito. Os loutiás pequenos de longo do mar recebiam também mui grandes proveitos deste trato, porque recebiam grossas peitas de uns e doutros, pelos deixarem contratar e lhes deixarem trazer e levar as fazendas. Pelo que esteve este trato entre eles muito tempo encoberto d’el-rei e dos loutiás grandes da província.

Depois de se haverem feito por algum tempo assim encobertamente as fazendas em Liampó, foram-se pouco a pouco estendendo os portugueses e começaram a ir fazer fazenda ao Chincheo e às ilhas de Cantão. E também já outros loutiás, pelas peitas, os iam consentindo por todas as partes, pelo que chegaram alguns portugueses com a contratação até além de Nanquim, que é já muito longe de Cantão, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato. Sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó”, Tratado das Coisas da China de Frei Gaspar da Cruz.

Em 1542/3 chegaram os portugueses ao Japão e “Liampó tornou-se numa importante base comercial para os Portugueses nas viagens para o Japão, que aí desafiavam todas as ordens proibitivas em vigor para o comércio externo. Um incipiente comércio popular, no dizer dos governantes, e o comércio clandestino, agravaria ainda mais o problema da pirataria japonesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

29 Jul 2016

Heterónima e outras demonstrações

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]heterónima Pessoana não nasce apenas da multiplicidade do carácter ou de uma forma de fugir a uma Lisboa enfadonha no início do século vinte que, por acaso, até nem o era, dado o clima efervescente da Primeira República onde todas as viragens sociais e culturais se davam à velocidade do vapor. Essa tese cai por terra de tão inexacta que é. Em nós, não cabem, não -todos os sonhos do mundo – muito menos temos a elasticidade mimética de ser conforme a circunstância. Há, sem dúvida, componentes que fazem um homem mais vibrátil na multiplicação de si mesmo. Mas o que a uns parece do efeito da quimera e do desdobramento da personalidade, pode neste caso ter outras origens bem mais profundas.

Pessoa é originário da Covilhã e de um ramo bastante circunscrito. Sabendo-se da sua descendência familiar que partia de cristãos-novos referenciados, ora existe ainda um ramo remoto que vem das duas filhas de António José da Silva, judeu relapso: uma fugida para os Países Baixos de onde não mais regressaria e outra que vivera escondida dentro de casa para o resto da sua vida. É desta que o ramo é descendente. Para se viver, para se ter subsistido, foram precisas muito mais que análises vãs e, para se ter desembocado em Pessoa, foi preciso também muito mais que uma imaginação torrencial, inspiração, génio e “jeito”. Foi ainda preciso ter nas veias aquela plasticidade de saber que mudar de nome, ter vários nomes, até formas de expressão, fazia parte de uma camuflagem em prol da resistência e do salvar a vida. Aqui chegados, e caso os inimigos sejam só fantasmas, a memória nem por isso se torna um elo morto. E foi nesta imensa componente toldada de segredos que ele se deslinda, acrescentando à necessidade a arte de transformar o medo, a arte pura. Aliás, grandes obras nascem destes caminhos que, depois de aparentemente solucionados, libertam para outra área elevando os mesmos argumentos.

Pessoa, de que todos falam, ninguém ainda escutou no devido silêncio de um temor antigo. Conhecem a parte que lêem como uma adaptação de cada um de nós em sua voz, como algo que vem de fora para dentro, mas não sabem os caminhos de fronteira que fazem os homens serem assim e não de outra maneira: mesmo os estudos Pessoanos são vazios de observação neste domínio, que se me apresenta, vital, para que tenhamos então todas as associações probabilísticas. Este judeu, era, como todos, de natureza velada, tanto que nem anatomicamente se mantinha o mesmo, havendo o lado fugidio de quem sempre em fuga não faz mais que reproduzir a herança, pondo-a a trabalhar e a ser – no mínimo que faz. Este míope, que ora dilatava, ora ficava esguio como uma enguia, que trazia as calças por cima dos calcanhares ( todos os judeus fazem isto, mesmo que não notem. Jacob, quando da luta com o Anjo, fere-se no calcanhar, era coxo, portanto; e essa fronteira que dá para o chão fez de cada um homens de calças curtas) que era conversador, também, errante na cidade, trilhava os passos de algo que lhe estava prometido.

Notemos a infalibilidade de um destino quando se tem herança assim: que faziam eles? Eram astrólogos, magos, iniciados. O Catolicismo, mesmo de fachada, nada lhes dizia, e a sua forma de trabalhar foi sempre pelo registo do elemento alquímico. Não era certamente um anunciador de futuros para senhoras de sociedade e tagarela da prosápia dos jogos de cartas. Não, trata-se de um respeitável intérprete de rigor e íntima contemplação, que fez interagir no seu enunciado e deu forma a cada personagem que “inventou”: ou eram mesmos reais? Elementos de uma cultura de graus vários… também os profetas eram pastores! O medo é real, perante ele podemos expor o melhor de nós. A poesia de Pessoa não é um jogo de palavras que se amontoam com sentimentos em cima. É uma inteligência fina da alma, um refinamento singular numa laboriosa maneira de cumprir o génio por detrás da palavra escrita. Não há Pombas do Espírito Santo, nem Pentecostes nestes processos, nada cai na nossa cabeça… e na língua, por milagre infantil, tudo é um longo processo de elaboração, um caminho trilhado na linha da continuidade. Todo o seu drama era passar da casa oito para a casa nove… astralmente… um drama de passagem do deserto para a Terra Prometida. Para entender o que Pessoa fez é preciso muito, muitíssimo, mais.Ffoi necessário algo que até aqui ainda não foi lembrado: contextualizar todos estes dados e não andar atrás da quimera do ente isolado que tanto gozo dá aos que gostam de estar sozinhos. Mas a sós ou não, ele seria sempre a pessoa que Pessoa era.

Todo este dispositivo tremendamente óbvio, de tão desconhecido, dá-me por vezes uma intimidade muito boa com esta consciência, como se lá do fundo ainda me segredasse coisas que só direi depois. Como sabem, ele ainda está a escrever, idem as enigmáticas e as misteriosos frases que por aí aparecem… eu não jurarei que não… Afinal, trata-se de alguém que está disfarçado e, mesmo que não estivesse, foi assim que ao longo de séculos se apetrechara para sobreviver.

Se as pessoas fossem mais atentas, saberiam porque são raros os poetas: eles são os últimos de uma longa cadeia que reuniu toda uma herança, e tal como ele bem viu: “sentimentos todos nós temos” para depois: “sentir, sinta quem lê “. Ele tinha a denúncia toda em si, mas, o mais óbvio, sabemos que os povos não são capazes de ver, encaminhando para teses amorfas, análises pesadas, formas pedantes, análises irracionais, algo que está a nível chão da nossa percepção.

Também com esta postura foi firmando o seu ar triste e grave, dando-se conta da fragilidade da memória dos Povos, estando em trânsito como um corpo estranho numa nave de loucos. E com esse olhar se foi. E, ainda hoje, a louca leviandade do mundo acrescenta teses às suas formulações a partir deste ente que tanto desconhecem. Teriam certamente uma vida mais monótona pois que, a existir, um poeta está a dinamizar o mundo em vários ângulos que a própria vida na sua robustez não conseguiria jamais fazê-lo.

28 Jul 2016

O feitiço do artista 这个意大利人

* por Julie O’Yang

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á alguns meses atrás a leiloeira Sotheby vendeu pela quantia astronómica de 137,4 biliões de HK dólares um dos 18 quadros assinados pelo pintor Lang Shining.
Giuseppe Castiglione, um missionário católico chegou à China, à corte do Imperador Kangxi, em 1715. Como o Imperador Kangxi não via com bons olhos a Igreja Católica, o monge apresentou-se como pintor e, nessa qualidade, instalou-se oficialmente na corte Kangxi. A tarefa mais importante que lhe foi atribuída consistia no registo pictórico de todas as actividades da corte, desde a guerra, eventos históricos e figuras a cavalo, a cenários paisagísticos, jardins e festivais. No desempenho destas funções, o monge italiano influenciou e alterou para sempre a estética chinesa.
O Imperador Kangxi não só não gostava das cores usadas na pintura europeia, como não se sentia francamente à vontade com o conceito de perspectiva. Kangxi detestava os “claros-escuros” dos quadros a óleo, manifestando uma forte preferência por rostos pintados de frente, que exibissem toda uma claridade radiante e “positiva”. Para cair nas boas graças do Imperador, Castiglione aprendeu a dominar as técnicas de pintura chinesa, que, como se sabe, são extraordinariamente exigentes. Aprendeu a pintar em seda, uma técnica que não permite emendas. Assim que o pincel toca na seda, já está, é permanente, não pode ser modificado, melhorado ou retocado. Estas limitações devem-no ter feito sentir como uma dançarina de circo acorrentada. Contudo, acabaram por obrigá-lo a desenvolver um estilo único que desafiou todas as regras conhecidas até aí. Por exemplo, o italiano pintou paisagens com sombras, introduzindo a noção de profundidade na percepção que os chineses tinham do mundo. A uma dada altura, Castiglione sugeriu ao Imperador que fosse criada uma escola de pintura, mas o pedido foi rejeitado. Depois da morte do Imperador Kangxi, o seu filho, o Imperador Yongzheng, subiu ao trono do dragão. Ao contrário do pai, o Imperador Yongzheng sentia-se fascinado pela arte europeia. Foi neste período que Castiglione deu largas à introdução da perspectiva nas pinturas palacianas. Incentivou Yongzheng a pintar com ele; Castiglione pintaria as figuras centrais e o Imperador ocupava-se das paisagens de fundo, dando assim o seu contributo à ambiência geral. A isto chamava-se “hebihua”, ou seja, pintar um quadro a dois. Castiglione fez imensos hebihua com o Imperdor Qianlong, durante o seu reinado e, à época, tornou-se moda nas famílias aristocráticas estes ensembles de homenagem à pintura ocidental.
Através do seu trabalho, Castiglione ensinou aos pintores chineses a importância da expressão, da precisão das formas, das texturas e do olhar que capta a personalidade do retratado. A sua pintura poderia não estar ao nível das melhores da Europa, mas ele teve certamente um papel determinante na forma como os chineses passaram a observar o mundo. Castiglione participou na concepção de Yuanmingyuan, o antigo Palácio de Verão, que deveria ser uma simbiose das arquitecturas oriental e ocidental. A partir de 1840, e nos 60 anos que se seguiram, Yuangmingyuan foi pilhado e incendiado por diversas vezes na sequência dos conflitos com a Aliança das Oito Nações e com o Japão.

27 Jul 2016

Tens um minuto que me possas emprestar?

Parte 1

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Manual de Instruções Para Desaparecer” (Abysmo, 2015) é o primeiro livro do poeta José Anjos. Dividido em partes, quatro, a primeira delas chama-se “I – Dos Lírios”. E o seu primeiro poema é “Instruções de tempo, modo e lugar para encontrar um lírio antes do jantar” O título do poema é ele mesmo um poema. Não ver aqui uma gramática é impossível, pois “tempo, modo e lugar” não deixam que isso aconteça. Este tempo, modo e lugar acaba por tomar, privilegiadamente, conta da atenção. Como se nos avisasse: antes de mais isto aqui é feito com uma língua, e esta língua tem uma gramática, e uma gramática tem regras, instruções, que inclusivamente nos podem levar a “encontrar um lírio antes do jantar”. Sem gramática, nem um nada encontramos.
Para a economia deste texto será necessário pôr aqui o primeiro poema do livro, por inteiro:
Hora:
oito (menos 5) = vinte e três cabelos brancos antes do rugido circular

Instruções:
com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito
perto do lado de fora

Sítio:
duas asas à esquerda do portão em assobio leve

Código:
com uma mão no bolso, a outra transversal à linha mais doce da terra

Outras recomendações:
Ter atenção à rotação cardiovascular entre cada hemisfério e esperar

O poema surge-nos em forma de dicas, de notas que se escrevem para não esquecermos algo. Começando pelo fim, aquilo que não devemos esquecer é precisamente a última palavra do poema, que é colocada um pouco afastada das outras, no último verso, de modo a fazer salientar ainda mais aquilo que é preciso realmente não esquecer: esperar. Na realidade aquilo que é importante, e nos surge em forma de “outras recomendações” – para além das mais importantes, depreende-se – é ter atenção ao mundo e esperar. Mas para além da programática evidente do poema, como todo o livro, há versos absolutos de belo: “duas asas à esquerda do portão em assobio leve”, “com uma mão no bolso, outra transversal à linha mais doce da terra” e os maravilhosos “com um traço de giz na lapela, barba e olhos estrelados apenas visíveis muito / perto do lado de fora”. Passado o teste iniciático, caímos num poema cujo título mostra-nos o fascínio, uma vez mais, que a gramática exerce sobre José Anjos. “A Este Inverno”, chama-se o poema. Há uma estranheza neste título por duas razões: 1) Inverno passa a ser sentido como alguém; 2) sentimos também o título como um brinde que se faz, com copos na mão. Depois, é do Inverno que se fala. E o poema, tal como sentimos geralmente o Inverno no hemisfério norte, é triste: “Há uma tristeza que morre pelos cantos / deixa-se levar pelo vento / como uma criança num dia de escola / sem dar muita importância a si própria // mas um quadro não diz tudo” E nem o último verso, afundando-se em dúvida, salva o poema da tristeza em que o Inverno nos deixa ou parece nos deixar. Mas o último verso não tem somente a eficácia da dúvida, introduz também um “quadro”, polissémico, que nos faz ver o poema como uma pintura, ao mesmo tempo que nos remete para a infância e nos faz andar para trás no poema, como se nos dissesse, ou quisesse que víssemos, que o mais importante de tudo é “(…) uma criança na escola / sem dar muita importância a si própria”. A chave para ultrapassar tudo, até um Inverno, é isso que este verso nos faz ver repetidamente, devido ao toque mágico daquele substantivo “quadro” no último verso do poema. Nada é deixado ao acaso nesta poesia, nestes poemas. Para além da magistral e desconcertante lírica, no primeiro poema, entende-se também agora o mecanismo profundo que sustem a máquina. Melhor: entendemos que há um mecanismo profundo que sustém esta máquina. Veja-se o caso do primeiro terceto da segunda estrofe de “Às vezes morde”: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Para além da eufonia evidente entre o “passado” do início do segundo verso e o “fechado” no final do terceiro, atente-se no jogo retórico dos segundo e terceiro versos, que acabam por iluminar metafisicamente o poema: “do passado, ainda agora é hoje / e amanhã já está fechado”. Eivados de enálage, figura retórica que distorce a gramática (“ainda agora é hoje”, “e amanhã já está fechado”), os versos obrigam-nos a ver não só a gramática – por comparação, pela estranheza que o uso gramatical causa – mas também a relação que usualmente temos com o tempo, com as categorias temporais, subdivididas em passado, presente e futuro. Mas voltemos um verso atrás, de modo a termos mais balanço para o que se pretende mostrar: “É sempre tramado o rato [Mickey] / do passado”. Este “é sempre” arrasta o passado. O passado estende-se mesmo para além do futuro, naquele “e amanhã já está fechado”. O passado, que é sempre tramado, abalroa o presente (“ainda agora é hoje”) e boicota completamente o futuro, no “e amanhã já está fechado”. Perante a força do passado, todo o futuro se fecha e o todo o presente é sempre um ainda, faz-se sentir como sempre ainda. “Às vezes morde” é um poema belo, onde o que ficou para trás, aqui “personificado” pelo rato Mickey da infância, está sempre presente. Mas não é a infância que está presente no poema, nem tão pouco o rato Mickey, mas a queda deste, a prisão deste, a perda irreversível da infância. Assim, o passado não é a infância, mas a perda da mesma. Aquilo que é para sempre – é sempre tramado o rato Mickey – é um passado que nos roubam, que ficará para sempre connosco na categoria de objecto perdido, sempre em frente a nós, sempre a ser lembrado. Mais: o passado apresenta-se neste poema como a perda da ingenuidade, como a descoberta de que não há pai natal, só rato Mickey. Repare-se na quarta estrofe do poema: “Mas digo-te a verdade: / mesmo derrotado / eu sabia (com o cérebro semi-encalhado) / que tu és um delírio doce / e que o sacana do Mickey / um culpado” E, ainda que os três versos finais do poema (escritos entre parêntesis) pareçam apontar alguma possibilidade de redenção, isto é, alguma possibilidade de nos libertarmos do passado, de conseguirmos fazer o tempo correr como nos ensinaram que ele corre, de trás para a frente sem parar, o uso dos parêntesis, por um lado, e o “apesar de velhas” não nos dá conforto. Mas veja-se então os oito últimos versos: “Só para te ver sorrir e depois / no fim / poder perder / e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu / (e que jeito deram, apesar de velhas / para voar atrás do rato Mickey e / apanhá-lo pelas orelhas)” Duas situações importantes de salientar: 1) “no fim / poder perder”; 2) “e forjar asas esdrúxulas / no dorso tenro de Morfeu”. Há uma possibilidade de fuga, ou neste caso, pois o poema é todo ele uma inversão do ponto de vista como o passado é visto por nós, há uma possibilidade, ainda que remota, de apanhar o passado: forjar asas esdrúxulas no dorso tenro de Morfeu. Morfeu aparece-nos aqui ao lado de Mickey, embora sem o poder deste, porque é aquele a quem vamos pedir ajuda contra a prisão da infância, contra a omnipresença do passado. Mickey (poderia ser outro herói pop e de banda desenhada) representa o passado, assim como Morfeu o presente, pois para nós Mickey está antes de Morfeu. E este último, representando o presente e por isso de dorso tenro, é a nossa única possibilidade de podermos conseguir libertar-nos de um omnipresente passado, culpado de quase tudo. Há aqui, sem dúvida alguma vibração de Freud, mas também um apontamento ontológico fundamental, ao enunciar o passado como um mar que nos envolve para sempre e como Morfeu (que aqui representa não só o deus grego dos sonhos, mas também todos os novos heróis que vamos conquistando depois de exilados da infância) será sempre menos poderoso que o rato Mickey, embora seja no dorso tenro dele que temos de forjar esdrúxulas asas. É um poema brilhante, que nos mostra um tema muito comum – a infância perdida – de um modo absolutamente original e ontológico, que nos faz ver coisas que não tínhamos ainda visto, ou pelo menos não as tínhamos visto por este ângulo. Mas veja-se ainda, como já anunciado páginas atrás, aquando da inusitada dedicatória, a importância da atenção e do ver para José Anjos, com a terceira estrofe do poema: “Bem o quis ajudar, [ao rato Mickey] / mas nessa noite / eu já era advogado / era oficial bisonho / de um navio / naufragado no coral do engano” Estes versos são também um dos poucos onde é possível encontrar alguma referência biográfica do poeta – eu já era advogado. Claro fica aqui quem não pode ajudar o rato Mickey, isto é, a transformação do passado, de modo a libertarmo-nos do peso esmagador do mesmo, do para sempre do passado. Mas o que me traz a esta citação é, antes de mais, o adjectivo “bisonho”. Ora, se aceitarmos que o poeta usou o termo na etimologia enraizada no italiano (bisogno, necessidade), entendemos que ele como advogado tornara-se um oficial da arte de estar sempre em necessidade de algo, oficial de estar sempre a pedir alguma coisa, pois só por ele mesmo não lhe seria possível provê-las. No fundo, ele tornara-se um oficial de incapaz, oficial de não saber prover aquilo de que necessita. E esta incapacidade apresenta-se, uma vez mais, como uma inversão do ponto de vista usual, já que aquele a que nos habituamos a acusar de bisonho é o poeta e não o advogado. Mas o advogado não tem poder para transformar o passado, só o poeta, só aquele que forja asas esdrúxulas. A guerra aqui não é a do dia a dia, a do sucesso ou fracasso usuais, mas a de resgate do passado, do rato Mickey, preso algures entre a saída da infância e ser-se advogado. Resgatar o passado é ao mesmo tempo libertar-nos dele, é finalmente fazer com que os dias se tornem um enorme passado a crescer, e não um enorme passado onde o futuro está fechado e o presente é ainda hoje. Assim, bisonho, apresenta-se também como aquele que não vê, aquele que não presta atenção às coisas, isto é, aquele que não vê e que não presta atenção ao que realmente importa. “Ás vezes morde” é um poema iniciático e programático, um poema que nos mostra onde estamos e as possibilidades que temos.
No poema seguinte, Ícaro TV, encontramos logo no título o que já antes tínhamos encontrado no poema anterior, a convivência entre os mitos clássicos e a cultura pop. Mas, e como vimos, anteriormente, esta convivência não é pacífica nem deixa de ser; não é sequer uma convivência posta em comparação, é uma convivência que tão somente acontece, como pessoas completamente diferentes num mesmo bar. Como se continuasse o poema anterior, de alguma forma, Anjos volta a invocar as asas, na sua negativa – já sem asas – como algo que perdeu no tempo, na vida, deixando o seu contentamento um pobre de duas pernas. Resta-nos o contentamento de que há saúde e estamos inteiros. A vida resume-se, e depois do passado e enquanto não se o transforma, a um “Dormir viver acordar / e morrer”. Não há capacidade, forças, para acordar ao lado de alguém a meio da noite ou de manhã e ainda ter asas. Estamos reduzidos a duas pernas, que não é mau, e com isso não se inventa amor, ilusão, não se inventa um sentido para a vida para além do andar dali p’ra fora, que é visto e sentido não só como um bem, mas também como um contentamento. O contentamento que nos resta – à falta de asas para voar uma relação com outro – é essa resignação de duas pernas.
Em “Seremos apenas dois” a liguagem faz uma festa. O poema é denso, grande – duas páginas e meia, um dos maiores – mas de um lirismo arrepiante. Em alguns momentos lembramos Pessanha, como nestes dois versos: “Mãos que afagam o vazio / num ritmo ágil e delicado” ou nesta estrofe de quatro versos: “E onde antes / nasceram asas crescem agora / pelo fundo das brasas / cinco vértebras de dor”. Ou ainda na beleza, densidade e música dos últimos versos da penúltima estrofe: “Como podem viver estes imortais, assim, / ao contrário da terra à porta do mundo? / É simples: vivem um dia de cada lado”.
Em “Asas de Cesariny”, poema pequeno, dividido em duas partes (I e II), o autor além de uma evidente homenagem ao poeta referido no título, pretende também sublinhar a sua familiaridade ao surrealismo. Sem dúvida, identificamos essa herança em alguns versos de José Anjos, mas é no que tem de herança de Camilo Pessanha, e no modo como também distorce essa herança, que encontramos o seu melhor tom, o seu tom efectivamente superior, único.
(Continua na próxima semana)

