Inícios de Liampó português

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]A Dinastia Ming, que sucedeu à mongol dos Yuan, foi a última dinastia imperial de origem chinesa, uma vez que a que lhe sucedeu era proveniente da Manchúria. Os Ming quase coincidem no tempo com a Dinastia de Avis, pois ocuparam o Trono do Dragão de 1368 a 1644″, segundo uma nota de João de Deus Ramos. A China, encerrada aos estrangeiros em 1521, devido ao falecimento do Imperador Zhengde e a consequente suspensão obrigatória de todas as actividades, manteve os portos fechados com o Imperador Jiajing (1522-66) e por édito imperial de 1525, deixou de haver marinha mercante chinesa nos mares.
As costas passaram a estar cheias de piratas japoneses e portugueses, na altura os únicos europeus, à procura das apetecíveis mercadorias chinesas.
“Sendo a área normal do comércio externo o porto de Cantão, é natural que, depois do ocorrido de 1517 a 1523, o policiamento marítimo e terrestre nessa zona fosse mais apertado”, segundo refere Gonçalo Mesquitela. “Após os conflitos armados luso-chineses, ocorridos entre 1521 e 1522, nas águas de Tunmen, a Corte de Pequim decretou o encerramento dos portos cantonenses. Inicialmente, (…) as autoridades de Cantão recusavam (os portugueses,) os de Aname e Malaca. Desde que os mais variados bárbaros de Aname e Malaca foram recusados, eles iam fazer comércio clandestino às águas da prefeitura de Zhangzhou (漳州, Chincheo) fazendo com que a província de Fujian (福建) lucrasse com isso, deixando o mercado cantonense numa situação paupérrima” segundo Revisitar os Primórdios de Macau para uma nova abordagem da História de Jin Guo Ping e Wu Zhiliang e continuando, “O encerramento total dos portos cantonenses provocou danos insuportáveis à economia de Cantão…”, (…) “As receitas locais caíram a pique. A ordem económica local e de uma boa parte do Centro e Sul da China estava afectada e desequilibrada. A situação financeira de Cantão era de tal maneira caótica que nem conseguiam pagar os soldos e os vencimentos da função pública. Esta situação dramática levou o vice-rei Lin Fu a moralizar a Corte Central em 1529, apelando à revogação das proibições marítimas impostas a Cantão. O memorial ao Trono foi favoravelmente despachado e restabelecido o sistema tributário em Cantão, mas os portugueses continuavam proibidos de vir às águas de Cantão. No entanto, alguns, após uma década de ausência do litoral cantonense, começaram a voltar ao negócio da China, a título individual e integrados em grupos tributários de alguns países do Sudeste Asiático, principalmente disfarçados de siameses.”

