Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 25 – O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Estou tão confusa. Não sei se a minha última carta chegou até ti. Sinto-me como um deserto ressequido. Olha para mim com este homem e vajo que nunca houve amor. Hoje voltou a deixar-me aqui presa no quarto. Enquanto procurava algo com que pudesse abrir a porta encontrei uma foto dele quando era jovem com esta outra mulher. É impressionante o quanto ela se parece comigo. Nas costas da foto estas palavras: “Para sempre tua baobei, Xiaolian”. E uma data: 1 de Setembro de 2016. Porque continua ele a guardar esta foto passado tanto tempo? Ele sempre me disse que nunca tinha tido ninguém na vida dele. Nenhuma relação séria. “Para sempre tua” parece-me suficientemente sério não achas? Será possível que este homem tenha alguma vez sido bom? Tenha tido bondade dentro dele? Ele não existe aqui, comigo. Não existe. É uma carne que não existe . é uma alma que não existe mas esta foto que encontrei hoje mostra-o feliz. Com um sorriso e uma aura que nunca vi nele. Será que ele alguma vez foi feliz? Que terá acontecido? Não seria tão bom que ele tivesse sido feliz com ela? Esta tal Xiaolian. Nao sei. Talvez os nossos destinos se tivessem cruzado mais cedo. Talvez. Ou talvez não. Talvez seja este o nosso destino. Tu aí, meu querido Chaoxiong, e eu aqui presa num quarto no meio do Japão. Sinto que começo a dar de mim. A não entender os meus processos mentais. Mas não te preocupes. Esta minha descoberta e eu estar a falar-te sobre ela não tem nada a ver com ciúmes. Não tenho ciúmes por ele. Odeio-o. Sinto que depois de passar uma certa idade a vida torna-se num processo de perda contínua. As coisas realmente importantes começam a desaparecer. Escapam-se. E as coisas que ocupam o seu lugar são imitações inúteis. Estou sem força física. A esperança. O que é a esperança? O que é a fé? O que são os sonhos? Os ideais? As convicções? O que significam quando já ase perdeu tudo? De que vale o amor? De que vale o amor se não pode ser cumprido? As pessoas que amamos a desaparecer uma após outra. Uns de forma anunciada e outras sem aviso. Simplesmente a desaparecer. E uma vez que as pessoas desaparecem nunca mais voltam. E tentamos encontrar substitutos. Será que é isso que eu sou para ele? Uma substitua da Xiaolian?

Imagina. Apenas flocos de neve solitários a marcar o começo de um inverno que não acaba. Ao fundo existe um templo. Oiço o badalar dos sinos. Oiço os monges. Todas as manhãs oiço os monges e as suas orações. Oiço os seus passos quando caminham à volta nos seus trajectos de meditação. Sinto estes sons em crescendo. A cada manhã tornam-se mais fortes. Mais profundos. E sinto as reverberações remanescentes. Sinto o fluxo do tempo. E após os sinos do templo do norte aparecem os sinos do templo do sul. Tantos templos e ninguém sabe que eu estou aqui presa. E os quimonos que comprei especialmente para tu mos despires. Será que alguma vez os vais ver? Desculpa-me se estou emocionada. Se me sinto perdida. Gostava de estar contigo. De não me estar a atormentar com esta dor de não saber o que vai realmente acontecer. De não me atormentar por esta tristeza. Por este arrependimento de não ter ido ter contigo e fugir em vez de me ter deixado levar por um sentimento qualquer de que tinha que lhe dizer que estava tudo acabado. Olha agora como eu estou. De que me valeu ter tentado fazer a coisa certa? Os sinos ecoam no meu coração. Mas por quanto tempo?

Odeio este mundo. Odeio esta angústia. Esta inquietação de hoje e tu sempre tão longe de mim. Gostava de ouvir a tua voz. Os teus sussurros quando me dizes que me amas. Por que será que me dói tanto ter descoberto que existiu outra mulher que ele nunca me disse. Que se calhar ainda existe. Ou que pelo menos existe dentro do coração dele. Porque razão guardaria ele a foto se ela não estivesse ainda presente no seu coração? Nunca deveria ter confiado nele. Deveria ter acabado com tudo mais cedo. E mais cedo valorizar o meu tempo contigo meu amor. E este vácuo dentro de mim que não é indolor. Porque existe maldade? Infortúnio? Sofrimento? Destino? Será este o nosso destino? Será este o meu destino? E este vazio. Este nada. Este nada de nada. Esta manhã esteve uma névoa espessa. Muito acima da neblina, nuvens brancas banhadas em uma luz brilhante que parecia irradiar-se da terra. A luz do sol, com raios oblíquos, conseguiu fazer descobrir a montanha em frente. Uma montanha coberta de pinheiros. Mais perto da janela uma moita de bambu com folhas amareladas. O nascer do sol foi roxo. Incomum. Uma suavidade no roxo cheio de graduações subtis. E a neblina ficou rosa por momentos. Isto poderia ser o lugar perfeito para nós. Eu poderia pintar. E até poderia pintar em papel de arroz. E arrastar os pinceis por entre carmins e por entre curvas na distância de nós. Porque estão as pessoas todas trocadas umas com as outras?

1 Set 2016

Chauvinismo e um poema “我是武则天。”

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Matou a irmã, chacinou os irmãos, assassinou o regente e envenenou a mãe. O choque provocou a morte do próprio filho,” assim relata o cronista.
Wu Zetian 武则天, a única mulher que ascendeu a Imperador da China, teria sido injustamente acusada destes crimes? Para ser breve, a resposta é, sim! E porquê? Porque a História oficial é escrita por homens. Depois da sua morte, o Imperador que lhe sucedeu organizou a uma campanha de difamação para lhe destruir a imagem. É possível que entre todas as mulheres que já dirigiram Nações, ela tenha sido a mais controversa e a mais poderosa, no entanto, o seu carácter e a sua obra permanecem obscuros, sob camadas e camadas de olvido. Na China do séc. VII e, depois de 3.000 anos de História, esta mulher tornou-se a única a governar o Império por direito próprio.
Senhora de excepcional sabedoria e de enorme talento Wu não foi uma heroína complicada. Corajosa e confiante, implacável e decidida, estabilizou e consolidou a dinastia Tang numa altura em que evidenciava sinais de decadência – um feito notável, já que o período Tang é considerado a Era de Ouro da civilização chinesa. Viria a atingir os seus objectivos de forma legítima, mas também com jogos de enganos e intriga palaciana. Seja como for, obteve resultados políticos e diplomáticos surpreendentes e a China alcançou mais poder em termos globais. Budista devota, optou por sistemas de governação mais liberais e benevolentes, rodeou-se de pessoas talentosas, promoveu o desenvolvimento da economia e sabia responder a críticas e vozes dissidentes de forma positiva. Durante o seu reinado a estabilidade social e o desenvolvimento económico criaram condições para lançar os alicerces do que viria a ser conhecido por “Era do Florescimento Kaiyuan”, nos finais da dinastia Tang. Durante este período as mulheres gozaram de uma independência nunca antes vista e, na capital, participavam em exames estatais, montavam a cavalo e usavam roupas masculinas. Li Po, o grande poeta da Dinastia Tang, considerou-a um dos “Setes Sábios” da época, possivelmente devido a sua acção a favor da Imprensa, o que foi muito benéfico para a divulgação da poesia. Wu também deu início à diplomacia dos Pandas, oferta de pandas gigantes a dignatários estrangeiros, ainda hoje adoptada pelos os dirigentes comunistas.
Este foi o lado político desta mulher. Mas como é que ela (ou qualquer outro dirigente chinês do passado) exercia o poder? Uma coisa sabemos, antigamente qualquer chinês culto era também um poeta. Wu não foi excepção. Vejamos um excerto da sua escrita.

Amanhã vou visitar o Parque Shanglin,
e, num repente, hei-de intimar a Primavera:
os botões devem florescer de madrugada,
Não esperem que sopre o vento da manhã!

O poema tem um tom quase controverso. A Imperador Wu fala sobre as suas plantas durante um passeio pelo parque. Tem uma métrica irregular e não rima, o que evidencia a sua natureza informal. Contrasta claramente com o estilo inicial em que preferia uma forma mais regular e mais rígida.
Dizia-se que gostava de criar mitos sobre a sua pessoa e que os usava para manipular a opinião pública. A imagética a que recorre quando intima a Primavera é semelhante à hipérbole mítica de uma rapsódia. É possível que tenha usado este poema para mostrar que o seu poder não se limitava ao mundo dos humanos, mas que se estendia à Natureza. Pelo tom informal do poema, patenteia a uma suprema confiança no seu poder, implicando que possui poderes vedados aos simples mortais. A posição que sempre tomou em defesa do Budismo, e o uso que fez da a religião para justificar posições políticas, podem indicar que este poema se destinava a reforçar a sua reputação de líder divina.
Todos estes séculos após a sua morte, a pedra tumular erigida em seu nome parece dizer-nos: Não faz mal que julguem e demonizem esta mulher, sei que o vão fazer.

31 Ago 2016

A misericórdia da solidão

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascido em Lisboa, em 1972, Rui Almeida tem seis livros de poesia editados e muitos poemas ainda inéditos. Lábio Cortado (Livrododia, Torres Vedras, 2009), Caderno de Milfontes (volta d’mar, Nazaré, 2011), Leis da Separação (Medula, Coimbra, 2013), Temor Único Imenso (Labirinto, Fafe, 2014), A solidão como um sentido, seguido de Desespero (Lua de Marfim, Lisboa, 2016) e Muito, Menos (Companhia das Ilhas, 2016). Rui Almeida é um poeta pessimista. Não no sentido de pensar que o mundo vai piorar, mas no sentido de ter a consciência de que tudo é já o pior, porque tudo é uma construção humana, tudo é o humano: “Perdes sempre /
Quando vives. Perdes tudo
/ O que nunca foi teu. És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Este tom, de um poema inédito de Almeida, é o leitmotiv da sua poesia, se não da sua vida, que importa tanto aqui como a última camada de electrões do átomo de Bório.
Entramos na poesia de Rui Almeida como se entrássemos na cabeça de um Diógenes de Sinope (o Cínico) radical. Se Diógenes percorria as ruas da antiga Atenas durante o dia, com uma candeia acesa, a ver se encontrava um homem honesto, Rui Almeida percorre as páginas dos seus livros em busca daquilo que mostre de uma vez por todas que o humano não presta, que o humano não vale a tinta que o descreve. Não se sabe se escreve para provar que está errado, se para nos mostrar que está certo, já que muitos dos pessimistas são optimistas falhados, optimistas que não deram certo. Mas o que sabemos, com certeza, a certeza que é possível ter através das palavras, é que ele busca incessantemente em seus poemas a origem do mal humano, aquilo que faz ou fez com que a vida seja um contínuo desespero, uma contínua injustiça. E a poesia torna-se tão mais pujante, mais forte, quanto o poeta se furta a efeitos retóricos de descrições inúteis, porque redundantes, e remete-se ao essencial. De facto, há nestes poemas, concomitantemente, uma aproximação ao pensamento filosófico e um afastamento do mundano e do quotidiano. Como se nos dissesse: falar de uma taberna, de uma paragem de autocarro ou das árvores de um jardim não passa de redundâncias para enunciar o vazio; o vazio não precisa de nada para ser enunciado. E essa é que é a dificuldade, que parece ter sido ultrapassada ou contornada por Rui Almeida: “És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Nada há senão perder. Para quê então enunciados que, para o poeta, parecem não passar de máscaras carnavalescas do vazio e não do vazio ele mesmo, ou tão-somente do mais próximo que podemos chegar-lhe com palavras? Almeida já o havia escrito em A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “E sempre o desespero, / (…) A criar atrito e dor. / Sem nome a dor, sem Limite amparado // Por uma linguagem.” Descrições em poemas são, para Almeida, adivinha-se nos seus versos, rodas auxiliares para bicicletas. Mas, e também se suspeita, não como forma de aprendizagem, mas como forma de nos proteger da realidade, criando uma paisagem, campestre ou urbana, que serve de amortecedor ou de entretenimento para o que realmente acontece no humano. Mesmo quando há descrições nos seus poemas, não são verdadeiras descrições, mas abstractos, como no exemplo destes versos de Temor Único Imenso, à página 8:

Diante das aves caem migalhas,
Silenciosos pedaços do mundo,

A prometer sustento. Para as aves,
Fazem parte da existência, do
Convívio com tudo o que existe sempre.

Com as migalhas que caem, as aves
Se alimentam, se divertem, se lembram
Que são aves pequenas, que a queda
É apenas o assombro de ser
Não mais do que ave e ave pequena.

Aves, aqui, é tão abstracto como dizer pedra ou chão ou céu ou mar. Mar, aliás, que é palavra recorrente nos poemas de Almeida e, a maioria das vezes, uma pedra tão abstracta como ave. E tudo vai sempre dar ao nada, ao vazio, ao não se ser, como neste poema, também inédito:

“Voltam o silêncio e o deserto,
Palavras frequentes, demasiado
Frequentes, comuns como sobras
De dias passados, o sabor gasto
Na boca sem saber que dizer.
Silêncio e deserto, apenas palavras,
Apenas a desilusão de uma outra vida,
Limite incerto, viragem súbita
Para fazer algo mais, para alcançar
O inesperado. Outra coisa, nada.”

E à página 28 do mesmo livro, escreve: “Cinco aves pousam nos ramos nus /
De uma árvore no inverno. Pousam / Devagar trazendo o sopro, trazendo /
A distância dos lugares de onde chegam.” Aves e árvores (mais um abstracto) são instrumentos para dizer distância e nada. Lugares de onde chegam e ramos nus de uma árvore no inverno, nós nos afastando de nós mesmos, nos deixando por todos os lugares em fomos até à árvore nua no inverno, que não passa da sorte que nos espera. Sente-se, na poesia de Rui Almeida, metafísica e abstracta, no uso da linguagem, que a existência não nos serve, está-nos apertada, precisávamos de um número acima. E muito provavelmente aquilo que mais choca a nossa sensibilidade – pois como escreveu Miguel de Unamuno, “não se é pessimista por ler livros pessimistas, é por se ser pessimista que se lê livros pessimistas” – encontra-se no início do primeiro poema aqui citado: “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste.” Nestes dois versos, que iniciam o poema, vemos aqueles velhos nos bancos do jardim, junto a nossa casa, ou no caminho par ao trabalho, a seguirem com os olhares as pernas magras e belas da rapariga, que os calções curtos deixam ver ao passar. E, de repente, dói-lhes algo não se sabe onde; dói-lhes a vida perdida, não se sabe onde; dói-lhes o futuro que não volta. Nunca voltarão a ter o que viram. Porque aquilo que agora vêem, as belas pernas da rapariga a passar, não estão realmente a ver; não é a ver, é o visto. Aquelas pernas que passam são o já visto, muito tempo lá atrás, e não o a ver, aqui e agora. Através dos versos ficamos a sentir que o que dói aos velhos, que vêm passar a beleza, não é não a ter, mas não se terem a eles mesmos. “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste” explode como sentença fúnebre, macabra, aterradora. Como se fosse o eco de um verso de um poema de A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “A saudade de nunca teres existido.” Nunca existimos, não porque o que desaparece não existe, mas porque o que foi já não é. Ter existido é uma aberração do existir; e o próprio existir só existe na confrontação com a consciência de ter existido. Esta aporia existencial continua ainda no mesmo livro, à página 11: “Lado a lado, a solidão / E a memória queimada / Da infância. Falhas / Na superfície lisa do tempo.” Lado a lado, podemos dizer, a existência e o ter existido. A identificação da existência com solidão não tem carga ética, mas ontológica. E por isso mesmo passível de nos ajudar a carregar o nosso ter existido ao longo do tempo, como neste verso de Lábio Cortado: “– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.” E veja-se neste “respirar”, para além do concreto que é no verso, o abstracto que também não deixa de ser: aquilo que só a cada um de nós nos diz respeito, que só a cada um de nós pode interessar e que só cada um de nós pode resolver.; ninguém pode respirar por nós. A solidão não é um castigo, é a misericórdia que nos é permitida. Estamos diante de uma poesia, toda ela ainda por descobrir, porque recente, eivada de metafísica, de abstracto – que aqui nesta poesia é o concreto sem entretenimento – e um convite a mergulhar na solidão. Porque no fundo somos todos abstractos uns dos outros como as aves das árvores, como a morte, como o Outono, como nestes versos com que o poeta inicia o livro Temor Único Imenso: “Eram de novo as aves e morriam / Doutras armas porém do mesmo modo / Eram de novo e era Outono”. Tudo será sempre da mesma maneira, a morte, as aves, as árvores, os humanos com suas armas, que só diferem na forma como matam, mas não no matar. A redundância da descrição fica completamente às claras nestes versos agora citados, principalmente no primeiro verso do livro: “Eram de novo as aves e morriam”. Para os leitores frequentadores da filosofia contemporânea, já há muito que se coçam de Wittgenstein. E, sem dúvida, estamos perante uma poesia de braços abertos ao solipsismo, que não pretende construir pontes ou descobrir ligações entre um humano e um outro. Uma poética, quase toda ela – com excepção de Caderno de Milfontes – a fazer ver as sombras. A fazer ver que os outros são sombras de nós, que nós somos sombras de nós, quando com os outros, a fazer ver que nós somos sombras de nós mesmos quando sozinhos, embora sem chão ou sem parede para a sombra caminhar. Rui Almeida jamais poderia dizer, como Rimbaud, “Je suis un autre”, pois para Almeida “eu” ou “outro” são o mesmo abstracto que não nos levam ao respirar, à solidão misericordiosa e pessoal. Termine-se, com o poema que abre o livro Lábio Cortado:

“Suave, devastadora, a sombra deste tempo
De pernas dormentes por não caminharem.
Esta coisa de estar parado a assistir a nada,
Consciente da cor de cada objecto à minha frente
Enquanto a visibilidade se fecha dentro de um candeeiro.

Não são crianças que oiço, nem pássaros,
São os pés de quem sabe andar e se desloca,
É o riso de quem reage à sedução e ao modo do desejo.
O peito está vazio e abandonei-o
– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.

Penso até à exaustão naquilo que podia ter sido.
Demasiado cedo me reconheci como vivente,
Como servo do movimento e das funções vitais.
Não renego a força que em mim surge
Nem me permito a queda na tentação da morte.

Os braços são pequenos demais para a coragem,
Isso que nem sei que seja ou de que me valha.
O roubo é uma solução como outra qualquer
Para viabilizar a vontade ou o impulso do gesto.
O risco é projectar a voz para além do mar;

Para além de tudo o que de imenso se estende
Diante de um homem que tem olhos perdidos.
Como se perde a distância? – é esta a pergunta
Sussurrada no momento em que se desiste
E da qual nasce a sede que permite a resposta.

É no candeeiro que extingo o excesso do pensamento;
Não reconheço à luz os efeitos salvíficos
A que a aparência poderia levar-me.
Prefiro o vazio sistemático da brancura
Diluído no ar que me envolve e que respiro.”

30 Ago 2016

Todo o Atlântico

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Atlântico é como uma estrada de Atlas: ele corta continentes e nele sempre o mesmo verde-mar, o mesmo drama, a mesma costa agreste. Ele paira-nos como aqueles ventos que se cruzam em grito, nos sussurra e nos fala e toda a paisagem contínua como selva atlântica até às densas brumas. É em muitas costas de um profundo silêncio e grandeza agrestes. Sem a tranquila noção de um útero como o Mar Mediterrânico, o Atlântico abre para o mundo como uma boca indivisa e um lúgubre tormento de marear, voltado a norte. Temos medo, ele arranca-nos o sono com o ruído da sua proximidade de uma grandeza que cilindra a paz dos seres. Penso que ninguém é feliz junto a ele. As mulheres sofrem muitas vezes da função hirsuta que lhes chega do denso iodo e as transformam em Medusas desfiguradas e de dura cerviz. Os homens secam as carnes num sal que destempera toda a pele, que têm como um lenho, e estas povoações, peninsulares, albergam fantasmas e não são susceptíveis de maciez.

Para sul ele torna-se mais macio, mais doce, menos vulcânico, talvez, e sem dúvida por isso lhe estão associados os mais alegres efeitos e quase a rumar para África fiquem para trás as densas manifestações do seu corpo de gesso, da sua imensa transfiguração como Ventre da Baleia. Por isso gostamos de rumar para o sul de todos os sóis, para lhe fugirmos onde ele está mais sombrio. Bafejado pelas correntes do Golfo, ele torna-se um Mar, mas um mar onde já os Cânticos se podem ouvir sem a urdidura da gemida força da sua massa poderosa. O calor produz um reconfortante silêncio das funduras e talvez os vulcões sejam mesmo inaudíveis e por isso nos fascinem com tanta coisa que se vê em cintilação sem nos dizer dele mais nada. Entre a lava e o levante das ondas atlânticas este efeito talvez não nos atemorize tanto.

Por vezes levam-nos os sonhos até ao mar cobalto, fundo azul-redondos fundos até aos encantos onde os deuses moram, vagueamos pela secura da costa com aquelas árvores que quase lhes mergulham dentro, toda a beleza da fronteira entre terra e céu e água nos parece uma dança, esse líquido que tem dentro as sereias que enlouquecem Ulisses, expulsam Orpheu, e à sua entrada tange a lira, pois é ainda o sonho líquido que dele ficou. — Mas o Atlântico é um soberbo corredor de monstros marinhos, tão imenso como a Via Láctea e jazendo de pujança fria a nossos pés.

Talvez que a natureza de cada um de nós já não tenha um mapa anexo nos destinos a percorrer na viagem terrena mas, em todo o caso, não era este o implante que gostava de ter tido. Ainda agora, toda esta costa me ofende e perturba como um choro de harpias por detrás do verde azul — há todos os mortos e toda a força de um volume que há-de, em tempo impreciso, galgar a descarnada costa e suas audazes valentias de chamar a tais margens, terra; são chãos colossais e arenosos, mas não são ainda terra.

Hoje, 24 de Agosto, há uma prática lusíada que equivale a um Jordão, mas as crianças não gostam das águas do oceano daqui e mergulhadas em ondas em números ímpares, depois de rondarem a vila de Bartolomeu do Mar, são atiradas ao denso e fundo escuro deste instante. Diz-se que lhes faz bem: lhes tira gaguez, cegueira, epilepsias, talvez sim, porque antes sacrificam uma galinha negra que também será atirada ao mar. Todo o terror quando superado vence o mal que lhe estava subjacente. Penso que não haja memória de um Jordão assim, nem das águas de Lesbos estarem tão revoltas que as belas não fizessem delas os seus espelhos. Narciso precisou de uma suavidade translúcida e parada para contemplar tão forte

emoção: ser aquele por quem os elementos se apaixonavam. Os elementos por vezes reúnem-se para uma grande declaração de amor, assim como os sentidos todos concordarem na corrida para um encaixe perfeito entre partes. Chama-se a isso talvez Amor, mas é certamente um sistema de simpatias que de tão harmónicas formam o Encontro. Nestas paragens oceânicas tudo se perde…

Entre o pinhal de Leiria e a costa oeste há uma desassossegada vibração que nos domina, aquele mar deveria ter entrado sem impedimento, nós devíamos não ter sustentado a costa e com ela ter deitado ao mar os últimos habitantes de uma orla tão primitiva quanto os dinossauros. Mas há reis, que sendo poetas, são mais que reis: são missões no altar dos tempos e talvez soubesse dos bens merecidos destas vertentes e daquele de que viria a restar como matéria prima e que lhe falou mais alto que todos os apelos de erosão. Passar rente a tudo isto não é fácil, olhar o Atlântico altivo e fero faz-nos uma angústia de morte e nem sempre estamos destituídos de memórias antigas, que nos levam ao colo pela infância onde tanto horror nos parecia paradoxalmente… belo. É a saudade que ficou de frutos silvestres como camarinhas, de tudo o que é ácido e amargo, para sarar as feridas onde o sal penetrou tão fundo que deixamos de chorar e percorremos estes locais como a mulher de Ló- Alfeizerão, o pão é dele — Estranhos topónimos, nomes, tipografias… Sodoma ainda é longe de Nazaré e nada mais seca e disseca que o peixe aberto e assado ao sol das ondas. Quando por artes de navegação aqueles povos semitas se deram conta destas costas agrestes, eles, que vinham segundo Homero do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico, tendo depois florescido no belo Mediterrâneo, não andaram mais e na Finisterra de todos os ocasos marítimos assim se foram tornando sombras. Os rios ficam entre sonhos e entre rotas-Jordão, Litani, Tigre, Eufrates… os nossos ficam entre sombras, Tejo, Douro, Mondego… Litani! Foi nas suas margens que a escrita das antigas litanias floresceram e em Biblos se fundou a fina pasta para comer o Livro: Ezequiel 1- come este Livro…! 2- Então abri a boca, e ele me deu o rolo para comer.