26 Jul 2016

Diário secreto de Pequim

* por António Graça Abreu

Pequim, 25 de Outubro de 1977

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]as Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, secção portuguesa, o camarada Fu Ligang trabalha na mesma sala que eu, na mesa mais pequena, à minha direita. É uma espécie de meu secretário. O Fu estudou português em Macau, numa leva de 60 ou 70 jovens chineses que em 1965 a República Popular enviou quase secretamente para Macau, a fim de estudarem a língua de Camões.
O Fu Ligang aprendeu bem português. Teve um professor que nunca esqueceu com o nome de Júlio Dinis. Responsável e trabalhador — creio que é membro do Partido Comunista Chinês –, hoje de manhã perguntou-me:
“Então camarada António, está a gostar de viver em Pequim, está satisfeito com a China que veio encontrar”?
Assumindo os meus antecedentes meio comunistas, na versão meio maoista, ainda com meia convicção política, respondi-lhe mais ou menos nos seguintes meios termos:
“Sim, vim encontrar um país a crescer, um povo simpático e tenho boas condições de vida e de trabalho aqui em Pequim. Depois, estou a dar o meu pequeno contributo para ajudar a construir o socialismo, para a criação do homem novo, para a construção de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor”.
O Fu Ligang ouviu o meu discurso impassível, um levíssimo sorriso a aflorar nos lábios e, passados uns longos segundos, olhou-me pelo canto do olho e disse-me, em excelente português:
“O camarada é ingénuo.”
E não houve mais conversa. Durante o resto da manhã debruçámo-nos sobre os textos a traduzir e a corrigir.
O Fu deve ter razão. Nestes meus quatro anos de Pequim, vou tentar entender e digerir a minha ingenuidade.

Pequim, 29 de Outubro de 1977

Tenho uma aí, uma espécie de ama ou empregada de crianças para, durante o dia tomar conta do meu filho mais pequeno, o Gonçalo, com apenas treze meses. É uma senhora já de meia idade, vive aqui ao lado do hotel e com a nossa concordância, gosta de levar o menino estrangeiro para sua casa, um pequeno andar aqui perto, pobre mas com um mínimo de conforto. Aí tratam o meu rapazinho com todas as mordomias de um príncipe e o Gonçalo adora estar no meio daquela família chinesa e ser o centro da atenção de todos, incluindo os vizinhos.
Logo no primeiro dia quando a aí se apresentou ao serviço, perguntou-me o nome do menino. Disse-lhe que se chamava Gonçalo, mas ela podia chamar-lhe simplesmente Gon, era mais fácil. A aí repetiu Gou狗, Gou, com alguma surpresa e muita estranheza. Gou狗 em chinês significa cão. Como era possível estes “diabos estrangeiros” chamarem cão a um filho seu?

Pequim, 30 de Outubro de 1977

Vem aí o frio, dizem-me que em Pequim, em Janeiro e Fevereiro as temperaturas oscilam entre os 0 e os 20 graus abaixo de zero. A Sibéria não está longe do norte da China.
Tenho andado a comprar agasalhos, vou precisar de me aquecer. Mas os chineses são um bocado exagerados no que ao frio diz respeito. De há um mês para cá usam ceroulas, homens e mulheres. Ficam cómicos, com as ceroulas vermelhas, cor-de-rosa ou verdes mais compridas do que as calças cinzentas ou azuis, a saírem por fora das pernas, a verem-se a léguas. Dizem-me que precisam de andar assim confortáveis para que depois, quando o verdadeiro frio chegar, não serem apanhados desprevenidos e ficarem sujeitos a uma qualquer gripe ou pneumonia.

Pequim, 1 de Novembro de 1977

Todas as semanas temos aqui no edifício número 1 do Hotel, numa espécie de salão nobre — ex-libris pomposo deste espaço no nosso imenso conglomerado habitacional –, umas conferências sobre a actualidade chinesa destinada a esta gente de desvairadas nacionalidades que habita o Hotel da Amizade.
As conferências são em chinês mas contamos com tradução simultânea feita pelos tradutores encartados do Bureau de Especialistas Estrangeiros, a entidade que zela e toma conta de nós no lugar onde vivemos. Sossegadamente sentados na sala, colocamos os auriculares nos ouvidos, escolhemos a língua, o inglês, o francês, o espanhol e vá de tentar entender o que cada mestre em política actual tem para nos contar. Só assiste quem quer mas há sempre aí duas dezenas e meia de estrangeiros e mais uns tantos quadros chineses a ouvir os discursos de gente graúda ligada ao Partido.
Vêm-nos falar do tomo V das Obras Escolhidas de Mao Zedong, em análises naturalmente muito politizadas, com suma reverência ao pensamento do grande timoneiro. Vou ficando a saber que Mao, em 1950, ao escrever sobre o “movimento de resistência à agressão norte-americana e ajuda à Coreia”, — quando seguiram para a guerra nas terras coreanas cerca de um milhão de soldados chineses, incluindo o filho mais velho de Mao, o general Mao Anying (1923-1950) que lá morreria num bombardeamento aéreo norte-americano –, fico a saber que a China pretendia sobretudo defender-se a si própria dado que, segundo Mao, os yankees tinham como objectivo entrar na China e aniquilar o regime comunista.
O camarada palestrante vai-nos contando a História recente, fala no internacionalismo proletário, refere a força da resistência do povo coreano, com o presidente Mao a dirigir pessoalmente a guerra do lado chinês, uma guerra justa, com fé na vitória. É verdade que o inimigo tinha mais canhões, mas faltava-lhe a moral e o camarada conferencista quase cita o velho Sun Zi (554 a.C.-496 a.C), o mestre da Arte da Guerra, ao dizer:

Ponto Um – Saber se temos forças suficientes para combater.
Ponto dois – Saber se temos forças suficientes para uma possível retirada.
Ponto três – Saber se nos podemos reabastecer.
Ponto quatro – Saber se podemos resistir a uma guerra prolongada.

E vai citando Mao Zedong:
“Ao adquirir-se experiência militar, eleva-se a consciência política. Devemos combater quando for necessário e negociar quando o inimigo der sinais de fraqueza. Somos a favor da paz mas não tememos a guerra, conquista-se a paz através da guerra.
Na retaguarda é necessário coordenar a luta, as fábricas também são campos de batalha, as máquinas equivalem a fuzis e canhões.” (continua)

25 Jul 2016

Exercícios de éter e anestesia

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]otas e murmúrios de meio dia, meio noite. Meio de uma coisa e de outra. O que se é. Ser-se o que se é. Como uma receita. Claras em castelo bem firme e uma pitadinha de sal que se diz quanto baste. Quanto bastasse de leveza e peso medido. De brilho ou absorção de toda a luz. Um vidro translúcido, um cristal transparente e puro a transtornar a luz em cores, um veludo negro sem retorno. Da luz. E ser sólido e permeável. Transparente e velado. Arriscado e temente.
E recobrir a realidade de coisas leves e etéreas. Vivas e serenas mas finas como velaturas de Leonardo. O mesmo que dissecava cadáveres. Para entender. Estas a revelar subtilmente e por sobreposição os volumes de forma suave. Aquelas, simplesmente, a afastar a nitidez excessiva. Que cega. A dor. Envolta numa poalha fina. Como partículas de luz. Ou palavras delicadas, uma música baixa. O marulhar de águas.
Quanto de tumulto irreprimível se pode encerrar num silêncio. Quanto de emoção indómita se esconde na pele. Quanto de caos e angústia se desprendem para dentro como de um manto de conforto e equilíbrio. A pele. Essa camada-organismo vivo, reactiva, bela ou feia, lassa ou triunfante de densidade e brilho. Que respira inaudível, que se arrepia e cora. Que encerra o mundo sob a esfinge. A serenidade de um invólucro, a reter uma amálgama que se deve proteger da dispersão, da corrosão do olhar. A pele a conter, a suportar na sua elasticidade, a camuflar fenómenos alterosos que se sucedem como vagas em maré viva. Perigosos. Violentos dentro e fora.
Há dias em que cada minuto é de uma urgência, uma inquietação uma incompletude. Certos dias de incerteza, é talvez o esquecimento com quem acordo. Fico ai interdita a olhá-lo, a querer ver mais nítido. A ver qual deles. Dos esquecimentos. Ali ao lado da cama. Do lado que não sei. O lado sem fundo em que me sento todos os dias antes de poisar os pés. E aqueles dias em que para baixo é o precipício sem se lhe ver o fim. E não lhe vejo os olhos. E do outro esquecimento, a mesma ausência o mesmo recorte o mesmo vulto denso imatérico e inacessível e em torno o espaço. O de sempre. De que não vejo os olhos. E aos pés da cama, talvez o anjo, o de sempre, também, sentado e pesado com as suas asas negras aveludadas, assimétricas, desleixadas. É ali que um rasgo da luz já matinal lhe fere um ombro e de caminho uma asa. É por isso, mas também que a ferida lhe vem de dentro. A eterna fractura da queda. A intemporal mágoa da fuga. O incomportável peso de culpa. A inalcançável imperfeição que o esconde. As asas mal fechadas na esperança do voo. A quem não vejo os olhos. O voo. Os dias de certeza do não querer acordar e saber que há-de ser. O que há-de ser. Adiado pelo lençol branco puxado à força para cima dos olhos fechados, Fechados com força para não ver a obscuridade, a vencida obscuridade a criar a agitação do dia, da alma a precisar de mais sono. E mais atrás na obscuridade restante ainda o que mais não sei e o que mais gosto. Dois num. O primeiro, o segundo. A haver ouro será dito no final. Esse que não me vê e de que me escondo para que não se veja nos outros ali. Que não vejo ver que uns aos outros. Não ser o esquecimento conteúdo. Uma outra coisa. O esquecimento como forma e não como sentido. Uma capa de imaterialidade. Leve e sem indiferença. Como invólucro do estar. Exercícios de anestesia. Ou abusar genericamente da química do cérebro. Às vezes, simplesmente esticar um tempo em que sem saber porquê para além da química, de facto, sinto que este nada de especial faz sentido em si e assim. Por medo de outro tempo em que muito mais faça muito menos sentido. E me atropele tudo o que não quero ver. Não quero ver. Não quero ver.
Dizia o peso do mundo. Sobre os ombros. E querer acelerar o passo a aliviar, a trocar as voltas e o equilíbrio do peso. Do mundo. Sobre os ombros doridos. As coisas e as coisas pequenas. Inerências gravitacionais. Pequenas poeiras em torno. Ínfimas e monstruosas em círculos. Sempre os círculos viciosos. Padrões. Cansada, sonhava com padrões. Cores e formas a suceder-se. Alucinogénias. As substâncias destiladas na alma. Aquele tempo indefinido de vigília já desamparada no sono. E as folhas desfolhadas sem descanso sobre as pálpebras já fechadas. Ou já dormidas mas entreabertas por força de uma confusão qualquer. Muscular.
O cansaço de padrões. Como azulejos. Mas não estes. Rosto da cidade. Onde as águas escorregam difíceis de entrar. Sempre lavados de fresco como um sorriso novo, e os brilhos entre as flores estilizadas, mesmo envelhecidas, por partes. O brilho rico e eterno aqui e ali a confundir o desgaste de uma pétala, uma voluta ou um trevo. Qualquer coisa de resiliente e feroz mesmo nos mais castigados. Feroz mas de alegria pura. E luz. E unidade. De longe não há imperfeição que destrua a ideia do todo. Naqueles mesmo, que o tempo começou a limar o vidro o contorno ou o desenho, e em que o fez com a arte do padrão, aqui e ali, numa alternância que configura o novo todo.
Murmúrios. Lamentos alongados no espaço invisível e imensurado. Há uma poética nessas queixas não transparecidas, não limadas, não domesticadas. Que escolhem o lugar. Muros de encostar a fronte. E de lamentações. De tocar com as mãos. Muros vastos de compreensão muda. Pedras de tocar, gastas do fervor e tantos gestos. Tantas preces concentradas no tacto. Na fé, no desamparo de algo, de alguém, do mundo ou de ser simplesmente. E o ouvido. Um ouvido na pedra. O segredo. As palavras não ditas. Rústicas como preciosidades em bruto. Atiradas para um além que nem sempre é o mesmo ou mais do que o que transcende. Corpo e espaço confinado. De ser em si e extravasar. O necessário e escatológico reclamar, carpir, vociferar sem culpa nem perdão. A parte sombria que falta em todas as luzes. Que acentua a clareza com que a luz recorta as formas os sentidos, os volumes, e preenche os espaços em branco desse território árido da ilegibilidade. Do que se diz, deve ter-se sempre a noção da insuficiência das palavras que são falíveis e inválidas se esgotadas de sentir. De sensações que as tornem rotundas esponjas de onde se poderá beber uma realidade desocultada. Por pequenina que seja. Restos de uma saliva tanto mais doce quanto não é imposta. Um beijo não deve ser dado e recebido mas uma etapa qualquer entre duas apetências. Como um lamento.
Sempre uma pequena ou grande loucura possível – um pequeníssimo elogio da loucura, um vector centrípeto, e sair do círculo vicioso. Da auto-piedade. Um gesto leve ou incisivo. Como um sacudir de mão sem desdém. Aquele gesto forte do flamenco. Desses pequenos ou grandes gestos, há-os destrutivos, mas há também os outros. E o segredo, na generosidade que se vira para si próprio como para os outros. O que se quer, e a coragem de sair dos territórios confortáveis, assumir a nulidade, descomplicar e desembrulhar cada momento como fosse anterior à grande batalha, e a batalha de cumprir a vontade sem preguiça, um desafio que se conhece de frente sem substituir pelo comprazimento na impotência. Dançar algo ou alguém, como desenhar. Dançar no corpo contra a paralisia da mágoa. Sem a piedade de si.
Antes gostar e não gostar. Que se nos atrapalhe a postura dos ombros com peso a mais do que o que ali cabe. Gostar ou não gostar. Mas não a pena. Da piedade. E já agora a espada. Ou flores. Flores em vez daquelas palavras difíceis que nos caem dos pensamentos irreprimíveis, imparáveis, e é bom que não acertem em nenhuma folha. Antes, que se entranhem na terra – e aí, fermentando sirvam de adubo – onde pertencem estar as matérias escatológicas. Estranha duplicidade que abarca, destino, última ressurreição, fim do homem ou do mundo, e o fim do processo digestivo. Tudo coisas que não quero saber. Que as palavras, como um êmbolo, premindo bem fundo, incisivas ou veementes, injectam todas as dimensões do sentir, do pensar. Mas como o êmbolo de uma seringa, quando injectam ar, esse ar – vital, no entanto – matam. Poderosas e cirúrgicas como bisturis. Mas aí prefiro a espada, o florete. Duelos antigos combinados e justos. Corpos no espaço e que ganhe o melhor. Como se a vida fosse uma competição. De capa e espada. Mas antes o manto de uma certa leveza. Da fantasia. Do esquecimento. Aquele.
Ainda o ar, vital. O éter, anestésico. Essa substância que filósofos, naturalistas e depois os físicos, acreditavam habitar todo o universo. Sem massa, volume. Indetectável e sem atrito. O caminho da luz. Volactil e conhecida dos alquimistas. Tão conhecida como inexistente. Mas na mitologia personifica o conceito de céu superior. O céu sem limites ou o ar elevado, puro e brilhante respirado pelos deuses. Oposto ao obscuro inalado por seres mortais. De um matrimónio nascem terra, céu e mar e de outro, dor, engano, fúria, altercação, luto, mentira, punição, esquecimento, medo e vários outros filhos de mau feitio. Mas a genealogia é contraditória mesmo nos deuses. Tanto são filhos como pais, como uma reciprocidade ambivalente e comum entre causas e efeitos.
É a esse éter que aspiro respirar quando a escuridão e o peso me pesam. Esse éter que do grego significa queimar e tornar escuro como o breu da fuligem. Ou fazer luzir. A luz que queima. Iluminar até à incandescência. E ceifar dores da consciência e, da matéria já do fumo, deixá-las subir e evolar-se. Num território aéreo e longínquo. Leve e fluido. É a inviolável solidão não da matéria mas do etéreo. Do tudo tornado o nada invisível. E diz a Química: éter e ar misturados, um potencial explosivo. Misturas complexas. Como tudo na vida. Mesmo sob um manto leve e etéreo.
É isso. Exercícios de éter e anestesia.
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22 Jul 2016

A população do mar e navegações | Piratas versus corsários

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]ouve já na História os Povos do Mar, indo-europeus que devido à fome emigraram para o Próximo Oriente à conquista de terras férteis e no século XII a.n.E. o devastaram, sendo apenas derrotados pelos exércitos e forças navais do Faraó Ramsés III. Daqui se subentende a antiguidade do uso de embarcações para transporte.

