A misericórdia da solidão

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascido em Lisboa, em 1972, Rui Almeida tem seis livros de poesia editados e muitos poemas ainda inéditos. Lábio Cortado (Livrododia, Torres Vedras, 2009), Caderno de Milfontes (volta d’mar, Nazaré, 2011), Leis da Separação (Medula, Coimbra, 2013), Temor Único Imenso (Labirinto, Fafe, 2014), A solidão como um sentido, seguido de Desespero (Lua de Marfim, Lisboa, 2016) e Muito, Menos (Companhia das Ilhas, 2016). Rui Almeida é um poeta pessimista. Não no sentido de pensar que o mundo vai piorar, mas no sentido de ter a consciência de que tudo é já o pior, porque tudo é uma construção humana, tudo é o humano: “Perdes sempre /
Quando vives. Perdes tudo
/ O que nunca foi teu. És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Este tom, de um poema inédito de Almeida, é o leitmotiv da sua poesia, se não da sua vida, que importa tanto aqui como a última camada de electrões do átomo de Bório.
Entramos na poesia de Rui Almeida como se entrássemos na cabeça de um Diógenes de Sinope (o Cínico) radical. Se Diógenes percorria as ruas da antiga Atenas durante o dia, com uma candeia acesa, a ver se encontrava um homem honesto, Rui Almeida percorre as páginas dos seus livros em busca daquilo que mostre de uma vez por todas que o humano não presta, que o humano não vale a tinta que o descreve. Não se sabe se escreve para provar que está errado, se para nos mostrar que está certo, já que muitos dos pessimistas são optimistas falhados, optimistas que não deram certo. Mas o que sabemos, com certeza, a certeza que é possível ter através das palavras, é que ele busca incessantemente em seus poemas a origem do mal humano, aquilo que faz ou fez com que a vida seja um contínuo desespero, uma contínua injustiça. E a poesia torna-se tão mais pujante, mais forte, quanto o poeta se furta a efeitos retóricos de descrições inúteis, porque redundantes, e remete-se ao essencial. De facto, há nestes poemas, concomitantemente, uma aproximação ao pensamento filosófico e um afastamento do mundano e do quotidiano. Como se nos dissesse: falar de uma taberna, de uma paragem de autocarro ou das árvores de um jardim não passa de redundâncias para enunciar o vazio; o vazio não precisa de nada para ser enunciado. E essa é que é a dificuldade, que parece ter sido ultrapassada ou contornada por Rui Almeida: “És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Nada há senão perder. Para quê então enunciados que, para o poeta, parecem não passar de máscaras carnavalescas do vazio e não do vazio ele mesmo, ou tão-somente do mais próximo que podemos chegar-lhe com palavras? Almeida já o havia escrito em A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “E sempre o desespero, / (…) A criar atrito e dor. / Sem nome a dor, sem Limite amparado // Por uma linguagem.” Descrições em poemas são, para Almeida, adivinha-se nos seus versos, rodas auxiliares para bicicletas. Mas, e também se suspeita, não como forma de aprendizagem, mas como forma de nos proteger da realidade, criando uma paisagem, campestre ou urbana, que serve de amortecedor ou de entretenimento para o que realmente acontece no humano. Mesmo quando há descrições nos seus poemas, não são verdadeiras descrições, mas abstractos, como no exemplo destes versos de Temor Único Imenso, à página 8:

Diante das aves caem migalhas,
Silenciosos pedaços do mundo,

A prometer sustento. Para as aves,
Fazem parte da existência, do
Convívio com tudo o que existe sempre.

Com as migalhas que caem, as aves
Se alimentam, se divertem, se lembram
Que são aves pequenas, que a queda
É apenas o assombro de ser
Não mais do que ave e ave pequena.

Aves, aqui, é tão abstracto como dizer pedra ou chão ou céu ou mar. Mar, aliás, que é palavra recorrente nos poemas de Almeida e, a maioria das vezes, uma pedra tão abstracta como ave. E tudo vai sempre dar ao nada, ao vazio, ao não se ser, como neste poema, também inédito:

“Voltam o silêncio e o deserto,
Palavras frequentes, demasiado
Frequentes, comuns como sobras
De dias passados, o sabor gasto
Na boca sem saber que dizer.
Silêncio e deserto, apenas palavras,
Apenas a desilusão de uma outra vida,
Limite incerto, viragem súbita
Para fazer algo mais, para alcançar
O inesperado. Outra coisa, nada.”

