Filmes do século XXI

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ra impossível isto não aparecer. Uma lista de filmes preferidos do século XXI. Saiu uma semelhante na BBC e esta, pessoal e necessariamente apenas produto da investigação pobre de um curioso, é inspirada nessa. Apresenta-se em ordem alfabética porque valorizar uns sobre outros seria quase impossível.
Estas listas do século XXI introduzem, agora que já não há inocentes, um aviso. O de constatar que já estamos quase em 2017 e que, no meio de tantos filmes muito bons e filmes óptimos, já não há grandes filmes ou já não existe capacidade de espanto.
O artigo que acompanha a lista da BBC argumenta que se vive uma época de ouro do cinema. A ideia nuclear que nele se descobre é a de que existe um número crescente de espectadores exigentes que se não contentam com o ubíquo blockbuster norte-americano. Dá-se (concordo) como exemplo The White Ribbon, de Haneke, um filme de art-house com um público muito vasto – porque é acessível mas também atraente a vários níveis. Outro argumento é o da diversidade de tipos de filmes existente, da animação japonesa ao noir californiano.
Na lista que nesta página se apresenta há uma quantidade vasta de filmes onde se encontram temas e estilos não muito convencionais mas que mantêm um apelo a que será sensível um público alargado. Se The Turin Horse, Goodbye, Dragon Inn ou Instructions for a Light and Sound Machine não entram nesta classificação, Ida, Black Coal, Thin Ice ou The White Ribbon, entre muitos outros, conseguem-no.
Outro argumento que tende a elogiar a riqueza do cinema contemporâneo é o da diversidade da sua origem (concordo). Na lista que se mostra em baixo há autores de mais de 30 países diferentes, do Irão ao Mali, da Argentina à Palestina e à Tailândia (não foi intenção própria). Que estes filmes estejam acessíveis a um mero curioso e não apenas a um profissional que frequente festivais é prova de que a riqueza do cinema contemporâneo (muito ligada ao aparecimento das facilidades técnicas que o digital permite) é cada vez mais acessível.
O que é irritante é que o cinema se pode estar a tornar numa espécie de coisa gira nesta época de coisas giras, produto da Wallpaperização e Monoclização do mundo, um mundo onde tudo é cool e tem design e pequenos cafézinhos como há em Taiwan e em Lisboa, um mundo de tapas, foodies, cocktails de assinatura, craft beer e suecos de barba.

About Elly (Asghar Farhadi, 2009)
Address Unknown (Kim Ki-duk, 2001)
All About Lily Chou-Chou (Shunji Iwai, 2001)
Amores Perros (Alejandro Inarritu, 2000)
Amour Fou (Jessica Hausner, 2014)
A Separation (Asghar Farhadi, 2011)
Aurora (Cristi Puiu, 2010)
Bad Guy (Kim Ki-duk, 2001)
Bamako (Abderrahmane Sissako, 2006)
Black Coal, Thin Ice (Diao Yinan, 2014)
Blind Mountain (Li Yang, 2007)
Blind Shaft (Li Yang, 2003)
Brand Upon the Brain (Guy Maddin, 2006)
Bullhead (Michael Roskam, 2011)
Colossal Youth (Pedro Costa, 2006)
Dark Water (Nakata Hideo, 2002)
Devils on the Doorstep (Jiang Wen, 2000)
Distant (Nuri Bilge Ceylan, 2002)
Dogtooth (Yorgos Lanthimos, 2009)
Downfall (Oliver Hirschbiegel, 2004)
Enter the Void (Gaspar Noé, 2009)
Film Socialism (Godard, 2010)
Force Majeure (Ruben Ostlund, 2014)
4 Months, 3 Weeks and 2 Days (Cristian Mungiu, 2007)
Girlhood (Céline Sciamma, 2014)
Goodbye, Dragon Inn (Tsai Ming-liang, 2003)
Hard to be a God (Alexei German, 2013)
Holy Motors (Leos Carax, 2012)
Hunger (Steve McQueen, 2008)
I Am Love (Luca Guadagnino, 2009)
Ichi the Killer (Takashi Miike, 2001)
Ida (Pawel Pawlikowski, 2013)
In Praise of Love (Godard, 2001)
Instructions for a Light and Sound Machine (Peter Tscherkassky, 2005)
In the Mood for Love (Wong Kar-wai, 2000)
In Vanda’s Room (Pedro Costa, 2000)
Japon (Carlos Reygadas, 2002)
Kinatay (Brillante Mendoza, 2009)
Le Quattro Volte (Michelangelo Frammartino, 2010)
Locke (Steven Knight, 2013)
Lourdes (Jessica Hausner, 2009)
Love and Bruises (Lou Ye, 2011)
Melancholia (Lars von Trier, 2011)
Moonrak Transistor (Pen-Ek Ratanaruang, 2001)
Mother (Bong Joon-ho, 2009)
Mullholland Drive (David Lynch, 2001)
My Winnipeg (Guy Maddin, 2007)
Neighboring Sounds (Kleber Mendonça Filho, 2012)
Nymphomaniac (Lars von Trier, 2013)
Offside (Jafar Panahi, 2006)
Old Boy (Park Chan-wook, 2003)
Omar (Hani Abu-Assad, 2013)
1001 Nights (Miguel Gomes, 2015)
Pieta (Kim Ki-duk, 2012)
Pistol Opera (Seijun Suzuki, 2001)
Princess Raccoon (Seijun Suzuki, 2005)
Shirley Visions of Reality (Gustav Deutsch, 2013)
Skeletons (Nick Whitfield, 2010)
Still Life (Jia Zhangke, 2006)
Syndromes and a Century (Apichatpong Weerasethakul, 2006)
Swirl (Clarissa Campolina and Helvécio Marins Jr., 2011)
Tabu (Miguel Gomes, 2012)
The Act of Killing (Joshua Oppenheimer, 2012)
The Assassin (Hou Hsiao-hsien, 2015)
The Buffalo Boy (Minh Nguyen-Vo, 2004)
The City of God (Fernando Meirelles, 2002)
The Forbidden Room (Guy Maddin, 2015)
The Great Beauty (Paolo Sorrentino, 2013)
The Great Ecstasy of Robert Carmichael (Thomas Clay, 2005)
The Headless Woman (Lucrécia Martel, 2008)
The Lives of Others (Florian Henckel von Donnersmark, 2006)
The Return (Andrey Zvyagintsev, 2003)
The Strange Case of Angelica (Manoel de Oliveira, 2010)
The Turin Horse (Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, 2011)
The Wayward Cloud (Tsai Ming-liang, 2005)
The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)
Thirst (Park Chan-wook, 2009)
13 Assassins (Takashi Miike, 2010)
3-Iron (Kim Ki-duk, 2004)
Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (Apichatpong Weerasethakul, 2010)
Unknown Pleasures (Jia Zhangke, 2002)
Untold Scandal (E J-yong, 2003)
Venus in Fur (Roman Polanski, 2013)
Vera Drake (Mike Leigh, 2004)
Victoria (Sebastian Schipper, 2016)
Winter Sleep (Nuri Bilge Ceylan, 2014)
You Ain’t Seen Nothin’ Yet (Alain Resnais, 2012)