O nómada estar pelas águas vivendo em barcos, transforma a frota numa povoação e crescendo em número de embarcações compõem-se em armada, tornando-se assim uma cidade flutuante. E no início, tudo tinha partido do ver uma folha, ou um tronco, a flutuar levando algo em cima.

Nessa ondulante sedentarização, de quem se viu pelas costas marítimas a retornar às oceânicas águas, cativando muitos a embarcar, primeiro como pescadores ou, depois de uma vida de pobreza no campo, seguirem como marinheiros, aventureiros e soldados, nos barcos do comércio. Muitos, degredados pelos sedentários, que os expulsavam das suas terras, eram embarcados para longínquas ilhas e pelas revoltas no mar se tornaram piratas e fizeram da água a sua terra.

Com espelho no que acontecia em Portugal, segundo Oliveira Marques, “Em finais de Trezentos, a estrutura naval portuguesa acusava algumas centenas de marítimos, entre quadros e pessoal subalterno, possibilitando o lançamento das mais variadas empresas: guerra ofensiva, guerra defensiva, fossados de mar, corso, pirataria, empreendimentos comerciais, etc.”. O mesmo historiador refere ser o pirata “um fora de lei, um bandido do mar”, ao passo que o corsário “recebia autorização régia ou senhorial para atacar o adversário, pagando uma percentagem ao seu senhor, a quem muitas vezes a embarcação pertencia”, mas na prática ambas se confundiam com frequência.

E onde há comércio marítimo existem piratas, sendo a pirataria um fenómeno muito antigo espalhado por todas as costas do mundo. O andar ao corso, muitas vezes patrocinado pelos governos, outras contra esses, em actos de pirataria assaltavam os barcos para aumentarem a sua frota naval, ficar com a mercadoria e vender os homens como escravos, ou resgatados por muito dinheiro e interesses. A técnica de acostagem desenvolvida pelos piratas, mostra serem os barcos a primeira necessidade aos que expulsos para fora da sedentária sociedade, vão embarcados para o exílio e devido às insubordinação e revoltando-se tornam-se fora de lei. Acto que muitos mercadores e os roubados, sem produtos para trocar, recorreram e reconfortados com os fabulosos ganhos, entre si recriaram uma sociedade com as suas leis e princípios. Juntavam-se em torno de um líder, e normalmente o chefe dos piratas é quem nunca se rende e luta até ao fim. Interiormente traz nele uma revolta, ou um objectivo político para reconquistar o trono e nesse ideal consegue por a acreditar a terra da água e daí se faz a ética entre piratas. Ou como refúgio do fugir, que deu em estar, o nómada dos homens do Mar.

A Rota Marítima

Pelos Caminhos Terrestres para Oeste, abertos no século II a.n.E. desde Chang’an (Xian, Shaanxi), ou dois séculos antes, de Sichuan pelos do Sudoeste, via Norte da Índia, os produtos, como a seda, chegavam à Ásia Central, onde os partos depois os vendiam aos romanos. Mas quando estes dois caminhos terrestres ficavam interrompidos, rejuvenescia a movimentação pela água e o comércio marítimo ganhava grandeza.

Se no início, pelos portos de proximidade os produtos eram trocados e levados depois para paragens cada vez mais longínquas, atravessando do Pacífico para o Índico chegavam ao Mar Arábico. Usando a Rota do Incenso daí eram transportados por terra para o Mediterrâneo, o mar do Império Romano. Estonteados com tais produtos, para fugir aos partos, vão os romanos, com a ajuda do saber grego nos conhecimentos fenícios, navegar pelo Mar Vermelho e entrando directamente no Oceano Índico, usando as monções cruzaram-no até ao Sul do Subcontinente Indiano, onde, em contacto directo no século II comercializaram com juncos de mercadores chineses. Estes, navegando em sentido contrário, provinham do Pacífico, e em trato se fizeram as transacções; marfim, vidro, prata, ouro e pedras preciosas, trocadas por laca, seda,…

Este período narrado corresponde na China às dinastias Zhou do Leste, Qin (221-206 a.n.E.), Han (206 a.n.E.-220) e ao Reino Wu (229-280), até que em meados da dinastia Tang (618-907), devido ao fecho dos caminhos terrestres para Oeste, investiu-se na abertura de estaleiros navais e portos ao longo da costa chinesa onde chegavam cada vez mais comerciantes árabes, persas, indianos e de toda a costa e ilhas do Sudeste do Oceano Pacífico.

Com o comércio marítimo em geométrico incremento, os piratas infestavam o mar ao redor de Lin’an (Hangzhou) quando em 1138 para aí se mudou a dinastia Song do Sul (1127-1279). Contava-se agora com a bússola marítima para navegar sem terra à vista e novos juncos, produto do desenvolvimento na construção naval, sendo criada uma poderosa força naval imperial, que patrulhava as costas, servindo muitos outros barcos para serem fretados pelos mercadores estrangeiros, fazendo assim o transporte via marítima dos produtos adquiridos na China até ao Golfo Pérsico.

Com os mongóis, a paz voltou a abrir os Caminhos Terrestres do Oeste e pelos portos muitas famílias Han fugindo, emigraram para as costas do Oceano Índico, sendo nas administrações provinciais e locais substituídas por uigures e estrangeiros. Como o povo mongol não é do mar, quem tomou conta oficial dos barcos e do comércio pelas costas marítimas foram os persas e árabes, crentes do Islão.

Navegações transoceânicas

Já o primeiro imperador da dinastia Ming (1368-1644) investindo nos camponeses, retirou durante trinta anos a China do mar e proibiu todas as embarcações de saírem do país. Desde a fundação desta dinastia Han “a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan e por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.

Com o fim da dinastia dos mongóis, a China perdeu a estrada que a ligava pelo continente euro-asiático ao outro lado do mundo. E foi mais uma vez pelas rotas marítimas, que também a dinastia chinesa Ming conseguiu reabrir-se ao mundo entre 1405 e 1433. Directamente, sem terra à vista, usando a bússola marítima navegou milhares de milhas náuticas até à costa Leste de África. Às ordens de Yong Le (o Imperador Zhu Di, o terceiro da dinastia Ming) ocorreram seis, das sete viagens marítimas transcontinentais da armada do Almirante Zheng He, eunuco muçulmano que para a primeira viagem contou com uma tripulação de 27800 homens, distribuída por sessenta e dois grandes juncos, os barcos do Tesouro e 255 embarcações mais pequenas, transportando mais de um milhão de toneladas de mercadoria, desde tecidos de seda, porcelana, chá e moedas de cobre. Entre essas trezentas embarcações havia barcos jardins onde as hortas eram cuidadas para fornecer alimentos frescos à tripulação imperial. Era uma visita de anúncio da nova dinastia na China aos tributários reinos e países suseranos, que se reconheciam vassalos pelo poder da erudição e qualidade artística dos produtos chineses.

Apesar de haver algumas comunidades chinesas espalhadas até à Índia, Rui Manuel Loureiro refere que por volta de 1430, a dinastia Ming desencorajou “abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”.

Após as Sete Viagens Transcontinentais do Almirante Zheng He, a dinastia Ming voltou a fechar-se para o interior e abateu a sua armada costeira. Desprotegidas as costas marítimas, os mares da China voltaram a encher-se de piratas ainda antes dos portugueses entrarem no Oceano Pacífico.

A questão de Macau

Os portugueses chegaram à China em 1513 e vieram integrados como mercadores tributários provenientes de Malaca, suseranos do Imperador da China, enquanto era sultanato. Episódio, que mais tarde actuará como lenha para a Embaixada de Tomé Pires, aliado aos desmandos de alguns portugueses, que sem se importar onde se encontravam, como piratas actuavam e assim engrossavam com os wako (piratas japoneses) a pirataria do Mar do Sul da China. Após duas batalhas navais em que os barcos portugueses são derrotados pelos chineses, fica-lhes interdita Cantão, local das feiras de seda.

Segundo Victor F. S. Sit, “Em 1522, o governo da dinastia Ming voltou a decretar a interdição do comércio marítimo. Foram fechados os portos, destruídos os navios e proibidas quaisquer saídas ao mar.”

Nos primeiros anos da década de quarenta do século XVI, completamente fora de lei passaram os portugueses a navegar pelo Mar do Leste e aí, entre Zhejiang e Fujian, encontravam-se a negociar as sedas com os chineses e a transaccioná-la por prata aos japoneses, tendo a 23 de Setembro de 1543 os portugueses chegado pela primeira vez ao Japão, mais propriamente a Tanegashima.

Desde 1550, o comércio português com o Japão tornou-se monopólio régio, feito pela Nau Preta, assim conhecida pelos japoneses. Para aí se realizava a viagem da Nau do Trato a partir de Goa, via Malaca e nas ilhas da província de Guangdong abastecia-se de seda. Trato ainda fora de lei, com chineses pelos deltas dos rios Xi e Zhu, ou nas ilhas de Sanchoão (Shangchuan) e como entreposto último, Lampacau (Langbai) de onde os mercadores portugueses se mudaram definitivamente para Macau em 1557. Já com a feira de Cantão aberta aos portugueses, chegava a seda a Macau e em preciosos tecidos era daí embarcada, para o Japão, ou Portugal.

Assim “Macau começou a ser (em 1557) um entreposto para o comércio português entre Malaca e o Japão”, como referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “o desenvolvimento desse comércio traria, mais cedo ou mais tarde, a praga da pirataria a Macau e a Guangdong. Após a repressão de alguns grupos de piratas chineses nas águas de Guangdong e instalados os Portugueses em Macau, as autoridades de Guangdong começaram a tentar resolver o problema dos Japoneses. Antes de mais, uma autorização de residência concedida aos Portugueses em Macau poderia obrigá-los a não se associarem publicamente aos piratas japoneses. De facto, sem os fixar num lugar, como se poderia sujeitá-los à legislação chinesa? Mais tarde, seriam tomadas medidas legais para proibir os Portugueses de ter Japoneses ao seu serviço. Através desta medida de acomodação dos Portugueses em Macau, foram conseguidas, a nível militar, duas vitórias: a rápida repressão dos piratas chineses e o impedimento de qualquer ligação pública entre os Portugueses e os piratas japoneses”.

22 Jul 2016

Ajuste de contas

Chatwin, Bruce, Na Patagónia, Quetzal Editores, Lisboa,1989
Descritores: Literatura Inglesa, Literatura de Viagens, Literatura de Aventuras, Literatura de Memórias, 286 p.:23 cm, tradução de Jose Luis Luna.
Cota: 821.111-992 Cha

[dropcap style=’circle’]B[/dropcap]ruce Charles Chatwin, nasceu em Sheffield no dia 13 de maio de 1940, vindo a falecer em Nice a 18 de janeiro de 1989. Bruce viveu a sua infância em West Heath, nas West Midlands, em Birmingham, onde seu pai era advogado, e estudou no Marlborough College, no Wiltshire.
Depois de deixar o Marlborough College em 1958, Chatwin mudou-se para Londres, a fim de trabalhar como porteiro no departamento de obras de arte do leiloeiro Sotheby’s. Graças à sua apurada acuidade visual, tornou-se depressa um dos peritos da Sotheby’s em particular no domínio da arte impressionista. Acabaria por ser nomeado, mais tarde, director da empresa.
No final de 1964, Chatwin começou a padecer de problemas de visão, parecendo-lhe que isso deveria ter relação com a análise detalhada das obras de arte. Foi-lhe diagnosticado estrabismo latente e recomendado um período de descanso de seis meses. A conselho do seu oftalmologista, viajou até ao Sudão. No regresso, Chatwin desinteressou-se do mundo da arte, voltando agora a sua atenção para a arqueologia, pelo que deixou a Sotheby’s no início do Verão de 1966. Em Outubro do mesmo ano, matriculou-se na Universidade de Edimburgo para estudar arqueologia.  No entanto, apesar de ter ganho o Wardrop Prize pelo melhor projecto de primeiro ano, achou o rigor do estudo académico da arqueologia muito enfadonho, tendo permanecido apenas dois anos na cidade e abandonando a Universidade sem se licenciar. Em 1972, Chatwin foi contratado pela Sunday Times Magazine como assessor para os temas de arte e arquitectura. A sua contribuição para a revista permitiu-lhe cultivar as suas competências de narração e viajar para escrever artigos sobre temas como emigrantes argelinos ou a Grande Muralha da China e ainda entrevistar personalidades tão diversas como André Malraux em França e Nadezhda Mandelstam na União Soviética. Nadezhda Mandelstam foi casada com o grande poeta russo Ossip Mandelstham, fundador do acmeísmo, sendo ela própria uma escritora importante, autora da célebre memória sobre os últimos anos do marido no campo de concentração estalinista, onde faleceu, memória essa que ficou imortalizada pela frase, Esperança contra esperança. 21716P14T1

Ajuste de contas

Em 1972, Chatwin entrevistou a arquitecta e designer Eileen Gray, então com 93 anos, no seu atelier de Paris, onde reparou no mapa da Patagónia, na América do Sul, que ela tinha pintado. “ Sempre quis ir até lá”, disse Bruce. “Também eu”, respondeu ela. “Vá lá por mim”. Dois anos mais tarde, em Novembro de 1974, Chatwin voou para Lima, no Peru, e um mês depois estava na Patagónia, onde se demorou seis meses. Essa viagem resultou no seu livro Na Patagónia (1977), que o lançou como reputado escritor de viagens. Mais tarde, contudo, os residentes da Patagónia viriam a contrariar os eventos descritos no livro de Chatwin. Seria a primeira vez, mas não a última, que conversas e personagens descritos por Chatwin, foram alegadamente ficcionalizados.
Trabalhos posteriores incluíram O Vice-rei de Ajudá (The Viceroy of Ouidah), um estudo ficcional sobre o traficante de escravos Francisco Félix de Souza – que, no livro, é chamado Francisco Manuel da Silva – e as suas actividades no Benim. Para The Songlines, Chatwin viajou até a Austrália no intuito de elaborar a tese de que as canções dos aborígenes australianos são resultantes do cruzamento de um mito da criação, de um atlas e da história pessoal do homem aborígene. On The Black Hill situa-se nas colinas das quintas das fronteiras do País de Gales, descrevendo as relações entre dois irmãos, Lewis e Benjamin, que crescem isolados da história do século XX. O livro ganhou o James Tait Black Memorial Prize. Utz, o seu último livro, resulta da observação ficcional da obsessão que leva as pessoas a coleccionar objectos. Situado em Praga, o romance descreve a vida e a morte de Kaspar Utz, um homem obcecado pela colecção de porcelana de Meissen.
Chatwin estava a trabalhar num conjunto de novas ideias para futuros romances, incluindo um épico transcontinental, provisoriamente intitulado Lydia Livingstone, quando morreu, em 1989. As suas cinzas foram espalhadas perto da capela bizantina de Kardamyli no Peloponeso  — perto da casa de um dos seus mentores, o escritor Patrick Leigh Fermor.

