Exercícios de éter e anestesia

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]otas e murmúrios de meio dia, meio noite. Meio de uma coisa e de outra. O que se é. Ser-se o que se é. Como uma receita. Claras em castelo bem firme e uma pitadinha de sal que se diz quanto baste. Quanto bastasse de leveza e peso medido. De brilho ou absorção de toda a luz. Um vidro translúcido, um cristal transparente e puro a transtornar a luz em cores, um veludo negro sem retorno. Da luz. E ser sólido e permeável. Transparente e velado. Arriscado e temente.
E recobrir a realidade de coisas leves e etéreas. Vivas e serenas mas finas como velaturas de Leonardo. O mesmo que dissecava cadáveres. Para entender. Estas a revelar subtilmente e por sobreposição os volumes de forma suave. Aquelas, simplesmente, a afastar a nitidez excessiva. Que cega. A dor. Envolta numa poalha fina. Como partículas de luz. Ou palavras delicadas, uma música baixa. O marulhar de águas.
Quanto de tumulto irreprimível se pode encerrar num silêncio. Quanto de emoção indómita se esconde na pele. Quanto de caos e angústia se desprendem para dentro como de um manto de conforto e equilíbrio. A pele. Essa camada-organismo vivo, reactiva, bela ou feia, lassa ou triunfante de densidade e brilho. Que respira inaudível, que se arrepia e cora. Que encerra o mundo sob a esfinge. A serenidade de um invólucro, a reter uma amálgama que se deve proteger da dispersão, da corrosão do olhar. A pele a conter, a suportar na sua elasticidade, a camuflar fenómenos alterosos que se sucedem como vagas em maré viva. Perigosos. Violentos dentro e fora.
Há dias em que cada minuto é de uma urgência, uma inquietação uma incompletude. Certos dias de incerteza, é talvez o esquecimento com quem acordo. Fico ai interdita a olhá-lo, a querer ver mais nítido. A ver qual deles. Dos esquecimentos. Ali ao lado da cama. Do lado que não sei. O lado sem fundo em que me sento todos os dias antes de poisar os pés. E aqueles dias em que para baixo é o precipício sem se lhe ver o fim. E não lhe vejo os olhos. E do outro esquecimento, a mesma ausência o mesmo recorte o mesmo vulto denso imatérico e inacessível e em torno o espaço. O de sempre. De que não vejo os olhos. E aos pés da cama, talvez o anjo, o de sempre, também, sentado e pesado com as suas asas negras aveludadas, assimétricas, desleixadas. É ali que um rasgo da luz já matinal lhe fere um ombro e de caminho uma asa. É por isso, mas também que a ferida lhe vem de dentro. A eterna fractura da queda. A intemporal mágoa da fuga. O incomportável peso de culpa. A inalcançável imperfeição que o esconde. As asas mal fechadas na esperança do voo. A quem não vejo os olhos. O voo. Os dias de certeza do não querer acordar e saber que há-de ser. O que há-de ser. Adiado pelo lençol branco puxado à força para cima dos olhos fechados, Fechados com força para não ver a obscuridade, a vencida obscuridade a criar a agitação do dia, da alma a precisar de mais sono. E mais atrás na obscuridade restante ainda o que mais não sei e o que mais gosto. Dois num. O primeiro, o segundo. A haver ouro será dito no final. Esse que não me vê e de que me escondo para que não se veja nos outros ali. Que não vejo ver que uns aos outros. Não ser o esquecimento conteúdo. Uma outra coisa. O esquecimento como forma e não como sentido. Uma capa de imaterialidade. Leve e sem indiferença. Como invólucro do estar. Exercícios de anestesia. Ou abusar genericamente da química do cérebro. Às vezes, simplesmente esticar um tempo em que sem saber porquê para além da química, de facto, sinto que este nada de especial faz sentido em si e assim. Por medo de outro tempo em que muito mais faça muito menos sentido. E me atropele tudo o que não quero ver. Não quero ver. Não quero ver.
Dizia o peso do mundo. Sobre os ombros. E querer acelerar o passo a aliviar, a trocar as voltas e o equilíbrio do peso. Do mundo. Sobre os ombros doridos. As coisas e as coisas pequenas. Inerências gravitacionais. Pequenas poeiras em torno. Ínfimas e monstruosas em círculos. Sempre os círculos viciosos. Padrões. Cansada, sonhava com padrões. Cores e formas a suceder-se. Alucinogénias. As substâncias destiladas na alma. Aquele tempo indefinido de vigília já desamparada no sono. E as folhas desfolhadas sem descanso sobre as pálpebras já fechadas. Ou já dormidas mas entreabertas por força de uma confusão qualquer. Muscular.
O cansaço de padrões. Como azulejos. Mas não estes. Rosto da cidade. Onde as águas escorregam difíceis de entrar. Sempre lavados de fresco como um sorriso novo, e os brilhos entre as flores estilizadas, mesmo envelhecidas, por partes. O brilho rico e eterno aqui e ali a confundir o desgaste de uma pétala, uma voluta ou um trevo. Qualquer coisa de resiliente e feroz mesmo nos mais castigados. Feroz mas de alegria pura. E luz. E unidade. De longe não há imperfeição que destrua a ideia do todo. Naqueles mesmo, que o tempo começou a limar o vidro o contorno ou o desenho, e em que o fez com a arte do padrão, aqui e ali, numa alternância que configura o novo todo.