«Engole o Atlântico» e vi um Ser surgido das estrelas que engoliu de um trago o mar tamanho e dele também levou as nuvens que são nesta costa fria e dura, as eternas neblinas matinais.

Este Oceano não gosta de suicidas, mesmo sendo assim, devolve-os às margens, e deixa-os sem a dignidade de uma sepultura no seu ventre, as mulheres de cabeça para baixo e os homens invariavelmente de cabeça para cima. Só naqueles barcos que não eram feito de madeiras do Líbano mas de juncos e carvalhos, se deleitava com os náufragos que ele mesmo fazia descer às suas funduras.

Tem miragens dignas dos maiores poetas em visões cegas de antanho quando, ao largo nas noites perto do Solstício do Verão, levantavam blocos de Ilhas, e ao longe pareciam douradas… Pessoa nem delas se esquecera num ramo insular e lhes deixou de prestar o belo culto: “não sei se é sonho se realidade se uma mistura de sonho e vida aquela terra de suavidade que da orla esquerda do sul se olvida… É a que ansiamos. Não é com Ilhas de fim do mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração… É em nós que é tudo! Aí, aí, meu ser é jovem e o amor sorri”. Ao largo atlântico de uma Ilha que esperamos ver um dia.

26 Ago 2016

De Saturno a Marte

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m instante-luz, ínfimo. O logo ali, na curva imensa do espaço. Do tempo até nós é a guerra. Todas as guerras em que o tempo é voragem e nós nele, consumidos. Interrogação de um diário. E ver. Onde e se ali aparece a ferida aberta. A entrada da desarrumação que tomou parte-lugar e não se decide a ficar nem partir. Um indício que remonte ao dantes e faça luz incidir no depois estranho destes dias. A luz medida. A palpar a escrita cuidadosa e cuidada em segredo. Como se não fosse. É assim a preocupação de um escrito, com a surpresa eventual, inoportuna, do olhar. Não é para haver, mas todo o cuidado e espuma perfumada como se fosse. Em vida. Ou depois. Onde vai o tempo. Na ordem certa das páginas e dos dias. Dos gestos e das palavras indeléveis. Fixadas pela matéria prosaica do papel e da tinta, dita permanente. Em caneta grossa e macia, de aparo. A revolver delicadamente ou penosamente os restos de memória nas palavras, e de limar todas as asperezas, irregularidades, imprecisões, ou acarinhar em movimentos redondos os pensamentos mais nítidos como um seixo rolado nas marés infindas dos confins do tempo. Como uma peça de Raku, onde se reúne a essência dos quatro elementos, terra, ar, fogo e água – como as palavras, como as palavras em bruto, a ecoar, a incendiar mais nas emoções e lavadas, depois, dos excessos – a rolar de uma ladeira, a arrefecer como lava, a ver se resiste e como, à abrasão suave da erva. E quebra ou resiste. Ou como uma escultura de H. Moore, que, dizia, devia resumir-se às formas redondas e suavemente niveladas, que resistiriam a todos os percalços da física, do mar, dos elementos todos. Rolar pensamentos até ao estado puro e então escrever. A caneta. Na ordem natural das folhas. Mas antes essa guerra surda e etérea fechada nos pensamentos antes da escrita visível. E depois o tempo a mudar.
E depois, deixa de haver o tempo, a ordem, o fio condutor de um percurso linear. Todas as emendas possíveis na folha digital, todas as emendas ao tempo. Tudo ramifica em árvore e planta labiríntica. Tenho esta obsessão da ordem, da cronologia da linha. Marcar o tempo, pontuar em nós nevrálgicos, as irregularidades. Datar. Entender a consequência e encadear. Como se fosse desenhável. O tempo. Ou a vida, uma sucessão líquida e fluida. Regular como um rio, da nascente à foz.
Precisei de tempo para ver crescer como fungos ou plantas parasitas, irreprimivelmente, a desordem dos papéis. E o tempo desenhou aí um padrão visível. Só o tempo. A decorrer. E um dia entendi a perversidade desses registos tirânicos em que se avolumava a impossibilidade. Eram para ser provisórios, a suportar a memória e nela. Mas ao longo de dias, sempre a desarrumar-se na orientação da folha, no intercalar de diferentes ideias ou simples palavras soltas nos espaços vazios. Quaisquer espaços mesmo entre frases. Como invasão de casa alheia. A misturar tempos, memórias de ideias a percorrer depois, a acusar o declínio do cuidado. Um copo que se entorna, uma queimadura, um rasgão impetuoso numa pressa, um número de telefone sem nome. E as folhas a sair da ordem provisória. E tudo o mais a ficar distante, confuso. Distinguir frases pelo tamanho da letra, nas suas pequenas variações de humor. Uma perturbação que se tornou ânsia de ordem permanente. Ordem naqueles pequenos e variáveis fragmentos de pensar fragmentado em partir de um certo momento passaram a ser múltiplos. Uns para uns humores e outros para outros amores. A dispersão e o abandono. Por anos. Fruto do tempo. Tudo me dispersa, saudosa do tempo em que tinha uma caixa de correio, um diário e um tempo de trás para a frente e daí para trás. Arrumado e penteado. Como a simplicidade dos sapatos. Um par velho e um par novo. Nos anos bons.
E um dia ofereceram-me estes grossos catálogos cartonados. De revestimentos. Também isso fez sentido. As capas e matérias de que se revestem os nossos eus. E deles fazer os meus livros. Destruindo e refazendo no suporte grosso e confortável daquelas capas e folhas de cartão. Fui andando com eles no pensamento e elaborando um caminho. E depois comecei. A destruir, primeiro. Comecei este diário.
Na realidade ando há muito a começá-lo de vários ângulos. A tentar resolvê-lo. Como se um diário não fosse simplesmente para começar num dia qualquer e ir por ali. Na ordem das páginas. Mas há muito, também que não consigo ter qualquer obediência à ordem, ao espaço, à forma à cronologia do tempo ou das folhas. Esta obsessão da cronologia, do encadeamento, da lógica da ordem e do sentido produzido pela ordem, pela análise da ordem. Digo de novo. Mas algo em mim se desarrumou e rebelou. Se fragmentou e desmultiplicou em suportes. Se abespinhou em desarrumar cada vez mais a desarrumação. E aí estou de novo a pegar numa folha de papel, só uma, digo, e depois arrumo, penso, por exemplo. Mas, rapidamente lhe vou acumulando desvios. E de novo escrevo de lado e nos intervalos de parágrafos e de pernas para o ar e rasgo bocadinhos para apontar um número. Mais um número que vou esquecer de quê. Todos os dias esta compulsão em desarrumar o que era à partida para ser registo precário, e me invade os olhos angustiados ao longo dos dias. E a crescer. Uma pilha imunda de palavras provisórias. E nunca mais deixam de ser e é o inferno em forma discurso. Papéis perversamente desiguais e confusos, como a criar voluntariamente dificuldades ao sentido. Que, desmultiplicado nas associações quase livres, cresce. E cresce em angústia o meu olhar ali para a direita. Sempre daquele lado. E limpo neles os pincéis e entorno coisas. E cresce a dificuldade em os olhar e tornar úteis e a impossibilidade de os deitar para um lixo onde já está cada palavra que não digo. Nem é que nada faça falta. É só uma curiosa disposição que se impôs. Como se tivesse deixado de ter ordem na cronologia das coisas e das frases. Ou como algo a querer dizer-me que tivesse deixado de lhe encontrar sentido. Continuando obcecada por ela. No entanto.
E quando entendi que a construção daqueles objectos, com as mãos e com as matérias e com o tempo, podia reproduzir essa desordem, absorvê-la sem critérios word e ilustrar essa aleatória incidência de fatos, pensamentos e questões, resolvi em parte uma ansiedade. E comecei. Com pedaços fragmentados de vida a cair sobre as folhas desdobráveis e tão labirínticas quanto podem ser as folhas em leque de um livro. A abrir em quatro sentidos. Como dias soltos e momentos perdidos da ordem, colados às páginas, em qualquer lugar da história do gesto de abrir. Vida solta. Pedaços torturados de dias, colados, recombinados, livres para outras leituras. Rasgados, fragmentados e sujos. Misturados. Perdidos. Da ordem. Se ela existiu. Mas existiu. E é intangível. E não unicamente a urgência de um pensamento mais rápido do que o momento da vida em que se rebelou e quis ser algo.
Livro, labirinto. Como labirínticos são outros percursos. E assim está bem. O livro. Como retrato sintético de uma fuga à cronologia. E em busca da cronologia perdida. Ou do tempo. Um outro tempo.

26 Ago 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] teu silêncio será de ouro e poderá salvar-te. Silêncio absoluto. Nem respires.” Foi com estas palavras que a “Viúva” acabou a sua história, que compreendo agora ser sobre o seu encontro com o pai do seu filho. E que o seu filho era o teu amante. Qual é mesmo o nome dele? Chaoxiong? A seguir enfiou-me neste quarto, amordaçado, deixando-me a porta aberta com perfeita colocação para ver tudo o que entretanto está a fazer a uma outra das suas vítimas. E, se existia esta angústia de não saber o que vai ela fazer comigo e que jogo começou, entretanto tudo é agora mais estranho. Ela conseguiu encontrar um acidente de trajecto na minha vida. Uma empregada de um bar com quem eu num momento de desespero cometi um erro. Um erro que nunca mais consegui remediar. A partir daí decidi deixar tudo no passado. Desculpa Daphne se nunca te falei nela. A verdade é que agora neste momento parece que não podemos deixar nada no passado porque o passado volta sempre sem que o desejemos. Sim, é verdade, menti-te. Existiu um grande amor antes de ti. Um amor que se estragou por incompetência minha. E não restou nada. Talvez até pudéssemos ter ficado bons amigos. Mas não foi fácil para mim. Com a pressão de ser um dos que eram chamados “filhos da terra” que muitos privilégios acumulavam. Com a pressão dos meus pais, extremamente tradicionais em muitos dos valores de definição do que esta cidade era ou devia ser, para que eu fosse fazer um mestrado em economia e política nos Estados Unidos. Futuro desenhado, que cumpri sem nunca lhes ter dito que o que eu queria realmente ser era realizador de cinema. Não foi fácil para um jovem adulto com 21 anos apaixonar-se por uma rapariga da China continental, levemente mais velha, que eles consideravam não ter futuro. Foi uma relação a que sempre se opuseram. E eu deixei-me contaminar e não lutei. Como se estivesse destinado a ser para todo o sempre inapto para a vida.

Tudo começou na inauguração de um Casino qualquer. Ali estava ela a abrir as portas das salas VIP para os jogadores entrarem. Eu senti aquele olhar. Um olhar com a curiosidade de um potencial caso de amor. Não existiu nada de platónico na nossa relação. Quase de imediato estávamos a ir jantar fora e encontrarmo-nos aqui e ali. Será que a memória me atraiçoa? Na minha cabeça faço um esforço para não imaginar o que imagino. Mas, agora neste momento, acabo sempre a rever aquela relação como a mais perfeita de todas. Uma relação real. Um real cheio de sorrisos e cumplicidades. Apercebo-me agora que tu serviste como uma aproximação e que me relacionei contigo através do reino silencioso da imaginação. Desculpa…. Aos dez anos de idade lembro-me que ainda não tinha nenhuma imagem concreta do que é que significa ter sexo. Tudo o que queria das miúdas era que elas segurassem a minha mão. Queria apenas encontrar um lugar onde pudesse ficar sozinho com elas. Mas isso também não era permitido. Os adultos nunca se sentiram confortáveis com essas situações. Não sei se foi por isso que comecei a olhar para raparigas levemente mais velhas. Com elas não havia esse problema. A minha cobardia já com essa idade se revelava. Com uma rapariga mais velha eu sentia-me sempre mais protegido. Não sei. Tudo é um pouco confuso. Sei que agora tudo é diferente. Sinto as coisas de modo diferente. E não sei porquê. Gostava de poder voltar a encontrá-la para lhe dizer algo. Pelo que a “Viúva” está a dizer ela é a filha que abandonou em bebé. As peças do puzzle começam a encontrar o seu lugar correcto. Gostava de a encontrar e dizer-lhe qualquer coisa fora do normal que me fizesse esquecer a minha cobardia. Fui cobarde com ela. Fui cobarde contigo. Sou cobarde agora que te vejo, como um fantasma, aqui à volta e falo contigo como se tudo no mundo dependesse apenas do meu bem estar. Fui cobarde e egoísta. Gostava de a encontrar e ter coragem para lhe sussurrar todos os segredos. Do mesmo modo como sussurro para ti que, percebo agora, não passas de uma construção mental minha. Desculpa-me Daphne. Mas sim. Amei-a como não amei ninguém. E destrui tudo. Porque assim estava destinado. Porque sou fraco. Quando terminámos e eu sai da casa onde fui mais feliz os olhos dela foram água. Naquele momento toda a profundidade e brilho que conheci antes havia desaparecido. Muitas vezes parece-me como algo que aconteceu num sonho. Será que aconteceu mesmo? Está ainda muito presente em mim aquela sensação do toque na pele dela. Sabes por vezes parece que a felicidade não nos altera. Será que a tristeza o faz? Pensa na coisa mais triste da tua vida.

A coisa mais triste da minha vida sou eu próprio. O que aconteceria se eu parasse de confiar nos meus pais e tivesse confiado no amor? Porque continuo a lamentar as minha atitudes, ou, mais precisamente, a minha falta de acção? Abutres. Gostava de, finalmente, poder pensar nas palavras que tenho para lhe dizer. Já deveria ter falado com ela. Mas o que é que lhe deveria ter dito? Não teria sido tão difícil se a tivesse procurado quando voltei e lhe tivesse dito o que sentia. O que sinto. O que sinto agora enquanto oiço a “Viúva” a falar dela. Como o coração bate rápido. Se ao menos tivesse encontrado uma outra oportunidade. Se tivesse mais coragem. Mas isso parece impossível. E agora as oportunidade parecem perdidas para sempre e não sei o que fazer. Agora sou a parte negra de mim. Agora sou a morte. Apenas com o amor conseguimos criar a ilusão de que não estamos sós. Mas agora percebo que se calhar não tinha 21 anos. Se calhar tudo isto aconteceu no ano passado. Todas estas mulheres malditas com nomes ridículos que existiram no meio dela e de ti. Com sorrisos cativantes. Jovens. Se calhar tudo isto foi no ano passado. Parece-me agora que elas foram sempre mais novas. Que ela era muito mais nova do que eu. Não tens mais nenhum lugar para estar Daphne? Num mundo completamente são não é a loucura a verdadeira liberdade? Como é que a voz consegue alguma vez articular as emoções mais escondidas dentro de nós? Será que o silêncio tem uma presença? E o que é que significa? Ninguém sabe realmente o que está a fazer aqui. Para o que veio. O que lhe está destinado. Porque estamos todos tão absorvidos com a nossa presença? Porque vejo sempre este homem velho a acenar para mim e eu a acenar de volta? Talvez se esta cidade não estivesse sempre debaixo de um capacete. Talvez assim a felicidade fosse possível. Se existisse um pouco mais de sol durante o ano.

“Sunny / Yesterday my life was filled with rain / Sunny / you smiled at me and really eased the pain / Now the dark days are gone, and the bright days are here / My sunny one shines so sincere / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for your sunshine bouquet / Sunny / Thank you for the love you brought my way / You gave to me your all and all / And now I feel ten feet tal / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for the truth you let me see / Sunny / Thank you for the facts from A to Z / My life was torn like wind-blown sand / And a rock was formed when you held my hand (oh Sunny) / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for te smile upon your face / Sunny / Thank you, thank you for the gleam that shows its grace / You’re my spark of nature’s fire / You’re my sweet complete desire / Sunny one so true, yes I love you. 1

1. Sunny de Bobby Hebb.

25 Ago 2016

Particularidades da China 此照片获中国新闻摄影奖

[dropcap style=’circle’]“[/dropcap]Estas terras já pertenciam à minha família durante a Dinastia Qing. No tempo da República continuaram nossas. E assim permaneceram durante a invasão japonesa! Como é possível que tenham passado a ser vossas quando vocês (os comunistas) tomaram o poder? Eu não percebo de todo a vossa lógica!”
Na sequência das desapropriações e das novas disposições habitacionais, que ocorreram de uma ponta à outra da China, um homem velho e teimoso processou três vezes o governo local e ganhou! O homem prescindiu de advogado e defendeu a sua causa em Tribunal. O fotógrafo captou o momento em que ele se dirigia aos jurados e proferia o seu contundente discurso. Calçava botas de borracha cobertas de lama. A foto recebeu o Prémio de Fotojornalismo do Ano (2015).

A noção de “estado de direito” (依法治国yifa zhiguo) tem grande significado, quer na China, quer a nível internacional e serve para justificar as reformas mais dispares. Consegue ser simultaneamente um valor político digno de ser defendido e um motivo de preocupação; é um ideal intrinsecamente transtornante e transformado por quem o menciona, por quem o defende e por quem o crítica. Por este motivo, o próprio termo “yifa zhiguo” tem sido traduzido de maneiras diferentes por diferentes pessoas, “estado de direito”, “governar pelo direito” e “governar o país de acordo com a lei”. Illustra
O conceito de “estado de direito” passou a ser uma peça fundamental do vocabulário político-legal chinês a partir do período da reforma, sob a liderança de Xi Jinping e, desde então, tem vindo a aumentar de importância. Desde que Xi tomou as rédeas do poder em 2012, adoptou precisamente esta expressão para modelar as suas políticas e justificar os seus planos de acção. Mas a forma autoritária com que o conceito tem sido utilizado até aqui, de muitas e variadas maneiras, tem provocado interrogações e algum desencanto quanto ao futuro do sistema legal chinês. 
Um certo número de elementos que compõem a campanha de Xi a favor do “yifa zhiguo” podem vir, no futuro, a revelar-se muito úteis para aumentar a transparência e a credibilidade políticas. Mas o conceito de “yifa zhiguo” não pode por si só produzir uma melhoria geral das relações entre o Partido-Estado e a sociedade (ou mais precisamente entre “o Partido” e “o povo”). E isto, porque o próprio objectivo do “yifa zhiguo” é promover a ideia de que a lei é a manifestação da vontade e dos interesses do povo e que o Partido existe para proteger esses interesses. Ao abrigo da ideologia ‘yifa zhiguo’, o povo não pode desfrutar de quaisquer direitos, ou ter quaisquer interesses, que não estejam abrangidos pela alçada da liderança do Partido, cuja função é desenvolver e proteger os direitos e interesses do povo (que sejam da iniciativa do Partido).

24 Ago 2016

Caixa Geral de Depósitos

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se aproxima do Campo Pequeno vê assomar no planalto contíguo um Templo, uma verdadeira obra faraónica, babilónica, com jardins desertos suspensos e vértices triangulares, uma opulência também de Templo Salomónico; perguntamos como, a que deus, a quem tão fantástica obra se erigiu e suborna toda a visão periférica se erguendo à altura de forte? A que Olimpo se destina, e qual a divindade que lhe preside, e nesta extemporânea interrogação, a transcendência se cala para sussurrar: ao dinheiro! Mas o dinheiro é ele uma divindade? Não. O dinheiro é poder, é substância, é jogo, é fome, é abuso, é implosão, é a grandiloquência sem a rectificativa análise de um ponto que a transcenda e lhe dê a tal particularidade de culto.
Houve sempre divindades telúricas, teutónicas, que tinham como esfera de governação e domínio os lados mais densos da matéria. No Hades preside ainda um deus e Baco seria uma derivada da divindade do gozo na sua regência Dionisíaca onde se celebravam até as mais arrojadas manifestações e os cultos Luciferinos nas suas entradas de terreiros herméticos. Mas até o Paganismo foi discreto face aos seus cultos, e se dirigia para os outros que representavam a graduação da unidade boa a quem apelavam naqueles casos em que a vida não tem mais respostas, eram eles, nos seus claros Olimpos que atravessavam as mentes inquietas e as aglomeravam para a estranha façanha do Bem.
Olhemos este caso CGD. Quem anima a vertente poderosa daquela fachada, daqueles longos metros de saturação em pedra, a que prestamos culto, quem nos absolverá num local daqueles? Para onde darão os subterrâneos do monstro? Câmaras funerárias? Bunkers? Cidades subterrâneas? Aquedutos que vão dar ao mar? Aquelas coisas parecem-me pretextos para outras bem mais pensadas: ora vejamos, um local assim está sem dúvida apetrechado para salvar alguém em caso de ruptura com o lado de fora, pois que são fortes, de Fortaleza, bem dizendo, e quanto à divindade que a anima, pois não há nenhuma, o dinheiro é o grande poder que uniformizou as massas que anteriormente ainda lutavam de forma fraseada nos locais de Vulcano. Dentro dele não está nenhuma anima, pois que por ele, e com ele, o que estava animado se foi. Erigido algo tão desprovido de captação litúrgica, fora planeada uma arquitectura muito, muito grande, para a escala do local e para se poder dizer: agora sou eu o deus para toda a eternidade! Tal como Urizien, que fazendo de tampão, isola o tempo. Por fora há receitas para muitos espectáculos e salas espectaculares, os artistas, os pensadores dobram a espinha para poder passar, não pelo buraco de uma agulha, que isso é mais para camelos, mas pela receita do tempo que a eles lhes dá receitas para acabarem de vez.
Nós espreitamos para aquilo das laterais e parece de facto um princípio de sarcófago. Não há nada, pássaros, erva; há uma água que vem de um lugar e que repuxa para o nada, umas portas que nem Salomão, para guardar a Arca, poderia suspeitar que pudessem um dia vir a existir, mas a Arca tinha dois arlequins e a estranha energia que vinha de lá podia de certo fulminar os crentes impreparados. Mas era Deus que lá estava, ou assim se interpreta a chave da grande iniciação do passar das portas; aquilo ali, é de aterrorizar! O que guardará o Ventre da Baleia nos seus recônditos alçapões? Deus – eu senti – nunca lá pôs os pés, dado que aquilo nem sabe que tal entidade existe, mas pode haver um demiurgo que se entranhe naquela plataforma estarrecedora. Nunca lá entrei, tenho medo que fechem as portas e fiquemos num limbo pela eternidade fora… que o código não responda às abotoaduras e desçam ferros que nos impossibilitem dar mais um passo. Mas as pessoas são incrédulas e vão a estes locais como os tais bois olhando para palácios. Nós sabemos da linda madeira do Líbano, do ébano, dos materiais que foram para a construção do Templo e, como Templo divino, ali não entrava serrote, faca e parafuso. A rainha do Sabá, ficando curiosa, quis saber porque uma construção assim era tão silenciosa, e procurou conhecer o arquitecto Hiram. Ora Salomão diz-se que não gostou porque sentiu ciúmes do velho construtor. Ele era um Sábio e este um Construtor, uma espécie de Arquitecto do Mundo; havia então alguém tão poderoso quanto ele e começa aqui a primeira rebelião de trabalhadores que Salomão instiga contra o Mestre: sabotaram algumas leis do trabalho e a obra mais personalizada deste criador, na inauguração, explode. Nem aqui houve aquela harmonia que se pretende inalterável para louvar Deus, pois que um homem só, mesmo sábio, precisa dos que criam e dirigem as obras por onde a glorificação dos locais algures passará. O domínio profano também tem criado os seus “altares” e o que guardam aí é bem mais enigmático que um culto destes, pois que ele era a casa interior que devia dirigir a personalidade cá fora, é como um receptáculo que visa reforçar o ego para que este não se estilhace no meio das multidões.
Creio que não terá também aquela Pedra Angular nem nenhuma geomancia do terreno, e como isso são condições para grandes monumentos, a que serve e como serve uma coisa destas? Talvez nos alerte para a robustez sem sentido, a grandeza sem mérito, a opulência sem amor, a distribuição mal parada, a esfera da usura que tememos até nos sonhos mais sombrios — mas aquela realidade está lá e espelha o tempo de todas as barbáries feitas com o abuso e o desmedido mau gosto que pode muito bem começar a ser interpretado como agente poluidor. — Das mentes, da alma, da vista, das frágeis sensações que de tão enlouquecidas até devem pensar que é para guardar dinheiro. Aquilo é feito para divinizar o dinheiro, mostra-lo como o deus da igualdade que não há, e servir até causas e interesses que os cidadãos desconhecem.
Parece que tem problemas, a Caixa, por isso eu sempre irei preferir as Arcas, que como se sabe, neste país também não têm fundo, a ver pelas surpresas desagradáveis de coisas ditas que de lá dizem vir e nunca lá estiveram, aquelas frases traiçoeiras que um Pessoa certamente nunca escreveu. Porque não lêem nem sabem o que os verdadeiros construtores andam a fazer, nem tão pouco, e ainda bem, onde arrumaram as Arcas. A mesma leitura se pode fazer diante das coisas que nos parecem demais, e estão ali a servir qualquer outra dimensão. Nem que seja a do crime, do desmérito, e da presunção desmedida que leva a vangloriar o grande como medida de salvação.