Falar de Bruce Chatwin é convocar o mais importante dos escritores de viagens e trazer aqui o texto Na Patagónia, significa começar pela sua melhor narrativa. A obra não é mais do que “uma viagem comovente pela Patagónia e Terra do Fogo para descobrir que o fim do mundo não existe. E que a aventura recomeça”.
A remota Patagónia, uma terra «no fim do mundo» é habitada por figuras errantes e exiladas, desde gaúchos a foragidos, de mineiros peculiares até aos índios da Terra do Fogo. “Fascinado por este sítio desde a infância, o autor atravessa toda a região, desde o Rio Negro até Ushuaia, a cidade no extremo sul da Argentina e do continente, captando o espírito da terra, da sua história e da sua gente, e conferindo-lhe uma expressão poética e intensa”.
Num escrita prodigiosa, plena de descrições maravilhosas e histórias intrigantes, Na Patagónia narra as viagens de Chatwin através desse lugar mítico e remoto, elaborando ao mesmo tempo narrativas paralelas que tornam o livro inclassificável.
Este livro de Chatwin, livro que é como já disse, mas reitero, a sua obra prima, faz parte do Plano Nacional de Leitura em Portugal e eu considero que se trata de uma óptima escolha. Desde dinossauros até à inesperada Calamity Jane tudo aparece ao longo desta narrativa e sempre de forma surpreendente, para não dizer por vezes hilariante. Calamity Jane, aliás Martha Jane Canary-Burke, foi provavelmente quem mais gostei de encontrar neste livro, dada a minha memória juvenil de livros aos quadradinhos de cowboys, pistoleiros, xerifes, aventureiros, garimpeiros e outros pioneiros americanos. É que se considera, a tradição pelo menos outorga-o, que a Calamidade terá sido casada com Wild Bill Hickok, aliás James Butler Hickok, que é nem mais nem menos que o celebérrimo, pelo menos para mim, xerife de Kansas e Nebraska; que a dada altura se juntou ao não menos célebre Bufalo Bill, aliás William Cody, que os índios designavam por Pa-e-has-ka, ou seja o ‘Cabelos Compridos’ e que o acompanhou até nos seus espectáculos por circos, rodeios e feiras. Que Búfalo Bill fosse o Pa-e-has-ka, isso a mim sempre me provocou alguma perplexidade e confusão, ou mesmo ciúme, por interposta pessoa, claro, pois Kit Carson, não tinha os cabelos menos compridos que Búfalo Bill ou que o próprio Wild Bill Hickok, e até foi casado com uma índia de nome Waa-nibe, mas enfim, preferências…
A verdade é que não é bem assim, pois os factos provam que Kit Carson foi demasiado mitificado pela banda desenhada e afinal não tinha aquele ar de cavaleiro romântico, bem pelo contrário, além de que o seu comportamento militar, em particular contra os Navajos, não foi nada de acordo com os valores do heroísmo propagandeado, mas antes de um verdadeiro anti-herói, cobarde e cruel. Por outro lado, e volto a Hickock, também se terá celebrizado por se envolver amiúde em tiroteios e duelos, explorados pela imprensa sensacionalista, e terá morrido, ao que consta, durante um jogo de poker num saloon em Dakota o que acrescenta uma nota mítica e romântica à sua vida e à sua lenda. Ao que parece, quando foi assassinado tinha na mão um par de ases, uma dama e um par de oitos, mão essa que ficou para sempre conhecida como a Mão do Homem Morto.
Que seja desculpado este austero ajuste de contas tardio com os meus heróis juvenis; se a vingança é um prato que se serve frio a verdade é um prato que se prova tarde, portanto sempre um pouco requentado. Aproveito para confessar que a desilusão foi completa pois os meus maiores ídolos que na banda desenhada eram desenhados de uma certa maneira não tinham nada a ver com a realidade. É o caso de Davy Crockett e Jim Bowie que nos livros aos quadradinhos nos apareciam como heróis solitários, abnegados e amigos dos índios e depois afinal estiveram todos ao serviço do exército americano, do general Custer e de outros colaborando no enorme genocídio hoje sobejamente conhecido e documentado. Parece que, no caso destes dois, morreram ambos na célebre batalha de Álamo, às mãos dos Navajos, justamente. Haja Deus! 21716P14T1
Na minha galeria salva-se Matt Dillon, o Marshal de Dodge City, mas Matt Dillon nunca existiu e a sua vida resulta da criação ficcional de John Meston representada por William Conrad na rádio e James Arness, na televisão. Matt, era assim um herói à medida de um público tal como Roy Rogers por exemplo ou Buck Jones, o xerife de Alkaly City. Mas foi talvez o herói americano do Oeste mais à minha medida. Tanto na rádio como na televisão, Matt Dillon permaneceu firme, honesto, absolutamente incorruptível, e dedicado à causa de impor a lei genuína na região de Kansas, à época verdadeira fronteira entre a América “civilizada” e as pradarias violentas e selvagens do oeste americano. Ele raramente agia de forma impetuosa, além de que era invariavelmente justo e imparcial no exercício das suas funções, mesmo quando era necessário subordinar os seus pontos de vista pessoais relativos a pessoas ou factos. Eu devo confessar, porém, que só conheço o Matt Dillon, dos livros aos quadradinhos, onde penso que ele aparece ainda mais genial, embora e muito a meu gosto, mais sombrio, mais pessimista e sobretudo mais triste. Ele é um dos alter egos da minha adolescência juntamente com o Lobo das Estepes de Herman Hess.
Voltemos a Chatwin e ao Na Patagónia pois estes não desiludem. O livro é um obra que estimula intensamente a nossa sede de aventura, o nosso imaginário juvenil, a vontade de partir à descoberta no fim de contas de nós mesmos. E no caso de Bruce Chatwin isso é muito evidente uma vez que o que desencadeou a viagem exploratória foi o facto de o nosso escritor ter encontrado um pedaço de dinossauro no espólio do avô que também teria andado, quando era jovem, pelas Terras do Fogo, no extremo sul do Continente Americano. Bruce Chatwin encontrou assim esse espólio no espólio do avô e a partir dessa pesquisa tudo se vai desenrolar para nosso gáudio de modo surpreendente, sempre misterioso e volto a insistir, hilariante. Chatwin manipula como ninguém o espírito da viagem, o espírito moderno e contemporâneo do desassossego. O bom gosto e o culto agónico do fait divers, fazem dele um mestre no género. Na Patagónia lê-se com um sorriso rasgado e uma lágrima ao canto do olho. O que é que se pode esperar mais de um livro de viagens que é ao mesmo tempo um livro de memórias e de aventuras.
Como a Patagónia e as Terras do Fogo sempre foram um lugar dilecto dos aventureiros da América do Norte, o que é muito compreensível, o autor vai cruzar-se imaginariamente com as figuras mais improváveis da mitologia americana, conseguindo contudo tornar as suas memórias verosímeis. A dada altura a propósito de Evans e Wilson, dois conhecidos assassinos que terão matado entre outros Llwyd ApIwan, conhecido pioneiro galês em terras da Patagónia, onde foi engenheiro, agrimensor, e explorador incansável, muito ligado à colonização galesa na Argentina, Bruce Chatwin põe-nos no encalço de Butch Cassidy e Sundance Kid. É que Wilson, que era mais novo que Evans, mas melhor com as armas, teria uns 25 anos e media 1,75 e era esbelto, de cabelos claros, queimado do sol e nariz curto e recto e que para cúmulo caminhava com o pé direito voltado para fora e finalmente que, tudo leva a crer,  tinha sido companheiro de Duffy (Harvey Logan) na Patagónia e em Montana. Este Wilson terá estado envolvido num assalto a um comboio; o que, para Chatwin, só podia ter sido o assalto ao Comboio Wagner, do dia 3 de Junho de 1901. Daqui parte, ele, para uma elocubração fantástica sobre a parte final da vida dos dois aventureiros lendários, Butch Cassidy e Sundance Kid, imortalizados no filme homónimo de George Roy Hill por Paul Newman e Robert Redford. Agora o que eu não esperava era vir a encontrá-los nas páginas desta obra de Chatwin, mas como neste livro tudo é possível… depois de Calamity Jane só mesmo Butch Cassidy e Sundance Kid.
Os pormenores são, como se desconfia, de ir às lágrimas e é aí que a meu ver reside o génio do nosso narrador. A mistura entre o documental ficcionado e o ficcional documentado excessivamente, confere à narrativa um sabor a incredulidade extasiada que é deveras surpreendente, acreditem.

21 Jul 2016

Brexit e o livro de Enoch

«… Então o Senhor disse: o meu espírito não permanecerá indefinidamente no homem, pois o homem é carne e os seus dias não ultrapassarão os cento e vinte anos»
Génesis

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]aquele tempo havia gigantes na Terra. Efectivamente separar é uma dor que ainda hoje impõe na carne que somos uma cicatriz: o umbigo, a cicatriz de uma separação. Só que hoje estamos indubitavelmente no ventre da Baleia, esse grande estômago global que não nos vomita, ou ainda não nos vomitou, na linha rigorosa da separação, e se ergue diante do nosso olhar como uma alucinação de imagem no deserto. No Livro de Enoch havia uma raça extraordinária que se reproduzia connosco, dado que eramos belos. Os cruzamentos são sempre bem-vindos, o factor probabilístico gera novas formas e não morremos de tédio a olhar uns para os outros. Para tanto, inventou Deus o Amor e fez dos corpos altares, bafejando-os de delícias, mas onde se encontra o Brexit no meio de tudo isto? Não mais que na sua qualidade de órgão de um corpo que já não é inseminável, órgão esse que parece sobreviver sem ele, podendo ser transplantado para outros , e mesmo assim, temos sempre a sábia expressão de que “órgão muito falado é órgão doente.” Dado que órgão não é tripa, esse entulho a reboque do corpo, temos um órgão vagabundo na sua errância de supremacia. Nós, a bela raça dos homens, temos coisas demais para tão destilado mundo, comprimento de intestino para alimentação etérea, uma economia do esforço em franco desgaste que quanto mais acelera doidamente mais combustão produz… teses sobre a vacuidade, pessoas presas por pensamentos, actos, omissões… tudo em barda, dado que somos fractais de um barroco alargado.
Abeiramo-nos agora da vitória das amputações e o que se passa vai ser de congelar cadáveres pelo lado hirto da manifestação. As deusas quando são velhas assemelham-se à Duquesa de Alba, dançando flamenco à beira do caixão. Porém, a Rainha, inamovível e com menos títulos reais, começa a fazer justiça à expressão: «Un jour viendra où il n’y aura plus que cinq monarques au monde: les rois de pique, de trèfle, de carreau, de coeur… et la reine d´Angleterre». Já não estamos na batalha de Waterloo quando Napoleão a cavalo disparou a galope o integracionismo europeu, mas o que aconteceu é praticamente a mesma coisa. Um corpo assim, como vai surgindo, podem-lhe ser amputados membros, tanto nas partes altas como nas baixas (já sem os aleivosos gaulesas das decapitações internas). O Livro de Enoch foi todo ele amputado, tanto por judeus, como por cristãos, pois que há áreas que transvasam o código e nenhum exegeta, rabino ou doutor da igreja, ali sabe meter a mão. É mesmo proibido em alguns círculos litúrgicos, mas com cuidado lá foram aplicando passagens… e duas bastante reveladoras, no princípio e no fim, como seja no «Génesis» e no «Apocalipse», algumas adaptações de textos gregos que dada a pouca fartura de entendimento foram como metidos à “dentada”.

(…) depois, a voz que tinha ouvido antes falou de novo: « Vai, toma o livro…aproximei-me para me o entregar e o Anjo disse; toma e come-o. Tomei o livro das mãos do Anjo e comi-o» Apocalipse

O tempo em que vivemos tem este fantástico, este surrealismo, esta impudência, creio que por mais análise, desconstrutivismo e adaptação, o que tem esta leitura pode estar gravado no Brexit. Mas já o Putin tinha fechado o Sarkozy e embebedando-o a propósito de não sei de quê, ele, coitado, veio de lá muito contente a dizer: “bom, querem falar com o Presidente? Vas-y!”
Como, de que forma, e a quem falar destas realidades e porquê? (súbita inspiração em Vitorino Nemésio). Há qualquer coisa que me diz que este livro deve estar num Castelo da Escócia, naquele local que os fantasmas nunca abandonaram, não tendo por isso deixado de existir, só porque deixámos de acreditar neles. Do Oriente vêm gritos de reconquista do velho Al-Andaluz “e toda a minha cabeça estremece ” (Herberto Hélder). Deitai senhores, vós, os dados, que dados ficam, dados são, deitai as cartas também de marear, que a saída é sempre por aquele ângulo imponderável no qual ninguém pensou e com a simplicidade de um Ricardo Sanches que destrona o linguajar dos estrategas; não tardará a saber-se o que seja, pois que bem ao jeito do ditado chinês: quando o discípulo está preparado o mestre aparece.
Cada vez tenho menos ideias e mais inspiração, não sabendo o que faça até o fazer, não há nada para programar, o banco de dados ficou cravejado de coisas tais que é o dia que mostra o caminhar… Se assim não nos deixarmos guiar nada acontece, é o dia que nos mostra o assombro, num desfiladeiro assim, todos eles vão ser preciosos e autênticos, numa urgência de sermos saciados pelo que há de subjacente a tanta ideia errada e tanta voz de um coro enlouquecido.
Leva-me contigo dia claro, e que não pense, a razão entrou na recta final da sua negritude e, quer queiramos quer não, só há livros interessantes para ler se forem de Enoch e passagens de plano tipo Brexit. Enquanto as águas não se levantarem e a Terra não mudar o eixo é connosco, neste ventre Balear que nos vamos ter de entender de forma suave, para não ir tudo abruptamente, que o mundo ainda não é um atoleiro de uma lixeira a céu aberto como os vales de enxofre.
A um tempo de adesão, resistir também é louvável, dizer não ou estar mais pobre, a riqueza nem sempre vem de uma única fonte, onde se perde a afeição perde-se também a lembrança, e há um inquietante esquecimento que só verdades duras acabam por lembrar. Não cabem nos Tratados as gentes e, quando eles expirarem por inoperância, nós ainda seremos capazes de os reinventar. Num estertor de dias incertos vive-se ainda por que há espelhos que nos devolvem o nosso rosto como um seio belo que continua alto e pode ser visível por todos. Há sempre uma ideia mais complexa debaixo de um plano e o que parece enfraquecer pode ser a táctica para um novo arranque. Mas ninguém vê tão tolhido anda, ninguém reparou tão curvado está.
Os novos céus e a nova Terra, tinham emergido, quando o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia. O mar azul da bandeira…
Apenas mar.

21 Jul 2016

A R.A.E.C. (Região Administrativa Especial do Caos)

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]rbanisticamente, Macau nunca evidenciou tantas deficiências. Não há praticamente zona nenhuma da Taipa e muitas de Macau e Coloane que não estejam em obras. Algumas delas têm anos de vida. O pó, a sujidade, a inconveniência e a fealdade acumulam-se. A poluição do ar e a poluição sonora são um mal constante e em várias áreas do território (em jardins com crianças) há um permanente cheiro a diesel. A zona em redor do aeroporto, primeiro local de contacto com a cidade para um número significativo de turistas, há anos que está um nojo. A zona das Portas do Cerco é um caos. O Terminal Marítimo Provisório da Taipa é um sítio de Terceiro Mundo.

Ninguém parece perceber nada do que se passa e a confusão é total. A operação dos transportes públicos revela total incompetência, sendo sem qualquer dúvida a pior rede de transportes públicos de uma cidade rica que eu conheço. Não é preciso pensar muito para se perceber a razão de tudo isto: total provincianismo e ignorância pura.

O que é o desenvolvimento? Não vale a pena estar a arranjar canteiros se não há flores. Macau não está mais desenvolvida, tem mais carros e motas, mais residentes, mais turistas, mais hotéis, mais cuspo, mais casinos, mais lojas de joalharia e parece maior. Mas os hospitais são os mesmos que havia há 25 anos; aumentou o número de escolas e de estabelecimentos de ensino superior mas a má qualidade é a mesma de sempre; o sistema de transportes (táxis e autocarros) é muito pior e a qualidade do ar deteriorou-se 100 vezes.

Há muito mais actividade económica mas a administração (chamar-lhe governo seria um elogio que não merece) não faz nada (ou faz mal) há décadas. Quem tem feito é a Galaxy ou a Wynn, a Sands ou o senhor Ho.

Sejamos claros: nos últimos quinze anos concluiu-se um projecto com decência: a ponte de Sai Wan; terminaram-se desastrosamente dois: a nova universidade (desastroso porque teria sido a oportunidade ideal para o regime mostrar cultura e ter contratado um arquitecto a sério e ter deixado obra singular e de referência) e a habitação social em Coloane (modelo inultrapassável de desprezo total pelos mais desfavorecidos); e falharam-se redondamente 4: a nova biblioteca central, o novo hospital das ilhas, o metro de superfície (anedota total 1) e o Terminal Marítimo da Taipa (anedota total 2). Que se tenham tentado apenas sete é sinal de imensa pobreza.

O centro da cidade, que poderia ser dos centros urbanos da Ásia Extrema mais bonitos e com um potencial de charme imbatível, é uma feira pobre e, em termos comunitários, uma terra de ninguém, inteiramente abandonada à ganância e à falta de cultura. A pedonização de vastas áreas centrais em Macau e na Taipa tarda em chegar e o carro particular continua a ser a peça mais importante deste pesadelo, reflexo de uma mentalidade com 30 anos de atraso.

Nos cruzamentos a polícia, muito incompetente, obriga os peões, idosos e crianças, a correr entre carros mesmo durante o seu tempo legítimo de atravessamento; metade dos condutores usam os telefones durante a condução; muitos não usam cinto de segurança; crianças pequenas usam o banco da frente como se vivêssemos em 1950; a quantidade de condutores, profissionais ou não, que permanece com o motor ligado quando parado é criminosa e a polícia (a não ser que aqueles miudinhos de azul não sejam polícias) não deve sequer perceber o que se passa.

Ninguém parece ter a mínima noção do valor da promoção da ideia de comunidade e não se faz a reutilização de edifícios já existentes para mistos de habitação e recreação. Não se faz porque os responsáveis administrativos não sabem fazer.

O meu projecto preferido neste momento, à falta de outros, é a passagem de peões circular construída junto ao Venetian que vai ligar . . . o quê . . . a quê? Será utilíssima a uma pessoa que esteja no City of Dreams e se queira deslocar à bomba de gasolina que se encontra numa das saídas desta cómica instalação urbana para comprar cigarros ou um gelado de chocolate e baunilha. A ligação para o lado do Venetian faz-se de modo muito mais conveniente por outra via. As outras saídas não servem para absolutamente nada. Se na bomba de gasolina não houver gelados de chocolate e baunilha isto vai ser um problema.

Há duas hipóteses para a construção desta parvoíce: ou se trata de uma instalação de intenção artística demasiado cara ou é produto de total incompetência e falta de visão.

Falando de projectos mais a sério o mais giro neste momento é a ponte entre Hong Kong e Macau/Zuhai. Concebida numa altura, febril, em que se pensava que a província de Guangdong, junto a Macau e Hong Kong, seria uma zona de olímpico crescimento fabril é, agora que as fábricas começaram a fechar e a China começou a deixar de interessar, a bridge to nowhere, um pouco como a ligação ferroviária entre Hong Kong e Cantão (Cidade de Guangzhou). Não é difícil perceber porquê. Da perspectiva de um residente de Hong Kong que razão o levará a querer ir a Cantão? Fazer o quê?

Assim, o governo da RAEHK e a administração da RAEC não param de nos divertir: na primeira não conseguem fazer um comboio para uma cidade onde ninguém quer ir, na segunda, em 15 anos, não conseguem fazer um comboiozinho ligeiro, não conseguem fazer um hospital e não conseguem fazer um terminal marítimo. Em esforço conjunto não conseguem fazer uma ponte que, de qualquer maneira, não serve para nada. Felizmente que não é a administração que constrói casinos e hotéis senão só tínhamos um.

Mercer Quality of Live Rankings 2016

Acho que não é inútil relembrar quais os critérios que a Mercer usa para classificar as cidades que lista como as melhores cidades para expatriados. Lembre-se que esta existe precisamente como instrumento para medir a qualidade de vida em cidades que receberão profissionais (e suas famílias) de outros países e que tipo de compensação deve ser atribuído aos profissionais em situações de risco. Serve igualmente às administrações das cidades. São critérios cujo cumprimento, no entanto, interessam igualmente a residentes.

São levados em conta 39 factores, agrupados em 10 categorias (tradução própria):

  1. Atmosfera política e social (estabilidade política, crime, cumprimento da lei, etc.).
    2. Atmosfera económica (regulamento cambial, serviços bancários).
    3. Atmosfera sócio-cultural (acesso a órgãos de comunicação social, censura, limites às liberdades pessoais).
    4. Considerações médicas e de saúde (serviços e provisão médica, doenças infecciosas, esgotos, remoção de lixos, poluição atmosférica, etc.).
    5. Escolas e educação (nível e disponibilidade de escolas internacionais).
    6. Serviços públicos e transportes (electricidade, água, transportes públicos, congestionamento de tráfego, etc.).
    7. Recreação (restaurantes, teatros, cinemas, desporto e tempos livres, etc.).
    8. Bens de consumo (acesso a produtos alimentares e de consumo diário, carros, etc.).
    9. Habitação (mercado de arrendamento, equipamentos domésticos, mobiliário, serviços de manutenção).
    10. Ambiente natural (clima, registo de desastres naturais).

