Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]“O[/dropcap] teu silêncio será de ouro e poderá salvar-te. Silêncio absoluto. Nem respires.” Foi com estas palavras que a “Viúva” acabou a sua história, que compreendo agora ser sobre o seu encontro com o pai do seu filho. E que o seu filho era o teu amante. Qual é mesmo o nome dele? Chaoxiong? A seguir enfiou-me neste quarto, amordaçado, deixando-me a porta aberta com perfeita colocação para ver tudo o que entretanto está a fazer a uma outra das suas vítimas. E, se existia esta angústia de não saber o que vai ela fazer comigo e que jogo começou, entretanto tudo é agora mais estranho. Ela conseguiu encontrar um acidente de trajecto na minha vida. Uma empregada de um bar com quem eu num momento de desespero cometi um erro. Um erro que nunca mais consegui remediar. A partir daí decidi deixar tudo no passado. Desculpa Daphne se nunca te falei nela. A verdade é que agora neste momento parece que não podemos deixar nada no passado porque o passado volta sempre sem que o desejemos. Sim, é verdade, menti-te. Existiu um grande amor antes de ti. Um amor que se estragou por incompetência minha. E não restou nada. Talvez até pudéssemos ter ficado bons amigos. Mas não foi fácil para mim. Com a pressão de ser um dos que eram chamados “filhos da terra” que muitos privilégios acumulavam. Com a pressão dos meus pais, extremamente tradicionais em muitos dos valores de definição do que esta cidade era ou devia ser, para que eu fosse fazer um mestrado em economia e política nos Estados Unidos. Futuro desenhado, que cumpri sem nunca lhes ter dito que o que eu queria realmente ser era realizador de cinema. Não foi fácil para um jovem adulto com 21 anos apaixonar-se por uma rapariga da China continental, levemente mais velha, que eles consideravam não ter futuro. Foi uma relação a que sempre se opuseram. E eu deixei-me contaminar e não lutei. Como se estivesse destinado a ser para todo o sempre inapto para a vida.

Tudo começou na inauguração de um Casino qualquer. Ali estava ela a abrir as portas das salas VIP para os jogadores entrarem. Eu senti aquele olhar. Um olhar com a curiosidade de um potencial caso de amor. Não existiu nada de platónico na nossa relação. Quase de imediato estávamos a ir jantar fora e encontrarmo-nos aqui e ali. Será que a memória me atraiçoa? Na minha cabeça faço um esforço para não imaginar o que imagino. Mas, agora neste momento, acabo sempre a rever aquela relação como a mais perfeita de todas. Uma relação real. Um real cheio de sorrisos e cumplicidades. Apercebo-me agora que tu serviste como uma aproximação e que me relacionei contigo através do reino silencioso da imaginação. Desculpa…. Aos dez anos de idade lembro-me que ainda não tinha nenhuma imagem concreta do que é que significa ter sexo. Tudo o que queria das miúdas era que elas segurassem a minha mão. Queria apenas encontrar um lugar onde pudesse ficar sozinho com elas. Mas isso também não era permitido. Os adultos nunca se sentiram confortáveis com essas situações. Não sei se foi por isso que comecei a olhar para raparigas levemente mais velhas. Com elas não havia esse problema. A minha cobardia já com essa idade se revelava. Com uma rapariga mais velha eu sentia-me sempre mais protegido. Não sei. Tudo é um pouco confuso. Sei que agora tudo é diferente. Sinto as coisas de modo diferente. E não sei porquê. Gostava de poder voltar a encontrá-la para lhe dizer algo. Pelo que a “Viúva” está a dizer ela é a filha que abandonou em bebé. As peças do puzzle começam a encontrar o seu lugar correcto. Gostava de a encontrar e dizer-lhe qualquer coisa fora do normal que me fizesse esquecer a minha cobardia. Fui cobarde com ela. Fui cobarde contigo. Sou cobarde agora que te vejo, como um fantasma, aqui à volta e falo contigo como se tudo no mundo dependesse apenas do meu bem estar. Fui cobarde e egoísta. Gostava de a encontrar e ter coragem para lhe sussurrar todos os segredos. Do mesmo modo como sussurro para ti que, percebo agora, não passas de uma construção mental minha. Desculpa-me Daphne. Mas sim. Amei-a como não amei ninguém. E destrui tudo. Porque assim estava destinado. Porque sou fraco. Quando terminámos e eu sai da casa onde fui mais feliz os olhos dela foram água. Naquele momento toda a profundidade e brilho que conheci antes havia desaparecido. Muitas vezes parece-me como algo que aconteceu num sonho. Será que aconteceu mesmo? Está ainda muito presente em mim aquela sensação do toque na pele dela. Sabes por vezes parece que a felicidade não nos altera. Será que a tristeza o faz? Pensa na coisa mais triste da tua vida.

A coisa mais triste da minha vida sou eu próprio. O que aconteceria se eu parasse de confiar nos meus pais e tivesse confiado no amor? Porque continuo a lamentar as minha atitudes, ou, mais precisamente, a minha falta de acção? Abutres. Gostava de, finalmente, poder pensar nas palavras que tenho para lhe dizer. Já deveria ter falado com ela. Mas o que é que lhe deveria ter dito? Não teria sido tão difícil se a tivesse procurado quando voltei e lhe tivesse dito o que sentia. O que sinto. O que sinto agora enquanto oiço a “Viúva” a falar dela. Como o coração bate rápido. Se ao menos tivesse encontrado uma outra oportunidade. Se tivesse mais coragem. Mas isso parece impossível. E agora as oportunidade parecem perdidas para sempre e não sei o que fazer. Agora sou a parte negra de mim. Agora sou a morte. Apenas com o amor conseguimos criar a ilusão de que não estamos sós. Mas agora percebo que se calhar não tinha 21 anos. Se calhar tudo isto aconteceu no ano passado. Todas estas mulheres malditas com nomes ridículos que existiram no meio dela e de ti. Com sorrisos cativantes. Jovens. Se calhar tudo isto foi no ano passado. Parece-me agora que elas foram sempre mais novas. Que ela era muito mais nova do que eu. Não tens mais nenhum lugar para estar Daphne? Num mundo completamente são não é a loucura a verdadeira liberdade? Como é que a voz consegue alguma vez articular as emoções mais escondidas dentro de nós? Será que o silêncio tem uma presença? E o que é que significa? Ninguém sabe realmente o que está a fazer aqui. Para o que veio. O que lhe está destinado. Porque estamos todos tão absorvidos com a nossa presença? Porque vejo sempre este homem velho a acenar para mim e eu a acenar de volta? Talvez se esta cidade não estivesse sempre debaixo de um capacete. Talvez assim a felicidade fosse possível. Se existisse um pouco mais de sol durante o ano.

“Sunny / Yesterday my life was filled with rain / Sunny / you smiled at me and really eased the pain / Now the dark days are gone, and the bright days are here / My sunny one shines so sincere / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for your sunshine bouquet / Sunny / Thank you for the love you brought my way / You gave to me your all and all / And now I feel ten feet tal / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for the truth you let me see / Sunny / Thank you for the facts from A to Z / My life was torn like wind-blown sand / And a rock was formed when you held my hand (oh Sunny) / Sunny one so true, I love you / Sunny / Thank you for te smile upon your face / Sunny / Thank you, thank you for the gleam that shows its grace / You’re my spark of nature’s fire / You’re my sweet complete desire / Sunny one so true, yes I love you. 1

1. Sunny de Bobby Hebb.

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