22 Ago 2016

Estratégia chinesa para Macau

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Desde a fundação da Dinastia Ming (1368-1644), que a grande preocupação era a defesa contra qualquer tentativa restauradora da dinastia derrubada, a Yuan. Por esta razão, toda a defesa militar chinesa se concentrou no Norte, nas fronteiras com os Mongóis”, segundo Jin Guo Ping e Wu Zhiliang.
A afirmação da dinastia Ming além-mar levou o Imperador Yong Le a enviar emissários ao Oceano Índico e para isso, promoveu as expedições marítimas comandadas pelo Almirante Zheng He, cortadas que estavam as fronteiras terrestres. Após o regresso da sétima e última viagem transcontinental da armada, que partira em 1431 comandada por Zheng He e que sem ele chegou dois anos depois, a dinastia Ming destruiu os barcos de navegação marítima e retirou-se para o interior, usando as águas do Grande Canal para o transporte das mercadorias.
Assim, a China, sem interesse no comércio exterior, após 1433 voltou a fechar para o interior e desprotegeu as costas marítimas, passando a pirataria a dominar os mares. Segundo Rui Manuel Loureiro, por volta de 1430 a dinastia Ming desencorajava “abertamente quaisquer ligações marítimas de chineses com o estrangeiro, instituindo penas severas para os infractores, que no entanto, nunca deixaram de se multiplicar”.
Toda a documentação oficial relacionada com as expedições marítimas do Almirante Zheng He, para que não servisse de estímulo a outras aventuras semelhantes, foi então destruída. 19816P14T1
Com a saída dos chineses do mar, o comércio ficou nas mãos dos muçulmanos que passaram a controlar todo o Índico e o Sudoeste do Pacífico. Cem anos depois, apareceram os barcos dos europeus que começam a dominar os Oceanos, devido às invenções e conhecimentos náuticos adquiridos aos árabes e muçulmanos, que por sua vez tinham aprendido com os chineses. Interessante é constatar que com cem anos de antecedência, o Almirante Zheng He elegeu como portos estratégicos, Malaca, Ormuz e Adem, os mesmos que inicialmente Afonso de Albuquerque tinha planeado para controlar o comércio no Oceano Índico.

Um problema diplomático

De Malaca se abriu o Oceano Pacífico aos portugueses, que como novos mercadores entraram a comercializar. Após a primeira visita à China em 1513 por Jorge Álvares, apresentaram-se os portugueses numa embaixada em 1517, à frente da qual seguia o boticário Tomé Pires, mas como a entrada neste país só era permitida aos países e reinos tributários, facilitando na burocracia o embaixador chegou à terra chinesa como proveniente de Malaca. Tal era verdade porque os portugueses expulsaram o Sultão de Malaca, Mamude Xá, o verdadeiro tributário da China e cujos antepassados em 1409 se colocaram debaixo da protecção dos imperadores chineses da dinastia Ming, para conterem os ataques do reino do Sião (Siam). Malaca era após as viagens de Zheng He o único porto onde os chineses se forneciam de mercadorias do Índico. Tomé Pires e os seus companheiros guiados pelos intérpretes malaios, que reconhecendo o terreno souberam chegar à capital, foram desmascarados em Beijing como impostores pelos enviados do Sultão. Mas faleceu em 20 de Abril de 1521 o ainda jovem Zheng De e a China parou pela morte do Imperador. No Sul da China, os mercadores portugueses desrespeitando e não acatando a suspensão obrigatória de todas as actividades, provocaram ao largo do porto de Tunmen em Setembro de 1521 a primeira batalha naval entre portugueses e os chineses. Ocorreu muito devido à imagem de pirata que Simão de Andrade aí deixara e levou à prisão de muitos portugueses. Ficava irremediavelmente perdido o primeiro esforço dos portugueses ao serem banidos das terras chinesas.
A China, um país que nunca se interessou pelo comércio, tendo em baixo nível social a quem ele se dedicava, por um édito imperial de 1525 promoveu a destruição de todos os barcos que navegassem no mar e o aprisionamento dos mercadores que tivessem intenções de comercializar com outros países, ficando apenas os barcos e a indústria naval ligada à navegação pelos rios.

Do Liampó a Chincheu

“Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chineses de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros em Sião, outros em Patane, e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhe despachem os direitos. Alguns chineses, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem muito escondidos nestes navios destes chineses a contratar fora, e tornam muito escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm”, segundo refere Gaspar da Cruz.
Com os mares despovoados de embarcações chinesas, os chineses ultramarinos encaminharam então os portugueses “a que fossem a Liampó fazer fazenda, porque não há naquelas partes cidades nem vilas cercadas, senão muitas e grandes aldeias ao longo da costa, de gente pobre, a qual folgava muito com os portugueses, porque lhes vendiam seus mantimentos, com que faziam seu proveito. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com os mercadores da terra trouxessem suas fazendas a vender aos portugueses”, do Tratado das Coisas da China, do dominicano Frei Gaspar da Cruz. Já Fernão Mendes Pinto refere, terem-se “chegado a António de Faria os quatro principais do governo daquela povoação ou cidade de Liampoo, como os nossos lhe chamavam, que eram Mateus de Brito, Lançarote Pereira, Jerónimo do Rego e Tristão de Gaa”. Segundo Rui Loureiro, “Os portugueses, na realidade, mantiveram um estabelecimento mercantil nas ilhas de Shuang-hsü” (…) e esta povoação de Liampó, “como outras que surgiam ao longo da costa chinesa, era frequentada por navegadores de outras procedências, e normalmente siameses, léquios, chineses e japoneses. Não eram invulgares os conflitos com as populações ou com as autoridades chinesas dessas regiões, a propósito de questões mercantis.”
Moltalto de Jesus refere, “Depois da destruição de Liampó, os portugueses asseguraram uma base em Chincheu, perto de Amoy (hoje Xiamen), por meio de pesados subornos. Também aí (actual Zhangzhou) a mesma horrível sorte os alcançou, dois anos mais tarde (1549), segundo Mendes Pinto, em consequência de uma disputa pelos bens de um arménio morto. Um administrador oficial, Aires Botelho de Sousa, com fama de homem sem princípios e ganancioso, tomou como fazenda parte dos bens e algumas mercadorias que dois comerciantes chineses diziam suas e que, como não lhes fossem restituídas, se queixaram aos mandarins – que imediatamente proibiram as relações dos nativos com os portugueses, racionando o fornecimento de provisões. Levados pela fome, passaram a região a pente fino. Isto terminou em escaramuças que levantaram o distrito inteiro contra eles. Enquanto um exército acabava rapidamente com os portugueses, uma frota deitou fogo aos seus barcos; e de quinhentos portugueses apenas cerca de trinta escaparam a uma morte atroz”. (…) “Com estas horríveis hecatombes a China queria, evidentemente, impedir os portugueses de frequentarem as suas costas inóspitas. No entanto, nada intimidou estes esforçados navegadores. Os proscritos dirigiram-se agora para Sanchuan”, e pela frequência dos portugueses em peregrinação ao local onde morrera o Padre S. Francisco Xavier, os chineses em 1554 os impediram de voltar a frequentar essa ilha e para Lampacao os desviaram.

Plano para Macau

“O perigo em que esteve a Corte (com o incidente de Gengxu, protagonizado por Altan, em 1550, quando contornando a Grande Muralha, chegou ao pé de Pequim ameaçando tomar a cidade e saqueando os subúrbios do Noroeste) levou os Ming a reorganizar a defesa militar (…) e para fazer frente a outras rebeliões das minorias nacionais chinesas, tornou-se urgente resolver o problema de Macau. A situação no litoral do Sul também não era nada optimista. Em 1552, a do Distrito de Huangyan caiu na mão de piratas japoneses, o que ficou conhecido na história como Renzi zhi bian (Incidente do ano Renzi, 1552). Foi um tremendo abalo para a Administração Ming. Eis o pano de fundo do entre Leonel de Sousa e Wang Bo. A invasão de Pequim em 1550 e Renzi zhi bian são as chaves para perceber a viragem da atitude chinesa, decidida por Pequim e executada por Guangdong, para com os Portugueses, que já tinham sofrido grandes reveses à mão de Zhu Wan, em Liampó e Chincheo respectivamente em 1548 e 1549. As campanhas expedicionárias de Zhu Wan contra os Portugueses conseguiram algumas vitórias militares, mas não resolveram o problema da pirataria, nem conseguiram acabar com a presença portuguesa”, segundo referem Jin Guo Ping e Wu Zhiliang: “Em termos globais, o poder militar chinês era superior ao dos Portugueses que frequentavam o litoral chinês”.
“Macau começou a ser (em 1557) um entreposto para o comércio português entre Malaca e o Japão”, como refere Rui Loureiro e continuando com Jin Guo Ping e Wu Zhiliang, “o desenvolvimento desse comércio traria, mais cedo ou mais tarde, a praga da pirataria a Macau e a Guangdong. Após a repressão de alguns grupos de piratas chineses nas águas de Guangdong e instalados os Portugueses em Macau, as autoridades de Guangdong começaram a tentar resolver o problema dos Japoneses. Antes de mais, uma autorização de residência concedida aos Portugueses em Macau poderia obrigá-los a não se associarem publicamente aos piratas japoneses. De facto, sem os fixar num lugar, como se poderia sujeitá-los à legislação chinesa? Mais tarde, seriam tomadas medidas legais para proibir os Portugueses de ter Japoneses ao seu serviço. Através desta medida de acomodação dos Portugueses em Macau, foram conseguidas, a nível militar, duas vitórias: a rápida repressão dos piratas chineses e o impedimento de qualquer ligação pública entre os Portugueses e os piratas japoneses”.

19 Ago 2016

Sonho com efeito

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]er criatura e não saber de quê de quem. De que sonho. De que modelo, de que criação, de que mito ou de que lenda. Como uma nostalgia de raízes na terra. No outro. Como o sonho de demiurgia fatal. E o medo, proporcional à grandiosidade do. Medo… Do inteligível ao mundo sensível. O medo. À imagem isso sim sabe-se. Que se é. À imagem de qualquer imagem interior, a qualquer entidade humana ou supra-humana. Ser criatura e não se saber criada. Contornar o mistério da criação divina. Ou será esse mistério, o da expectativa do amor. A eterna nostalgia do olhar. Criador. Modelador. Como uma síndroma de Galateia. O renovar desse olhar inicial que nos edifica enquanto criaturas e esculpe. Sede lugar de um olhar e sede fome de corresponder a um olhar. Descer ao território etéreo como esse e inerente ao humano. Sempre o mistério e misterioso imperfeito, como o é o tempo, com memória e sonho. E que sem tudo, seria eterno. E acabado perfeito.
A criatura e o criador. Ou, a criatura o criador. No diálogo. Ela em frente, a espera do fim. O fim da obra acabada. E todo o momento é aquele em que foge a criatura e duvida o criador. A dúvida é dele a fuga é da obra criada. Ramificada, camada sobre camada. Sobre camada e sobre camada e exponencial. Como ramos, o caminho. Bifurcado e não pensado, não sonhado. Mas é a natureza da obra e do humano. Amplo e humano. A criação é memória e a memória humanidade, olhar, experiência, tacto, vida e morte. Não há outro caminho na criação. Mas na criatura criada sim. Externa ao sonho de si, tornada visível, escapa-se ao primeiro olhar, ao primeiro gesto, e sem que a si se lhe possa atribuir nada. Culpa, decisão ou determinação. Nudez muda abandonada no cavalete do escultor. A partir daí, uma respiração, uma vibração no ar, perguntas, questões. E a criatura passa a espelho e o espelho a criatura no espelho do outro. É depois, a fantasia da obra. Ou antes. Escrita, lavrada, esculpida. Bordada a ponto. Rebelde. A tecer outros tecidos e bordados. Mesmo a pedra. Nem sempre de acordo com o escultor. Terá ele que o desculpar a si próprio. Ou a ela. É indiferente. Está ali com todas as imperfeições de um e de outro. Sente-se a obra frente ao criador. Senta-se, sentada de pedra, obra e em frente, pedra de alquimia, terra de cultivo. Senta-se. Fitando com olhos de amor. E espera o sopro vital. Fitam-se os olhos. Do desconfiar. Rebela-se a obra. Duvida o criador. Deixar à poesia a função de encantar. No seu falar só. Solitário. E formar a obra. Pedra de formas. Sente. O frio que espera. O sopro.
Criatura criada é um mundo. No universo da linguagem, nas suas camadas de sentido em aberto. Obra aberta. E mais o tempo. Senta-se a criatura criada em frente e senta-se o criador na frente e, no confronto, como estranhos. Afinal. Se um é o outro. Até ao toque final. Até ao sopro vital. E a criatura vai. Amante do criador e este, extasiado ou desiludido, ou estupefacto da criatura criada a partir de si. Por si para si no mundo fora de si e para o mundo além de si. A partir. Por outros sentidos. Sem sair do mesmo lugar. Ali. A obra espera serena e passiva a continuação do sonho. Julga. O criador, esse, desfaz-se em indecisão porque vê de fora a criatura criada, meio criada mas já definida, conflituosa. Como uma personalidade a desenvolver-se. E há que entender e comparar e testar o direito de a reconduzir ao sonho inicial de a cercar de uma ideia firme e embrionária. Porque ela foge e noutros sentidos e talvez seja de deixar fluir. No seu caminho livre, agora. Depois do gesto inicial. Deixando de pertencer, ganhando vida própria. Num limbo em que depende do criador para o sopro vital, o rito de passagem. De inacabado a acabado. Familiar ou estranho. Ao criador. E se às vezes houve a paixão pela ideia, outra é a paixão pela pedra esculpida. A estranheza do encantamento. E a obra está pronta e o criador nem sempre para a obra criada. Exterior, autónoma e estranha na sua identidade recente. Mas ela devolve em reflexo. Perfeito ou imperfeito de uma intenção inicial. Ao espelho.
Mas perfeito, é o paradigma do mito. No olhar de Pigmaleão, escultor da pedra à medida do sonho e do imaginado perfeito. Mas falta ao mito a fantasia do olhar sobre si. O olhar da criatura criada sobre o criador amante. O olhar que se fantasia refletido no olhar do outro. O olhar do outro que edifica monstros e anjos e por vezes o outro. Assim. Nunca do natural se pode imitar sem perda. Da natureza a arte deve assumir a competição. Imitar é ficar aquém, reformular é dar vida. Inventar a vida. O escultor, esculpe a figura à medida da sua utopia e a vê-a, como prémio, tornada viva e realidade. O poder da invenção na manifestação de realidade. O sonho a definir os troços do caminho. O de Pigmalião é um mito belo. Porque não se detém na fraqueza humana e no insucesso, mas no poder de uma expectativa positiva, no engendrar da vida. O efeito de Rosenthal. Quanto mais se edifica uma imagem mais ela se concretiza. Ou, noutros termos e noutros estudos, profecia auto-realizável.
E a consciência de si de cada um, já não obra criada, mas mesmo assim. Formulada no outro. Mesmo sem mais desígnio do que o do simples olhar. Espelho. Reflexão. Existência criada ou ignorada. Ou esquecida. Sim, o espelho como raízes estendidas de lado a lado do vidro, do estanho, da prata, da obsidiana negra que transtorna o olhar-raiz. Transtorna de lucidez ou transforma de embriaguez. E de novo, como o sopro vital.
Aqueles em que nos fantasiamos como eles a nós. Uma coincidência mágica de identidade suavemente conseguida reconhecida e grata. O espelho ideal para uns o que retoca e regenera, para outros o que vai às entranhas do eu e as devolve delicadamente. Iguais. Sim a magia dos espelhos como a da criação artística ou de paradigmas. Nelas rever a essência do que somos que não a sós. Essa, quase sempre uma outra imagem e solitária. Criar um olhar que vê ou criar um olhar que não vê nem se mostra no ver e ser visto. Que nem passa pelos olhos, talvez. Como Modigliani deixava os olhares vazios…vazios ou cheios de todas as possibilidades interiores a um olhar. Sem limite. Talvez deixando para mais tarde o desafio de os entender ou talvez deixando-os como abertura franca, um rasgo directo à alma expressa na intimidade dos corpos, essa que lhes transmitia uma entrega de nudez para além da pele. Tudo. Como representação. O sonho com efeito. Ou a arte pela vida.

19 Ago 2016

Minimalismo existencial

Carver, Raymond, Queres Fazer o Favor de te Calares?, Teorema, Lisboa 1989
Descritores: Literatura norteamericana, Contos, Stories without story, minimalismo, Tradução de Carlos Santos, 258 p.:21 cm, 972-695-072-4
Cota: 821.111(73)-32  Car 

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]aymond Carver nasceu no dia 25 de Maio de 1938 em Clatskanie no estado de Oregon e faleceu a 2 de Agosto de 1988 em Port Angeles, Washington DC. Cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories. A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo e ao chamado realismo sujo (Dirty Realism). O seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental no processo da escrita minimalista de Carver. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu as suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire. Da sua obra eu destaco os contos que em Portugal apareceram em colecções com títulos muito originais: Queres Fazer o Favor de te Calares, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, além da Catedral, e de Três Rosas Amarelas, …

Por falar em Três Rosas Amarelas, vem-me à ideia a ideia de que Anton Tchekhov deverá ter tido uma enorme importância na arte de contar de Raymond Carver. O conto Três Rosas Amarelas é provavelmente um dos melhores contos de Carver. O conto glosa os últimos dias de vida de Anton Tchekov, na cama de um hospital em Badenweiler, na Floresta Negra. A sua mulher, Olga, narrou assim os momentos finais do grande escritor russo: “Anton sentou-se extraordinariamente erecto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (“Estou morrendo”). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injecção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: ‘Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe’. “Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para a esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direcção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança”. Esta é a narrativa de Olga nas suas memórias, mas o modo como Carver narra os últimos momentos de Tchekhov, no conto referido, é antológico da arte narrativa da história curta, conto, ou o que se lhe quiser chamar. Penso que o conto é uma homenagem, mas também a confissão de uma dívida.
Agora porém vou escrever sobre esta colecção de histórias curtas (prefiro chamar-lhes assim) que o escritor designou Queres Fazer o Favor de te Calares. Porquê voltar a Carver? Porque é de facto uma enorme paixão literária e porque algumas coisas ficaram por dizer no contexto da Catedral. Aproveitarei por partilhar outras ideias que penso serem oportunas. Do tipo, ‘não digam que eu não vos avisei’, passe a aparente imodéstia.
Carver tinha esse jeito peculiar para descobrir grandes títulos e de algum modo criando uma tipologia própria; sobretudo este e o De que Falamos Quando Falamos de Amor. Quando se pensa intitular qualquer colecção de textos, poemas ou contos ou mesmo ensaios, ocorre-nos sempre a ideia de descobrir um título assim, prosaico e minimalista nas intenções denotativas e chegamos a falar mesmo de títulos à Raymond Carver. Queres Fazer o Favor de te Calares é já em si um programa e um tipo de efabulação que se anuncia na banalidade discursiva que o título subentende. É o quotidiano que se vislumbra e as suas pequenas querelas, que porém são as maiores querelas da nossa vida. Atrevo-me a pensar que uma boa parte da felicidade que almejamos e que falhamos, por vezes por uma unha negra, outras vezes rotundamente, reside na resolução destas equações aparentemente banais mas infinitamente complexas do quotidiano, estas querelas tantas vezes patéticas, tantas vezes heróicas. Não há felicidade sem relação, de resto não há vida nem humanidade sem relação como o compreenderam os grandes filósofos da alteridade, do diálogo, da intersubjectividade, à cabeça dos quais coloco Martin Buber, neste plano da relação dialógica, mesmo antes de Lévinas. A relação dialógica pressupõe imediatamente a comunicação e portanto a ideia de comunidade como Agamben viu e magistralmente desenvolveu (1). Na harmonia dessa comunicação versus comunidade reside o segredo de grande parte do nosso equilíbrio emocional e da realização de uma vida globalmente conseguida. Razão tinham os aristotélicos e os epicuristas para enfatizarem com tanta veemência o papel da amizade na prossecução de uma vida feliz. Mas tudo — sentimentos, emoções, desejos etc, — regressa a montante, isto é remonta à questão da comunicação. A maior parte da nossa vida assenta em falhas na comunicação, em erros de comunicação, em equívocos e mal entendidos comunicacionais. Provavelmente o inferno não é o Outro como queria Sartre, nem o il y a da clausura do Eu, como exacerbava Lévinas, mas antes a ponte intermédia de que falava o nosso poeta Mário de Sá Carneiro: “Eu não sou eu nem o outro,/ Sou qualquer coisa de intermédio”. Nesse intermédio, e repare-se que a ideia de médio e de média já faz uma boa parte do percurso existencial que se anuncia e enuncia, vislumbra-se o elemento dialógico e de comunicação. Toda a obra de Raymond Carver se inscreve e intromete nessa brecha aberta pela incompletude estrutural da comunicação.
Neste volume o autor continua o que para mim se abre na Catedral, uma ruminação sofrida das dificuldades da partilha, dos ruídos da comunicação, paisagem essa com a dor ao fundo. É nesse sentido que se deve falar de um realismo sujo. O ‘sujo’ em Carver resulta da ideia de uma frustração, de uma disfunção, e nesse sentido a sua vida foi exemplar, com as sucessivas crises alcoólicas e afins, os seus vícios que não conseguia vencer, os ruídos que não lhe deixavam ouvir a música do mundo, tudo isso, que é a realidade, com seus detritos, lixos, ruídos, … etc.
Tudo isso, aparece na prosa de Raymond Carver e o que é mais, sem retórica, sem explicações ensaísticas, através de um despojamento austero e severo que é o que o minimalismo, no caso, significa. Essa é de facto a lição de moralidade que Raymond Carver nos dá. Ela reside, no que diz respeito à escrita, tal como Ezra Pound magistralmente sintetizou na expressão, “precisão sem concessões”.
“Queres Fazer o Favor de te Calares, Porquê Querido?, Escola Nocturna, O Que é que há no Alasca?, Você é Médico?, Bicicletas, Músculos, Cigarros”, etc. são contos, ou nem isso, pedaços de tempo e de espaço arrancados ao todo, mas fazendo parte do todo. Nos textos de Carver nós nunca deixamos de ouvir, embora mal, o ruído e a música de fundo que é a totalidade existencial a fluir independentemente de nós ou afinal, por nossa causa. Com certeza não haverá uma totalidade para além de nós que faça sentido, ou para fazer sentido deverá incluir-nos, mas a inclusão parcial entrecortada pelos ruídos é perturbadora. As falhas, as brechas, os buracos, por vezes alienam em nós o sentido da totalidade e provocam o sentimento de uma falha ontológica com repercussões existenciais. Ou será antes o contrário!?

1 Isto é uma nota, erudita, mas também muito pessoal.

Ultimamente, ao lado, quer dizer paralelamente, mas também à margem, tenho revisitado as filosofias do ‘comum’ e os seus filósofos, os clássicos e os hodiernos, e devo confessar a minha enorme emoção pelo facto de voltar a sentir prazer pelas grandes utopias sociais e comunitárias.
Fiel às minhas sempre renovadas preocupações pedagógicas — não é em vão que se exerce uma actividade de professor durante mais de quarenta anos e em todos os escalões de ensino, embora sobretudo no escalão universitário — não posso deixar de aproveitar o ensejo para partilhar, aqui e agora, apenas algumas pistas de leitura. Trata-se de obras de autores que ainda não fazem parte do acervo da Biblioteca Pública (Melhor: quase todos fazem parte mas alguns ainda não em língua portuguesa, o que acontecerá muito em breve). Assim deixo-vos, com menção honrosa, “O Despertar da História” de Alain Badiou, “Viver no Fim dos Tempos de Slavoj Zizek”, “Comunismo e Hermeneutica. De Heidegger a Marx” de Gianni Vattimo y Santiago Zabala, no caso de Vattimo, um caso de reconversão ideológica muito interessante e a seguir, “Democracy And Other Neoliberal Fantasies, Communicative Capitalism And Left Politics” de Jodi Dean e finalmente o best seller de Michael Hardt y Toni Negri “Imperio”, uma obra apaixonante sob múltiplos aspectos. Claro que a lista seria quase inesgotável se assim o pretendêssemos, bastaria começar a pensar só em autores americanos, como Richard Rorty, Terry Eagletton, Frederic Jameson etc., pois em todos se encontra muito viva uma redescoberta preocupação pelo ‘Comum’ e pela ‘Comunidade’ que está, não tenham dúvidas, outra vez na ordem do dia e a verdade é que o individualismo neoliberal aparentemente triunfante, sob a falácia pós histórica de Fukuyama, começa a ter que se confrontar com adversários de enorme qualidade intelectual e determinação social e cívica. Isto é apenas um aviso à navegação. Estejam atentos, até porque o que referi é uma ínfima parte. Termino com uma citação de Vattimo que por sua vez refere Richard Rorty. Esse mesmo!