Tentar aplicar esta bitola a Macau seria doloroso. A primeira cidade da lista de 2016 é Viena, como acontece há sete anos. Seguem-se Zurique e Auckland, como em 2015. Singapura, a primeira cidade asiática e de matriz não ocidental, em 26º. Lisboa aparece em 42º lugar, antes de Chicago e Nova Iorque, e Tóquio, a melhor cidade da Ásia, ocupa o 44º posto. Hong Kong surge em 70º e Taipé em 84º. A última desta lista em que as considerações sobre a segurança são nucleares é Bagdad, em 230º posto. (dados recolhidos entre Setembro e Novembro de 2015).

20 Jul 2016

O jogo de Mahjong – 搓麻將的女人

* por Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]equim 2008 é o nome do quadro pintado pelo artista sino-canadiano Liu Yi 刘溢. Foi finalizado em 2005 e exposto no ano seguinte na Feira de Arte de Nova Iorque. Pouco depois foi postado na Internet e incendiou opiniões em todo o mundo. Muita gente defendia, incluindo internautas e críticos de arte, que neste trabalho estavam subjacentes mensagens de natureza política. Recentemente, na sequência da polémica em torno do Mar do Sul da China, o quadro voltou a ser notícia.
Antes de mais nada, reparemos bem na figura representada no quadro pendurado na parede da esquerda. Quem é este homem? É sem dúvida uma combinação de três antigos lideres chineses altamente carismáticos: Sun Yat-sun, Chiang Kai-shek e Mao Tsé-Tung. Vê-se que o rosto do homem tem uma mistura dos traços dos três. Mas qual será o significado desta representação? Do meu posto de vista, significa que a China, separada nas suas várias facções e, em conjunto, dá origem a uma situação insolúvel, frustrante, um puzzle de diferentes ideologias e identidades. Continuemos a observar a figura do quadro, porque existem mais aspectos importantes. É o único que está vestido, e olha com indiferença as mulheres em diversos estados de nudez.
A que tem tatuagens nas costas representa a China. À esquerda, intensamente concentrada no jogo, está a mulher que representa o Japão. Vestindo uma camisa e com a cabeça inclinada, temos a América. A que está deitada de forma provocadora, é a Rússia. E a rapariguinha em pé, do lado, é Taiwan.
E que dizer das peças que seguram? As peças visíveis da rapariga China, “Ventos de Leste”, significam o renascimento da China como potência mundial. Significam também, que o poderio militar da China já foi colocado sobre a mesa. A China parece estar bem posicionada, no entanto não conseguimos ver o resto do jogo. A mulher tatuada segura ainda algumas peças debaixo da mesa.
A América mostra-se confiante, mas lança um olhar a Taiwan para tentar ler a sua expressão e, ao mesmo tempo, parece querer sugerir-lhe qualquer coisa.
À primeira vista, a Rússia não aparenta interesse no jogo, mas se olharmos com mais atenção, um dos seus pés estica-se em direcção à América, enquanto com uma das mãos passa sorrateiramente algumas peças à China. Superpotências envolvidas em jogos duplos e trocas secretas. O Japão observa muito sério as suas peças, sem se dar conta das acções dos demais… E se estas mulheres tivessem estabelecido como regra despir uma peça de roupa sempre que uma delas perdia? Por isso há quem sugira que o pintor indica que a vitória final se travará entre a China e a América. E, embora a América tenha muitas capacidades, elas estão a jogar Mahjong, um jogo chinês, e não Póquer, um jogo ocidental. A América nem sequer se lembrou de cobrir o baixo ventre, enquanto joga contra a China segundo as regras chinesas, por isso será que tem alguma hipótese de ganhar?
Não há dúvida de que este pintor é um grande contador de histórias. Liu Yi: “…Pego nos sonhos das massas e faço magia com eles.”

20 Jul 2016

HOMERO, educador ocidental

* Por Paulo José Miranda

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]texto mais antigo da cultura Grega, que racionaliza os mitos, é a Ilíada de Homero. Homero nasce em 928 a.C. em Esmirna (Esmir, na actual Turquia), cidade da chamada Ásia Menor. Além de uma racionalização e antropomorfização dos deuses, Homero ensina um dos conceitos mais fundamentais para os Gregos Antigos: aretê. Aretê quer dizer excelência, isto é, agir em concordância com aquilo que deve ser feito e de modo superior, de modo bem feito. Assim, poderíamos ser levados a pensar que também há excelência em quem faz uns bons sapatos ou uma boa arma, assim como quem é superior nas artes da guerra. E certamente os gregos deste tempo também usariam a palavra nesse sentido, sem dúvida, mas aretê, neste período homérico, não é apenas alcançar a excelência nas suas competências, mas alcançar a excelência virilmente. Mais tarde, com Sócrates e Platão, a aretê será uma categoria da alma humana, em concordância com a justiça e a temperança, mas até ao século IV a.C. a excelência está fundamentalmente ligada à acção, a um fazer, a uma technê, um saber fazer, uma perícia aplicada ao combate, que tanto pode ser dos humanos quanto dos deuses. Por conseguinte, a aretê em Homero está ligada fundamentalmente à força, à destreza, à coragem, à capacidade de dominar o adversário ou o inimigo, ou à capacidade de aumentar um território. Temos de ter em conta que se tratava de um tempo em que estes atributos eram necessários à sobrevivência. Não há, por conseguinte, uma ligação entre aretê e virtude moral ou bondade. Excelente é aquele que se impõe aos outros no combate, no confronto, quer seja pela força, como é o caso de Ajax, quer seja pela astúcia, como é o caso de Ulisses. Há, no entanto, e apesar destas qualidades guerreiras, um código ético de conduta nos combates, necessário a que um guerreiro possa ser alvo de admiração. Assim, não basta vencer, há que vencer limpo, há que vencer dentro das regras e não a qualquer preço. Há que ter respeito pelo inimigo, adversário no campo de batalha, e há que reconhecer-lhe o valor, se o tiver. Isto é o que encontramos amiúde ao longo das páginas da Ilíada, e que acaba por se tornar um passo fundamental da passagem da aretê para um plano ético. Este código de combate, de respeito, vê-lo-emos mais tarde, com muito mais ênfase, nos cavaleiros medievais, que foram sem dúvida influenciados por esta tradição homérica. A nobreza da luta e da vitória será, mais tarde, levado quase à exaustão, nos poemas de Píndaro. MTE4MDAzNDEwNTU4NjgyNjM4
A aretê está não só ligada ao confronto físico, mas também aos melhores, aristeai, aos nobres, àqueles que têm uma linhagem de nobreza, de homens bons para o grito de guerra, e muitas vezes também dos deuses, como é o caso do guerreiro Aquiles. Na Ilíada, quando Glauco enfrenta Diomedes no campo de batalha, e se quer mostrar digno do seu adversário, enumera, à moda homérica, os seus antepassados ilustres: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. Quando me enviou a Tróia, advertiu-me insistentemente que lutasse sem cessar por alcançar o poder da excelência humana e fosse sempre, entre todos, o primeiro.”
Mas a grande importância desta obra de Homero deve-se tanto à compreensão e canto da excelência guerreira, quanto à propagação de uma nova aretê: a palavra. E é quase no fim da Ilíada que ele põe na voz de Fénix, educador de Aquiles, quando este continuava afastado do campo de batalha por discordar de Agamémnon, aquilo para o qual o jovem tinha sido educado: “Para ambas as coisas: proferir palavras e realizar acções.” E o velho educador opõe esta frase aos guerreiros Ulisses, mestre da palavra, e Ájax, mestre da acção, fazendo ver que Aquiles lhes é superior por unir essas duas grandezas em si mesmo, e não apenas uma delas. Esta é a grande inovação no pensamento de Homero. Tal como quase sempre os poetas fazem, provavelmente pôs em palavras aquilo que já outros sentiam, sem que o enunciassem. Facto que contribui para que se tornasse o grande educador da Hélade, o grande educador dos Gregos Antigos. É fundamentalmente pela sua modelação da aretê que a sua obra ganha reconhecimento e grandeza. A aretê conquista um novo território. E é nesta consciência, que Homero traça o destino de grande parte da humanidade, pois é no pensamento que os seus versos são ímpares.
Deixemos também claro que A Ilíada e a Odisseia reflectem momentos históricos diferentes da Grécia arcaica. A Ilíada é muito mais antiga e não pertence sequer ao mesmo século da Odisseia. É hoje aceite, pelos investigadores, que se trata de autores diferentes. Mas independentemente das diferenças entre Ilíada e Odisseia, a verdade é que há algo que as une: a não separação da estética e da ética, que é característica do pensamento grego arcaico.

19 Jul 2016

Pequim, 15 de Outubro de 1977 ( continuação)

* por António Graça Abreu

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Grande Muralha correspondeu à execução de um projecto grandioso regado com o suor e o sangue de muitas centenas de milhar de chineses. O trabalho era forçado e as pessoas morriam de fadiga e exaustão, sendo enterradas nos alicerces da Muralha.
Decorreram muitos séculos e as fronteiras da China ultrapassaram a Grande Muralha que, no entanto, manteve até ao século XVIII a sua importância estratégica. Funcionou também como meio de comunicação entre regiões montanhosas, pois com os seus seis metros de largura pavimentados com grandes lajes permitia a passagem e o movimento de carroças e cavalos. Nalgumas regiões, em que tem uma altura média de sete metros e meio, a Muralha constitui uma barreira permanente que quebra os ventos frios vindos das estepes da Sibéria, o que possibilita melhores condições para o cultivo das terras.
A Grande Muralha da China é, pois, obra magnificente. Calcula-se que para a sua construção foram necessários 180 milhões de metros cúbicos de terra e 60 milhões de metros cúbicos de pedra e tijolo. Estas materiais são suficientes para circundar o globo terrestre com um muro de dois metros e meio de altura e um metro de largura.
Com o passar dos séculos, a Muralha foi-se naturalmente delapidando. Nestes últimos anos, foi objecto de obras de restauro na busca do esplendor monumental de outrora.
O autocarro onde viajo chega a um grande parque de estacionamento já apinhado de automóveis. Estamos em Badaling, uma das muitas passagens estratégicas no sopé da montanha. Os torreões com ameias quadradas, as portas duplas com grossíssimos portões de madeira lembram-me as praças fortes e os nossos castelos em Portugal. Mas aqui tudo é maior, mais pesado, os muros mais espessos e aparentemente intransponíveis. A Grande Muralha trepa em curvas para ambos os lados, o troço para a esquerda parece-me mais difícil de subir com uma inclinação muito acentuada, por vezes quase a pique. Decido subir por aí.
Há centenas e centenas de chineses espalhados por toda a parte. A maioria trepa como eu, alguns já vêm na caminhada de regresso. A visita à Muralha faz parte das excursões domingueiras de habitantes de Pequim e sobretudo de gentes vindas de outras regiões da China. Há famílias inteiras que trouxeram o farnel e vão merendar daqui a pouco. De resto, a escalada é óptima para abrir o apetite.
Subo, subo e o horizonte é cada vez mais vasto, a Muralha estende-se no seu serpentear abrupto, com curvas e ângulos inesperados. Este lugar faz a delícias dos fotógrafos e eu sigo o exemplo dos chineses que não param de se fotografar e escolho os melhores enquadramentos para disparar a minha máquina.
A ascensão é cada vez mais difícil, preciso de me agarrar ao corrimão lateral de ferro porque é real o perigo de escorregar e deslizar uns bons metros nas lajes de pedra. Imagino como não devia ser nada fácil o movimento de soldados e mercadorias neste troço. O torreão mais alto que domina todo o sector encontra-se agora mais próximo. Em mim, uma enorme caloraça, e quantos rostos afogueados à minha volta!
Estou a mais de mil metros de altitude, para baixo, na distância, tudo começa a desvanecer-se, vejo os autocarros e automóveis muito pequeninos no fundo da nervura do vale, em Badaling. Alcanço o topo do torreão e sinto a alegria que creio experimentarem os alpinistas após a escalada de um pico difícil. Adivinho um ar cansado mas satisfeito nesta gente toda que não pára de subir e descer, acredito que o meu sentir é compartilhado por muitas mais pessoas.
Permaneço longo tempo sentado nas ameias, no alto da montanha, enchendo os pulmões de ar puro, retratando com os olhos os homens e a paisagem. Fantástica, a China!
Descer a Grande Muralha será bem mais fácil do que subi-la, de resto “a descer todos os santos ajudam”. Como na China parece não existirem santos iguais aos nossos, não sei quem me levou a dar um valente trambolhão que me deixou o fundo das costas bastante maltratado. A culpa terá sido dos meus sapatos de sola lisa que deslizaram como patins nas pedras polidas.
Cá em baixo havia um excelente almoço à minha espera e depois foi o regresso a Pequim, com o trânsito praticamente paralisado. Um grande engarrafamento manteve-nos parados durante quase duas horas, carros para cima, mais carros e camionetas para baixo, tudo enviesado na estrada, atravancado e parado. À frente do nosso autocarro estava uma camioneta carregada de batatas, impedida tal como nós de avançar ou recuar. Porque a resolução do engarrafamento estava demorada, as pessoas passeavam-se fora dos carros. Fui até à grande carripana das batatas que não estavam metidas em sacos mas empilhadas a monte na caixa do veículo. Em cima das batatas sentavam-se três camponeses de meia idade.
Com a curiosidade e o gosto muito português de ver as coisas não só com os olhos mas também com as mãos, alcei a mão sobre o taipal da camioneta e peguei numa enorme batata. Mirei e apalpei. Era muito redonda, branca, de boa qualidade. Quando quis voltar a pôr a batata na camioneta, os camponeses, que não tinham tirado os olhos de mim e sorriam, não autorizaram. Já que tinha demonstrado tanto interesse pelos tubérculos, eles ofereciam-me não só aquela batata mas umas quantas mais. Foi difícil explicar-lhes na meia dúzia de palavras chinesas que conheço que, muito obrigado, mas eu só queria ver como eram as batatas. Eles insistiam na oferta e eu, delicadamente, agradeci e voltei ao autocarro. No regresso a Pequim, pensei mais maduramente no assunto. Será que os simpáticos camponeses ficaram ofendidos por eu ter recusado as batatas? Não teria sido mais correcto aceitar os tubérculos e, de volta a casa, fazer um jantarinho com batatas acabadas de chegar da Grande Muralha da China?

18 Jul 2016

A Bolsa no comércio marítimo português

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o artigo O Lavrador do Mar Português, publicado neste jornal no dia 9 de Outubro de 2015, tratamos sobre a navegação portuguesa, desde o primeiro rei de Portugal até D. Dinis. Agora aqui completamos esse assunto, levando a História até ao final da dinastia Afonsina, apresentando quem preparou a entrada dos portugueses no Oceano Índico.
Segundo Vitorino Nemésio: “Desde o século XII havia trocas com Bruges, e logo com centros de vulto espalhados por França e Inglaterra. D. Sancho I recebia direitos de panos descarregados no Porto, e, pelo menos um século depois, a seda e o linho abretanhado, os bordados a ouro e as plumas ocupavam os almotacéis (oficiais que fiscalizavam a venda nos mercados). Os mercadores portugueses gozam de isenções especiais em portos do Norte da Europa, e em Maio de 1293 têm regiamente confirmada a sua primeira bolsa. Cada armador que tivesse navio a largar para Inglaterra, Flandres, Normandia ou Bretanha contribuía para um duplo depósito em numerário em Portugal e em Flandres, a fim de cobrir pleitos, perdas e outros percalços. Com isto a construção naval desenvolve-se”.
Depois de um território continental conquistado e dos problemas nacionais resolvidos, Portugal rumou para o mar, enquanto os seus vizinhos ainda separados em reinos cristãos (Astúrias, Leão, Narrava, Castela e Aragão) continuavam na árdua tarefa de expulsar os mouros da Península Ibérica, luta por vezes interrompida para se guerrear entre eles.

Almirantado

“A conquista de Marrocos constituiu, sem qualquer dúvida, o primeiro projecto expansionista português, uma vez terminada em 1250 a reconquista do Algarve, de que era o prolongamento natural” como Luís Filipe Thomaz na sua obra De Ceuta a Timor escreve a partir do que diz o Padre A. J. Dias Dinis. Ainda “em meados do século XIII já se documenta em Lisboa o e a existência de mestres e carpinteiros navais”, adita Vitorino Nemésio.
“Em finais de Trezentos, a estrutura naval portuguesa acusava algumas centenas de marítimos, entre quadros e pessoal subalterno, possibilitando o lançamento das mais variadas empresas: guerra ofensiva, guerra defensiva, fossados de mar, corso, pirataria, empreendimentos comerciais, etc.” como refere Oliveira Marques. Segundo Luís de Albuquerque, foi estabelecido em 1293 o “contrato entre os mercadores e confirmado por D. Dinis, criando como que um banco de comércio para apoio das relações, que eles mantivessem com os entrepostos comerciais de além-mar.
“Um dos sinais da importância crescente da guerra marítima foi a organização do almirantado, cujas primeiras notícias remontam a 1288, com um tal Domingos Martins à sua cabeça. De 1307 a 1316 foi almirante Nuno Fernandes Cogominho,” como refere Oliveira Marques e Maria Fernanda Espinosa Gomes da Silva adita, “tendo morrido Nuno Fernandes Cogominho, primeiro detentor do título de almirante-mor”, “a escolha recaiu em Manuel Pessanha, homem de grande experiência marítima e também comercial, pois as duas actividades estavam, para um italiano do século XIV, naturalmente ligadas. O novo almirante possuía úteis conhecimentos, não só em Itália, como em Inglaterra, onde, ao serviço de Eduardo II se encontravam dois seus irmãos, Leonardo e António.” O acordo com D. Dinis “consignava a hereditariedade do cargo na família Pessanha. Quando deixasse de haver sucessor legítimo e apto para o ofício, este voltaria à coroa.” Assim em 1 de Fevereiro de 1317, o genovês Manuel Pessanha (Pezagno) foi contratado pelo Rei D. Dinis como Almirante mor para reorganizar por completo a frota da “marinha portuguesa, convertendo-a em instrumento eficaz de guerra no mar”, Oliveira Marques. “Por outro lado, os vassalos corsário e todos os outros alcaides e arrais das galés existentes passavam a ficar sob as ordens do Almirante”, segundo António Borges Coelho.
Em 1325 morreu D. Dinis e sucede-lhe o filho D. Afonso IV, com o cognome O Bravo, que reinou entre 1325 a 1357. Altura em que se estabelecem “em Lisboa permanentemente mercadores florentinos, genoveses, prazentins, milaneses, escorcins, catalães, biscainhos e ingleses”, segundo António Borges Coelho.
O genovês Manuel Pessanha serviu também como Almirante no início do reinado de D. Afonso IV, sendo preso pelos castelhanos, conjuntamente com o seu filho primogénito Carlos em 1337, num combate naval junto ao Cabo de S. Vicente. Foram libertados dois anos mais tarde, quando Portugal e Castela fizeram as pazes, tendo Afonso XI de Castela solicitado em 1340 o auxílio naval português contra os mouros em Cádis, onde os cristãos derrotaram uma armada de oitenta galés dos reis muçulmanos de Granada e Marrocos. De salientar que o Almirantado foi concedido sem interrupção aos membros da família Pessanha até ao reinado de D. Afonso V, apesar de como refere Maria Fernanda Espinosa Gomes da Silva se saber “que pelo menos desde o reinado de D. João I, os almirantes não mantinham os vinte genoveses estabelecidos, pelo que o rei se declarava desobrigado da tença de 300 000 libras que então lhe era reclamada”.