Murmúrios. Lamentos alongados no espaço invisível e imensurado. Há uma poética nessas queixas não transparecidas, não limadas, não domesticadas. Que escolhem o lugar. Muros de encostar a fronte. E de lamentações. De tocar com as mãos. Muros vastos de compreensão muda. Pedras de tocar, gastas do fervor e tantos gestos. Tantas preces concentradas no tacto. Na fé, no desamparo de algo, de alguém, do mundo ou de ser simplesmente. E o ouvido. Um ouvido na pedra. O segredo. As palavras não ditas. Rústicas como preciosidades em bruto. Atiradas para um além que nem sempre é o mesmo ou mais do que o que transcende. Corpo e espaço confinado. De ser em si e extravasar. O necessário e escatológico reclamar, carpir, vociferar sem culpa nem perdão. A parte sombria que falta em todas as luzes. Que acentua a clareza com que a luz recorta as formas os sentidos, os volumes, e preenche os espaços em branco desse território árido da ilegibilidade. Do que se diz, deve ter-se sempre a noção da insuficiência das palavras que são falíveis e inválidas se esgotadas de sentir. De sensações que as tornem rotundas esponjas de onde se poderá beber uma realidade desocultada. Por pequenina que seja. Restos de uma saliva tanto mais doce quanto não é imposta. Um beijo não deve ser dado e recebido mas uma etapa qualquer entre duas apetências. Como um lamento.
Sempre uma pequena ou grande loucura possível – um pequeníssimo elogio da loucura, um vector centrípeto, e sair do círculo vicioso. Da auto-piedade. Um gesto leve ou incisivo. Como um sacudir de mão sem desdém. Aquele gesto forte do flamenco. Desses pequenos ou grandes gestos, há-os destrutivos, mas há também os outros. E o segredo, na generosidade que se vira para si próprio como para os outros. O que se quer, e a coragem de sair dos territórios confortáveis, assumir a nulidade, descomplicar e desembrulhar cada momento como fosse anterior à grande batalha, e a batalha de cumprir a vontade sem preguiça, um desafio que se conhece de frente sem substituir pelo comprazimento na impotência. Dançar algo ou alguém, como desenhar. Dançar no corpo contra a paralisia da mágoa. Sem a piedade de si.
Antes gostar e não gostar. Que se nos atrapalhe a postura dos ombros com peso a mais do que o que ali cabe. Gostar ou não gostar. Mas não a pena. Da piedade. E já agora a espada. Ou flores. Flores em vez daquelas palavras difíceis que nos caem dos pensamentos irreprimíveis, imparáveis, e é bom que não acertem em nenhuma folha. Antes, que se entranhem na terra – e aí, fermentando sirvam de adubo – onde pertencem estar as matérias escatológicas. Estranha duplicidade que abarca, destino, última ressurreição, fim do homem ou do mundo, e o fim do processo digestivo. Tudo coisas que não quero saber. Que as palavras, como um êmbolo, premindo bem fundo, incisivas ou veementes, injectam todas as dimensões do sentir, do pensar. Mas como o êmbolo de uma seringa, quando injectam ar, esse ar – vital, no entanto – matam. Poderosas e cirúrgicas como bisturis. Mas aí prefiro a espada, o florete. Duelos antigos combinados e justos. Corpos no espaço e que ganhe o melhor. Como se a vida fosse uma competição. De capa e espada. Mas antes o manto de uma certa leveza. Da fantasia. Do esquecimento. Aquele.
Ainda o ar, vital. O éter, anestésico. Essa substância que filósofos, naturalistas e depois os físicos, acreditavam habitar todo o universo. Sem massa, volume. Indetectável e sem atrito. O caminho da luz. Volactil e conhecida dos alquimistas. Tão conhecida como inexistente. Mas na mitologia personifica o conceito de céu superior. O céu sem limites ou o ar elevado, puro e brilhante respirado pelos deuses. Oposto ao obscuro inalado por seres mortais. De um matrimónio nascem terra, céu e mar e de outro, dor, engano, fúria, altercação, luto, mentira, punição, esquecimento, medo e vários outros filhos de mau feitio. Mas a genealogia é contraditória mesmo nos deuses. Tanto são filhos como pais, como uma reciprocidade ambivalente e comum entre causas e efeitos.
É a esse éter que aspiro respirar quando a escuridão e o peso me pesam. Esse éter que do grego significa queimar e tornar escuro como o breu da fuligem. Ou fazer luzir. A luz que queima. Iluminar até à incandescência. E ceifar dores da consciência e, da matéria já do fumo, deixá-las subir e evolar-se. Num território aéreo e longínquo. Leve e fluido. É a inviolável solidão não da matéria mas do etéreo. Do tudo tornado o nada invisível. E diz a Química: éter e ar misturados, um potencial explosivo. Misturas complexas. Como tudo na vida. Mesmo sob um manto leve e etéreo.
É isso. Exercícios de éter e anestesia.
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