Juncos à China, a provar se queria ter trato

“A partir de finais da segunda década do século (XVI), embora mantendo-se fechados os portos e em vigor as ordens de expulsão dos portugueses, começam a desenhar-se tréguas na violência e a virem à superfície novas convergências de interesses, pois para ambas as partes o trato tinha os maiores aliciantes. Com a passagem dos anos foram crescendo estes contactos à margem das directivas oficiais, cada vez mais esquecidas”, segundo João de Deus Ramos.
A reabertura do porto de Cantão só veio a ocorrer em 1530, ficando a proibição restrita aos portugueses, na altura os únicos europeus. Por isso, “Começa então a notar-se o desvio da área comercial externa mais para o norte, nas costas da China Central, ao longo de toda ela. Mas também, por certo, ainda ao largo de Cantão”, segundo Gonçalo Mesquitela. Já Beatriz Basto da Silva, refere, “O Ming-Shi admite que, a partir do ano 1527, há comércio entre portugueses e o Fuquiam (Fujian). Em Fuquiam irão aparecer as primeiras sociedades de moradores casados com asiáticas não forçosamente chinesas, mas em harmonia de convivência com comunidades chinesas”.
Foram os chineses ultramarinos que introduziram aos portugueses o litoral de Fujian e Zhejiang, para aí se estabelecerem.
“No primeiro quartel do século XVI, Portugal estava forte dos sucessos da gesta ultramarina, habituado a vencer, dominar, impelido pela dinâmica religiosa e económica da expansão. A China, nesse tempo, vivia ainda a pujança da dinastia Ming”, segundo João de Deus Ramos.
“Do lado português, as viagens sucedem-se neste plano clandestino mesmo para os chineses. Há licenças oficiais portuguesas nesta época para a viagem à China Conhecem-se: a de 1532”, proibida pelo governador ao chegar a Goa, a de 1533, concedida a Manuel Godinho, que por indicação de Estevão da Gama (ou Paulo da Gama, Capitão de Malaca como refere J. M. Braga) conseguiu “as pazes com os reis de Pão (Pahang) e de Patane, que durante quinze anos faziam guerra a Malaca. Estas pazes foram causa de tornarem a tratar na China, de que se descobriram pelos nossos mais de 50 portos melhores que os de Cantão. Segundo ainda o mesmo autor (Castanheda), em 1535 D. Estevão da Gama mandou Henrique Mendes de Vasconcelos a Patane trazer Francisco Barros de Paiva que lá estava e para ordenar que dali fosse um junco à China, a provar se queria ter trato como tiveram em tempo passado. Foi Henrique Mendes num navio dos nossos. Seguem-se as licenças, de 1538, a Fernão Anrique, em 1543 a Jerónimo Gomes, e, em 1544, a Alonso Henriques de Sepúlveda. E quantos outros portugueses por ali teriam navegado, ligados a comerciantes chineses ou arriscando a sorte, muitas vezes adversa…”, segundo escreve Gonçalo Mesquitela.
Encobertamente feitas as fazendas em Liampó, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato, “sucederam as contratações de maneira que começaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó e estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção que lhes não faltava mais que ter forca e pelourinho”, segundo o Padre Gaspar da Cruz. Seguindo com João de Deus Ramos, “Os portugueses apelidados de piratas e a eles não poucas vezes associados, iam alimentando um crescente comércio ilícito que tinha o apoio nas classes que dele beneficiavam. Através destas iam conseguindo a tolerância, quando não a conivência, das próprias autoridades locais”.
Este é o segundo período do relacionamento entre portugueses e chineses, “e podemos designá-lo como Entre Chincheo e Liampó”, segundo Revisitar os Primórdios de Macau. O primeiro ocorrera desde a chegada de Jorge Álvares à China em 1513 até aos dois conflitos navais no Rio das Pérolas ganhos pelos chineses aos portugueses em 1521 e 1522. Iniciava-se um novo ciclo, passando os Portugueses a frequentar o litoral de Fujian e Zhejiang e que terminou em 1549.