Início dos Descobrimentos

Segundo uma carta de 1341 ao Papa Clemente VI, o Rei D. Afonso IV diz ter enviado uma esquadra (capitaneada por Nicolau de Recco) a explorar as Ilhas Canárias em 1336, marcando essa data o início das descobertas portuguesas. Tal iniciou um longo diferendo com Castela. Refere Vitorino Nemésio, “O incremento da vida marítima acentua-se com as pretensões de D. Afonso IV às Canárias”.
A 30 de Outubro de 1340, ocorreu a Batalha do Salado onde os merinidas de Marrocos e de Granada são derrotados pelo Rei de Castela e Leão, Afonso XI e o de Portugal, Afonso IV, que uniram esforços, tendo sido a última tentativa de os mouros reconquistarem a Península Ibérica. No ano seguinte, o Papa Bento XII elogiava “a gente portuguesa . É tão competente que em Julho desse mesmo ano (1341) uma armada florentina, genovesa, castelhana e portuguesa partia de Lisboa em direcção às Canárias aprisionando alguns habitantes e apropriando-se de peles de cabra, cebo, óleo de peixe e pau vermelho para tingir”, como refere António Borges Coelho.
O Rei D. Pedro I (1357-1367), o Justiceiro, em 1363 investiu o seu filho bastardo D. João, futuro D. João I, como Mestre da Ordem de Avis, criada por bula papal em 1319. Com as providências oficiais de D. Fernando, houve o incremento da vida marítima, “de uma maneira economicamente orgânica” como refere Vitorino Nemésio. “É ele que destina gratuitamente as madeiras reais para os navios de certo bojo, ele que isenta de impostos a entrada de material, as encomendas de navios no estrangeiro, as cargas da primeira viagem e metade das da volta; ele enfim que, com pequenas ressalvas, dá ao serviço náutico o mesmo valor do serviço militar e favorece as parcerias de investimento naval.”
A importância dos homens do mar para o Rei D. Fernando (1367-1383) está bem explícita na lei de 6 de Junho de 1377 pois, “outorga aos mercadores de Lisboa que quiserem fazer naus de 100 tonéis para cima, importantíssimos privilégios que estenderá depois aos armadores de Lisboa e Porto que construam navios com mais de 50 tonéis. Podiam talhar madeira nas matas reais de graça e sem embargo. A madeira, ferro e fulame importado ou os navios comprados não pagam dízima. Concede-lhes os direitos da primeira carregação para o estrangeiro e metade da dízima de todos os panos e mercadoria que tragam de Flandres ou França na primeira viagem de retorno”, segundo António Borges Coelho.

A burguesia mercantil

“A bolsa de mercadores protegida por D. Dinis é por D. Fernando alargada ao seguro marítimo na Companhia das Naus, com peritos da régia confiança propostos ao seu bom funcionamento e uma bolsa em Lisboa e outra no Porto para arrecadarem as percentagens devidas sobre os fretes. Assim se reparavam naufrágios e avarias, tanto de temporais como de corso. Os segurados ficavam inclusivamente protegidos contra execuções iníquas, sujeitando-se os próprios navios da Coroa ao pacto comum.
Do acréscimo desta actividade resultou uma burguesia mercantil progressivamente poderosa. É ela que aconselha D. Afonso IV na legislação tributária; é dela que saem alguns enviados a Inglaterra no tempo de D. Dinis e depois, para concertarem partes comerciais desavindas e esboçarem convénios de trocas, como o tripeiro Afonso Martins Alho, que prepara o primeiro tratado com a Inglaterra, firmado a 20 de Outubro de 1353. Enfim, a revolução de 1383, triunfante com o Mestre de Avis, consolida o papel da burguesia mercante nos negócios do Estado”, Vitorino Nemésio.
Segundo refere Artur Teodoro de Matos, o prejuízo que a conquista de Ceuta trouxe para o grupo mercantil foi grande. “Aliás, tal asserção é também reforçada por Zurara quando diz que o rei, para financiar a empresa, se apropriara de navios e mercadorias disponíveis e explorara, por dois anos, o comércio com a Inglaterra e a Flandres”.
Nos dez anos de regência de D. Pedro II (1439-1449), voltou-se a investir na navegação, atingindo-se o Cabo Branco e o Golfo de Arguim, onde os portugueses fizeram uma feitoria.

15 Jul 2016

Estrangeira para sempre

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]lora. Fugida das antigas Índias portuguesas, já não lembro de onde. Da desonra de um casamento desfeito, de um amor, ou de um azar qualquer que nunca era para ser casamento. Da vergonha. Da família. Ou a da família, dela. Renegada. Lavava a roupa por horas sem contar no tanque da varanda. Esfregava a roupa e revolvia-a envolvendo tudo no sabão azul e branco. Mesmo mágoas antigas, até sobrar só aquilo que a movia de uns dias para os outros. Dobrava e voltava e batia e espremia e desdobrava e molhava e ensaboava e enrolava de novo. E rolava a roupa em rolinhos nas caneluras gastas do tanque. Ou prendia com uma mão e estendia com a outra, a massa informe das roupas. Como massa de tender – como eu gostava dela. Esfalfava-se meticulosa, amorosamente e sem pressa. Comigo hipnotizada pela tarefa repetida e porque gostava dela. As mãos finas de unhas alongadas, murchas de tanta água e de horas. O futuro por companhia, as mãos como metáfora. E cantava. Com uma voz clara como uma pedra. Não melódica nem muito bela na musicalidade. Ela também. Não era bonita. Ou era, afinal. Antes com o som limpo e natural das coisas naturais. Cantava sempre e o rosto, mesmo fechado nunca transparecia tristeza. Tudo e nada abria ali um sorriso rasgado com uns dentes enormes e daquele tom particular de marfim na pele muito escura. Lustrosa. Falava a sorrir como se a alma nunca lhe coubesse. Os olhos de córnea amarelada, rasgados e dolentes, vítreos. Líquidos como vidro. Vivia num quarto, e depois noutro, e noutro. Todas as economias se transformavam num enxoval de colchas, toalhas e rendas, lençóis nunca estreados, cobertores. A sonhar com um casamento e voltar. Sempre só. Nos seus sonhos. Impecável, de roupa clara, severa, sem idade, quase como engomada e o eterno lenço de sair à rua. Claro, acetinado, sempre como novo e apertado com lassidão debaixo do queixo. Em torno de um cabelo espesso e negro apanhado e enrolado com ganchos. Tão lasso, o nó do lenço, que escorregava sempre. E ela ajeitava. Talvez um laivo de charme nesse deixar escorregar e compor. E deixar cobrir os ombros e subi-lo de novo. Apertar e depois afrouxar…Magra, tão magra. Com os malares volumosos a saltar da pele. A comer mal. Sempre. Para repartir desigualmente o que tinha, com o seu sonho remoto. Sem idade. Percebo agora que muito nova e já sem idade. Como da família mas sempre numa reserva de humildade estranha para quem nos tinha tanto afecto. Um certo orgulho. Ou a noção de que os sacrifícios na comida só a ela diziam respeito e viriam a tornar-lhe a felicidade possível. Um dia. Um dia que nunca chegou. Ela sim. Foi chegando. Cada vez mais longe e mais abaixo. Um dia, noutra década muito mais à frente. A uma barraca. Não uma casa decrépita ou sórdida. Uma barraca daquelas feitas de restos de coisas. Em que cada pedaço era o remendo do que nunca foi outra coisa. Arrendada. Também se arendam coisas assim. E sempre como se mesmo para além das intempéries reais dos invernos, só fosse importante para ainda guardar o enxoval e abrigar os cães. O cabo dos trabalhos para realojá-la depois já de toda a vizinhança desaparecer. Não havia lugar para ela com os cães. E sem eles, para ela também não. Eles e o enxoval do sonho. O sonho também de reaver poupanças confiadas ao empregado de um banco e desaparecidas em parte incerta da vida ao longo de anos. Enganada sempre e confiante o suficiente para voltar a ser. O enxoval renovado dos desaparecimentos sucessivos de quartos e portas mal seguras. Desapareceu, estrangeira como sempre, durante muitos anos, porque as pessoas desaparecem e a vida fecha-se sobre elas. E um dia fez dezenas de quilómetros para nos ver. A pé. Porque a terra anda-se a pé se não fôr possível de outra maneira. Que emoção. Incompreensível como sempre no mesmo português cantado e estrangeiro, ou pior. Muito silêncio pelo meio, a memória a recuar mais para perto do sonho. Suja como nunca tinha sido, envergonhada, carinhosa como sempre, mas veio pelos pêsames e não por ela. Soubera. Depois fomos nós os mesmos quilómetros para lá. Ver o que não se entendia do que dizia. E entender só o que era possível. Sem os cães, nunca. Revolvia os caixotes por comida para eles. Não precisava de mais nada e não queria mais nada. Só o que tinha sido dela. Tão sem idade como sempre mas muito mais ressequida, com muito menos dentes. E a cheirar mal. E os cães doentes. E sempre aquela desconfiança talvez real de que não se podia afastar muito dali para resolver a vida, porque alguém lhe rondava as tábuas mal acrescentadas da porta. O enxoval de novo e sempre em perigo. Os sonhos, não sei se ainda nítidos mas o enxoval, sim. Flora. Menina Flora, sempre tratada assim, com respeito e para todos, nunca de outra maneira, porque solteira. Para sempre solteira no sonho, cada vez mais casada com ele e menos com a realidade. E estrangeira para sempre.

15 Jul 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 20. O Estripador

*por José Drummond

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Meu Amor. Escrevo-te cheia de medo. Aquele medo que dizem ser o grande motivador. Medo de falhar. Medo de não conseguirmos provar a nós próprios do que somos capazes. Medo de não conseguir ser aquilo que sempre sonhámos. Mas, na verdade, comigo, não é assim. O medo inibe-me. E tenho medo de nunca mais te voltar a ver. E isso não me motiva. Pelo contrário. Destrói-me. Para mim o grande motivador é o amor. O que o medo faz é enublar as nossas percepções e, desse modo, perdermos o sentido do que a realidade pode realmente ser. Toda esta sociedade em que vivemos foi construída sobre o medo. Usa-se o medo para tudo. Os patrões com os empregados. Os países mais poderosos com os mais fracos. Todas estas guerras. Todas estas injustiças. Tudo feito com o uso dessa grande arma opressiva que é o medo. O medo cala-nos. O medo deve ser confrontado. É um grande desafio. Confrontar o medo pela ilusão que realmente é. E só sei uma forma. Há que confrontar o medo com o amor. E o amor que tenho por ti é tão grande. Mas hoje estou cheia de medo. Medo de não conseguir escapar. Quando estava preparada para lhe dizer tudo, como que pressentindo algo, este verme fechou-me no quarto. E quando abriu a porta foi para me dizer que tinha o meu passaporte e que sabia muito bem o que se passava. Assustei-me. Assustei-me tanto. Eu já devia ter lido os sinais. As suas mudanças de humor repentinas. E é por isso que estou cheia de medo. Ainda não sei como vou conseguir fazer-te chegar esta carta. Mas irei conseguir. Irei conseguir porque é o amor que me motiva. O medo inibi-me. E tu tens que saber o que está realmente a acontecer. Estou com tanto medo de amanhã. 14716P12T1

Meu querido Chaoxiong. Não sei como explicar como me sinto quando penso em ti. Hoje à noite sonhei que era uma estilista de sucesso e que preparava as minhas modelos para uma passagem de moda em Xangai. E que o hotel onde estava tinha um restaurante chinês e um ocidental. E que decidi de repente fazer a festa com as modelos no ocidental. Porque sempre quis conhecer o meu pai. Nunca te falei no meu pai. Um francês que trabalhava na bolsa de Hong Kong que desapareceu por altura da transferência. Ele e a minha mãe tinham-se casado um ano antes e a minha mãe estava grávida de 6 meses quando ele desapareceu. Descobriu-se posteriormente que ele poderia estar ligado a um esquema de subornos de um membro influente da sociedade de construção e que ao recusar continuar possa ter sido envolvido nalgum caso de débito com as tríades. Nada está provado. Eu continuo a acreditar que ele está vivo em algum lugar. No meu sonho eu dirijo-me a esse restaurante e entro na sala de banquetes para ser recebida com forte aplauso. Mas sinto-me tão cansada apesar de tão feliz pelo meu sucesso. Tu levas-me até ao meu lugar e em segredo dizes-me que agora eu posso descansar e que de seguida iremos fazer a nossa sonhada viagem à volta ao mundo. E falas-me de sítios exóticos. Com praias paradisíacas. E eu oiço a tua voz em sussurro. Com nomes de sítios que ecoam felicidade. Bahamas. Seychelles. Maldivas. Eu nuca soube para onde viajar. Estas tuas sugestões no meu sonho são lugares-comuns. Mas toda esta minha vida é um lugar-comum. Toda esta minha canseira e infelicidade por não estar contigo é um lugar-comum. Até o medo é um lugar-comum. E eu não quero deixar que o medo me leve ao desespero. O desespero é uma doença mortal. Uma doença do espírito. Um abismo. Um abismo de desespero.

Chaoxiong deixa-me dizer-te, neste ano de 2029, que eu, uma mulher com 37 anos, ainda acredito na felicidade porque tu existes. Deixa-me dedicar-te um poema de uma poetisa americana que muito admiro. Sylvia Plath. Conheces? Chama-se “Mad Girl’s Love Song” e é como eu me sinto hoje. Uma “mad girl”.

“I shut my eyes and all the world drops dead;
I lift my lids and all is born again.
(I think I made you up inside my head.)

The stars go waltzing out in blue and red,
And arbitrary blackness gallops in:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I dreamed that you bewitched me into bed
And sung me moon-struck, kissed me quite insane.
(I think I made you up inside my head.)

God topples from the sky, hell’s fires fade:
Exit seraphim and Satan’s men:
I shut my eyes and all the world drops dead.

I fancied you’d return the way you said,
But I grow old and I forget your name.
(I think I made you up inside my head.)

I should have loved a thunderbird instead;
At least when spring comes they roar back again.
I shut my eyes and all the world drops dead.
(I think I made you up inside my head.)”

Não fiques triste meu querido. E não tenhas medo. O medo inibe e é mau para todos. Não deixes que esta minha carta não te faça acreditar. Acredita meu doce.
Para sempre tua.
Daphne.”

14 Jul 2016

A vida é um palco

Tchekov, Anton, Contos e Narrativas, Estúdios Cor, Lisboa 1972
Descritores: Literatura Russa, 402, [3] p.:20 cm, Tradução Lopes Azevedo
Cota: C-11-4-235

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]nton Pavlovitch Tchechov, nasceu no dia 29 de janeiro de 1860 e faleceu na Floresta Negra em Badenweiler, no dia 15 de julho de 1904. Cursou e exerceu medicina toda a vida, considerando que a ciência médica era a sua mulher legítima enquanto que a literatura, a que se dedicou também toda a vida, era uma espécie de amante. Abençoada amante, apetece dizer.
Dentro da literatura evidenciou-se a sua arte de dramaturgo e contista, genial em ambos os registos. Há duas notas prévias que se devem considerar quando se pretende tentar escrever sobre Tchekhov. Uma é o facto de que a sua técnica do uso do fluxo de consciência é absolutamente original e precursora e aparece na obra com uma naturalidade, única na história da literatura, que a torna imperceptível. A outra é a deliberada ausência de juízos morais o que produz nos textos a aparência de uma espécie de inércia, do ponto de vista axiológico, embora jamais a tenham. Como é que ele o consegue!? Aí residirá o maior mistério da genialidade da sua forma de expressão.
Tchekhov é considerado um dos maiores contistas de todos os tempos mas, para mim, o seu teatro não lhe fica a dever nada. Do seu teatro eu destaco além da Gaivota: O Tio Vânia, As Três Irmãs e O Cerejal. Alguém falou de um teatro de humores e de uma vida submersa no texto; nada mais certeiro. Tolstoi detestava o teatro de Tchekhov, mas detestava de igual modo Shakespeare, ora como sabemos, no melhor pano cai a nódoa.
Possuo o sentimento de que não sou capaz de escrever sobre Tchekhov. Seguramente saberei e serei capaz de falar de Tchekhov e de escrever sobre ele na generalidade da sua vida e obra, daquilo que se tornou trivial acerca dele. E ainda lhe poderei acrescentar muito do que é possível ler sobre ele e que é vasto, e às vezes muito bom, como os textos iluminados de Nabukhov, por exemplo, mas escrever sobre ele de um modo absolutamente pessoal, tenho sérias dúvidas. E não é porque não o compreenda, ou porque não goste, ou outro tipo de sentimentos assim. É uma espécie de bloqueio que resulta do facto de que o compreendo tão profundamente, como nenhum outro escritor, e por isso não sou capaz e portanto não sei. A impotência é uma forma de sabedoria da não sabedoria.
A parte da obra de Tchekhov que é responsável por esse bloqueio, por essa impotência, é o teatro, que é também a parte da sua obra onde o indizível se apresenta mais nítido. Um indizível nítido parece um paradoxo, mas não é, atrevo-me a dizer.
O teatro de Anton Tchekhov que já li abundantemente e que também já vi no palco e no cinema interpela-me com tal intensidade que fico reduzido a uma pura emoção, mas a uma emoção vencida e jamais triunfante. Uma emoção que promove a desistência e o silêncio. Eu sei o que ele quer exprimir, nem tenho dúvidas sobre isso, mas não sou capaz de o definir pacificamente. Em última análise porque o que ele quer dizer e exprime, à sua maneira, é justamente o que a vida não pode exprimir senão assim: um arrepio sem palavras, um cenário omnisciente sem legendas. A minha paralisação verbal é quase da ordem do respeito cerimonial. Faço, pode-se dizer, um silêncio expressivo, um silêncio que diz tudo. 14716P13T1
A primeira peça que li dele foi a Gaivota e depois disso já vi a Gaivota, tanto no teatro como no cinema e a sensação foi sempre a mesma, aquilo é a vida, não a vida concretizada, realizada e também verbalizada, mas a vida do desejo não realizado, do sonho apenas entrevisto, de um sentimento muito vago do falhanço, da perda, do irreparável. Parece que Tchekhov deixou de se dedicar ao teatro depois da péssima reacção à apresentação de Gaivota. Eu compreendo a má reacção, pelos mesmos motivos que enformam este meu texto. A Gaivota é provavelmente o texto do escritor em que tudo o que tenho vindo a dizer e espero dizer ainda até ao fim deste breve excurso, se confirma de modo sublime. A Gaivota é todo o mistério do génio de Tchekhov condensado, a sensação poética e existencial do ‘por viver’. Este ‘por viver’ não remete para um futuro ou um passado, é sempre no presente que a falha está presente e presentifica a vida com esse sentimento de falhanço antecipado.
Essa é a sensação de todas as outras peças também, verdadeiras epifanias do que é evanescente, volátil, que a vida anuncia e nos rouba, e isto permanentemente ao longo dela, … não é sempre o mesmo o que se adia, o que fica suspenso, o que se perde, ou mesmo só o anúncio reiterado dessa perda. Não é sempre o mesmo empiricamente falando, mas é de facto sempre o mesmo, enquanto metamorfose ontológica da incompletude e da carência. É sempre o mesmo, no fim de contas. E é sempre a mesma a emoção não dramática dessas perdas sucessivas. O dramático reside na ausência de dramatismo, nas peças de Anton Tchekhov, e isso consubstancia uma suavidade sofrida, uma tristeza não convulsiva, … E é esta ausência de pathos que me intriga e me perturba e me paralisa.
Eu evidencio a Gaivota em detrimento do Tio Vânia, por exemplo, apenas porque a questão da arte está na Gaivota de forma mais explícita. Pressente-se em toda a obra de Tchekhov uma certeza: só a arte poderá, se é que pode, superar as aporias existenciais. A vida é um novelo embaraçado que a vida não desembaraça. A arte vem em seu auxílio, procurando superar as antinomias irresolúveis, porém percebe-se que a fronteira entre a arte e a vida não é nítida e que a arte, ela própria, se embrulha em outras antinomias tão irresolúveis quanto aquelas. O novelo existencial prevalece agora num plano sublimado, onde as metalinguagens não logram o efeito de distanciamento procurado e esperado. É sempre a vida que cobre o campo de todas as referencialidades …
Contudo esse Tio Vânia que usei como exemplo para contrapor A Gaivota, é provavelmente a peça onde o que referi a propósito do sentimento de perda é mais expressivo e melhor conseguido. Os anseios fazem corpo com as frustrações, as tentativas de regeneração, condenadas ao malogro, exprimem-se em ideais de fuga e abandono e por fim o desgaste acaba por conduzir ao triunfo da rotina, que exprime o sentimento de derrota, de um epos dos vencidos, pois o que se perde jamais se resgata e apesar das alterações, que são sempre superficiais, prevalece o rumor profundo do que não muda e se torna asfixiante.
Sem falsa modéstia talvez tenha acabado por escrever sobre Tchekhov aquilo que de facto será o essencial da sua obra literária justamente na sua essência, uma essência não substancial, despida de ênfase ou retórica, aparentemente banal e prosaica mas de uma intensidade dramática avassaladora e tanto mais estranha quando e porque é plenamente conseguida com tão escassos recursos. Aí reside o génio absoluto do dramaturgo e contista russo. No fim de contas acaba por se tratar de uma ironia extrema, num autor que cultivou a ironia como provavelmente mais ninguém.