“ (…) Por esa razón, como a Richard Rorty, también nos parece completamente equivocado que lo mas importante que los marxistas académicos actuales han heredado de Marx y Engels (sea) la convicción de que la búsqueda de una comunidad de coopération debe ser una tarea científica en vez de utópica, una empresa de altos vuelos teóricos en vez de romántica”.

Então é como se de repente se desse um regresso à célebre inversão coperniciana de Heidegger da 11ª Tese Sobre Feuerbach de Marx, inscrita na “Ideologia Alemã”, quando em 1961 na “Tese de Kant Sobre o Ser”, Heidegger, fazendo justiça ao tema da prioridade da transformação do mundo sobre a sua interpretação afirmava que mais importante ainda é que uma transformação pensada desse modo exige a prévia transformação do modo de pensar. E é disso que se trata hoje em dia e por isso o trabalho teórico conhece actualmente uma verdadeira revolução. Seria muito leviano e insensato ficar de fora deste poderoso processo revolucionário.
Como dizia o poeta: ‘anda tudo ligado’. Penso que percebem o que quero dizer. É, como disse, um simples aviso à navegação. Andam muitas ideias no ar, o nosso tempo está a ficar outra vez, depois de um certo marasmo, após a queda do Muro de Berlim, muito dinâmico, crítico e criativo.

18 Ago 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 23 – A viúva

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s teus músculos vão começar a contrair-se. Um processo que se prolonga por dez a vinte minutos. Não sentirás os músculos depois disso. Como se o teu corpo estivesse morto. Morto. Como se alguém tivesse desligado um interruptor. A única coisa que te parece funcionar é o cérebro. Durante esses dez ou vinte minutos irás tentar perceber o que fizeste. Irás pensar em todas aquelas vezes em que poderias ter voltado para casa. Deixar este lugar. Esta cidade maldita. Irás pensar na tua casa. Lá longe. Naquela ilha das filipinas. E como um barco que procura abrigo numa tempestade tentarás em vão combater a dormência. Porque já não tens enseadas. Nem uma enseada. Estiveste aqui a viver como uma clandestina. Mudaste de passaporte cada 5 anos. E, embora a paralisia se vá tornar completa a tua mente irá permanecer completamente acordada. Desta vez com um clareza especial. Procuras a razão de tudo isto. Porque estás aqui presa nesta cadeira. Tu que em toda a tua vida não passaste de uma empregada de bar. Que o mais ultrajante que fizeste foi aquele encontro louco com um homem que reconheceste mais tarde ter-se tornado político. Pois é exactamente por causa disso. Mas pensas. Não há nada. Nem por um momento pensaste em ir à polícia fazer queixa das agressões daquela noite. Não há nada. Nada foi provado. Tu esqueceste e acreditas que ele também esqueceu. Durante esses dez ou vinte minutos não irás conseguir entender todos os detalhes daquilo que eu vou dizer ou fazer. Mas tudo bem. O que importa é que retenhas uma coisa apenas. Estás aqui porque falhaste. Falhaste ou em tornar aquele homem feliz ou porque te intrometeste numa relação que ele poderia ter retomado se tu não tivesses acontecido. Para qualquer das coisas falhaste. Foste leviana. O que me importa é que falhaste. E que as tuas acções alteraram o curso de vida de quatro pessoas. Esta é a oferta da tua redenção. Vocês os católicos acreditam nisso não é? De acordo com os desejos da tua religião na redenção dos teus pecados eu vou cumprir esse destino. Eu sou a “viúva” e a minha missão é voltar a trazer ordem ao mundo. Por isso tenho que te retirar deste mundo. Porque ainda existe uma possibilidade de eu conseguir repor alguma ordem. Vou dar-te uma morte indolor. Pelo menos fisicamente. Mas não será instantânea. Será lenta. Uma morte lenta. 18816P16T1-B

Mesmo que a felicidade possa acabar. Tens que perceber que a felicidade não é uma coisa oferecida. E isto não é um trabalho pedido por alguém. É apenas, se quiseres, um negócio meu com o teu passado e com o meu passado. Sabes que tenho dois filhos. Um acompanhei durante quase toda a vida mas o primeiro… O primeiro foi uma menina. Tinha 16 anos e tive que a abandonar à porta de uma clínica em Cantão. Estávamos no ano de 1992. Tu deves andar pela mesma idade não? Quantos anos tens hoje? 57? 55? Quantos anos tinhas em 2016 quando foste para a cama com aquele homem que estava sempre deprimido naquele bar onde trabalhavas? 24? 22? Ou és mais nova? E perguntas tu o que tem isso tudo a ver agora em 2049? Passado tanto tempo. Apesar disso eu sei que ainda existe uma possibilidade de, passado o pânico, começares a perceber a razão de tudo isto. É que, na realidade, isto, esta punição que te imponho, é por amor. Pelo amor à filha que perdi. Na esperança que ela se possa reencontrar. Que possa reencontrar o homem da vida dela. Sim. É verdade. Aquele homem com que foste para a cama. Ela estava apaixonadíssima. E tu… Tu que fizeste? Intrometeste-te e quebraste o fio do destino. Vou-te dizer que tinhas duas hipóteses. Ou não te teres metido com ele ou teres feito com que ele desaparecesse contigo para as Filipinas. Poderias até ter mudado de cara. Ele mudou de cara muitas vezes. Eu, por exemplo, não me oponho à ideia de perder a identidade. Não estou particularmente vinculada ao nome ou ao rosto e não tenho nada mais a perder no passado. É por isso que hoje irei repor o destino. A redefinição do propósito da minha vida. Esta é a única coisa que me importa e a qual eu tenho ansiado. Estranhamente, a única coisa que realmente importa. Também eu disse muitas vezes para mim própria: “estou assustada… não quero ficar sozinha”.

Mas não. A solidão não é uma opção. É um dado adquirido. Houve uma vez que assassinei um líder de um grupo das tríades. Também tive que desaparecer. Mudar de rosto. Mudar de nome. Mudar de estilo de vestir. Mas a única coisa que quis realmente alterar foi o tamanho dos meus seios. Eram pequenos e tristes. Foi um descontentamento inabalável ter chegado a uma certa idade com aquela forma e tamanha de seios. Muitas vezes me ocorreu se a vida teria sido diferente se por acaso tivesse tido seios maiores. Se a vida teria sido mais serena. Mais normal. Por isso quando tive que mudar de rosto e de nome vi uma oportunidade para os aumentar. Esse foi o meu mais forte desejo de mudança. Uma certa necessidade de me sentir mais desejada. Uma estupidez pensarás tu. Tu que tens uns seios excelentes. Imagino que ao ver os teus seios aquele homem tenha perdido o controlo de si mesmo. Em contraste com os seios da minha filha que muito naturalmente seguiam a forma e tamanho dos meus. Mas sabes o peito de uma mulher não é um bocado de massa. Não é um ingrediente para ter melhor sexo. O exagero com que tu provavelmente deixavas ver um pouco mais foi a tua falha inicial. Sabes que o curioso em mim é que quando aumentei os meus seios tudo mudou. Não me tornaria mais numa irreflectida. E o meu trabalho, enquanto assassina profissional, refinou-se. Tornei-me numa espécie de fantasma que ninguém conhece e capaz de levar uma vida dupla. Antes tremia com tudo. Tremia quando um homem me tocava na mão. Mas a partir daquele momento foi como se tivesse destinado a mim mesma um deserto. Porque já não tinha mais nenhum desejo de mudança. E sem desejo veio o deserto. O deserto do corpo. Até se tornar um deserto ressequido. E não houve mais amor.

18 Ago 2016

A China e os Jogos Olímpicos 奥运先驱

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]s primeiros Jogos Olímpicos da actualidade realizaram-se em 1894. O Comité Olímpico Internacional enviou um convite à China, dirigido ao Imperador representante da Dinastia Qing, a última que deteve o poder neste país. A China ignorou o convite porque os administradores imperiais não faziam ideia do seu significado. Em 1904, muitos jornais chineses deram grande cobertura aos Jogos desse ano e, em 1906, uma revista chinesa publicou, pela primeira vez, um artigo sobre a história dos Jogos Olímpicos, falando sobre os seus antecedentes e sobre o espírito que lhes preside.
A 24 de Outubro de 1907, o famoso pedagogo Zhang Boling proferiu um discurso que fez história, na cerimónia de abertura de um evento desportivo em Tianjin. Na sua intervenção Zhang Boling salientava que, embora muitos países europeus tivessem poucas hipóteses de ganhar medalhas de ouro, não deixavam por isso de enviar atletas para participar nos Jogos. Defendeu activamente a ideia de que se deveria formar uma equipa chinesa para integrar as Olimpíadas.
Depois dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, um jornal de Tianjin voltou a abordar o tema dos Jogos. O jornal apelava à participação da China na próxima edição dos Jogos, enquanto organizava uma série de palestras e debates em torno dessa ideia.
Entre 18 e 22 de Outubro de1910 realizou-se a primeira edição dos Jogos Nacionais em Tianjin, onde se exibiram slogans, como “Participação nos Jogos Olímpicos!”, “China, o próximo país organizador das Olimpíadas!”. E então, em 1913, os primeiros Jogos Olímpicos do Extremo Oriente tiveram lugar em Nanking. A China foi um dos promotores e os atletas chineses obtiveram bons resultados e provaram o seu desportivismo. Posteriormente, em 1915, o Comité Olímpico enviou um telegrama aos organizadores dos Jogos do Extremo Oriente a reconhecer a Associação Desportiva do Extremo Oriente e a convidar a China a participar nas próximas Olimpíadas e na reunião do Comité Olímpico.

Em 1922, o chinês Wang Zhengyan foi eleito membro do Comité Olímpico. Em 1924, três jogadores de ténis participaram a título pessoal na oitava edição, que teve lugar em Paris. Finalmente em 1928, durante a nona edição em Amesterdão, a China enviou um observador oficial, Song Ruhai, para comparecer no evento. Esta presença marcou o primeiro acto oficial da China nos Jogos Olímpicos.

O Pólo é um desporto muito antigo na Ásia, conhecido entre os chineses por Jiju击鞠. Os nobres da Dinastia Tang (618-907) adoravam bater bolas de madeira com um bastão feito de crina de cavalo. Dos 19 imperadores, 11 foram fanáticos. Dois deles morreram mesmo em acidentes durante jogos de Pólo. Diz-se que o jogo foi introduzido pelos Persas e pela Dinastia Tubo do Tibete, e era muito praticado pelas antigas damas chinesas. Por vezes, era mais do que recreativo. Quando o Imperador Xizong teve dificuldade em escolher entre quatro candidatos à chefia militar da região de Sichuan, a decisão foi tomada a partir de um jogo de Pólo. O candidato de classe mais baixa, mas que era um excelente jogador, acabou por conseguir o lugar.

17 Ago 2016

Hesíodo – A aurora do Eu poético

[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]esíodo era pastor e rapsodo (não tem nada a ver com rap) e recitava poemas de Homero. Saber acerca do seu nascimento, só isso dava um romance. Pois a data em que viveu tem vindo a alterar-se ao longo dos séculos. Hoje é comummente aceite que Hesíodo é posterior a Homero, mas ao tempo de Platão, por exemplo, Hesíodo era considerado como anterior a Homero. Se pensarmos acerca disso, o facto de não haver muitos registos, de as comunicações serem muito precárias, e de a Teogonia mostrar a genealogia dos deuses, não parecerá assim tão estranho. Pois seria fácil de pensar que a Teogonia era a base do conhecimento de Homero para escrever as suas obras. Por outro lado, Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, reflecte a vida do campo, a vida do camponês e do proprietário rural, ao invés dos valores da nobreza e da guerra. Hesíodo é também um poeta de um profundo pessimismo, mostrando no seu poema Os Trabalhos e os Dias uma humanidade decadente e corrupta, bastante parecida com a dos nossos dias. Logo nos versos 25-26, podemos ler o seguinte: “O oleiro irrita-se com o oleiro, o carpinteiro com o carpinteiro; o mendigo inveja o mendigo, o poeta o poeta.”
Segundo o próprio Hesíodo, no início da Teogonia, a responsabilidade de ter passado de rapsodo a poeta deve-se a o facto de um dia ter encontrado as musas no monte Hélicon, que lhe insuflaram o talento de compor os seus próprios poemas. Contrariamente a Homero, e pela primeira vez na escrita do Ocidente, estamos diante de um poeta que fala em seu próprio nome, da sua própria história. Não só neste início da Teogonia, mas principalmente em Os Trabalhos e os Dias. Com a morte do pai, ele e o seu irmão Perses herdam a sua fortuna, que é dividida em maior favor de Perses, com a ajuda de juízes corruptos. Mais tarde, e novamente através da corrupção, Perses tenta retirar a parte da fortuna de Hesíodo. E é com este caso pessoal que ele começa a sua grande obra, Os Trabalhos e os Dias. Pela primeira vez, a poesia não se centra somente na repetição, recriação ou criação de mitos, mas passa também a ser veículo de vivências pessoais. E, além das vivências pessoais, que percorrem todo o poema, tem também a descrição da vida do campo. Há uma enorme ambiguidade no modo como o trabalho é cantado neste poema. Se por um lado há uma glorificação do trabalho, pela sua ligação estreita ao conceito de justiça, por outro lado não podemos falar de uma ética do mesmo. Pois o trabalho é uma necessidade, e tudo o que é necessário não tem valor. Valor e necessidade são antagónicos. Valor é algo a que atribuímos importância independentemente da sua necessidade. A amizade é um valor, pois podemos viver sem amizade; a honestidade é um valor, pois podemos viver sem ela; mas comer não é um valor, é uma necessidade; assim como o trabalho, para aqueles que não têm fortuna ou não são políticos de carreira. Por outro lado, o termo erga, trabalho, não tem hoje o mesmo sentido que tinha nesta altura na Grécia. Erga quer dizer trabalho agrícola, e não um outro tipo de trabalho. Mas há, e isto, sim, é de extrema importância, uma ligação estreita e profunda entre os conceitos de trabalho e de justiça, em Os Trabalhos e os Dias. Hesíodo escreve: “frequentemente uma cidade inteira sofre por causa dos crimes de um só homem, qualquer que seja: e em respostas às maldades deste, Zeus manda fome e peste, ‘e o povo perece’.” A honestidade está intrinsecamente ligada ao trabalho.
Há também neste poema aquilo que poderíamos considerar a primeira consciência de composição poética, no sentido formal. No final do mito de Prometeu, e de modo a conectar o mito de As Cinco Idades do Mundo, sem que se perca o sentido de exortação a Perses, ele tem de usar um artifício. Escreve Hesíodo, no final do mito de Prometeu: “Se quiseres, contar-te-ei um segunda história até ao fim. Acolhe-a, porém, no teu coração.” Temos, sem quaisquer dúvidas, um poeta diferente de Homero, um poeta que se coloca a si mesmo no centro da narrativa, para além de permanecer também na tradição dos deuses helénicos. Como escreve Alessandro Rolim de Moura, na introdução à edição da sua tradução de Os Trabalhos e os Dias: “Poderíamos talvez ver nessa diferença entre a postura homérica e essa guinada “autobiográfica” de Hesíodo o sinal de uma evolução, da passagem de um estágio em que o poeta se vê como um discreto intermediário das Musas para uma poética em que o artista está mais consciente de seus meios e apresenta uma individualidade mais delimitada.” (p. 19) Se é a vida do poeta que é relatada ou se trata de uma invenção, quando no poema o autor se refere a si próprio, é o que menos importa. E, como uma vez mais escreve Rolim de Moura “a pergunta sobre o estatuto verídico ou não desse “eu” hesiódico não é propriamente a questão mais interessante. Tem maior relevância a constatação de que o poeta se preocupa em apresentar uma individualidade assim definida e a investigação de como essa vida é imaginada e representada poeticamente.” (21)
Segundo Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, foi dado a Prometeu e a seu irmão Epimeteu, que eram titãs e não homens, a tarefa de criar o homem e todos os outros animais. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu encarregou-se de supervisioná-la. Epimeteu quer dizer “aquele que pensa depois”, assim como Prometeu “aquele que pensa antes”; isto é, Prometeu não pensa nas consequências dos seus actos e Epimeteu não pensa que algo de mal lhe possa acontecer. No poema de Hesíodo, Epimeteu distribui atributos por cada animal: coragem, força, rapidez, sagacidade… asas a um, garras a outro, uma carapaça protegendo um outro ainda. E, quando chegou a vez do homem, formou-o do barro. Mas como já tinha gasto todos os atributos disponíveis, com os outros animais, pediu ajuda a Prometeu. Este, que não tinha como ajudar o irmão, roubou o fogo aos deuses e deu-o aos homens. Como castigo, Zeus ordenou a Hefeto que acorrentasse Prometeu no cume do Monte Cáucaso, onde todos os dias uma ave lhe comia o fígado, que também todos os dias se regenerava. Este castigo deveria durar trinta mil anos. Para todos os outros homens, o castigo foi Pandora. Pandora (pan dôran) quer dizer “um presente de todos”; presente esse que se vai revelar envenenado. Prometeu tinha já avisado o seu irmão para não aceitar nunca presentes dos deuses, mas ele, estando sozinho e nunca desconfiando de mal algum, esqueceu a advertência do irmão e introduziu a mulher no mundo. Sim, porque Pandora é a primeira mulher na mitologia grega, criada por Hefesto e Atena, auxiliados pelos outros deuses, sob as ordens de Zeus. Cada um dos deuses deu-lhe uma qualidade. Recebeu de um a graça, de outro a beleza, de outros a persuasão, a inteligência, a paciência, a ternura, a habilidade na dança e nos trabalhos manuais. Hermes pôs ainda, no seu coração, a traição e a mentira. Estamos diante de uma equivalente da Eva bíblica. Mas enquanto a Eva é um presente bom ao homem (ainda que depois seja responsável pela queda da humanidade), Pandora é desde logo um mal que Zeus quis infligir na humanidade. Foi oferecida como presente a Epimeteu, que esquecendo as advertências de seu irmão Prometeu, a aceitou e desposou. Epimeteu tinha em seu poder uma caixa que os deuses lhe tinham dado, muito tempo antes, e que continha todos os males que existiam. Avisou a mulher que não a abrisse, mas Pandora não resistiu à curiosidade. Ao abrir a caixa, Pandora deixou que todos os males escapassem para o mundo, fazendo com que a humanidade passasse a ser afligida por eles. O mito de Prometeu explica a criação do homem, a aplicação da justiça divina e revela a relação com o trabalho.
Para além de se tratar de um mito da origem, de um génesis, é também um poema ético, que liga ao próprio tema do trabalho humano, e que não devemos aceitar presentes sem ter a certeza de os merecermos. A vida custa. Custa trabalho. Os deuses, e os outros, não nos dão nada, tudo tem de ser conquistado pelo trabalho. Cortar caminho, leva-nos seguramente a males maiores, como o exemplo da caixa de Pandora. Hesíodo é extremamente pessimista e isso é visível em vários versos, mas principalmente na própria concepção do poema Os Trabalhos e os Dias.
Na parte final do poema das “Cinco Idades”, também em Os Trabalhos e os Dias, a vida humana é pintada com cores negras, e é impressionante a actualidade dos seus versos, impressionante e aterrador, pois os versos mostra-nos claramente o quão pouco ou nada mudámos. Avançámos muito na tecnologia, mas quase nada no tocante ao que liga um humano ao outro ou a si próprio. O mito de “As Cinco Idades” divide-se em Idade do Ouro, Idade da Prata, Idade do Bronze, Idade dos Heróis e Semi-deuses, e Idade do Ferro (a Idade actual). Na primeira Idade os homens viviam à semelhança dos deuses, uma sequência constante de prazeres, pois desconheciam o cansaço, a doença e a dor. Depois de muitas anos de felicidade, a morte chegava como um suave adormecer. Esta idade foi totalmente destruída pelos erros do titã Cronos. Na segunda Idade, os homens eram todos fracos e tolos, incapazes de administrar as suas próprias vidas e incapazes de se ajudarem uns aos outros. Levavam anos para iniciar a vida adulta e não faziam distinção entre o bem e o mal. As suas vidas eram repletas de dor e de tristeza. Não se amavam uns aos outros e eram completamente indispostos para o trabalho. Roubavam-se e matavam-se uns aos outros. E, como não se submetiam aos deus, Zeus resolveu matá-los a todos. Seguiu-se então a Idade do Bronze, onde os homens eram altos e fortes, guerreiros destemidos, moldados em bronze, tal como as suas armas. Tudo era de bronze, nesta Idade. Não se cultivava a terra, viviam da caça e da colecta. Por fim, tornaram-se arrogantes e vaidosos e tentaram tomar o monte Olimpo, levando Zeus a matá-los a todos. A quarta Idade veio ao mundo com Hércules (Herácles, na nomenclatura grega), Teseu, Orfeu, Jasão, Aquiles, Agamémnon e todo o exército de heróis da mitologia grega. Os actos corajosos destes deu nome a esta idade, a Idade dos Heróis. Estes eram mais justos e mais nobres do que os das Idades anteriores. Recebiam frequentemente a visita dos deuses do Olimpo, partilhando com eles as alegrias e as tristezas. Muitos dos heróis eram filhos de algum deus, que os protegia. Grandes cidades floresceram nesta Idade: Atenas, Micenas, Esparta, Creta, Corinto e Maratona. Mas a Idade dos Heróis foi destruída. Muitos morreram as Sete Portas de Tebas, combatendo pelas riquezas do rei Édipo, e os outros morreram mais tarde, na luta que se travou durante dez anos nos muros de Tróia. Esta foi a geração ou a Idade representativa dos valores do homem helénico. Como final da idade dos Heróis, chega a Idade do Ferro. Zeus gerou da terra a abundante geração de ferro, que ainda hoje habita a terra. A vida é difícil para estes homens, pois têm de trabalhar para sobreviver, enfrentando diariamente problemas e provas. Os deuses também não lhes demonstra amor, já que se retiraram de vez para o Olimpo. Distribuíram algumas alegrias, mas o mal sempre excede o bem e obscurece a vida dos homens. Nesta Idade, os homens vivem com a lembrança da Idade que os precedeu, pois esta deixou uma rica herança cultural a ser seguida e, por isso mesmo, as suas histórias foram contadas pelos poetas.
Depois desta passagem pelos mitos do poema, regressemos ao trabalho, que é o que nos cabe, a todos nós, nesta Idade. Se honestidade está intrinsecamente ligada ao trabalho, como vimos anteriormente, o trabalho está intimamente ligado ao conceito de justiça. Este poema é também, como o próprio título parece anunciar, e não engana, um elogio do trabalho. Veja-se os versos de 308 a 311: “É com o trabalho que os homens se tornam ricos em rebanhos e em bens; / e ao trabalhar tornas-te preferido dos imortais e dos mortais, pois todos desprezam o ócio. / O trabalho não é nenhuma desonra, desonra é não trabalhar.” Podemos ver como estamos longe de Homero. Quase parecem palavras saídas da Bíblia. Mas o que está aqui em causa, em Hesíodo e na necessidade do trabalho, é a própria condição humana. O humano, nesta nossa quinta idade, foi condenado ao trabalho, e tem de assumir a sua pena de modo a cumprir os desígnios dos deuses. Estes deram-nos o trabalho como modo de nunca esquecermos a diferença enorme que nos separa. É preciso não esquecer que o trabalho era considerado uma actividade menor na cultura helénica arcaica, visto a maioria das tarefas serem asseguradas pelos escravos. Contrariamente a Homero, que glorifica o combate, ou a Píndaro, que glorifica a vitória, Hesíodo glorifica o trabalho. E isto, só por si, é uma revolução tremenda na Hélade. Aquilo que é comum a Homero e Hesíodo, é a não separação da ética da estética. Um poema tem uma carga ética. Um poema tem de ser formativo, exemplar. Mas os protagonistas de Os Trabalhos e os Dias são homens que precisam do trabalho diário para viver. Eles vivem da terra e dependem do esforço dos próprios braços para que a terra produza. Não podem contar com a ajuda de muitos escravos ou serviçais E este retrato contrasta profundamente com o que vemos nos poemas homéricos. Lá o foco principal da atenção são nobres guerreiros cuja relação com a dureza do trabalho agrícola está muito mediada. Certamente as comparações épicas trazem por vezes cenas de trabalho no campo, mas isso parece ocorrer numa realidade paralela à da Guerra de Tróia e das aventuras de Ulisses. Hesíodo expressa a mundividência de uma classe social diferente daquela cantada em Homero. Mas não se veja aqui uma espécie de luta de classes avant la lettre, pois nada mais errado pensar isso. Se por um lado, Hesíodo glorifica o trabalho e a vida do campo, por outro não desdenha da nobreza dos heróis, bem pelo contrário. Hesíodo apenas acrescenta um outro lado do mundo, um outro lado da vida, que estava afastado dos poemas homéricos e que, segundo ele, descreve melhor esta nossa era, a dele e a nossa. Nos versos 366-67, podemos inclusivamente ler algo que tem a ver muito com o nosso Portugal de hoje: aconselhar as pessoas a ter apenas um filho. No fundo, poderíamos dizer que com Hesíodo já não há heróis. Não há heróis antigos, os heróis são as pessoas que esgravatam na terra à procura de dias, de dias de vida. Desde o dealbar da poesia, que se sabe que não é o tema que faz a grande poesia, mas o talento com que se expressa esse tema. O que realmente está em causa na grande poesia, é que não há forma de distinguir o real do ficcional. A poesia é, na sua génese, mito, isto é, uma narrativa sobre as possibilidades do humano; e não uma narrativa sobre os factos humanos. É precisamente isso que Aristóteles, na sua Póetica, nos diz, quando escreve: “A história escreve acerca do que acontece, a poesia acerca do que poderia acontecer.” O poeta sente o tempo que é como se não houvesse outro, fazendo dele um para sempre, que é o que caracteriza a grande poesia. E não há para sempre estritamente real. O para sempre da poesia tem de ter um pé no mito, um pé bem fincado no que poderia ser.
Há que salientar a importância do conceito de justiça, para Hesíodo. No poema, quase no final, ele deixa claro que é através da justiça e não da força, que o humano pode prosperar em sociedade. A coragem é a coragem de ser justo e não a de vergar um outro. Não estou a dizer que não haja justiça em Homero, mas seguramente não desta forma explícita e valorativa que aparece em Hesíodo. Esta noção de justiça, como a grande diferença que nos separa dos animais, será o tom que irá reger grande parte do pensamento grego. E, por isso mesmo, a sabedoria também tem uma importância enorme em Hesíodo, aquilo que poderíamos chamar de trabalho intelectual. No início da parte seguinte de Os Trabalhos e os Dias, onde aparece uma ética do trabalho, ele escreve: “Também é nobre aquele que é convencido por quem diz boas coisas; / mas quem não recebe no seu espírito esses ensinamentos, / quer seja por si mesmo, quer seja ao ouvir o outro, esse homem é um inútil.” (295-97) O resto do poema desenvolve-se em tom de máximas para a família, o agricultor, o navegador, as relações sócias e a religião, intercalando sempre os conselhos pragmáticos com os práticos, o saber fazer com saber; por fim, faz uma espécie de fenomenologia dos dias, onde atribui a importância e a diferença de cada um dia do mês. Há um dia para cada coisa e ligado a uma razão específica; parte destas razões são mitos, parte são fruto da observação, do empirismo.
Fiquemos com este verso, quase no final do poema de Os trabalhos e os Dias: O dia, por vezes é mãe, por vezes madrasta.