E à página 28 do mesmo livro, escreve: “Cinco aves pousam nos ramos nus /
De uma árvore no inverno. Pousam / Devagar trazendo o sopro, trazendo /
A distância dos lugares de onde chegam.” Aves e árvores (mais um abstracto) são instrumentos para dizer distância e nada. Lugares de onde chegam e ramos nus de uma árvore no inverno, nós nos afastando de nós mesmos, nos deixando por todos os lugares em fomos até à árvore nua no inverno, que não passa da sorte que nos espera. Sente-se, na poesia de Rui Almeida, metafísica e abstracta, no uso da linguagem, que a existência não nos serve, está-nos apertada, precisávamos de um número acima. E muito provavelmente aquilo que mais choca a nossa sensibilidade – pois como escreveu Miguel de Unamuno, “não se é pessimista por ler livros pessimistas, é por se ser pessimista que se lê livros pessimistas” – encontra-se no início do primeiro poema aqui citado: “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste.” Nestes dois versos, que iniciam o poema, vemos aqueles velhos nos bancos do jardim, junto a nossa casa, ou no caminho par ao trabalho, a seguirem com os olhares as pernas magras e belas da rapariga, que os calções curtos deixam ver ao passar. E, de repente, dói-lhes algo não se sabe onde; dói-lhes a vida perdida, não se sabe onde; dói-lhes o futuro que não volta. Nunca voltarão a ter o que viram. Porque aquilo que agora vêem, as belas pernas da rapariga a passar, não estão realmente a ver; não é a ver, é o visto. Aquelas pernas que passam são o já visto, muito tempo lá atrás, e não o a ver, aqui e agora. Através dos versos ficamos a sentir que o que dói aos velhos, que vêm passar a beleza, não é não a ter, mas não se terem a eles mesmos. “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste” explode como sentença fúnebre, macabra, aterradora. Como se fosse o eco de um verso de um poema de A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “A saudade de nunca teres existido.” Nunca existimos, não porque o que desaparece não existe, mas porque o que foi já não é. Ter existido é uma aberração do existir; e o próprio existir só existe na confrontação com a consciência de ter existido. Esta aporia existencial continua ainda no mesmo livro, à página 11: “Lado a lado, a solidão / E a memória queimada / Da infância. Falhas / Na superfície lisa do tempo.” Lado a lado, podemos dizer, a existência e o ter existido. A identificação da existência com solidão não tem carga ética, mas ontológica. E por isso mesmo passível de nos ajudar a carregar o nosso ter existido ao longo do tempo, como neste verso de Lábio Cortado: “– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.” E veja-se neste “respirar”, para além do concreto que é no verso, o abstracto que também não deixa de ser: aquilo que só a cada um de nós nos diz respeito, que só a cada um de nós pode interessar e que só cada um de nós pode resolver.; ninguém pode respirar por nós. A solidão não é um castigo, é a misericórdia que nos é permitida. Estamos diante de uma poesia, toda ela ainda por descobrir, porque recente, eivada de metafísica, de abstracto – que aqui nesta poesia é o concreto sem entretenimento – e um convite a mergulhar na solidão. Porque no fundo somos todos abstractos uns dos outros como as aves das árvores, como a morte, como o Outono, como nestes versos com que o poeta inicia o livro Temor Único Imenso: “Eram de novo as aves e morriam / Doutras armas porém do mesmo modo / Eram de novo e era Outono”. Tudo será sempre da mesma maneira, a morte, as aves, as árvores, os humanos com suas armas, que só diferem na forma como matam, mas não no matar. A redundância da descrição fica completamente às claras nestes versos agora citados, principalmente no primeiro verso do livro: “Eram de novo as aves e morriam”. Para os leitores frequentadores da filosofia contemporânea, já há muito que se coçam de Wittgenstein. E, sem dúvida, estamos perante uma poesia de braços abertos ao solipsismo, que não pretende construir pontes ou descobrir ligações entre um humano e um outro. Uma poética, quase toda ela – com excepção de Caderno de Milfontes – a fazer ver as sombras. A fazer ver que os outros são sombras de nós, que nós somos sombras de nós, quando com os outros, a fazer ver que nós somos sombras de nós mesmos quando sozinhos, embora sem chão ou sem parede para a sombra caminhar. Rui Almeida jamais poderia dizer, como Rimbaud, “Je suis un autre”, pois para Almeida “eu” ou “outro” são o mesmo abstracto que não nos levam ao respirar, à solidão misericordiosa e pessoal. Termine-se, com o poema que abre o livro Lábio Cortado:

“Suave, devastadora, a sombra deste tempo
De pernas dormentes por não caminharem.
Esta coisa de estar parado a assistir a nada,
Consciente da cor de cada objecto à minha frente
Enquanto a visibilidade se fecha dentro de um candeeiro.

Não são crianças que oiço, nem pássaros,
São os pés de quem sabe andar e se desloca,
É o riso de quem reage à sedução e ao modo do desejo.
O peito está vazio e abandonei-o
– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.

Penso até à exaustão naquilo que podia ter sido.
Demasiado cedo me reconheci como vivente,
Como servo do movimento e das funções vitais.
Não renego a força que em mim surge
Nem me permito a queda na tentação da morte.

Os braços são pequenos demais para a coragem,
Isso que nem sei que seja ou de que me valha.
O roubo é uma solução como outra qualquer
Para viabilizar a vontade ou o impulso do gesto.
O risco é projectar a voz para além do mar;

Para além de tudo o que de imenso se estende
Diante de um homem que tem olhos perdidos.
Como se perde a distância? – é esta a pergunta
Sussurrada no momento em que se desiste
E da qual nasce a sede que permite a resposta.

É no candeeiro que extingo o excesso do pensamento;
Não reconheço à luz os efeitos salvíficos
A que a aparência poderia levar-me.
Prefiro o vazio sistemático da brancura
Diluído no ar que me envolve e que respiro.”

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