Manuel Afonso Costa

14 Jul 2016

A antiga China e a Dama de Hongshan

Dama de Hongshan é o nome que Michael Du, antiquário e coleccionador de renome a viver actualmente no Canadá, dá a si próprio. Há alguns dias atrás falámos ao telefone e discutimos a sua grande obsessão: a Cultura Hongshan

JOY: O que é a Cultura Hongshan?
MD: É uma cultura neolítica do Nordeste da China. Foram encontrados locais com vestígios da Cultura Hongshan numa zona que se estende desde a Mongólia Interior até Liaoning, datados do período compreendido entre 4700 e 2900 AC. Nestes últimos 20 anos, tenho vindo a dar a volta ao mundo. Já visitei mais de 40 países e regiões da Ásia, África, América Latina, Estados Unidos e outros continentes. De momento tenho mais de 10.000 peças que são verdadeiros tesouros culturais de períodos muito antigos da China. Sou louco? Acho que sim, mas um louco com curiosidade intelectual e o coração no sítio certo.

JOY: Como é que iniciou a colecção de artefactos Hongshan?
MD: Foi em Agosto de 1993, num dia que nunca vou esquecer. Estava em Trieste, na Itália, para visitar uma colecção de mobiliário da antiga Dinastia Qing; tenho um negócio de mobiliário antigo. O proprietário mostrou-me alguns exemplares de mogno muitíssimo originais, com preços proibitivos. Mas, sem me dar conta, o meu olhar foi atraído pela estranha forma de um objecto. Era, só soube mais tarde, um dragão de jade em forma de C, algo característico da Cultura Hongshan. Examinei o material, a densidade, a cor e o modelo. Claro que era chinês, mas de que período? Já tive nas mãos tantos objectos de jade, mas nunca tinha visto nada de semelhante na vida! Este dragão em forma de C era-me completamente estranho e deixava-me confuso…O proprietário conseguiu adivinhar os meus pensamentos. Antes que eu conseguisse formular uma pergunta que fizesse sentido, respondeu-me: “Dragão Hongshan. A Cultura Hongshan é fascinante.” Fiquei de cara à banda. Era a primeira vez que ouvia um estrangeiro mencionar o termo Hongshan! Compreendi naquele momento que estava a segurar o pai de todos os dragões. Fiquei sem palavras por alguns momentos e senti-me envergonhado da minha ignorância. Acabei por conseguir dizer: “Compro-o.” Não regateei, nem olhei para mais nada. Vim imediatamente para casa e consultei alguns peritos, mas ninguém sabia nada sobre este dragão chinês com 20 cm de altura. O acesso à informação era muito mais difícil na altura. Começou então o meu périplo por bibliotecas e livrarias em busca de informação em jornais e revistas da especialidade. Sentia-me um verdadeiro detective Hongshan. Ao tentar compreender o significado meu dragão em forma de C, acabei por ficar absolutamente convencido que a Cultura Hongshan é a verdadeira origem da civilização chinesa. Embarquei numa aventura excitante e de grande valor cultural, para um coleccionador como eu.

JOY: Sr. Du, por favor, explique-nos como é que foi fazendo a sua colecção. Como é que conseguiu reunir 10.000 peças antigas de bronze e de jade?
MD: Há mais de dez anos, soube que um coleccionador americano queria vender os seus objectos porque já tinha muita idade e estava doente. Passei uma semana com ele, a tentar convencê-lo de que eu era a pessoa certa. Acabei por comprar-lhe a colecção, com cerca de 1.000 artefactos Hongshan, por um preço razoável. Os primeiros objectos Hongshan de “jade negro” eram cobertos por uma liga muito antiga, através de uma tecnologia que estudiosos e historiadores nunca conseguiram compreender nem explicar. Daqui resultou que coleccionadores sul-coreanos começaram a comprá-los em grandes quantidades, vendendo-os posteriormente como objectos preciosos, mas sem os identificarem. Muitos locais Hongshan foram pilhados e inúmeros artefactos muito antigos saíram do País. É um duro golpe na nossa herança cultural e magoa-me imenso. Mas eu estou sempre atento às novidades e aos mexericos e, mal apanho qualquer sinal, viajo até onde for preciso para ver as peças. Se tiver a certeza que são objectos genuínos, estou disposto a pagar o dobro do preço de mercado. Tenho hoje em dia na minha colecção muitas peças absolutamente únicas.

JOY: Corre muitos riscos e investe imenso para actualizar a sua colecção. Quais são as suas metas?
MD: Disse que sou intelectualmente curioso e é verdade. De momento, pretendo publicar uma edição de luxo com ilustrações de 600 artefactos Hongshan, todos pertencentes à minha colecção. Esta obra de referência pretende galvanizar amigos, colegas, investigadores e amantes da Cultura Hongshan, provenientes do nosso circulo internacional. Podemos chamar-lhe a “Bíblia Hongshan”. Entretanto estamos a preparar a abertura de um museu privado em Xangai, que deverá acontecer em breve. Vejo-me a mim próprio como um devotado fã dos Hongshan, como um promotor e um anjo da guarda.

Julie O’yang

13 Jul 2016

Unheimlich

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que se reconheceu como Homem, a espécie humana tem procurado distinguir-se das outras espécies animais, quer pela simples adição de atributos (do género “o homem é um animal racional”), quer pela constatação de um corte radical numa hipotética escala evolutiva (o homem é um animal com cultura). Mas, no fundo, parece existir uma remota e timorata consciência de que a distância que nos separa dos outros bichos não é tão grande quanto isso.

Um dos primeiros a escorregar na senda da confissão deste terror (em termos científicos) foi o naturalista Buffon. Dizia ele que se os animais não existissem o Homem seria ainda mais misterioso — o que indicia proximidade e semelhança.

Nalgumas das pinturas que o italiano Castiglione fez na corte de Pequim avultam a representação de cavalos e cães, desenhados ao modo ocidental; contudo, inseridos num contexto de pintura chinesa, o que imprime nas pinturas algo de inusual, para não falar de uma certa estranheza, um sentimento indefinível, próximo, se quisermos, do desconforto.

Tal é sobretudo verdadeiro quando contemplamos um certo cavalo, de cor castanha e proporções suaves. O mais extraordinário da besta é o seu olhar. Ao contrário do que se poderia pensar, jamais o classificaria de humano. A sua placidez e segurança situam-no, desde logo, num patamar que nos ultrapassa.

A estranheza, a que não é ausente um traço de temor, mede a altura do lance, desafia a capacidade da nossa perna.

12 Jul 2016

Patrícia Baltazar

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]atrícia Baltazar é uma poeta contemporânea, que vive no Barreiro, parte sul de Lisboa, do mesmo modo que Kadıköy fica na parte asiática da cidade de Istambul, ou a Lesbos de Safo ficava na parte asiática da Hélade. A poeta tem quatro livros publicados: Ré Menor (Língua Morta, 2010), Fumar Mata (Madrugadas, 2013), Catapulta (Do Lado Esquerdo) e A-Rh sanguis languae (Palavras Por Dentro, 2016). Aqui e agora, percorreremos apenas os caminhos de Fumar Mata. Chega-se a este livro de Patrícia Baltazar, como a uma casa arruinada, cansada de tempo e de miséria, sem ninguém, e passamos a sentir-nos como a ruína de um recordação que nunca foi, a ruína de uma vida por ser, porque “Não tenho de ser ninguém para perder a memória.” (XXXIII, p. 55) Aqui não nos encontramos face a face com a etiqueta de Aristóteles acerca da poesia, o que poderia ser, aqui ficamos face a face com o que nunca irá ser, a vida que poderíamos ter sido se houvesse vida. O livro começa com o verso “Precisamos de pássaros” (I, p. 7) e termina com um verso final, poema inteiro e sem número romano ou árabe “Que se foda.” Entre o que se precisa e o irremediável, o livro divide-se entre as “lâminas de algodão” (V, p. 15) da lírica e a realidade implacável de “45 quilos de ossos para uma tempestade” (XXII, p. 37). E muitos dos versos sucedem-se interrompidos, deixando eles também adivinhar a vida que poderia ter sido “De nada que me” (VI, p. 16) e “Fecha os olhos como se” (VII, p. 18) e “Não houvesse água que nos salvasse (…) Não houvesse absolutamente nada” (XXIV, p. 41). Somos incompletos como um verso inacabado. Mas pior, porque ninguém nos quis assim. Não é apenas para os outros que somos um discurso continuamente interrompido, também para nós mesmo o somos. A memória faz o que pode para nos conferir unidade, mas somos o que os outros fazem de nós, somos também o que não fazemos de nós, no fundo, “des-somos” mais do que somos. “Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e ainda o teu, continuam guardados, para sempre, em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que vocês fizeram de mim.” (III, 10-1) Mas o humano que des-somos vê-se ainda melhor neste verso: “Ser uma cicatriz.” (X, 23)

Não se pense, contudo, que estamos diante de um livro que arrasta uma voz de queixume ou uma voz de vingança. Nada mais contrário a isto. Estamos antes diante de uma voz que ama as profundezas do mistério. E amar é já partilhar. Assim são vários os versos que iluminam esta ética “Se tenho 50 cêntimos num bolso e esse é o único dinheiro que me resta, então são 25 para ti e 25 para mim, que estás aqui à minha frente. Não importa quem és.” (XXXIII, 56) “Perdoo toda a gente que pensa que me magoou ou magoou mesmo.” (XXXIII, 57) E essa compreensão maior que é a dádiva que nos prende à vida, expressa num verso tão luminoso como uma estrela: “Uma dádiva, ter a vida presa por um filho.” (XXX, 52) É preciso ter-se perdido muito, quase tudo, e a nada e a nem ninguém culpar, para se chegar a este qualidade de verso. Estamos diante de um livro de amor. Não do amor inaugural de Safo, mas do amor ao próximo, um livro de amor à vida, aos confins da vida, um livro que vai do mistério de partilhar um prato de sopa, de fazer uma sopa que chegue para todos, essa verdadeira multiplicação dos alimentos – “Se tenho sopa feita, fiz com certeza para mais de 2 pessoas. Faço sempre isto. Tenho jantar para todos.” (XXXIII, 56) ou ainda este roçar de asas pela santidade, com que termina o poema XXII, “Quero que os meus irmãos me doam.” (XXII, 38) – até à transformação de tudo o que nos faz sofrer, “Engole tudo quanto se sofre.” (XXIX, 50)

No fundo, Fumar Mata trata-se de um livro que opera uma inversão completa do ponto de vista usual da poesia, que pode ser melhor entendida neste verso “Faltou-me o desânimo.” (XXXIII, 57) Assim, a vida em ruínas que percorre este livro é mais rica e mais sólida do que as vidas que percorrem a maioria de outros livros de poemas. Pois pode-se viver muito mais, do que nunca vivemos, do que se vive da própria vida, “Eu sou eles todos e as viagens que nunca fiz. Sou tudo isso.” (III, 10) Já Fernando Pessoa, por exemplo, nos tinha ensinado isso, mas aqui em Patrícia Baltazar a ultrapassagem da vida é na própria vida. Não temos vida, mas temos sopa, que chega para todos. Não temos vida, mas temos 50 cêntimos num dos bolsos, que se divide connosco, o leitor. Há nestes poemas da poeta uma espécie de alquimia ou de toque de Midas, uma transformação da dor em ouro em cada verso. Mesmo quando a poeta parece cair num banal queixume – “A minha infância está guardada na caixa das / fotografias antigas // É uma história para contar pouco. Uma coisa rápida. Uma bicicleta verde, a praia, as brincadeiras solitárias e caladas. // (…) Nunca fui uma rapariga. // Estes pés nunca andam juntos.” (XX, 34-5) – e, no poema imediatamente seguinte, lê-se este verso pujante, de apreço pela vida, de apreço pelo tempo de vida, por nada ser mais importante do que estar vivo e dar-se conta disso: “Mãe: não me dói nada.” Ainda que termine o poema pedindo novamente a atenção da mãe “Mãe? Estás? Mãe? Ouves-me, mãe? / Devolve-me, / A manta da tua ternura ou não sobrevivo.” (XXI, 36) A grande poesia faz com que a vida de quem a escreve seja soterrada nas vidas universal e de cada um que lê. E esta, de Patrícia Baltazar, não é diferente. Quem é a pessoa que escreve, não importa nada para este livro, para estes poemas. Eles são hoje património de estar vivo. Património daquele estar vivo entre a sobrevivência e a existência. Porque tudo poderia ser pior do que é, se não estivéssemos vivos, se não nos faltasse o desânimo. De que modo? A isso responde-nos Patrícia Baltazar, no final do seu poema XXIV: “Não houvesse água que nos salvasse. / Não houvesse vinte dedos para a realidade dos / corpos. // Não houvesse absolutamente nada.” (XXIV, 43) Mas há. “Eu e os meus poemas vamos fumar para longe. // Haverá uma árvore.” (XIII, 27) Entende-se que o livro nasce do centro de uma profunda dor. São vários os versos que iluminam essa dor. Mas esse centro, essa dor é apenas de onde se vem. Não é nem onde se fica nem para onde se vai. O final do poema XXII é o melhor exemplo desse entendimento da dor, como se ela existisse para nos rirmos dela: “Quero um grande relâmpago que me ilumine as / ancas. Que as estenda para o outro mundo. Que / as alargue até me sentir um cadeirão para Zeus se sentar.” (XXII, 37) Encontramos uma profunda união entre ética e estética, ao longo dos poemas de Patrícia Baltazar. E isto é, além de profundamente antigo, original, como se escrito em grego arcaico, ao tempo de Safo, e também uma viragem na poética actual.