16 Ago 2016

Pequim, 15 de Dezembro de 1977

* por António Graça de Abreu

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í vamos, meu amor
nos lábios do sonho
beijar os lírios e o mar,
na música do sangue
ouvir o vento cantar.

Pequim, 18 de Dezembro de 1977

Ontem caiu o primeiro nevão do Inverno. Desabituado a olhar uma cidade coberta pelo branco da neve, envolta pela pureza que não tem, o meu espanto de circunstância, em Pequim, longe de Portugal. Vieram-me à mente os versos já muito batidos, conhecidíssimos, de Augusto Gil, alusivos a um Inverno beirão, um poema que jamais recitei em qualquer récita escolar mas que sei de cor. Assim:

Bate leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva, será vento?
Vento não é certamente
e a chuva não bate assim,
(…)
Cai neve na Natureza
E cai no
meu coração.

Hoje veio a chuva gelada, a neve está a desfazer, o trânsito e os homens estão outra vez a conspurcar isto tudo. Sempre as reviravoltas dos dias, o encantamento branco não permanece muito tempo. Mas há-de nevar outra vez.

Pequim, 2 de Janeiro de 1978

Dia 31, no réveillon, fui jantar com o Hua Guofeng, o sucessor de Mao Zedong. Banquete de Ano Novo no enorme salão do Grande Palácio Povo, ali em Tian’anmen. Era eu e mais cinco mil pessoas em volta de três centenas de mesas redondas com umas tantas iguarias, uma espécie de manjar frio a comer exactamente no espaço de uma hora, o tempo certo destinado ao banquete. Os convidados de honra foram os quadros de topo do Partido Comunista, uma boa quantidade de embaixadores estrangeiros e umas dezenas de “especialistas” também estrangeiros, gente de confiança que trabalha para os chineses, por exemplo nas Edições de Pequim, como é o meu caso. Um sóbrio jantar, com música ao vivo, uma banda do exército que tocava marchas militares, e a subida de Hua Guofeng ao pequeno palanque dos discursos para referir os sucessos obtidos no ano de 1977, antecipar as vitórias a obter em 1978 e desejar um Bom Ano a todos. Admirei a pompa e circunstância.

Pequim, 20 de Janeiro de 1978

Reunião dos quatro portugueses da célula do PCP (m-l) em Pequim.
Eu digo:
“Somos todos diferentes, eu gosto mais do isolamento, dos meus livros, de ouvir o silêncio, de escrever, da minha música na paz da minha casa. O meu tipo de vida terá necessariamente de ser diferente do vosso. Gostava de aproveitar estes quatro anos para aprender tudo o que puder sobre a China, gostava que isso fosse possível convosco. É importante que me compreendam e me aceitem como sou”.

15 Ago 2016

Fim do Liampó português em Shuangyu

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Liampó, António de Faria, segundo Fernão Mendes Pinto, “Depois de ser desembarcado em terra, e lhe serem dados os parabéns da sua chegada, o vieram ali visitar todos os mais nobres e ricos, os quais por cortesia se prostravam por terra, em que houve alguma detença”. (…) “Daqui o levaram para a igreja por uma rua muito comprida fechada toda de pinheiros e louros, e toda juncada, e por cima toldada de muitas peças de cetins e damascos. E em muitas partes havia mesas em que estavam caçoulas (vasos de barro para cozinha, ou vaso de porcelana para queimar perfumes) de prata com muitos cheiros e perfumes, e antremeses de invenções, muito custosos.
E já quase no cabo desta rua estava uma torre de madeira de pinho toda pintada a modo de pedraria, que no mais alto tinha três curucheos, e em cada uma grimpa dourada com uma bandeira de damasco branco, e as armas reais iluminadas nela com ouro. E numa janela da mesma torre estavam dois meninos e uma mulher já de dias chorando, e em baixo ao pé dela estava um homem feito em quartos, muito ao natural, que dez ou doze castelhanos estavam matando, todos armados, e com suas chuças (chuço é uma haste de pau com choupa de ferro, afiado na extremidade superior) e alabardas tintas em sangue, a qual coisa, pelo grande fausto e aparato com que estava feita, era muito para folgar de ver. E a razão disto dizem que foi porque dizem que desta maneira ganhara um Foão de quem os verdadeiros Farias descendem, as armas da sua nobreza nas guerras que antigamente houve entre Portugal e Castela.
Neste tempo, um sino que estava no mais alto desta torre como de vigia deu três pancadas, ao qual sinal se quietou o tumulto da gente, que era muito grande. E ficando tudo calado, saiu de dentro um homem velho (idoso) vestido em uma opa de damasco roxo, acompanhado de quatro porteiros com maças prata. E fazendo um grande acatamento a António de Faria, lhe disse com palavras muito discretas quão obrigados todos lhe estavam pela grande liberalidade que usara com eles e pela grande mercê que lhes fizera em lhes restituir suas fazendas, pelo qual todos lhe ficavam dali por diante por súbditos e vassalos, com menagem dada de seus tributários em quanto vivessem. E que pusesse os olhos naquela figura que tinha junto de si, e nela, como em espelho claro, veria com quanta lealdade os seus antecessores de quem ele descendia ganharam o honroso nome da sua progénie (descendência, geração), como era notório a todos os povos de Espanha. Donde também veria quão próprio lhe era a ele o que tinha feito, assim no esforço que mostrara, como em tudo o mais que usara com eles. Pelo qual lhe pedia em nome de todos, que em começo do tributo a que por razão de vassalagem lhe estavam obrigados, aceitasse por então aquele pequeno serviço que lhe oferecia para murrões (morrão é um pedaço de corda enleada com que se põe fogo às peças) dos soldados, porque a mais dívida protestavam de lha satisfazerem a seu tempo. E com isto lhe apresentou cinco caixões de barras de prata em que vinham dez mil taéis.
António de Faria lhe agradeceu com muitas palavras as honras que até então lhe tinham feitas e o presente que lhe ofereciam, porém por nenhum caso lho quis aceitar por muito que todos nisso insistiram”, Fernão Mendes Pinto na Peregrinação. Segunda-feira, 14 de Maio de 1542 zarpou de Liampó António de Faria.

Expulsar os piratas

Em Shuangyu, este porto de Liampó temporariamente nas mãos dos portugueses, pois feito sem permissão do governo chinês, terminou em 1548-49 quando foi destruído. Tal se deveu, segundo Fernão Mendes Pinto, a Lançarote Pereira que praticou as brutalidades que originaram a destruição da colónia portuguesa de Liampó. Já Gaspar da Cruz atribui aos “chineses que andavam entre os portugueses, e alguns portugueses com eles, vieram-se a desmandar, de maneira que começaram a fazer grandes furtos e roubos e a matar alguma gente”. Anota Rui Manuel Loureiro, “Os portugueses, de facto, deverão ter cometido algumas depredações no litoral de Liampó, em circunstâncias ainda mal esclarecidas, mas que parece terem estado ligadas a roubos cometidos por intermediários chineses”. E seguindo com Gaspar da Cruz, “Foram os males em tanto crescimento e o clamor dos agravados foi tão grande, que chegou não somente aos loutiás grandes da província mas também a el-rei. O qual mandou logo fazer uma armada muito grossa na província de Fuquiem, para que lançassem todos os ladrões da costa, principalmente os que andavam em Liampó, e todos os mercadores, assim portugueses como chineses, entravam na conta dos ladrões.”
Segundo João de Deus Ramos, “Em 1547 Zhu Huan foi nomeado Vice-Rei das duas províncias de Fujian e Zhejiang, e deu mostras de ser forte ânimo no rigoroso cumprimento das proibições em vigor quanto ao comércio com os estrangeiros. Conseguiu assim criar as mais fortes inimizades em todos os sectores da população que beneficiava daquele comércio”. Já Rui Loureiro refere que “a corte imperial chinesa despachou para as províncias meridionais de Fukien e Chekiang, o vice-rei Chu Wan em 1548, com o encargo de debelar o surto de pirataria que afectava aquelas regiões”.
“A 14 de Maio de 1548, Zhu Wan preparou o estratagema para atacar o Porto de Shuangyu (Liampó dos portugueses). Deu ordens ao Comandante Regional Lu Tang para com o Comandante Wei Yigong, ambos de Fujian, seguirem e aí esperar a melhor oportunidade de em conjunto começarem o combate. A vitória na batalha naval foi conseguida em Jiushan. A destruição de Liampó só aconteceu mais tarde”, segundo Deus Ramos. Já Victor F. S. Sit refere, “Em 1547, Zhu Wan, o chefe militar de Zhejiang, deu uma tremenda derrota aos navios portugueses em Shuangyu, mandou incendiar as mil casas que havia na ilha e todos os barcos utilizados no comércio ilegal e mandou encerrar o porto. Os portugueses tiveram que fugir para o Sul, acabando por chegar a Sanchoão (Shangchuan) e a Lampacau (Langbai), ilhas da província de Guangdong. A ilha de Sanchoão (Shangchuan) acabou por ser o último ponto de paragem dos portugueses antes de se estabelecerem em Macau”.

Fim do estabelecimento provisório

O segundo período de contactos na China, entre portugueses e chineses, acabou com a batalha de Zoumaxi (走马溪, Ribeira de Cavalos Galopantes) em 1549, período que podemos designar como “Entre Chincheo e Liampó”, segundo Revisitar os Primórdios de Macau.
Gaspar da Cruz conta: “Fazendo-se prestes a armada, saiu-se ao longo da costa do mar. E porque os ventos lhe não serviam já para poder ir a Liampó, foram para a banda do Chincheo, onde achando navios de portugueses começaram a pelejar com eles, e de nenhuma qualidade deixavam de vir nenhuma fazenda aos portugueses”. Já Rui Loureiro refere: “Ao contrário do que afirma Fr. Gaspar, a armada chinesa, a instâncias de Chu Wan, atacou na realidade o entreposto de Liampó em 1548, interrompendo o intenso tráfico ilegal que os estrangeiros ali realizavam. Depois do assalto a Liampó, o comissário imperial Chu Wan desencadeou uma violenta campanha contra a navegação estrangeira na região de Chinchéu, onde os portugueses se tinham entretanto refugiado”.
E seguindo com Gaspar da Cruz, “Estiveram assim muitos dias pelejando (os portugueses) às vezes para verem se podiam ter remédio para fazerem suas fazendas. Passados muitos dias e vendo que não tinham remédio, determinaram de se ir sem ela(s). O que sabendo os capitães d’armada, mandaram-lhe(s) de noite muito secretamente um recado, que se queriam que lhe(s) viesse fazenda, que lhe(s) mandassem alguma coisa. Folgando muito os portugueses com este recado, fizeram-lhe(s) um grosso e honrado presente e mandaram-lho de noite, por assim serem avisados. Dali por diante vieram-lhe(s) muitas fazendas, fazendo os loutiás que não atentavam nisso e dissimulando com os mercadores. E assim desta maneira se fizeram as fazendas aquele ano, que foi de 1548”.
João de Deus Ramos, “No ano seguinte deu-se um acontecimento que ficaria conhecido pelo , bem demonstrativo de que a fase do conflito e do comércio ilícito entre portugueses e chineses estava a chegar ao seu termo.
Já se viu como o Vice-Rei Zhu Huan ganhara a maior impopularidade ao querer impor com rigor as proibições do comércio com os estrangeiros. Em 1548 a frota de Diogo Pereira dirigiu-se à China. Determinou que as mercadorias que levava fossem transportadas em dois juncos chineses. Depois de alguns recontros violentos que determinaram a sua partida, deixou no entanto ficar os juncos, comandados por Fernão Borges e Lançarote Pereira, acompanhados de trinta portugueses e mais gente, na expectativa de ainda fazerem algum negócio. As forças navais chinesas não perderam tempo em apresá-los, matando alguns dos nossos e fazendo prisioneiros outros. Mas os tempos eram diferentes, e em vez de vir de Pequim a confirmação de sentenças, como acontecera trinta anos antes, foi despachado um Comissário Imperial para investigar o caso. Considerou que os portugueses não eram culpados dos crimes de que os acusavam, mas apenas pacíficos mercadores. Lê-se num documento da época: […], Carta de Afonso Ramires. O Vice-Rei Zhu Huan suicidou-se, e outros oficiais foram executados.
Terminava o período do conflito e do comércio ilegal, estava criado o ambiente, e as condições de parte a parte, para o surgimento de Macau.”
“Em 1549, foram expulsos das terras de Chincheo e, entre 1550-1553 fixaram-se sucessivamente em Sanchoão, Lampacau e depois Macau.” (Wu Zhiliang, História do Desenvolvimento Político de Macau, 1999).
E terminamos no Cap LXII da Peregrinação, em que Fernão Mendes Pinto refere de um episódio de 1540/1, “E chegando à vista do junco, (António de Faria) mandou que a lorcha se passasse da outra banda, por que abalroassem ambos juntamente, e que ninguém disparasse nenhum tiro de fogo, por que não sentissem os juncos da armada que estavam dentro no rio o tom de artilharia, porque acudiriam a ver o que era. Tanto que as nossas embarcações chegaram ao lugar onde estava surto o junco, ele foi logo abalroado sem nenhuma detença, e saltando dentro vinte soldados se senhorearam dele sem contradição alguma…” Esta frase descontextualizada das circunstâncias e sem os antecedentes, remete no entanto os portugueses à actividade de pirataria, mas neste episódio aconteceu atacar um barco amigo.
Segundo Bento de França nos “Subsídios para a História de Macau “nos finais de 1556 navegava por aquelas costas um terrível pirata, Chan-si-lau a quem os portugueses, para agradar ao mandarim local, deram caça e acabaram com o seu reinado”. Era já Macau local usado pelos portugueses para esperar os tecidos de seda vindos de Cantão.

12 Ago 2016

Curva perfeita

[dropcap style=’circle’]À[/dropcap]s vezes, desenhar uma curva perfeita. Desenhá-la no desafio de o fazer à mão livre. Começar pelo gesto natural. Aquele gesto espontâneo, livre e delimitado à partida, nas possibilidades que lhe são inerentes. O gesto aprende-se com o tempo. Claro. E por tentativa e erro. O olhar poderoso, que aprende com as imperfeições do erro. Mas que precisa, mesmo assim, de truques. Pequenos truques honestos. Desenhar uma curva perfeita é um teste ao olhar. Não se faz com a mão senão no mínimo inultrapassável. Começar pelo natural. E depois inverter e olhar. E depois girar noventa graus. E depois cento e oitenta e de novo noventa. E emendar. Ir emendando a imperfeição do olhar unilateral. De cada olhar. E às vezes o olhar precisa de dias até encontrar os limites da perfeição. Aparente. Às vezes anos. Até se tornar visível aquele detalhe ínfimo do erro. Outra coisa é o corpo. A qualidade específica de uma linha, uma curva um volume particular. Que, dependendo do olhar e de critérios, pode ser simplesmente o lugar perfeito da imperfeição. E dizer o contrário também. O lugar físico e extremo oposto à idealização dos gregos antigos. Ou uma curva do caminho. A que aparece no momento certo do mapa. A curva perfeita. Um exercício de perfeccionismo em que se afasta sempre a perfeição, do frio rigor. O frio cortante de um inverno rigoroso. Traçado a régua e esquadro. Cortado à lâmina. Antes a perfeição dependente de um olhar. Apurada no olhar. Descoberta progressivamente na específica, irremediável imperfeição do que é para ser assim. Apaziguada no olhar. Para dentro dos espaços cristalinos da retina, por detrás dos arcos a proteger o baú-tórax, ou bem entranhado nesse cofre, craniano e inviolável. O olhar da vida à temperatura do corpo.
Saio de casa e está um dia lindo. Quando é para sair de casa não basta nem sobra saber se está um dia lindo. É preciso sair para a vida. Como ela se apresente. E, outras vezes, está um dia lindo e nem assim saio de casa. E fico a regular as portadas em função da luz. Para que não queime as plantas. A regular a troca de aragens entre janelas opostas. A parar a meio do corredor, a sentir, a ver se refrescou um pouco. A lembrar o Alentejo e como também ali, nas tardes de canícula, e quanto mais forte a luz mais se baixavam as pálpebras, as persianas sobre o calor cortante e demolidor. Não há como o verão. Não há outra estação mais natural e próxima da essência do humano, da temperatura da pele. O anseio anual de uma liberdade que, se bem que condicional, é a carícia da pele e da alma que se quer atenta ao existir e não em fuga para a frente. Mas afinal saio e isso eram os dias antes. Hoje, uma espécie de cortina fina e amarelada, subtilmente a sujar o azul intenso do céu destes dias. A lembrar-me Marselha de há uns anos e também Atenas e as suas atmosferas de poluição a danificar a alma com uma qualidade doentia, incomportável aos pulmões em alguns dias. E aqui, não sei. Será dos fogos ou de uma outra conjuntura atmosférica que não adivinho. Ou de mim. Que afinal estava presa à casa nos dias lindos e deixei passar o azul do céu. E lembro-me de Atenas e sempre daquele amigo que conheci em viagem para lá, Angelous, curiosamente. De volta da recruta com o seu efebo clássico e mudo de timidez. Que nos levou a ambos para casa. E que como um anjo de facto, e surpreendido, e desencantado da sua cidade e do que nela se procurava de ideal, me guiou pelo pouco que naquela cidade feia ainda era bonito de ver. Uma cidade corroída pela poluição, enriquecida de história e destruída pela história havia muito. E faz sentido que este amarelado discreto do céu me lembre outros lugares porque hoje é o dia, sem o ser em absoluto, em que começo férias. Quase férias. Enfim, decidi. Lá mais para a tarde. E onde se ligam estas realidades ansiadas de partida, de memória, de liberdade. Essa liberdade que não se dá, não se confere mas simplesmente se deve reconhecer como direito intrínseco. Como o automatismo da respiração registado no cérebro para ir sendo. Ou das batidas cardíacas. E de tantas implicações e a ter que ser gerida por critérios. Éticos. Compromissos. E que parece ser estruturalmente parte e natureza dos seres em geral. Anseio. Expectativa. De perfeição e imperfeição. De ir e de não ir.
E depois volto. Naquela assumida e imperfeita decisão de instituir esse fim de tarde como o início de férias. O calor no limite do suportável. A luz. Entro numa porta a dar para uma frescura discreta e ampla, o lugar envolto na obscuridade interior natural e noto de novo, com uma ténue impressão de frescura ainda dentro dos limites do quente. Mas suave. Eu não gosto de ter frio no verão. Ali, um calor suave sem agressão. A vida à temperatura do corpo. Talvez. Um espaço de muitas mesas e lugares de sentar como possibilidade, desde o canto mais remoto, à imediação da porta. E todas vazias. E com um pequeno cinzeiro branco convidativo. E o som bom. Sentei-me a ouvir, a ausência de pessoas e música variada. Às vezes aquelas palavras de cortar os pulsos mas a embalar os ombros em ritmo ‘disco’. E reggae e um jazz ou outro pelo meio, e à segunda imperial estava a sentir-me capaz de dançar sobre a mesa. Só por me sentir bem, e em troca, aquele barman discreto que inventou generosamente um lugar todo para fumadores e, parecia, só para mim naquele momento, ter um pequeno episódio surreal para contar aos netos. De resto, se tivesse seguido as pedras da calçada até casa seria muito parecido. A obscuridade a cortar o sol ainda excessivo de fora, a frescura no copo. A música. Só que seria outra música, outra cadeira e outra luz. E só por isso valeu a pena a estação de paragem. Essa pequena diferença entre aquela cadeira e a outra, aquela penumbra e a outra. É que ali fora, o sol ainda quente a escorrer nas paredes já em sombra, podia ser na medina, no souk. Ou o lugar perfeito da imperfeição. De não ser, podendo.
E atrás do balcão, num recanto protegido com carinho, um aquário e duas pequenas tartarugas. Não sei se se pode dizer dos bichos – destes – terem uma forte impressão de infelicidade. De outros, sim. Mas só me lembrei de inúmeras outras iguais a esta a nadar na água fresca de um lago, de um jardim, de uma cidade. Tudo longe. E elas iguais. Mas pergunto se serão iguais na alegria com que esbracejam as pequenas patinhas nesta água delimitada por vidros nada amplos, expostas ao olhar ampliado como por uma lente. E não sei. E delas, se bem que de realidade tinham tanta como a medina, o sol e o deserto no fim da tarde, para além da porta, como de cerejas retiradas distraidamente de uma taça, vieram agarrados outros pensamentos. Como sempre gostei destes bichos e de um cágado enorme na sua lentidão e feiura quase ainda pré-histórica, no quintal de uma tia, com tanto chão para percorrer naquela sua mansidão quase intemporal e uma enorme hortência para fugir ao calor do Alentejo. Ou se esconder. E lendas. Mitos. A pensar no mito da tartaruga. Símbolo de lentidão mas também de silêncio. Várias versões como sempre nos mitos. Lenda de que caminhamos num mundo assente sobre a carapaça de uma tartaruga gigante e que é querida a muitas culturas. O mito da tartaruga, ou a condenação por castigo de uma lentidão que pode ser preguiça. A simbologia que a ela associa o silêncio. A ela e à casa carapaça sempre por perto. “Intrame maneo”. Permaneço dentro de mim mesma ou em silêncio o que é a mesma coisa. E que não há maneira de prolongar muito mais este momento e esta sensação. E que, como sempre de maneira imprevisível outra impressão vai voltar. E penso como consolidar este momento para além dele. E penso no paradoxo de Zenão, ilustrado pela corrida entre Aquiles e a tartaruga. E tento medir as possibilidades de eternizar este momento com base na possibilidade de o tempo ser constituído por um número infinito de partes. E de esta, de este momento, poder ser adiada para a metade da parte do próximo momento e depois para a metade da metade dele e abeirando-me sem sair do lugar desse abismo entre tempos, que é o avançar lento, cada vez mais lento e infinitesimal, encontrar aí a forma utópica de, no limite, permanecer nele. Indo, mas não saindo deste limiar. O limiar de outras sensações mais recorrentes.
E, fico a pensar numa forma de explicar ou fundamentar esta nítida e reconhecida redundante sensação de bem-estar. De estar bem apesar de todas as questões de sempre e de nenhuma nova se imiscuir nesta família de preocupações que me obscurecem. Tantas vezes. E de, como tantas outras, haver um momento em que tudo existe e mesmo assim é possível estar bem. E penso que está na hora de pagar, sair para a rua e voltar a casa. Para dentro. E o peso da carapaça como o peso da vida, dos ossos. Ou não. Ela não sente geralmente o peso do que faz parte dela.
Tenho tantas vezes a impressão de que chego muitas vezes tarde. À vida, talvez. Mas é maior o consolo de não ter alguns defeitos , que o desgosto de não ter algumas qualidades. E a pensar no paradoxo. E se se aplica. Se nele encontro a contradição desta conclusão demolidora. Porque onde Aquiles era o mais rápido, nunca alcançava no entanto o pequeno passo do animal, que na sua lentidão nunca estava no mesmo lugar próprio a ser alcançado. E a questão dos referenciais. E depois penso que é só um paradoxo com incoerências demonstradas em outros referenciais teóricos aos quais a consciência ontológica não alcança. A minha. E que, por outro ado, não havendo nunca no paradoxo o encontro, na fugacidade de um e outro, porque possuidores de referenciais diferentes, cada um à beira do seu abismo mental como mental é a figura do tempo, e pensando que eu sou a tartaruga e Aquiles a vida, sei que uma e a outra são reciprocamente o que num dado momento se afigurar como consciente. Que não há distância física entre as duas e sim e sempre no âmbito de coisa mental. E que não há corrida nem competição, nunca haverá uma meta para atingir ou uma corrida para ganhar porque o destino da vida é a anulação da própria vida em termos parciais, pontuais. Que é o que se é. Parte e ponto. De partida, com um avanço determinado em relação ao passado, ou de chegada a um ponto que é descontínuo no desconhecido. O momento de agora, à beira do qual todo o futuro se avizinha perto ou inatingível. Que importa? E que a única coisa que corre é um tempo, esse desmesurado desconhecido. Corre no caminho que é sempre escondido por uma curva. E tentar ver a curva perfeita.