Rei dos mares

Escondido numa baía de uma ilha em frente à cidade de Ningbo, o povoado feito pelos comerciantes portugueses com a ajuda das famílias locais chinesas e em conivência com os oficiais menores, teve o seu quotidiano relatado por Fernão Mendes Pinto na Peregrinação entre os capítulos 67 a 70. Aí se conta a história do Capitão António de Faria às portas de Liampoo, em 1541 e como antecedente, ter ele e o seu grupo resgatado da prisão em Nouday “cinco portugueses, residentes em Liampó, que viajaram num barco cujas amarras se quebraram com o temporal e fora dar à costa e à sua vista se fizera em pedaços na praia e de toda a gente se não salvaram mais que treze pessoas, cinco portugueses e oito moços cristãos, os quais a gente da terra levou cativos para um lugar que se chamava Nouday”, da Peregrinação.
António de Faria, segundo Fernão Mendes Pinto, foi levar os portugueses libertados por ele dessa prisão chinesa a Liampó, onde viviam e por isso muito bem recebido. Já o rei dos mares, António de Faria tinha derrotado o famoso corsário Coja Acém, terror da costa chinesa, história contada na semana passada. E continuando na Peregrinação, “Por entre estas duas ilhas a que os naturais da terra e os que navegam aquela costa chamam as portas de Liampoo vai um canal de pouco mais de dois tiros de espingarda de largo, com fundo de vinte até vinte e cinco braças, e em partes tem angras de bom surgidouro, e ribeiras frescas de água doce que descem do cume da serra, por entre bosques de arvoredo muito basto de cedros, carvalhos e pinheiros mansos e bravos, de que muitos navios se provêm de vergas, mastros, tabuado e outras madeiras, sem lhe custarem nada.
Surgindo António de Faria nestas ilhas uma quarta-feira pela manhã, Mem Taborda e António Anriquez lhe pediram licença para irem diante dar recado à povoação de como ele era chegado, e saber as novas que havia na terra, e se se dizia ou soava por lá alguma coisa do que ele fizera em Nouday porque se a sua ida lá prejudicasse em alguma coisa à segurança e quietação dos portugueses, se iria invernar à ilha de Pulo Hinhor como levava determinado…”
Estava-se em Dezembro de 1541 e “os seis dias que António de Faria aqui se deteve, como lhe tinham pedido os de Liampoo, esteve surto nestas ilhas. No fim do qual tempo, um domingo antemanhã, que era o tempo aprazado para entrar no porto, lhe deram uma boa alvorada (…). E sendo pouco mais de duas horas antemanhã, com noite quieta e de grande luar, se fez à vela com toda a armada (…). E sendo já manhã clara acalmou o vento pouco mais de meia légua do porto, a que logo acudiram vinte lanteás de remo muito bem equipadas, e dando toa a toda a armada, em menos de uma hora a levaram ao surgidouro.
Porém antes que ela lá chegasse vieram a bordo de António de Faria mais de sessenta batéis e balões e manchuas com toldos e bandeiras de seda, e alcatifas ricas, nas quais viriam mais de trezentos homens, vestidos todos de festa, com muitos colares e cadeias de ouro, e suas espadas, guarnecidas do mesmo, em tiracolos, ao uso de África. E todas estas coisas vinham feitas com tanto primor e perfeição que davam muito gosto e não menos espanto a quem as via.
Desta maneira chegou António de Faria ao porto, no qual estavam surtas por ordem vinte e seis naus e oitenta juncos, e outra muito maior soma de vancões e barcaças amarradas umas ante outras, que em duas alas faziam uma rua muito comprida, enramados todos de pinho e louro e canas verdes, com muitos arcos cobertos de ginjas, peras, limões e laranjas, e de outra muita verdura, e de ervas cheirosas, de que também os mastros e as enxárcias estavam cobertas.
António de Faria, depois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estava aparelhado, fez sua salva de muita e muito boa artilharia, a que todas as naus e juncos e as mais embarcações que trás disse, responderam por sua ordem, que foi coisa muito para ver, de que os mercadores chineses estavam pasmados. E perguntavam se era aquele homem, a que se fazia tamanho recebimento, irmão ou parente do nosso rei, ou que razão tinha com ele. A que alguns cortesãos respondiam que não, mas que verdade era que seu pai ferrava os cavalos em que el-rei de Portugal andava, e que por isso era tão honrado que todos os que ali estavam podiam muito bem ser seus criados e servi-lo como escravos. Os chineses, parecendo-lhe que podia ser aquilo assim, olhavam uns para os outros a maneira de espanto, e diziam:
– Certo que muito grandes reis há no mundo de que os nossos antigos escritores não tiveram nenhuma notícia para fazerem menção deles nas suas escrituras! E um destes reis de que mais caso se devera de fazer parece que deve ser o destes homens, porque segundo o que dele temos ouvido é mais rico e mais poderoso e senhor de muito maior terra que o Tártaro nem o Cauchim, e quase que se pudera dizer, se não fora pecado, que emparelhava com o Filho do Sol, Lião coroado no Trono do Mundo. Numa lanteá se embarcou “António de Faria, e chegado ao cais com grande estrondo de trombetas, charamelas, atabales, pífaros, tambores e outros muitos tangeres de Chineses, Malaios, Champás, Siames, Bornéos, Léquios e outras nações que ali no porto estavam à sombra dos Portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio, o desembarcaram dela em uma rica cadeira de estado, como chaem do governo, dos vinte e quatro supremos que há neste império. A qual levavam oito homens vestidos de telilha, com doze porteiros de maças de prata, e sessenta alabardeiros com panouras e alabardas atauxiadas de ouro, que também vieram alugadas da cidade, e oito homens a cavalo com bandeiras de damasco branco, e outros tantos com sombreiros de cetim verde e carmesim, que de quando em quando bradavam à charachina, para que a gente se afastasse das ruas”, Fernão Mendes Pinto.
Entende-se tão pomposa recepção a António de Faria, pois libertara das masmorras residentes da cidade, e pelo relato apreende-se a riqueza não só cultural, como material, com que já aí se vivia. E ainda os mercadores portugueses não tinham chegado às ilhas do Japão. Quando tal aconteceu em 1542, segundo Beatriz Bastos da Silva, foi “inaugurado o comércio português de Liampó, 30° Lat. N, com o Japão. O entreposto de Liampó já era florescente há algum tempo. O comércio do Japão veio, entretanto, a enriquecer Liampó de forma rápida. Tinha duas igrejas, uma câmara, dois hospitais, mais de mil edifícios particulares, auditores, juízes, procuradores e outros ofícios públicos usuais em Portugal. Crescimento daí decorrente para Liampó (na boca do rio Fu-Chan). Feitorias de carácter precário (Chincheo, Lampacau), sem contratos, mas já cheias de pormenores administrativos portugueses, embora localmente estivessem sujeitas à China. (Ljungstedt, Andrew – An historical sketch of the Portuguese)”.

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