12 Jul 2016

Diário (secreto) de Pequim – Outubro de 1977

Pequim, 10 de Outubro de 1977

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]nteontem espectáculo memorável pela companhia de Cantos e Danças Dongfeng (Oriente), no velho Teatro Tianqiao, lá para sul, para os lados do Templo do Céu.
Pleno o aproveitamento político que os camaradas chineses estão a fazer da reaparição, do renascer deste grupo artístico criado em Janeiro de 1962, por proposta de Zhou Enlai, primeiro-ministro, com o objectivo de “estimular e desenvolver a amizade entre o povo chinês e os povos dos países do Terceiro Mundo.”
Estes bailarinos, acrobatas, cantores encheram o palco durante quase três horas com um repertório que incluía temas musicais e danças folclóricas da Ásia, África e América Latina. Tudo muito bem imitado, tudo muito bem conseguido, tudo alegre, colorido e bonito. Dizem-me que nestes anos recentes de políticas e delírios esquerdistas, Jiang Qing, a viúva de Mao e membro principal do “bando dos quatro” terá afirmado que a música deste Grupo de Cantos e Danças “é decadente” e Zhang Chunjiao, outro figurão proeminente do execrável “bando” emitiu a seguinte opinião: “Afinal para que serve este conjunto artístico se eles se limitam a copiar os macacos de África? A dança africana e o rock and roll são uma e a mesma coisa.”
Este Grupo do Oriente reapareceu agora após quase dez anos de silêncio e apresentou um espectáculo de muita qualidade. Os números sucessivos, com inúmeros bailarinos e músicos em palco, mostraram não só o trabalho e as lutas do povo chinês mas também as de outros países. Assisti a cantos e danças do Kampuchea, do Mali, do Peru, da Birmânia, da Argentina, da Etiópia, do Vietname com os chineses bem ataviados e garbosos (até a cara pintaram de negro!) exemplarmente travestidos de gentes das nações do mundo. Foi um ar fresco a soprar na vida cultural tão limitada desta China.
A 1 e 2 de Outubro, feriados nacionais comemorativos da fundação da República Popular da China, tive também o privilégio de assistir em três parques diferentes de Pequim a dezenas e dezenas de espectáculos onde grupos de crianças e actores profissionais representavam, cantavam, dançavam. Muitas vezes a encenação tinha um forte objectivo político, a denúncia e combate ao “bando dos quatros”. Por exemplo, um grupo de crianças bailarinas, quase no final da dança, ia buscar pequenas granadas de mão, em madeira e, ritmando gestos e música, saltavam no ar e lançavam as granadas contra um grande painel com a figura pintada, velha e feia, exactamente da senhora Jiang Qing, quarta mulher de Mao Zedong e cabecilha do “bando dos quatro.”
Libertos do recente despotismo cultural, é verdade que escritores e artistas começam a aparecer um pouco por toda a parte. Do que me vou apercebendo aqui nas conversas com os dezanove camaradas chineses com quem trabalho e a quem ensino português, as diferentes editoras publicam outra vez livros de poesia, romances, teatro de autores que tiveram grande importância na história da moderna literatura, alguns deles muito próximos do Partido Comunista mas proibidos, censurados até há pouco. Homens como Tian Han, Cao Yu, Ai Qing, Mao Dun, Ba Jin.
O velho Mao Zedong indicava justamente que “o antigo deve servir o actual” e assim surgiram agora reedições de algumas das mais importantes obras clássicas da literatura chinesa, como a “Poesia Completa de Li Tai Bai” , e antologias de poemas das dinastia Tang, Song, Yuan, Ming e Qing, ou seja todos os ciclos dinásticos desde 618 a 1911.
Vão também ser reeditadas reproduções de pinturas célebres de diferentes dinastias, e também cópias de quadros de Rembrant. Reapareceram traduções para chinês de peças do teatro clássico grego, algumas comédias e tragédias de Shakespeare, obras de Heinrich Heine, Nicolau Gogol, Balzac e Vítor Hugo. Voltou também a música clássica ocidental. Já se podem comprar partituras e ouvir discos com música de Mozart, Beethoven, Chopin, Bach, etc.
Parece ser assim verdade que, aniquilado o “bando dos quatro” (a linha esquerdista radical de Jiang Qing, Zhang Chunqiao, Wang Honwen e Yao Wenyuan) a literatura, a dança, a música, a arte em geral retomam na China o importante lugar que lhes cabe na construção de uma sociedade mais justa, mais educada, mais fraterna, mais humana, mais livre.

Pequim, 15 de Outubro de 1977

Olha o muro e edifício nunca crido
Que entre um império e outro se edifica,
Certíssimo sinal e conhecido
Da potência real, soberba e rica

Os Lusíadas, canto X, 130

Luís de Camões, em pleno século XVI, dá testemunho da existência do “muro”, da vasta Grande Muralha da China.
Fernão Mendes Pinto dedica-lhe todo o capítulo 95 da Peregrinação e dá-se mesmo ao rigor de explicar:

“Este muro vi eu algumas vezes e o medi, que tem por todo em geral seis braças de alto e quarenta palmos de largo.”

Domingo passado, iluminado por um ameno sol de Outono, foi tempo de viagem curta até ao troço da Grande Muralha da China que passa oitenta quilómetros a norte de Pequim.
Por má estrada, são quase duas horas de caminho. O autocarro chinês, meio decrépito, avança por terras planas nos arredores da capital, com pomares, campos verdes de trigo, milho, sorgo, algodão, mais pequenos rios e lagos onde patinham grandes bandos de patos. Cruzamo-nos com milhares de bicicletas, camiões, carroças e inúmeros grupos de camponeses, indo e vindo da azáfama dos campos. Aqui e acolá umas bandeirolas vermelhas espetadas no terreno indicam grupos de trabalho. Na China, os domingos são dias normais para o labor agrícola, é preciso dar de comer a 900 milhões de almas e este velho império, com um quinto da população mundial, conta apenas com 1/14 avos da terra arável existente no globo.
Chegamos a Changping. Acabou a planície, a estrada começa a subir e a paisagem muda rapidamente. Estamos a entrar no maciço montanhoso, a Grande Muralha não está longe. As montanhas elevam-se abruptas e nuas, como que talhadas a cinzel entre o fundo de vales pedregosos e o céu azul.
O caminho que seguimos foi outrora uma via estratégica. Por aqui, vindos do norte passaram hordas de invasores mongóis que atravessaram a Muralha, conquistaram e governaram a China durante quase um século (dinastia Yuan, 1279-1368). Era também o percurso, o itinerário das caravanas que se dirigiam para norte. Caravanas autênticas de cavalos, camelos, carroças carregadas de “sacos de lã e peles da Mongólia a caminho de Pequim ou transportando volumes de folhas de chá de Tianjin, a caminho de Kiakhta, na fronteira da Sibéria”, (in Mournier, L’Émpire du Milieu, Paris, Plon, 1903).
Esta estrada continua a ser hoje uma importante via de comunicação. O trânsito é intenso, camionetas e camiões, de todos os tipos e formatos, sobem e descem, carregados dos mesmos produtos de outrora mas também de muitos outros. O dia está bonito por isso são incontáveis os autocarros de passageiros apinhados de chineses, que vão, tal como eu, de visita à Grande Muralha. Dizem-me que o troço de Badaling que vamos percorrer chega a receber mais de dez mil visitantes num só dia.
Paralela à estrada, mas do outro lado do estreito vale, segue a via férrea, furando túneis, escondendo-se debaixo das montanhas, reasparecendo, subindo, subindo sempre. Chegamos a uma aldeia chamada Juyongguan, com casas pobres dos camponeses, baixas, com janelas envidraçadas e, à volta, pedaços de terra encravados nos socalcos da montanha. À entrada da aldeia levanta-se um grandioso pórtico em pedra construído em 1345, no período mongol, com baixos relevos representando Buda e com inscrições em seis línguas, chinês, sânscrito, tibetano, mongol, uighur e targut. Nesses tempos recuados a estrada passava sob este pórtico, daí as frases que são uma espécie de encantamentos (dharani, em sânscrito) destinados a viajantes de tão longínquas paragens. Em Juyongguan encontramos ainda trepando pelas encostas um par de muralhas menores, muito destruídas pelos séculos. Trata-se de fortificações recuadas, antes da Grande Muralha que se situa uns dez quilómetros mais para norte.
A estrada continua a subir, as curvas sucedem-se em cotovelos apertados, um comboio avança pachorrentamente a nosso lado, cheio de chineses que espreitam às janelas e procuram, tal como eu, descobrir a Muralha. Mais uma curva, um chiar de travões, uma guinada do volante do autocarro e aí estão os topos das nervuras das montanhas devassados pelo engenho do homem. A Grande Muralha serpenteia um pouco por toda a parte, sobe, desce, volta a subir, flecte em ziguezagues, acompanha os picos e as quebras dos montes.
A construção da Muralha da China iniciou-se no século V antes da nossa era. Durante o período dos Reinos Combatentes (476 a.C.-221 a.C.) alguns príncipes feudais viam as suas terras constantemente invadidas por tribos nómadas vindas do norte. Para assegurar a defesa dos seus territórios, também nas lutas que travavam entre si, mandaram construir extensas muralhas para protecção das fronteiras. Mais tarde, o primeiro imperador da dinastia Qin, que se chamou Qin Shihuang, unificou a China pela primeira vez e deu ordens para se ligarem entre si as muralhas já existentes. Na dinastia Ming (1368-1644) foram construídas novas muralhas para delimitar, com rigor, as fronteiras do império. O resultado foi esta extraordinária obra que se estende por quatro províncias, duas regiões autónomas e dois municípios centrais, a saber, Hebei, Shanxi, Mongólia Interior, Shaanxi, Gansu, Ningxia, Pequim e Tianjin.
(continua)

António Graça de Abreu
11 Jul 2016

Vasco da Gama parte para a Índia

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, dia 8 de Julho, comemora-se a partida de Vasco da Gama para a Índia ocorrida em 1497.
No ano em que Bartolomeu Dias partia por mar, para desfazer “as ideias de Ptolomeu, que concebia o Atlântico e o Índico como mares interiores e sem qualquer comunicação entre si”, segundo refere Luís de Albuquerque, saía a 7 de Maio de 1487 de Santarém, Pêro da Covilhã. Se com a missão cumprida Bartolomeu Dias chegou a Lisboa em Dezembro de 1488, também Pêro da Covilhã, com todas as informações registadas, entregou-as em 1491 no Cairo ao mercador José de Lamego, que logo seguiu para Portugal levando-as em carta ao Rei D. João II. Desta constava o relato sobre os portos das especiarias por ele visitados, as técnicas de navegação no Oceano Índico e as rotas dos barcos comerciais muçulmanos com quem seguiu até Sofala. Confirmava que contornando a África se poderia chegar à Índia e não poder ser o Preste João outro que não o rei da Abissínia.
Em 1492, com essas informações de Pêro da Covilhã sobre o Mar Arábico e comércio muçulmano entre o porto de Sofala e a Índia, e após a viagem de Bartolomeu Dias, para se atingir a Índia faltava apenas a navegação entre o Rio do Infante e Sofala.
A Espanha começara em 1479 com o casamento do Rei Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os mais poderosos reinos católicos da Península Ibérica. Entretanto, o genovês Cristóvão Colombo, que estivera sempre ao serviço da marinha portuguesa e expusera o seu projecto ao Rei D. João II, mas face à recusa, ofereceu os seus préstimos aos Reis Católicos. Conquistada Granada aos muçulmanos Omíadas em 1492, partiu Cristóvão Colombo ao serviço de Espanha e navegando para o Ocidente, chegou ainda nesse ano à América Central, anunciando no regresso ter chegado às Índias. Era sim um novo mundo, até então desconhecido para os europeus.
Em 1493, o Papa Alexandre VI estabeleceu um meridiano a Ocidente de Cabo Verde cabendo a Portugal as descobertas a Leste do mesmo e a Castela as de Oeste. D. João II assentou directamente com os Reis Católicos o meridiano a dividir as zonas de influência dos dois povos peninsulares, desviando-o mais para Oeste de Cabo Verde, o suficiente para abranger no espaço português o nordeste do Brasil. Em 1494, com esta linha divisória, foi assinado o Tratado de Tordesilhas.
À caravela juntou-se em 1497 a nau e mais tarde o galeão. Segundo Veríssimo Serrão, “Como a estrutura da caravela não garantia o êxito de uma viagem de tamanho alcance, deu-se preferência a embarcações de maior equilíbrio e robustez para vencer as intempéries do oceano. Por isso se utilizaram naus de três mastros, com a vela triangular na mezena e pano redondo com duas quadrangulares nos mastros do meio e da proa. Tratava-se de uma inovação náutica que assegurava melhor os objectivos científicos que a viagem pressupunha”.

Vasco da Gama parte para a Índia

No prosseguimento das viagens encetadas, D. João II escolhe Estêvão da Gama para chefe da expedição por via marítima para a Índia. A 25 de Outubro de 1495 morreu o Rei e a 27 do mesmo mês subiu ao trono D. Manuel I, que decidiu continuar com o plano dos Descobrimentos. Tendo, entretanto, falecido Estêvão da Gama o rei encarregou Vasco da Gama, filho de Estêvão.
Veríssimo Serrão refere, ” Entregando a chefia da frota de 1497 a Vasco da Gama, a coroa nomeava pela primeira vez um fidalgo da Casa Real, a quem concedia um estatuto idêntico ao de embaixador extraordinário. O comandante nascera em Sines pelo ano de 1469, sendo o terceiro filho de D. Estêvão da Gama e, dado da maior importância, um homem da criação do rei D. Manuel I quando era ainda duque de Beja. Vasco da Gama substituía assim o progenitor, a quem o rei D. João II pouco antes de morrer dera o encargo de chefiar a grande expedição. Mas tanto a morte do Príncipe Perfeito como a do alcaide-mor de Sines tornaram inviável o projecto que D. Manuel I se apressou a executar”.
Vasco da Gama partiu a 8 de Julho de 1497 da praia do Restelo (Lisboa) com uma armada de quatro naus, após ter assistido junto com outros comandantes, tripulação, rei, fidalgos e povo a actos religiosos na ermida de Santa Maria de Belém.
“A frota era constituída pelas seguintes embarcações: a nau capitã S. Gabriel, onde embarcou Vasco da Gama; a S. Rafael, do comando de seu irmão Paulo da Gama, ao que se crê, com responsabilidades idênticas de mando; a Bérrio, confiado ao experiente nauta Nicolau Coelho; e um pequeno navio de mantimentos. Com um total de 148 homens, faziam parte da guarnição os pilotos Pêro de Alenquer e Álvaro Velho, homens adestrados na navegação atlântica, sendo também acompanhada por Bartolomeu Dias…”, V. Serrão.
Como rota habitual a frota passou pelas Canárias e em Cabo Verde, desembarcaram na ilha de Santiago, a 27 de Julho. “Ali fizeram aguada, repararam as velas e tomaram mantimentos (carne, água e lenha) para troço seguinte da viagem, porventura o mais decisivo para o êxito da expedição”. V. Serrão. Uma semana depois, saindo de Cabo Verde, a armada aproximou-se da Serra Leoa, para apanhar os ventos alísios adequados à navegação com naus. Aí se separou a caravela comandada por Bartolomeu Dias, que se dirigia a São Jorge da Mina, onde existia uma fortaleza e feitoria para comércio com as gentes da região.

O caminho marítimo para a Índia

A frota “seguiu, a 3 de Agosto, uma rota nunca antes praticada ou de que, a ter havido experiências anteriores, não chegaram quaisquer provas. (…), a armada tomou o caminho ainda hoje conhecido por , embrenhando-se por meio do Atlântico para evitar as correntes desfavoráveis do oceano. Três meses ficaram as quatro naus sem contacto com a terra, aproximando-se da costa brasileira e, descendo mais para o Sul, para tentar que os ventos do oeste as conduzissem à costa africana”. O almirante Gago Coutinho “definiu essa travessia como , o que punha a navegação portuguesa, prestes a abrirem-se as portas do século XVI, na vanguarda técnica da ciência naval.
O encontro com o litoral africano deu-se a 4 de Novembro, 120 dias passados sobre a partida do Tejo, quando Vasco da Gama ancorou na baía de Santa Helena, 30 léguas a norte do cabo da Boa Esperança. Ali fizeram a aguada e três semanas depois passavam, sem qualquer perigo, a ponta meridional da África. Dali seguiram para o rio de João Infante, limite da viagem que Bartolomeu Dias realizara um decénio antes. Mas já então escasseavam os mantimentos, começando alguns nautas a sofrer os efeitos do mal do escorbuto”, V. Serrão. Mas segundo Carlos Carrasco, “A 7 de Novembro alcançaram a baía de Santa Helena, já próximo do cabo, onde fundearam no dia seguinte. A 16 partiram e seis dias depois, após duas tentativas frustradas, passaram o cabo da Boa Esperança, fundeando na angra de S. Brás, onde destruíram o navio dos mantimentos, divididas que foram as suas reservas”.
Vasco da Gama só em 22 de Novembro de 1497 dobrou o Cabo de Boa Esperança e a 25 de Dezembro aportou no Sul da costa oriental africana tendo atribuído o nome de Natal àquela zona. Em 6 de Janeiro de 1498 descobriu Angra dos Reis e a 11 de Janeiro “a expedição ancorou no rio baptizado por Cobre, onde os nativos lhe fizeram tal acolhida que a terra passou a chamar-se da Boa Gente, que hoje corresponde a Inhambane. Onze dias depois chegavam ao rio dos Bons Sinais, mais tarde Quelimane, onde Vasco da Gama mandou colocar um padrão com o nome de São Rafael. A esquadra passou depois ao largo de Sofala e na quinta-feira 1 de Março avistou a terra e ilhas de Moçambique. O comandante esperava poder ali receber o apoio de um piloto para o ajudar na travessia do Índico. Mas os dois que foram indicados a Gama fugiram da armada no dia 7 de Abril, quando ela ancorou no porto de Mombaça. Também nesta cidade não se tornou possível obter a indispensável colaboração náutica, pois o piloto negro escolhido para o efeito concebeu o projecto de afundar a esquadra portuguesa”, segundo refere V. Serrão.
Chegados à Ilha de Moçambique a 2 de Março, atingiram Mombaça a 7 de Abril e Melinde a 13, ou no sábado 14. Nas primeiras duas cidades sofreram ciladas enquanto em Melinde foram bem recebidos. Segundo V. Serrão, o monarca de Melinde “foi ao ponto de colocar à disposição de Vasco da Gama o famoso Ibn-bem-Madjid, piloto árabe com larga experiência em rotas do oceano Índico. Era a estação oportuna para concluir a ligação com o Malabar, devido à monção de sudoeste que então se fazia sentir de apoio à navegação. O autor do Roteiro Antónimo esclarece: A travessia fez-se sem qualquer dificuldade, sempre com o vento à popa na direcção de sudoeste para nordeste. Tendo deixado Melinde a 24 de Abril, bastaram 23 dias de travessia para a frota, a 18 de Maio, avistar a terra da Índia”. Estava aberto o tão desejado caminho marítimo para a Índia, ligando-se pela Rota do Sul a Europa Ocidental com a Ásia.
A Calecut chegou Vasco da Gama a 20 de Maio de 1498, e foi inicialmente bem recebido pelo Samorim, a quem entregou as cartas do Rei de Portugal (D. Manuel I). Porém, este, influenciado pelos rumes (turcos), mudou de comportamento e começou a hostilizar os portugueses. Gama, não tendo meios militares para ripostar, levantou ferro a 29 de Agosto, ergueu depois um padrão entre Banacor e Baticala, fundeou em Angediva e a 15 de Outubro rumou para Lisboa. “Com dificuldades na travessia do Índico e durante a qual a nau S. Rafael (que teria sofrido um rombo) teve de ser destruída em Mombaça, . Já em Cabo Verde, Vasco da Gama, tendo o irmão doente, fretou uma caravela com que chegou aos Açores, falecendo Paulo da Gama na Ilha Terceira”, Carlos Carrasco.
Para transmitir a boa nova do caminho marítimo, Vasco da Gama enviara à frente a Bérrio sob o comando de Nicolau Coelho, que chegou a 9 de Julho de 1499. Amargurado com a morte do irmão e após o ter sepultado naquela ilha, Vasco da Gama partiu a 29 daquele mês e chegou a Lisboa a 18 Setembro, tendo sido recebido solenemente com as maiores honras e toda a pompa pelo Rei D. Manuel e sua corte, para o cumular de honras e benefícios.
“O carregamento de especiarias cobriu largamente os custos da expedição. Tinha-se aberto para a coroa portuguesa a época do monopólio do comércio oriental”, segundo Veríssimo Serrão e Oliveira Marques complementa, “Na primeira expedição de Vasco da Gama à Índia, em 1497-1499, morreram 63 % dos tripulantes: de 148 só voltaram 55”.
No Restelo, de onde Vasco de Gama partiu, ficou a assinalar o evento o Mosteiro dos Jerónimos mandado construir pelo rei em honra de Nossa Senhora de Belém.

8 Jul 2016