12 Ago 2016

O Simbolismo do Caos. Demanda ou Vazio?

Pynchon, Thomas, V, Fragmentos, Lisboa, 1989
Descritores: Literatura Americana, Romance, 422 p.:23 cm, tradução de Rui Vanon
Cota: C-10-7-45

Thomas Ruggles Pynchon, Jr. Nasceu em Long Island no dia 8 de Maio de 1937. Frequentou a Oyster Bay High School, de onde saiu em 1953. Estudou Engenharia em Cornell, prestigiada universidade da chamada Ivy-League, mas abandonou o curso no segundo ano para se alistar na marinha americana. Mais tarde, em 1957, voltará a Cornell para estudar inglês, tendo-se formado em 1959. Além de V, livro de estreia e logo premiado, eu destacaria o célebre Leilão do Lote 49 de 1966 e O Arco-Íris da Gravidade  de 1973, considerado a sua obra prima.

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s etiquetas valem o que valem e por vezes não valem nada. Costuma considerar-se Thomas Pynchon como um dos maiores expoentes do pós-modernismo. A verdade é que desde que a designação foi cunhada por Jean-François Lyotard (sobretudo) mas também por Frederic Jameson e outros, começaram a aparecer atribuições de pós modernidade a muitas obras que não o eram antes. De algum modo tornou-se moda designar uma obra de pós-moderna. Porém, penso que no caso de Thomas Pynchon a atribuição é pertinente. Eu penso que é mais fácil identificar o pós-modernismo em outras artes ou em outras áreas do pensamento e da cultura do que na literatura seja ela ficção ou poesia, mas não será impossível.
No caso de Pynchon, a fragmentação discursiva e narrativa, a miríade de personagens superficialmente tratadas, as múltiplas histórias e intrigas paralelas, o carácter caótico da narrativa, dispersivo e muitas vezes anacrónico onde sobressai uma valorização das relações light e soft e dos episódios puramente circunstanciais e evanescentes consubstancia de facto uma estética que decorre de uma teoria do conhecimento que evita as chamadas metanarrativas. V-thomas-pynchon-290
Além disso a dispersão temática, enciclopédica mas superficial, por áreas como a física, matemática, química, filosofia, parapsicologia, ocultismo, banda desenhada, cinema, música pop, etc., com tratamento humorístico, pouco sério, senão mesmo provocatório e jocoso, assim como o relativismo axiológico que daí resulta, conduz a uma clara atitude de desvalorização de temas considerados nobres pela Modernidade. No entanto, em toda a obra de Thomas Pynchon, pressente-se através do Stream of consciousness que lhe é peculiar, sobretudo no ‘V’, a presença tutelar de uma grande figura da Modernidade, que é James Joyce e o seu Ulisses. Toda a obra de Pynchon pode ser assim considerada paradoxal no plano da sua construção estética, com um pé na Modernidade e ao mesmo tempo em ruptura, afinal como toda a chamada pós modernidade. É essencialmente por saturação referencial e pela valorização das estruturas micronarrativas que os seus romances se colocam no caminho performativo do pós-modernismo. Nada que se compare com William Gaddis ou Donald Barthelme onde a ruptura é sobretudo estilística e temática.
Pessoalmente sou sensível, na obra de Pynchon, à sua dimensão paranóica, que resulta sobretudo da sobreacumulação informativa. Este excesso entrópico funciona, no entanto, às avessas, transformando a sua narrativa num imenso discurso sobre o vazio. O relativismo axiológico a que me referi perspectiva uma redução niilista integral, por decepção. A única escapatória para a decepção integral é o riso. Contudo, para mim, a própria obra de Pynchon resulta numa enorme decepção. Talvez que eu seja demasiado moderno. Admito.
Thomas Pynchon é considerado, como disse, um dos principais expoentes do romance pós-moderno, ao lado de outros autores consagrados, como sejam William Gaddis, John Barth, Donald Barthelme, Don Delillo e Paul Auster. Mas se aceito a companhia de Gaddis, Barthelme ou Barth, tenho muita dificuldade em aceitar que Don DeLillo ou Paul Auster integrem este grupo. Em 1988, Thomas Pynchon foi premiado pela Fundação MacArthur. O crítico literário Harold Bloom nomeou mesmo Pynchon um dos quatro romancistas de língua inglesa “canonizáveis”, juntamente com  Don DeLillo, Philip Roth e Cormac McCarthy. Enfim, opiniões. Discordo profundamente com a integração nesta lista de Cormac McCarthy mas sobretudo de Don DeLillo. E pergunto, e porque não incluir Raymond Carver, provavelmente o maior génio da prosa minimalista e o maior especialista americano em shorts stories without story, a par de Joyce Carol Oates. Mas menos discutíveis ainda são John Updike, no registo burlesco e John Barth que nascendo em 1930 abre esta geração nascida na década de 30 (… é por isso o fundador do pós-modernismo na ficção norte americana), da qual fazem parte os autores referidos e ainda Donald Barthelme, como já disse.
Mas vamos ao texto. Tendo acabado de obter dispensa da Marinha, Benny Profane contenta-se com uma existência ociosa passada entre os amigos, onde a única ambição é a de ser perfeito na arte do engano, e onde a palavra «responsabilidade» é considerada obscena. Entre os seus amigos, chamados Whole Six Crew, está Slab, um artista que parece ser incapaz de pintar outra coisa que não seja queijo dinamarquês. Mas a vida de Profane muda dramaticamente quando ele se torna amigo de Stencil, um jovem ambicioso e activo com uma missão intrigante, a de descobrir a identidade de uma mulher chamada V, que conheceu o seu pai durante a guerra, mas que desapareceu repentina e misteriosamente.
O livro é portanto centrado nesta demanda simbólica da misteriosa ‘V’ que jamais saberemos quem seja até percebermos que simplesmente não existe e talvez nunca tenha existido, tal como o ‘K’ de Dino Buzzati. E isso descobre-se cedo o que arrefece muito o interesse do romance, relativamente a um pequeno entusiasmo inicial, até porque o interesse literário é escasso; sobrevive no texto algum sentido de humor, mas se comparado com autores como Bruce Chatwin e mesmo Salinger, não passa de um bocejo. Entretanto pelos caminhos dessa procura insensata de Nova Iorque até Malta passando pelo Cairo e Alexandria, entre outros lugares, cruzamo-nos com espiões, filósofos, vagabundos, intriguistas, etc. Porém tudo acontece de modo muito anárquico e sem sentido e muitas vezes fastidioso. Pynchon foi, para mim uma grande decepção, como Don DeLillo ou  Jonathan Franzen, porém por motivos claramente distintos. De DeLillo ressalvo, contudo, a primeira meia centena de páginas de Submundo. Nem todos os autores podem escrever livros com mais de quatrocentas páginas como Thomas Mann, Tolstoi, Stendhal ou Musil, entre outros, mas não muitos. A lista de livros gordos, pretensiosos, mas falhados, é enorme. Dentre os mais recentes tenho presente os calhamaços de Franzen, apesar das críticas favoráveis, o 2666 de Bolaño, apesar de tão incençado, mas para mim impropriamente, o Cosmopolis de DeLillo e outros onde os autores se ficaram pelas boas intenções. Mas para além dos autores já referidos que escreveram romances grandiosos em todos os sentidos e nem me lembrei, por exemplo, das Almas Mortas de Gogol, ou do Herzog de Saul Bellow é justo dizer que o formato não impede que se possa atingir o estatuto de obra prima …. Que não se pense que trago aqui uma opinião caprichosa na sua essência, pois acredito mesmo que os autores tanto quanto os livros possuem em si uma dimensão intrínseca, no caso dos romances, e um fôlego ou uma respiração própria, no caso dos autores. Alguns são sprinters e outros são corredores de fundo e meio fundo, digamos assim. Um editor russo disse-o por outras palavras a Nabokov. Vou citar este e não o editor que nunca o terá escrito: “Um editor disse-me uma vez que cada escritor traz gravado dentro de si um número determinado, isto é, um número exacto de páginas que nunca ultrapassará em nenhum livro. O meu número era, salvo erro, o 385. Tchekhov nunca poderia escrever um verdadeiro romance comprido” por exemplo, mas já Tolstoi, podia e devia, digo eu. Depois Nabokov continua assertivamente com acerto, como era seu timbre. No que disse sobressai a ideia de que o escritor “nunca ultrapassará” o seu número. Isso seria verdade se o escritor o soubesse e a verdade é que, para sua desgraça, deles, a maioria esmagadora dos escritores não faz ideia de qual seja, pelo que acontece que ora fiquem aquém desse número, ora o ultrapassem largamente. Quando ficam aquém, quase nunca é tão grave como quando o excedem largamente, excedendo assim a dimensão fixada pela providência. Eu lembro-me que ao ler Saramago dizia: — e na época ainda não tinha lido as magníficas Lectures on Russian Literature, publicadas pela Harvest Books de Nova Iorque em 1982 — se ele fosse controlado por editores à moda antiga, e bons, pois os houve, os seus romances teriam, na sua melhor fase, a fase do Memorial, do Cerco ou da Jangada, menos cinquenta páginas pelo menos e alguns teriam ficado verdadeiras obras primas, assim…  ficaram apenas livros muito bons, mas ligeiramente desequilibrados. O caso mais gritante é a História do Cerco de Lisboa. Mais tarde finalmente o escritor encontrou o número de páginas certas e adequadas, mas salvo algumas excepções as ideias é que já não eram tão boas. Ora, regressando ao motivo deste meu excurso, o problema das obras de Thomas Pynchon é esse, não um número excessivo de notas como o arquiduque da Áustria terá, pleno de aristocrática idiotice, dito a propósito de uma partitura de Mozart, mas um número excessivo de páginas, esperando eu não estar a ser tão idiota quanto o outro. Nesta questão da dimensão da obra, que sinceramente sempre me preocupou, esqueci-me de referir Norman Mailer e John dos Passos, mas sobretudo de uma obra prima de um escritor, aliás escritora, o Midlemarch de George Eliot.
Repare-se no élã do primeiro parágrafo de Middlemarch:

“Miss Brooke had that kind of beauty which seems to be thrown into relief by poor dress. Her hand and wrist were so finely formed that she could wear sleeves not less bare of style than those in which the Blessed Virgin appeared to Italian painters; and her profile as well as her stature and bearing seemed to gain the more dignity from her plain garments, which by the side of provincial fashion gave her the impressiveness of a fine quotation from the Bible,— or from one of our elder poets,— in a paragraph of to-day’s newspaper. She was usually spoken of as being remarkably clever, but with the addition that her sister Celia had more common-sense. Nevertheless, Celia wore scarcely more trimmings; and it was only to close observers that her dress differed from her sister’s, and had a shade of coquetry in its arrangements; for Miss Brooke’s plain dressing was due to mixed conditions, in most of which her sister shared. The pride of being ladies had something to do with it: the Brooke connections, though not exactly aristocratic, were unquestionably ‘good”.

Ora, isto não roça a perfeição ou mesmo o sublime. Isto é da ordem da perfeição e do sublime. Raras vezes em toda a minha vida me foi dado ler um arranque de romance tão perfeito e de resto a literatura inglesa possui muitos. Eu, que infelizmente não domino a língua inglesa como gostaria atrevi-me depois desta primeira página a ler directamente o Middlemarch na sua língua original, pois de facto sente-se que seria uma pena traduzir esta página e afinal tudo o resto. A leitura de Middlemarch curou-me momentaneamente da decepção que foi Thomas Pynchon. Depois deste cheirinho, não acham que terei razão. Provavelmente foi uma imprudência minha ter ido ler o Middlmarch a meio de leitura de romances como o V de Thomas Pynchon ou o 2666 de Bolaño. Agora acho que nunca irei chegar ao fim da leitura de ambos e que outros aparentados já não irão merecer sequer que os comece, a não ser que tenha de ser, por motivos profissionais.
Vou finalmente regressar ao V, prometendo já que é para pôr fim a esta crónica. É verdade que Profane ao fazer ioiô ao longo da costa leste se vai cruzando com uma fauna humana por vezes interessante. É verdade que o narrador arranca pedaços de prosa com qualidade aqui e ali e cito salpicadamente: “Profane dobrou a esquina. Como sempre acontecia, East Main, caiu-lhe em cima sem aviso prévio”. Eu percebo o que o aviso, quer dizer, pois a mim já me aconteceu as ruas cairem-me em cima com aviso e sem aviso. Assim, quando fiz o Costa a Costa desde S. Francisco até Nova Iorque subindo e descendo para não evitar os desertos e os canyons, foi com aviso prévio que caí em cima e dentro da Bourbon Street em Nova Orléans, mas já foi sem aviso prévio que me caiu em cima a Beale Street em Memphis. Na altura lembro-me muito bem que o episódio da Beale Street me fez pensar na pequeníssima evocação do que é a vida, feita pela Marguerite Yourcenar num texto da colectânea, O Tempo Esse Grande Escultor, quando, explorando a ideia de transitoriedade, fugacidade e precariedade escreve pela boca de um ‘thane’, chefe de clã, poeta e visionário:

“Creio que a vida dos homens na Terra, quando comparada aos vastos espaços de tempo de que nada sabemos, se assemelha ao voo de um pássaro que entrou pela janela de uma grande sala onde arde ao centro uma lareira (…), enquanto lá fora reina a invernia, com as suas chuvas e neves. O pássaro atravessa a sala num ápice e sai pelo lado oposto; vindo do Inverno, a ele regressa, perdendo-se aos teus olhos. Assim também a efémera vida dos homens de que não sabemos o que havia antes e o que vem depois”.

Obviamente que, com as devidas distâncias, assim me senti momentaneamente engolido para dentro de um cone de luz e conforto, vindo da noite e à noite regressando. Foi um puro instantâneo que porém depois prolonguei, estacionando algures e regressando à Beale Street para comer qualquer coisa ouvindo a boa música do sul e ouvindo uns tipos absolutamente anacrónicos a falar de blues, Muddy Waters, BB King e Elvis Presley: Confesso que foi hilariante e inesquecível.
Como a tripulação do contratorpedeiro USS Scaffold estava ausente, pois o navio tinha zarpado em direcção ao Mediterrâneo, andavam caras novas a servir nos bares da cidade “praticando os mais doces sorrisos de puta”, enquanto a essa hora o navio lançaria pelas chaminés negros flocos sobre os futuros ou já presentes cornudos. Por esse motivo teve Profane direito à sua Beatrice, mas a verdade é que os marinheiros chamavam Beatrice a todas as empregadas, tal como bebés indefesos, e todas as noites tinham direito a beber cerveja por torneiras de espuma de borracha em forma de seios, a que se chamava a grande mamada. Mas em menos de duas páginas entrou em cena a Pig que tinha uma Harley que nenhum polícia apanhava e uma Paola da qual saíam histórias, cada uma mais rocambolesca que a anterior, mas que Profane só acreditava pela metade porque, como ele dizia, “uma mulher é apenas metade de qualquer coisa que tem habitualmente dois lados”. Profane, ficou com ela apenas uma noite, o suficiente, no entanto, para lhe ensinar uma canção de um paraquedista francês, que era baixo e tinha a estrutura de Malta, isto é: “rocha e um coração imprescrutável”. Acreditem, isto é apenas o princípio. Há no texto muito mais pérolas como estas, mas, … quer dizer, o problema são as páginas, muitas, através das quais se multiplicam como moscas multidões de personagens masculinas e femininas além de ruas, bares, cidades, lugares, encontros e desencontros e acontecimentos de variadíssimo género, com outras narrativas dentro e essas também multiformes como a narrativa principal, numa proliferação neoplásica, e claro o que é demais cansa, até que desistimos. Eu desisti por volta da página 351 numa edição com mais de quinhentas. Por favor não me venham dizer que deveria ler o livro todo e sobretudo não o façam invocando questões de natureza ética, ou assim. Em jeito de compromisso direi que vale a pena ler uns capítulos desgarrados até por que se o leitor tiver lido as primeiras cem páginas por exemplo, depois já escusa de ler a eito. Vá lendo respigando aqui e ali porque irá sempre encontrando belos achados, provocatórios e inteligentes por vezes mesmo incandescentes. É o conjunto que desilude, como se não houvesse arquitectura prévia. É isso, ou eu sou talvez moderno de mais, para esta literatura, chamada pós-moderna. Que me perdoem.

11 Ago 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 22 – Ele

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]remorso. A culpa. O arrependimento. Aquilo que deveria ter feito e não fiz. Aquilo que deveria ter dito e não disse. Aquilo que não deveria ter feito e fiz. Aquilo que não deveria ter dito e disse. O remorso. A culpa. O arrependimento. Afogados em álcool. Num outro bar. Porque já não pode ser o mesmo. Porque não posso encontrar o acidente da outra noite. Porque esse acidente me afunda mais neste estado sem paz. Neste bar que parece perdido no tempo. Num tempo qualquer que não o nosso. Neste bar que me recorda o bar onde senti que te tinha perdido. Que nos tínhamos perdido. E que apropriadas as palavras da música que se ouvia ao fundo. E que apropriada a voz em lamento. Um lamento lamechas. E embalava o silêncio de nós. Naquele momento no qual não tínhamos mais nada para dizer.

“Where are those happy days, they seem so hard to find / I tried to reach for you, but you have closed your mind / Whatever happened to our love? / I wish I understood / It used to be so nice, it used to be so good / So when you near me, darling can’t you hear me? / S. O. S. / The love you gave me, nothing else can save me / S. O. S. / When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?…”1

Devia haver mais que uma palavra para o amor. O amor que mata. O amor que redime. O amor que acredita na culpa e o amor que salva a respiração. O que fazemos nós pelo amor? O que podemos fazer? Que extremos podemos chegar? Morrer por amor? Como Romeu e Julieta? E como Romeu ser enganado pelas circunstâncias e forçar a tragédia sobre nós? Aqui permanecerei eu. Aqui onde a minha carne não é mais que um capa desesperada. Aqui onde o céu desapareceu. Aqui onde o amor se perdeu. Aqui onde não devemos sentir o remorso. A culpa. O arrependimento. Aqui onde nem devemos sentir. Onde podemos atingir o insano. A demência. Porque não sentir é em si uma espécie de demência. Mas olham para nós como se fossemos nós os que não são sãos. E talvez seja isso mesmo afinal. Porque o amor pertence aos que não são puros. Aos não imaculados. E não ser puro é ser autêntico. E não ser puro é ser verdadeiro. Porque o amor pertence-nos a nós que temos dúvidas. Que matamos e morremos por amor.

E a triste, triste face da minha juventude. Mas porque pareceu que era esta a única possibilidade? Porque me sentia sozinho? E se sinto solidão quando estou só quer isso dizer que sou à partida uma má companhia? E que a minha solidão te atingiu? Te consumiu. Chegou até ti como um vírus? E como sobreviver a isto? Erros antigos acabam por vezes por criar sombras enormes dentro de nós. E como viver com essas sombras? Através da mentira? E uma mentira puxa a outra. E nenhuma curiosidade acerca disso. E o que é a curiosidade sobre o outro realmente? Puxar aqui e ali pontas de segredos? Procurar os pontos fracos e fortes? As decepções? As ilusões? Ou o completo reverso? E quando a curiosidade atinge o seu fim o que resta? De novo a decepção? E não há maior decepção que a decepção do eu. Quando te disse que estava decepcionado deveria ter dito que estava decepcionado comigo. O que eu queria dizer era que estava triste. Deveria ter tido a coragem. E deixei o erro de julgamento cobrir tudo o resto. E tudo aquilo que nunca fui sensível. Que assumi como oferecido. Que não duvidei. Porque tu és a mais bonita mulher do mundo. E não importa se nunca notei quando punhas batom ou se te vestias de propósito para mim. O que importa é tudo aquilo que nós esperámos de nós. O que tu esperaste de mim. O que eu esperei de ti. O que eu nunca esperei de mim.

Porque quando o amor encontra aqueles que não são puros. Os não perfeitos. Oferece-lhes uma via. Mas depois vem o medo. O medo é que nos mata. E a pessoa de quem temos mais medo é aquela a quem depositámos toda a nossa confiança. E temos medo de nós. Daquilo que somos ou não somos capazes de fazer. E o medo cresce até se tornar uma doença. A doença de ter medo de perder o outro e deixar de sermos nós. E desse modo acabar mesmo por perder o outro. O outro e nós. E não interessa o sexo. Sexo é apenas desejo. Uma comichão que precisa de ser coçada. Um arranhão que tem que ser dado. Uma dentada solta. Não interessa. Não resolve. Mas o amor. O amor é algo incompreensível. Que não se justifica. Que não se conhece. Que surpreende. É por isso que o medo é tão forte a combater o amor. Porque no fundo estamos todos quebrados por dentro. Com a alma em cacos. Que não conseguimos mais juntar. E é aí deixamos de ver o outro. Porque não nos conseguimos mais ver a nós próprios. E nesse momento não há ninguém que tenha a culpa. E não devemos forçar a culpa sobre nós próprios. O arrependimento. O remorso.

“…You seem so far away though you are standing near / You made me feel alive, but something died I fear / I really tried to make it out / I wish I understood / What happened to our love, it used to be so good / So when you near me darling can’t you hear me? / S. O. S. / The love you gave me, nothing else can save me / S. O. S. / When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?”

E as tuas palavras que me ecoam na cabeça. Acusações. Acusações que não eram acusações mas sim gritos desesperados de socorro. De compreensão. E as tuas palavras que me chegaram como setas. E eu surdo. E dizias que eu olhava para ti e assumia coisas que não eram verdade. Que toda a gente olha para ti da mesma forma. E que eu afinal também. Que tinhas vindo para esta terra tão cheia de esperança. Tão agradecida por deixar para trás um passado tão mau. E que eu, de toda a gente, devia conseguir ver o que as pessoas nesta terra não conseguem discernir. Que não percebem o modo como nos tratam. Mas eu deveria ser diferente. Que eu via a solidão. Via o isolamento. Via o modo como olham para nó. Eles olham para nós como se fossemos monstros. Porque eu, de toda a gente, deveria saber isso tão bem como tu. Porque, apesar de aceite numa qualquer comunidade de hipotéticos escolhidos, e independentemente de ser de cá, tenho um tom de pele diferente. Porque tenho raízes estrangeiras. E que eu deveria perceber o que é não ter terra. Não ter família. Ter sido abandonada ainda bebé. E o quanto custa tentar tanto fazer parte de alguma coisa aqui. Encontrar um espaço. O quanto custa e que custa tanto que por vezes se perde a respiração. O quão difícil é apenas ser. Apenas ser. Porque nem isso parece ser possível. As tuas palavras e o remorso. A culpa. O arrependimento.

“When you’re gone / How can I even try to go on? / When you’re gone / Though I try how can I carry on?”

1. Abba – S.O.S.

Nota: Por lapso não foi referido no episódio anterior (21) que a citação pertence a “Os Hinos à Noite” de Novalis. Pelo facto o autor pede as suas desculpas aos leitores.

11 Ago 2016

Imagens da liberdade: alguns momentos privados da Revolução 自由的身影:抗日战争中的摄影家沙飞的两张作品

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]fotógrafo Sha Fei 沙飞 registou imagens da violenta guerra que assolou a China durante os anos 30 e 40. Formado pelo Instituto de Artes Vocacionais de Xangai, entre 1936 e 37, Sha Fei conhecia as tendências artísticas ocidentais e sentia-se atraído por ambientes pictóricos. Influenciado por fotógrafos e outros artistas seus contemporâneos, tanto chineses como ocidentais, Sha Fei foi um dos pioneiros do modernismo. A sua obra inicial reflecte a paixão por paisagens semi-abstractas, onde detectamos a influência de fotógrafos proeminentes como Edward Steichen e o seu “país de nuvens” e de Lang Jingshan que trabalhou a fotomontagem. Em 1936 Sha Fei conheceu o escritor Lu Xun. Este encontro viria a mudar a sua vida. O seu trabalho passa a ser marcadamente político, publica em revistas conotadas com a esquerda e torna-se famoso com as fotos de Lu Xun, em Xangai. Pouco depois, passa a colaborar com o Governo Nacionalista e muda-se para Taiyuan, na zona da fronteira de Chin-Cha-Chi, com o 8º Exército de Infantaria. Instala-se na frente de combate e passa a dedicar-se totalmente ao fotojornalismo. Image 1
A partir de Agosto de 1937, começa a fotografar com fortes contrastes de luz e sombra, soldados, pescadores, camponeses e trabalhadores em poses heróicas, à semelhança de muitos outros modernistas. Destaca-se deste conjunto a fotografia do comandante Nie Rongzhen com a rapariguinha japonesa à sua guarda (1940). Por causa de todo o seu potencial teatral esta foto foi usada pela propaganda comunista. Os documentos de Sha Fei deste período, com os seus close-ups de figuras humanas colocadas numa paisagem quase monótona, lembram muitas vezes os instantâneos de figuras revolucionárias. Uma visão magistral do homem e da natureza foi a marca do seu trabalho, fotos hipnotizantes que pareciam querer fazer-nos esquecer a guerra por uns momentos.

Escolhi duas imagens para partilhar convosco, dois momentos que me fizeram lembrar as personagens de Brokeback Mountain.

Imagem 2: O comunista canadiano Norman Bethune, cirurgião de profissão, representado como uma figura cosmopolita a chapinhar nas águas cintilantes do rio, no cume de uma montanha. Sha Fei e o Dr. Bethune eram amigos próximos. Image 2
No Verão de 1939 Sha Fei fotografou uma série de nus usando Norman Nethune como modelo, quer fosse a banhar-se nas águas do rio, quer fosse a tomar banhos de sol no majestoso cume da montanha. Os nus já apareciam na arte chinesa tradicional, no entanto, ainda era um assunto controverso na China dos anos 30.

Imagem 3: A guerrilha ataca sorrateiramente as posições inimigas. Este era o lema do exército anti-japonês, com base em Hebei ocidental. Nesta foto de 1939, Sha Fei mostra-nos a poética paisagem fluvial do sul da China sob a ameaça da guerra iminente.

10 Ago 2016

O futuro não tem temporada

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á em Homero, na Ilíada, encontramos o aviso acerca da possibilidade de se perder a vida, e pôr outras a perder, por causa das paixões que nos assolam e às quais não resistimos. Foi assim com a guerra de Tróia, como o foi ao longo de tantas e tantas existências ao longo dos séculos, mais ou menos relevantes para a humanidade, ecoando ou perdendo-se no silêncio de uma vida, como recentemente – tendo a história da poesia como medida – no exemplar De Profundis, de Oscar Wilde. Entregar-se à paixão que se abate sobre si mesmo, ao invés de lhe resistir, de lhe dar luta, pode levar-nos à responsabilidade da guerra de Tróia ou à da perda da nossa própria vida, ou parte dela. E é precisamente nesta tradição, que podemos situar a poesia de Pedro Gonzaga, poeta nascido em 1975, em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cidade onde ainda vive. Pedro Gonzaga tem dois livros de poesia editados, ambos pela ArdoTempo, Última Temporada (2011) e Falso Começo (2013). Iremos percorrer a poesia dele, aqui, através do seu primeiro livro, Última Temporada. Se lermos com alguma atenção o título deste livro de poesia de Pedro Gonzaga, entendemos de imediato do que se trata: de um livro que faz apresentações de modalidades em torno da expressão “última temporada” e do que isto possa significar numa alma humana. Por conseguinte, não iremos fazer outra coisa senão falar do título do mesmo, nas suas diversas modalidades de apresentação. A expressão “a última temporada”, assim sem referente determinativo, como no título do livro, é uma expressão com dois sentidos quase opostos, mas que aqui se amalgamam de modo a nos mostrar de um modo privilegiado a vida e a linguagem que expressa essa vida. Passemos então a ver o que está em causa no título do livro.
Quando alguém diz “a última temporada” de uma peça de teatro ou a “última temporada” de uma série televisiva, está a dizer que, depois de várias outras temporadas anteriores, depois de vários meses ou vários anos, esta aqui e agora onde estamos é a última. Quer isso dizer que depois desta já não vai haver mais nenhuma. Esta é a última, a derradeira temporada, acabou-se. A derradeira temporada pode muito bem ser a vida de cada um de nós, aquela vida que somos aqui e agora, a que nos carrega ou que com ela carregamos.
Assim, A Última Temporada, de Pedro Gonzaga, numa primeira instância remete-nos logo para a vida de cada um de nós, aqui e agora. Mas como “última temporada”, neste sentido, tem necessariamente de ter um antes do agora, isto é, é preciso existir uma ou mais temporadas anteriores para que se afirme “última temporada”, a última temporada aqui não pode ser a vida, pois as pessoas não tem vidas anteriores. capaultimatemporadaweb
Por conseguinte, esta última temporada é a última temporada da vida, aquela a que se atribui, ou alguém atribuiu, ser a parte final da vida de alguém. A vida humana é assim dividida em temporadas pelo título do livro. Aqui não podemos deixar de lembrar o poeta francês Rimbaud e o seu livro Une Saison en Enfer, Uma Temporada No Inferno. Mas aqui trata-se da última parte da vida humana, e não de um interlúdio amoroso mal sucedido. E o escândalo deste título assume aqui a sua extensão máxima, se tivermos em atenção a idade do poeta, trinta e poucos anos, e tratar-se do seu primeiro livro de poesia. Sabemos isso pelos poemas “herança”, onde se pode ler à página 15: “(…) aos 35 anos / com meus dentes perfeitos (…)”; e pelo poema “para além dos bancos de areia prateada”, onde, na página 36, se lê de um modo algo jocoso, nos últimos dois versos: “señor, não se chega impunemente / ao trigésimo quinto inverno”. Por conseguinte, não podemos deixar passar isto em claro, tomar a coisa por irrelevante. Ora, se um poeta regista em um poema a sua idade, 35 anos, e ao mesmo tempo põe o título ao livro de A Última Temporada, é porque, evidentemente, quer que fique claro que a partir de agora é o início do fim. Para trás ficou tudo o resto, todas as outras temporadas, e se boas ou más não importam aqui e agora. Não se pense também precipitadamente que se trata de um livro de despedida, pois o mesmo poeta remata o poema “descobertas”, à página 52, da seguinte maneira: “(…) serei um homem-bomba / até aos noventa anos”. O poeta entende que a última temporada da vida humana é a mais longa ou, pelo menos, pode vir a ser muito mais longa. Longa, aqui, quer dizer infindável. E, ao mesmo tempo, um infinito de perdas. Leia-se em “imperativo”, página 43:
 
se puderes fechar
os olhos para o real
fecha agora
não te preocupes,
antes, aproveita
hão-de acordar-te
os credores
a dor no ciático
o fingimento da mulher
que nunca se entrega
 
Por outro lado, e também como pudemos ler no excerto anterior, não se trata de uma poética do queixume ou de qualquer denúncia situacional ou de adversidade. Não, aqui a denúncia é a da condição humana (e não a de um humano em particular). E a responsabilidade do que se faz com essa condição humana, desconhecendo-a ou dissecando-a, é nossa. No fundo, aquilo que neste primeiro sentido se pode apurar para o título, A Última Temporada, é o seguinte: a partir de agora é que é a sério, a partir de agora é que se vai ver o que a vida é, pois até aqui foi a brincar. A partir de agora a vida é a doer, como se usa dizer, nos embates desportivos. Um segundo sentido que a expressão e o título A Última Temporada parece ter, escrita assim sem qualquer referente definido, é a de “a última temporada” de verão. Por outro lado, a última temporada de verão pode ter ainda dois sentidos distintos, a saber, que essa última, a outra anterior a esta em que estamos, é que foi boa, ou que a última, a anterior foi muito má e esperamos que esta agora seja muito melhor. Julgo que podemos excluir de imediato a segunda subdivisão, pois a análise que se fez em relação à primeira modalidade do sentido da expressão de “última temporada” assim mesmo o obriga. Parece ter ficado claro anteriormente que a “última temporada” a que o poeta se refere não é melhor do que as anteriores. Como ele mesmo termina o penúltimo poema deste livro “versos de agora, versos de antes”:
 
versos de agora,
versos de antes
vocês sabem que fomos
o que duas criaturas humanas juntas
não poderão nunca superar
 
Dito de outro modo: fomos o insuperável. Fomos! E fica, já quase no fim do livro este eco interminável em nossos corações: fomos, fomos, fomos, fomos, fomos… Comecemos então pela análise do sentido desta segunda modalidade do entendimento que se faz da expressão que dá título ao livro e que, como iremos ver, ao invés de ser contraditória em relação à primeira será antes complementar. Comecemos por pensar que essa outra temporada, a anterior, cheia de sol e de alegria, não é esta aqui e agora, cheia de chuva e de tristeza. E bem podemos dizer isso, pois leia-se os seguintes versos do poema “estrada”, à página 19:
 
mais uma vez a armadilha
mais uma vez o desejo
nenhuma certeza subsiste
nunca fica mais fácil
nada se aprende
da estrada percorrida
 
Para além de que nunca ficar mais fácil, reparemos ainda numa questão técnica, como se fosse suplementar, como se a poesia não fosse toda ela a vida exposta com técnica e alguma ternura: Pedro Gonzaga divide os seus poemas em pontuados e não pontuados. Há nos primeiros uma sensação de náusea a que o leitor mais atento não escapa, como se cada vírgula fosse uma curva na estrada, nos levando a contragosto montanha acima. Confira-se isto, por exemplo, no magistral poema inaugural do livro. O poema fala do amor, fala da possibilidade do amor nos acontecer, mas ele é escrito com tantas curvas, com tantas vírgulas, que quando ele termina com os seguintes versos
 
quando alguém me diz
Ah, o amor é fácil
mal contenho a vontade
de cuspir-lhe na cara
 
é um alívio a viagem terminar. Mais: se ele não cuspisse, nós mesmos provavelmente vomitávamos, depois de tanta curva, de tanta e tanta vírgula num poema. Por conseguinte, depois de tanta dificuldade ainda ir escutar alguém dizer que o amor é fácil, ninguém merece, como diz a voz de Deus, a voz popular.
É, sem dúvida, um dos exemplos da superioridade poética de Pedro Gonzaga, da mestria com que usa a técnica única com que podia ditar este poema. Mas, no outro poema que falávamos atrás, cujo título se chama precisamente “estrada”, ele retira todas as vírgulas, retira todas as curvas, fazendo deste poema uma estrada a direito, como se a vida fosse isso mesmo, sempre a direito, como se a vida fosse ir de Porto Alegre até à Argentina. Sempre a direito. Ou seja, nossa vida vai daqui ali num instante, ela vai daqui, onde estamos agora, a um imenso e eterno nada, com o desejo pelo meio. O nada aqui, obviamente não é a morte, é não se aprender nada. Iremos sempre daqui para a Argentina para nada, para não se aprender nada. Está bem de ver, então, que esta “última temporada” a que me refiro agora, é a temporada passada, é o passado, é aquilo que já foi um dia, que aconteceu e já não é e já não volta.
A primeira modalidade de expressão de “a última temporada” tem os dois pés bem vincados no presente, ao passo que a segunda modalidade de expressão de “a última temporada”, tem a cabeça lá trás, no passado. A primeira é aqui e agora sem referências ao passado, a não ser enquanto lógica linguístico-temporal: se esta é a última é porque teve outra ou outras antes desta. Estas duas “últimas temporadas”, uma que nos mostra a consciência do fim eminente e, a outra, que nos mostra uma anterioridade melhor do que o presente, o aqui e agora, é aquilo de que trata, e muito bem, este livro. Estamos literalmente entre a espada e a parede. A parede é o passado atrás de nós que não nos deixa fugir para o tempo bom, recuar até ele, e a espada é aquilo que aqui e agora nos ameaça, o presente prenhe de um futuro laminoso (e me perdoem o neologismo). De outro modo, e me fazendo de sujeito do livro, passo a dizer: eu entendi que é aqui e agora, aqui onde estou, a última temporada, esta é a minha vida e já nada mais me resta até ao fim senão ir sofrendo cada vez mais, declinando lentamente e estar exposto a todas e mais algumas intempéries usando a técnica e a ternura; por outro lado, ficamos também conscientes de que a temporada passada, a da adolescência, a da juventude é que foi boa e não esta aqui e agora, que se mostra como sendo a última, a última dança. Podemos ler à página 30, nos versos finais do poema “procela”, o seguinte:
 
finis terrae
a praia prometida
o barulho das folhas
ilusório verão
Ilusório verão
 
E é como acaba o poema: ilusório verão. Precisa de explicações, ilusório verão? E “procela”, que diz tempestade no mar, precisa de explicações? Mar esse que não é só a vida, é também aqui a vida de um poeta. Aliás, no poema podemos ler estes belos versos, preciosos, testemunhais:
 
há um mar em Camões
há um mar em Pessoa
 
Mas querem ver o gume mais afiado da espada que aponta o peito do poeta, esse presente prenhe de futuro de que falámos atrás? Escutemos então, e vejamos como a vida humana só pode ser pior a cada dia que passa, pelo extenso verso com que termina “o baile”:
 
eu sou o medo do dia em que haverei de abraçar o corpo frio de meu pai

Há, contudo, vários outros medos que o poeta afirma ser, antes desse medo último, derradeiro. Medo que é também o meu. Medo que causa um arrepio pela existência acima! Mas passemos então agora, e sem demoras, ao centro do vulcão deste livro, aos poema “a primeira rebentação”, e aos seus oito versos finais, e ao poema “em algum lugar”. Comecemos pelo primeiro destes poemas:
 
éramos invisíveis
e o que não entendo,
minha adorada,
enquanto seguem a quebrar
as ondas sonoras
na praia deserta do presente
é quem foram aquelas criaturas
que ressurgiram das águas
 
Sim, quem foram aqueles que fomos? Quem éramos nós, que já não estamos aqui? Como é possível haver outros agora ali fazendo de nós? Onde é que fomos parar, que não nos reconhecemos senão naqueles que não somos? Mas o abismo inultrapassável destas modalidades de últimas temporadas, assume a sua expressão mais pungente no poema dedicado a Sérgio Fischer, denominado “em algum lugar”, e que nos leva a um hospital de uma qualquer parte do mundo e à temporada derradeira de alguém (presumivelmente o amigo a quem o poema é dedicado). Leia-se uma vez mais os oito versos finais de um poema, desta feita os versos finais de “em algum lugar”:
 
lá dentro atrás da porta verde
está o amigo que um dia amamos,
lá está o patrimônio
de tantos almoços
e cafés na juventude
lá estará o tempo
de um telefone
mudo à cabeceira
 
Repare-se na fantástica transformação do espaço em tempo através do advérbio de lugar “lá”. Começa por dizer o poeta, com uma locução adverbial de lugar, “lá dentro”; lá dentro onde a morte já se instalou e o amigo passa a ser “antes”, através do verso “está o amigo que um dia amámos”. “Um dia”, aqui, é o mesmo que antes, que é o mesmo que nada, pois aquilo que começa por parecer nos colocar num lugar, “lá”, passa a “um dia” e “um dia” passa a nada, através dos penúltimo e último verso “lá estará o tempo” e “um telefone mudo à cabeceira”. O tempo, visto como um telefone mudo à cabeceira, é o perto mais longe do mundo. E ficámos a saber que um telefone que não toca é o tempo mudo. O tempo mudo é o inferno. Assim, e de modo magistral, a vida humana passa de espaço a tempo, de um lugar preciso para um tempo passado e de um tempo passado a nada, esse substantivo aterrador por excelência. Não podemos deixar de focar a precisão impressionante da forma verbal onde o tempo vai aparecer e transformar o dia em nada: “estará”! No futuro está o nada. No futuro está aquilo que já não somos, onde poeta e amigo são uma e a mesma coisa: lá dentro, um dia, estará o tempo; todos nós vendo a morte de alguém e sendo vistos pelas lágrimas de outrem. O futuro não tem temporada.
 

9 Ago 2016

Pequim, 30 de Novembro de 1977

*por António Graça Abreu

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omecei a estudar chinês. Tem de ser. Não posso continuar a ser um glorioso analfabeto em terras da China, um miserando português que não sabe, nem conhece um caractere do tamanho de um autocarro e não consegue alinhar três palavras seguidas em chinês.
No meu trabalho, traduzir (do inglês ou francês!), corrigir traduções e dar aulas de português não necessito muito do chinês. Tenho por perto o pessoal chinês que rapidamente serve de intérprete e resolve os problemas de tradução. Mas se me lanço sozinho por dentro de Pequim, como é? Se avanço solitário, como sei que irei gostar, por dentro da China, como me desenrasco?
E depois para entender as mentes chinesas é necessário saber como eles falam e como pensam, associando tudo aos caracteres, à escrita.

Pequim, 1 de Dezembro de 1977

Sempre a aprender. Hoje conferência no Hotel sobre as mudanças na actual economia chinesa pelo camarada prof. Su Duxing, da Universidade de Qinghua.
Começou por destacar alguns dos crimes do “bando dos quatro”. Ao avançarem demasiado depressa na destruição da propriedade dos meios de produção, os “quatro” sabotaram a construção da economia socialista.
Em 1956 quase todas as empresas eram mistas, com capital estatal e capital privado. Sob o socialismo, durante dez anos, os capitalistas obtiveram 5% do lucro das empresas. Diz o camarada Su Duxing que o capitalismo de Estado, segundo Engels, é a via obrigatória da transição para a propriedade de todo o povo, Os erros dos “quatro” não serão apenas equívocos de conjuntura, o Partido Comunista também enveredou por becos sem saída, não se deviam ter expropriado violentamente as pequenas unidades de produção rurais que passaram de cooperativas de tipo inferior para cooperativas de tipo superior. Em 1958 começaram as comunas populares, unidades básicas de contabilidade e produção, com equipas, brigadas e comunas. O nível de produtividade não era elevado, tínhamos uma colectivização socialista de permeio com um direito burguês.
E o professor Su Duxing explica:
Durante a construção do socialismo continuam a existir contradições entre os homens, mas houve quem tivesse confundido tudo, falado apenas da luta de classes, as luta entre o proletariado e a burguesia, semeando ilusões entre as massas. Ora subsistem dois tipos de contradições, as existentes no seio do povo e as contradições entre nós e o inimigo. Era necessário distribuir os artigos de consumo de acordo com o trabalho de cada um. Quem trabalha mais, ganha mais e quem não trabalha não come. Era necessário fazer com que a economia ascendesse à situação, como disse Marx, de a “cada um segundo o seu trabalho, a cada um segundo as suas necessidades.” Era necessário diminuir as desigualdades, sem deixar de reconhecer a existência de uma mentalidade burguesa num estado aparentemente sem burguesia. O igualitarismo, quando se nega a realidade, favorece os preguiçosos, os que sentem aversão pelo trabalho. No socialismo, todos trabalham para todos mas a igualdade absoluta não é deste mundo.
O “bando dos quatro” confundia a distribuição de a “cada um segundo o seu trabalho” com a exploração capitalista e esquecia que a burguesia continuava a existir no seio do Partido, no seio do exército. Os “quatro” chegaram a afirmar que as mulheres, ao parir, davam o exemplo máximo do desenvolvimento das forças produtivas. Defendiam que o povo chinês devia ser “pobre mas socialista” e não “rico, mas capitalista”. Ora, sem lucros nas empresas socialistas é impossível avançar com o socialismo, o “bando dos quatro” confundia lucros socialistas com lucros capitalistas. Fomentavam a ignorância do povo, para assim “estarem mais próximos da verdade.”
O camarada Su Duxing concluiu a sua explanação com uma bonita tirada eivada de poesia:
O “bando dos quatro” eram uma árvore seca, com a chuva da Primavera tudo voltou à vida.

Pequim, 5 de Dezembro de 1977

Os chineses com quem trabalhamos levam-nos frequentemente numa espécie de visitas de estudo aos mais diversos lugares de Pequim e arredores. São fábricas, comunas populares, templos, lugares turísticos, até quartéis.
Hoje calhou em sorte ir ver a tropa chinesa, fui cirandar pelo campo militar de Fangshun, divisão 196 do exército chinês, nos subúrbios norte de Pequim, junto às montanhas, não muito longe da Grande Muralha da China. 8816P14T1-D
Na minha vida recente, apanhado pela roda da História, levei com três anos e sete meses (de Outubro de 1970 a Abril de 1974) de serviço militar no exército português, levei com quase dois anos de inserção numa guerra sem tréguas em que participei, no norte, centro e sul da Guiné. Os conflitos bélicos infelizmente não me são estranhos.
Foi agora o tempo de voltar aos fuzis, ao cheiro a pólvora, de conhecer uma grande unidade militar made in China.
Eis-me chegado ao que me dizem ser um destacamento armado do povo que passou de pequeno e débil a grande e poderoso, com raízes na guerrilha anti-japonesa, depois na luta anti-Chiang Kai-shek, antes da “libertação” comunista, em 1949. Esta unidade militar participou também na Guerra da Coreia e dizem-me que aniquilou 38.000 soldados inimigos, a maioria militares norte-americanos. Falam-me do exército como sendo uma grande escola e também um destacamento de combate, trabalho e produção. Devem aprender com os camponeses e com os operários, dedicarem-se à agricultura e ter pequenas fábricas. Devem estreitar as relações entre o exército e o povo, estar ao lado do povo, servir o povo. Devem privilegiar a igualdade entre oficiais e soldados, devem colocar-se sob a direcção dos comités do Partido, devem respeitar a disciplina e seguir as justas advertências do Presidente Mao Zedong. Hoje a educação política gira em volta da crítica ao “bando dos quatro” que consideravam que dedicar-se à produção equivalia a fomentar “rabos de capitalismo.”
Levaram-me a dar uma volta pela unidade militar, a conhecer os alojamentos dos oficiais e dos soldados, tudo limpo, instalações espartanas mas funcionais.
No fim da visita fomos para uma espécie de carreira de tiro assistir às habilidades das tropas, disparando excelentemente as Kalashnikovs e outras armas que não identifiquei.
Fiquei a saber que o serviço militar não é obrigatório, mas todos os anos cerca de 5 ou 6 milhões de chineses, sobretudo oriundos do campo, oferecem-se como voluntários para as forças armadas, durante um período de quatro anos. Só 1 ou 2 milhões são aceites. A experiência na tropa garantir-lhes-á um futuro emprego, dar-lhes-á importância nas terras onde nasceram e promoção a quadros do Partido.

Pequim, 9 de Dezembro de 1977

Hoje foi dia inteiro de visita ao Complexo Petroquímico de Pequim situado no distrito de Daxing, uns cinquenta quilómetros a sul da capital.
Impressionante a obra que se estende por vastos espaços numa planície encostada a uma cadeia de montanhas.
Como de costume, logo após a chegada, conduzem-nos para uma sala de recepção onde vamos ouvir o extenso relatório do camarada, espécie de relações-públicas da grande empresa. Desdobra-se em esclarecimentos e comentários. Eu fui anotando:
O complexo é recente, foi inaugurado em 1968 e é composto por aquilo a que chamam “várias fábricas”, uma refinaria de petróleo de nome Oriente Vermelho (o petróleo vem de Daqing, na Manchúria, por um pipe-line), mais instalações para produção de borracha sintética e amoníaco, outra de derivados de petróleo que resultam nos mais diversos plásticos, outra fábrica que dá origem a sabões, detergentes e parafina, e ainda uma fábrica de adubos. Falam-nos de cinco unidades auxiliares onde se produz cimento, cal hidráulica, oficina de reparação de maquinaria e aparelhagens, um centro de inovação e experimentação científica. Contam ainda com um hospital com 450 camas e há doze escolas com 15.000 alunos.
Em volta do Complexo Petroquímico construíram uma cidade onde vivem 120.000 almas, 10.000 das quais são crianças. 40.000 pessoas trabalham directa ou in- directamente no Complexo, 37% são mulheres, num total de 16.000 famílias. Têm uma estação para o tratamento das águas poluídas que depois servem para irrigar os campos. Mas a cidade operária foi construída demasiadamente em cima do Complexo Petroquímico, apenas uma ou outra rua a separa das fábricas e já sentem problemas de poluição entre as pessoas. O Complexo desenvolveu-se com muita rapidez, eles não foram capazes de gerir o ritmo das sucessivas alterações e mudanças. 8816P14T1-A
Os blocos de apartamentos são propriedade do Estado, o aluguer de cada m 2 custa sete fen por mês, cada lâmpada custa 10 fen, por cada fogão pagam-se 50 fen mensais. Os salários médios correspondem a 55 yuans (5.500 fen), sendo o mais baixo de 39 yuans e o mais elevado de 108 yuans.
Falam-me na sabotagem levada a cabo pela linha esquerdista do “bando dos quatro”. Os operários veteranos, os menos radicais, foram acusados de seguir a via capitalista de, ao importarem tecnologia japonesa, mostrarem seguidismo e servilismo diante do estrangeiro. Dizem-me que querem aprender com o que há de bom no estrangeiro para fazer crescer a Petroquímica. Acaso algum país vive fechado dentro das suas quatro fronteiras? Dizem-me que hoje têm três engenheiros norte-americanos a trabalhar com eles.
Mas quantos problemas de natureza política e económica assolaram já este enorme Complexo Petroquímico?
Almoço com a classe operária, ou melhor, numa pequena sala anexa ao grande refeitório. Arroz, uns legumes, pedacinhos de carne de porco e ovos mexidos com couve. A visita prolonga-se pelo resto do dia, fábricas, canos por todo o lado, tubagens e chaminés queimando gás como aquela nossa chaminé de Cabo Ruivo, em Lisboa.
Do que mais gostei foi de um dos infantários dos filhos dos trabalhadores do Complexo, com crianças admiráveis, capazes de fazer piruetas na lua.

8 Ago 2016

Inícios de Liampó português

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A Dinastia Ming, que sucedeu à mongol dos Yuan, foi a última dinastia imperial de origem chinesa, uma vez que a que lhe sucedeu era proveniente da Manchúria. Os Ming quase coincidem no tempo com a Dinastia de Avis, pois ocuparam o Trono do Dragão de 1368 a 1644″, segundo uma nota de João de Deus Ramos. A China, encerrada aos estrangeiros em 1521, devido ao falecimento do Imperador Zhengde e a consequente suspensão obrigatória de todas as actividades, manteve os portos fechados com o Imperador Jiajing (1522-66) e por édito imperial de 1525, deixou de haver marinha mercante chinesa nos mares.
As costas passaram a estar cheias de piratas japoneses e portugueses, na altura os únicos europeus, à procura das apetecíveis mercadorias chinesas.
“Sendo a área normal do comércio externo o porto de Cantão, é natural que, depois do ocorrido de 1517 a 1523, o policiamento marítimo e terrestre nessa zona fosse mais apertado”, segundo refere Gonçalo Mesquitela. “Após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang e continuando, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão…”, (…) “As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.”

Juncos à China, a provar se queria ter trato

“A partir de finais da segunda década do século (XVI), embora mantendo-se fechados os portos e em vigor as ordens de expulsão dos portugueses, começam a desenhar-se tréguas na violência e a virem à superfície novas convergências de interesses, pois para ambas as partes o trato tinha os maiores aliciantes. Com a passagem dos anos foram crescendo estes contactos à margem das directivas oficiais, cada vez mais esquecidas”, segundo João de Deus Ramos.
A reabertura do porto de Cantão só veio a ocorrer em 1530, ficando a proibição restrita aos portugueses, na altura os únicos europeus. Por isso, “Começa então a notar-se o desvio da área comercial externa mais para o norte, nas costas da China Central, ao longo de toda ela. Mas também, por certo, ainda ao largo de Cantão”, segundo Gonçalo Mesquitela. Já Beatriz Basto da Silva, refere, “O Ming-Shi admite que, a partir do ano 1527, há comércio entre portugueses e o Fuquiam (Fujian). Em Fuquiam irão aparecer as primeiras sociedades de moradores casados com asiáticas não forçosamente chinesas, mas em harmonia de convivência com comunidades chinesas”.
Foram os chineses ultramarinos que introduziram aos portugueses o litoral de Fujian e Zhejiang, para aí se estabelecerem.
“No primeiro quartel do século XVI, Portugal estava forte dos sucessos da gesta ultramarina, habituado a vencer, dominar, impelido pela dinâmica religiosa e económica da expansão. A China, nesse tempo, vivia ainda a pujança da dinastia Ming”, segundo João de Deus Ramos.
“Do lado português, as viagens sucedem-se neste plano clandestino mesmo para os chineses. Há licenças oficiais portuguesas nesta época para a viagem à China Conhecem-se: a de 1532”, proibida pelo governador ao chegar a Goa, a de 1533, concedida a Manuel Godinho, que por indicação de Estevão da Gama (ou Paulo da Gama, Capitão de Malaca como refere J. M. Braga) conseguiu “as pazes com os reis de Pão (Pahang) e de Patane, que durante quinze anos faziam guerra a Malaca. Estas pazes foram causa de tornarem a tratar na China, de que se descobriram pelos nossos mais de 50 portos melhores que os de Cantão. Segundo ainda o mesmo autor (Castanheda), em 1535 D. Estevão da Gama mandou Henrique Mendes de Vasconcelos a Patane trazer Francisco Barros de Paiva que lá estava e para ordenar que dali fosse um junco à China, a provar se queria ter trato como tiveram em tempo passado. Foi Henrique Mendes num navio dos nossos. Seguem-se as licenças, de 1538, a Fernão Anrique, em 1543 a Jerónimo Gomes, e, em 1544, a Alonso Henriques de Sepúlveda. E quantos outros portugueses por ali teriam navegado, ligados a comerciantes chineses ou arriscando a sorte, muitas vezes adversa…”, segundo escreve Gonçalo Mesquitela.
Encobertamente feitas as fazendas em Liampó, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato, “sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”, segundo o Padre Gaspar da Cruz. Seguindo com João de Deus Ramos, “Os portugueses apelidados de piratas e a eles não poucas vezes associados, iam alimentando um crescente comércio ilícito que tinha o apoio nas classes que dele beneficiavam. Através destas iam conseguindo a tolerância, quando não a conivência, das próprias autoridades locais”.
Este é o segundo período do relacionamento entre portugueses e chineses, “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó”, segundo Revisitar os Primórdios de Macau. O primeiro ocorrera desde a chegada de Jorge Álvares à China em 1513 até aos dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses em 1521 e 1522. Iniciava-se um novo ciclo, passando os Portugueses a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que terminou em 1549.

Rei dos mares

Escondido numa baía de uma ilha em frente à cidade de Ningbo, o povoado feito pelos comerciantes portugueses com a ajuda das famílias locais chinesas e em conivência com os oficiais menores, teve o seu quotidiano relatado por Fernão Mendes Pinto na Peregrinação entre os capítulos 67 a 70. Aí se conta a história do Capitão António de Faria às portas de Liampoo, em 1541 e como antecedente, ter ele e o seu grupo resgatado da prisão em Nouday “cinco portugueses, residentes em Liampó, que viajaram num barco cujas amarras se quebraram com o temporal e fora dar à costa e à sua vista se fizera em pedaços na praia e de toda a gente se não salvaram mais que treze pessoas, cinco portugueses e oito moços cristãos, os quais a gente da terra levou cativos para um lugar que se chamava Nouday”, da Peregrinação.
António de Faria, segundo Fernão Mendes Pinto, foi levar os portugueses libertados por ele dessa prisão chinesa a Liampó, onde viviam e por isso muito bem recebido. Já o rei dos mares, António de Faria tinha derrotado o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa, história contada na semana passada. E continuando na Peregrinação, “Por entre estas duas ilhas a que os naturais da terra e os que navegam aquela costa chamam as portas de Liampoo vai um canal de pouco mais de dois tiros de espingarda de largo, com fundo de vinte até vinte e cinco braças, e em partes tem angras de bom surgidouro, e ribeiras frescas de água doce que descem do cume da serra, por entre bosques de arvoredo muito basto de cedros, carvalhos e pinheiros mansos e bravos, de que muitos navios se provêm de vergas, mastros, tabuado e outras madeiras, sem lhe custarem nada.
Surgindo António de Faria nestas ilhas uma quarta-feira pela manhã, Mem Taborda e António Anriquez lhe pediram licença para irem diante dar recado à povoação de como ele era chegado, e saber as novas que havia na terra, e se se dizia ou soava por lá alguma coisa do que ele fizera em Nouday porque se a sua ida lá prejudicasse em alguma coisa à segurança e quietação dos portugueses, se iria invernar à ilha de Pulo Hinhor como levava determinado…”
Estava-se em Dezembro de 1541 e “os seis dias que António de Faria aqui se deteve, como lhe tinham pedido os de Liampoo, esteve surto nestas ilhas. No fim do qual tempo, um domingo antemanhã, que era o tempo aprazado para entrar no porto, lhe deram uma boa alvorada (…). E sendo pouco mais de duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fez à vela com toda a armada (…). E sendo já manhã clara acalmou o vento pouco mais de meia légua do porto, a que logo acudiram vinte lanteás de remo muito bem equipadas, e dando toa a toda a armada, em menos de uma hora a levaram ao surgidouro.
Porém antes que ela lá chegasse vieram a bordo de António de Faria mais de sessenta batéis e balões e manchuas com toldos e bandeiras de seda, e alcatifas ricas, nas quais viriam mais de trezentos homens, vestidos todos de festa, com muitos colares e cadeias de ouro, e suas espadas, guarnecidas do mesmo, em tiracolos, ao uso de África. E todas estas coisas vinham feitas com tanto primor e perfeição que davam muito gosto e não menos espanto a quem as via.
Desta maneira chegou António de Faria ao porto, no qual estavam surtas por ordem vinte e seis naus e oitenta juncos, e outra muito maior soma de vancões e barcaças amarradas umas ante outras, que em duas alas faziam uma rua muito comprida, enramados todos de pinho e louro e canas verdes, com muitos arcos cobertos de ginjas, peras, limões e laranjas, e de outra muita verdura, e de ervas cheirosas, de que também os mastros e as enxárcias estavam cobertas.
António de Faria, depois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estava aparelhado, fez sua salva de muita e muito boa artilharia, a que todas as naus e juncos e as mais embarcações que trás disse, responderam por sua ordem, que foi coisa muito para ver, de que os mercadores chineses estavam pasmados. E perguntavam se era aquele homem, a que se fazia tamanho recebimento, irmão ou parente do nosso rei, ou que razão tinha com ele. A que alguns cortesãos respondiam que não, mas que verdade era que seu pai ferrava os cavalos em que el-rei de Portugal andava, e que por isso era tão honrado que todos os que ali estavam podiam muito bem ser seus criados e servi-lo como escravos. Os chineses, parecendo-lhe que podia ser aquilo assim, olhavam uns para os outros a maneira de espanto, e diziam:
– Certo que muito grandes reis há no mundo de que os nossos antigos escritores não tiveram nenhuma notícia para fazerem menção deles nas suas escrituras! E um destes reis de que mais caso se devera de fazer parece que deve ser o destes homens, porque segundo o que dele temos ouvido é mais rico e mais poderoso e senhor de muito maior terra que o Tártaro nem o Cauchim, e quase que se pudera dizer, se não fora pecado, que emparelhava com o Filho do Sol, Lião coroado no Trono do Mundo. Numa lanteá se embarcou “António de Faria, e chegado ao cais com grande estrondo de trombetas, charamelas, atabales, pífaros, tambores e outros muitos tangeres de Chineses, Malaios, Champás, Siames, Bornéos, Léquios e outras nações que ali no porto estavam à sombra dos Portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio, o desembarcaram dela em uma rica cadeira de estado, como chaem do governo, dos vinte e quatro supremos que há neste império. A qual levavam oito homens vestidos de telilha, com doze porteiros de maças de prata, e sessenta alabardeiros com panouras e alabardas atauxiadas de ouro, que também vieram alugadas da cidade, e oito homens a cavalo com bandeiras de damasco branco, e outros tantos com sombreiros de cetim verde e carmesim, que de quando em quando bradavam à charachina, para que a gente se afastasse das ruas”, Fernão Mendes Pinto.
Entende-se tão pomposa recepção a António de Faria, pois libertara das masmorras residentes da cidade, e pelo relato apreende-se a riqueza não só cultural, como material, com que já aí se vivia. E ainda os mercadores portugueses não tinham chegado às ilhas do Japão. Quando tal aconteceu em 1542, segundo Beatriz Bastos da Silva, foi “inaugurado o comércio português de Liampó, 30° Lat. N, com o Japão. O entreposto de Liampó já era florescente há algum tempo. O comércio do Japão veio, entretanto, a enriquecer Liampó de forma rápida. Tinha duas igrejas, uma câmara, dois hospitais, mais de mil edifícios particulares, auditores, juízes, procuradores e outros ofícios públicos usuais em Portugal. Crescimento daí decorrente para Liampó (na boca do rio Fu-Chan). Feitorias de carácter precário (Chincheo, Lampacau), sem contratos, mas já cheias de pormenores administrativos portugueses, embora localmente estivessem sujeitas à China. (Ljungstedt, Andrew – An historical sketch of the Portuguese)”.

5 Ago 2016

Talvez o tempo

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omove-me de repente o olhar directo sobre as coisas de um passado remoto. Vindas dessa enorme e esquecida cadeia do tempo e pejadas de humanidade. Há dias um par de sapatos de mil anos. Romanos. Fechar os olhos, e abri-los sobre um vestígio concreto de uma vida. Um corpo. Um pé. E alguém. Como se fosse no momento exacto que passou, alguém trouxe no pé um sapato como de filigrana em couro. Como se fosse hoje ou ontem. Uma memória imaginada e pressentida ali na matéria de um artefacto sem idade estética mas com toda a idade da história. Talvez me comova sobretudo o perfume etéreo de humanidade que se agarra ao objecto do olhar, e se desprende como perfume ténue, se nos concentrarmos bem nessa viagem do tempo de ali até aqui. Talvez o que eu gosto é de sentir as pessoas e essa longa cadeia ininterrupta que vem de lá tão antes e que continua a perder de vista. Talvez o que eu goste mesmo é dessa ideia de pessoas. Ou desta terra planeta cheia de cicatrizes naturais, ou do tempo. Talvez o que eu goste mesmo seja do tempo, um cordão longo desfiado desde o sempre ao para sempre. Talvez o tempo. Esse tempo que me faz doer de tão rápido. De tão lento. Talvez mesmo o tempo. E ser parte. Parte e partícula ínfima dessa cadeia. Talvez o tempo, que existe ou não, dependendo de representações. Que lhe emprestem a qualidade concreta. A dimensão ou o sentido. De lá para cá. De cá para além. Disto.
E um dia destes veio viver comigo e está ali como um bicho pacato silencioso e idoso. Mas igual a sempre nos seus talvez cem anos. Bicho máquina, senhor de uma espécie de ronronar que nunca eleva o tom. Singer de nome e máquina de costura de profissão, com pés de tipo aranha, com os inconfundíveis alvéolos de ferro forjado que me lembram mais assas de insectos, o torço equino suavemente arqueado, ou uma espádua garbosamente curva, como a pedir a carícia do tempo recuperado, e com a nobreza da imortalidade com que ele lhe desenhou formas e funções incansáveis. Trouxe-a do abandono incontornável da casa onde ninguém vive. Já. E ali, encostada a uma outra parede ganhou uma outra idade mais leve ou desprendeu-se de novo do acumular de anos sem um olhar próximo, um óleo que afina e alivia os movimentos e o som. E como um bicho que fui encontrando nos últimos tempos escondido atrás da porta. Como se escondido mesmo e assustado. Ou triste e amesquinhado de uma poeira que o manietava e esquecia.
Retomou a cadeia afinal ininterrupta de um tempo que vem de tão longe como o homem que, apaixonado, a ofereceu a uma menina de dezassete anos, prenda de noivado. Já aí com história desconhecida atrás, a máquina. Conhecida a menina, chamada para sempre senhora por aquele amor. Dos dezassete, de um e de outro, e contido numa caixa de madeira feita para a costura, as linhas e as agulhas de uma vida a mudar aos poucos sobre carris, e dedicada, a lápis, no interior. Nome completo e amor. Foi para sempre. Dedicado em dedicatória e depois na vida. À minha avó. Por aquele avô de quem tanto gostei, de olhar verde, transparente. Sonhador e marinheiro. Vogando de além para aquém Tejo em fuga. Mas não dela. Só da interioridade daquela terra que o não preenchia. Mas foi com a bisavó que na realidade aprendi a cozer. A ver e assustada por ela em relação àquela agulha veloz nas costuras domésticas e perigosa como nos contos de fadas. Etelvina. Maria Antónia. Mariana. Os nomes inscritos na memória daquele pedal e sussurrados como uma carícia. Agora eu. A sentir que tenho que lhe encontrar mais caminho. Não por ela mas por este prazer com que a olho. E este sentir-me parte do tempo. Ou, às vezes, parte e tempo. Mas isso sou eu aqui, a pensar, e feliz como um passarinho a olhar para ela ali vinda de longe. Do meu longe e mais ainda. É bom. Mas sempre, como tudo, só esquecendo a parte final do percurso que a trouxe aqui. Só assim é bom. É. Há que esquecer disciplinadamente.
Eu gosto de coisas anacrónicas. E de coisas com idade. E que duram. E de coisas com marcas ou o perfume de vidas antes de agora. Muitas coisas com que vivo tiveram outras vidas antes e outras casas. Gosto dessa impressão do tempo nas coisas. Como gosto da pureza, perfeição e síntese, quase fria e desumana, do minimalismo. Próximo de uma filosofia Zen. Gosto de ambos os extremos. Como da pureza de um lençol antigo de linho branco, que não guarda mácula de antigos partos, vidas e mortes, amores, traições e desvarios. Que nunca perde a sua pureza quase virginal de lençol da primeira noite. Da vida. Gosto de coisas que fogem aos padrões ditados, de uma contemporaneidade fugidia.
Usar camisas de dormir com florinhas. Também. Uma coisa que ninguém sabe e não se diz. Mas não sendo para se dizer, não seria sequer preciso dizê-lo. Há coisas que se podem intuir quando se passa na rua. Disfarçadas de outras coisas que também são. Coisas que sintetizam memória, gosto e rebeldia face à tirania mutante do tempo. Da estética do tempo. Ou da máscara de um tempo que é sempre o mesmo. Vindo de sempre, mudando no que é de mudar e mantendo o que é bom de sempre. Porquê as roupagens, pergunto. Não sendo por razões práticas ou domésticas, porque não andar com vestidos do século dezoito num dia, dos loucos anos vinte no outro e 501 no outro…Porquê? Como se o tempo passado fosse de um outro tempo de que só algumas coisas são válidas. Uma obra de arte. Mas nem tudo o é. Atrocidades dos confins da história tão semelhantes a outras de hoje. Do inacreditável hoje que não apurou com o olhar sobre o passado. De um tempo que é hoje uma pérgula de resquícios de humanidade da mesma natureza de sempre. Com a mesma diversidade de sempre. Simplificar as roupas e sofisticar as armas. É isso. E por debaixo bem e mal de sempre e para sempre.
Voltando atrás, então, a uma pessoa que gosta de camisas de dormir às florinhas. Também. Ou com rendas. Bordados de outros tempos. A frescura das matérias naturais. O engomado do algodão grosso e que só deixa adivinhar o que ali vive. E, a partir desta linha em que o digo, juro e afirmo que todo e qualquer olhar que por ela passe, deveria duvidar. Porque é escrito e público. O que é secreto e privado. Ou não. É, somente escrito e assim deveria ser tomado. Como uma roupagem. Como uma realidade sincera, ou franca portada sobre um símbolo, uma metáfora a imagem trespassada de algo além. Ou um olhar lavado sobre essa pueril realidade. Assim é a escrita. Mas eu gosto de coisas intemporais e gosto do tempo das palavras que ficam. Sobretudo as que se dizem. Com um grande prazo de validade a tender para a utopia da eternidade. Gosto das palavras que atravessam o tempo apesar dos temporais. Que ficam impregnadas como fósseis nas rochas sedimentares, das que marcam como pegadas de um movimento que passou e das que como velhas árvores centenárias mesmo no decrescendo metabólico da idade, continuam a sua vida orgânica e temporal. Em pé. Que é como devem morrer as árvores. Às vezes sinto que há algo inamovível em mim. Como nas montanhas. De imutável estável e duradouro. Enquanto outros locais de mim se vergam como cálamos, quebram, fluem mutáveis e plásticos ao longo do deslumbramento dos dias, da adaptação ao desconhecido e inesperado, de síntese do vivido, de fastio do muito repetido. Mas há um lado de montanha. Não por grandeza. Nem imensurável. Não há montanhas inacessíveis à cartografia. Mas não mudam para agradar aos elementos. Antes se deixam desgastar por eles. Partes de uma cordilheira do tempo maior que tudo, mas por estabilidade no tempo. Estabilidade mutável, exposta à erosão, mas a outra velocidade.
Talvez o tempo. Que corre, pára, foge. Que quando pára, de imediato lhe sabemos decifrar as inevitabilidades e partidas e nessa intuição prévia nos perdemos do simples prazer dessa paragem. Talvez o tempo que se esvai entre os dedos mesmo no momento da carícia mais plena ou mais pungente. Tão fugidio como nosso. Nessa inerente qualidade a que nos acostumamos quando o conhecemos um dia. Para lá da infância que é um tempo sem saber o tempo. E, escrevia estas palavras e levantei-me de súbito impulso, a lembrar-me daquele insólito oráculo que é, em momentos estranhos, o Livro de Areia de Borges. Talvez pelo esvair entre os dedos do tempo, da areia e das páginas. E abrindo-o na intensidade de uma impressão indefinida deste tempo e deste momento e de urgência curiosa, fechando os olhos com força e agarrando o dividido em dois com a mesma força, apontei e era a página branca. Em branco, digo, porque azul, na realidade. Penso, o não tempo da infância, de que falava naquele minuto antes de pegar no livro. E no desapontamento de apenas parecer ilustrar um pensamento sabe-se lá sempre se pertinente, voltei o avesso da página naquele preciso ponto em que a pontinha da unha poisou com força. E li. Um poema. “Essas palavras eram um poema”, assim a frase inteira do acaso. Do avesso do acaso. Das costas lisonjeiras deste acaso ridículo. Lúdico. Ou a ser oráculo. A empatar tempo e sentimentos com uma carga maior de realidade. E penso que sim. Há uma poética no esquadrinhar honesto das emoções. Uma poética anestesiante e barbaramente narcísica – parece. Envolvente. Como um espelho de companhia. Mas entende-se-lhe a veracidade como se entende o uso de combinação. Coisas parecidas, de pouca visibilidade a olhar pouco miúdo. Mas que fazem uma diferença enorme no uso de um vestido. Sem fogo de artifício. Coisas de dentro. Roupa interior. E a roupa interior é sempre honesta. É o que é. Muitas vezes. Prefiro poesia com roupa interior ou a nudez descarada e iludida com que o rei que vai nú. Que se pressente ou não no discurso. Poético ou não. Não. Não tenho a pretensão da poética. Só da palavra. Aquela palavra. Que digo para durar. Ou então não dizer. De uma forma ou outra, talvez o tempo. Onde vive e dorme.

5 Ago 2016