20 Set 2016

Tragédia Grega

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]amos começar hoje, e prolongar por algumas semanas, a viagem a uma outra forma de poesia, que nasceu e morreu na antiga Grécia: a tragédia. A tragédia é uma composição poética dramática, isto é, que mostra uma acção a acontecer, e não uma narrativa, como em Homero, ou um estado de espírito, uma intemporalidade, como em Safo. A tragédia tem as suas origens num culto ao deus Dionísio (deus que não pertence ao Olimpo, que cresceu nos bosques do monte de Nisa); as pessoas organizavam um coro e, com máscaras semelhantes a Sátiros, celebravam a embriaguez e o vinho novo, por toda a Ática, não só nos campos, e cantavam. Estes cantos eram em forma de ditirambos, que eram versos religiosos usados no culto de Dionísio. Mais tarde, este coro evolui para um jogo de voz e canto entre o Corifeu, chefe do coro, e o coro. Nesta forma, à qual se chamou de drama satírico, eram contadas histórias brejeiras, quotidianas e com uma linguagem vulgar. No seguimento disto, Téspis introduz pela primeira vez um personagem, destacado do coro. Não obstante, a tragédia assume a sua característica fundamental apenas quando a linguagem se eleva e os mitos deixam de referir exclusivamente Dionísio, passando a referir os de toda a mitologia, inserido assim o culto do herói, daquele que enfrenta os deuses e a adversidade enviada por eles. Trata-se, por conseguinte, da união entre os deuses Dionísio e Apolo. Dionísio pela dança e pelo excesso, Apolo pela linguagem e a elevação da mesma.
A tragédia tinha de ter obrigatoriamente um coro e um, dois ou três actores, que se poderiam desdobrar em muitos mais personagens. Os actores apresentavam o rosto coberto por uma máscara, reflexo do personagem que representavam. A cena da tragédia conjugava dois temas heterogéneos: os mitos dos deuses e os mitos dos heróis, daqueles que cumpriam elevadas façanhas ou padeciam de duras penas cobertos de dignidade e glória. A tragédia encenava criações originais baseadas na mitologia, na história da cultura grega. Os elementos nucleares da tragédia eram três: 1) coro; 2) corifeu e 3) actores.

1) O coro era composto por 6, 12 ou 15 elementos, e estes eram chamados de coreutas. Após entrarem na “orquestra”, que é a área de dança no teatro, os coreutas cantam e dançam nesse espaço. Estes dançarinos-cantores eram em geral homens jovens que estavam em idade de entrar para o serviço militar. Não eram profissionais do teatro e daí a importância do tragediógrafo ser também o ensaiador do coro, muito embora os atenienses desde crianças fossem ensinados a cantar e dançar. O coro trágico quase não participa da acção, limitando-se apenas a comentá-la e expressando compaixão ou outros sentimentos pelos personagens. Algumas vezes também destaca o sentido religioso da acção e a intercala com preces. Por outro lado, simboliza o grupo – cidade ou exército – cuja sorte está ligada aos personagens. De todos os elementos do teatro grego, o coro é sem dúvida o mais estranho para o público moderno, embora tenha sido o núcleo inicial do teatro grego.
2) Corifeu: é um membro destacado do coro que pode cantar sozinho. Em geral tem três tipos de funções principais:
a) exortar o coro à acção, a começar o canto;
b) antecipar, ou resumir, as palavras do coro;
c) representar o coro, dialogando com os actores.
3) Actores: representam deuses ou heróis. São em número muito reduzido. Na verdade, pode-se dizer que o teatro surge quando Téspis cria a figura do actor, isto é, o separa do coro e ele passa a dialogar com este. O número de actores sobe para dois com Ésquilo, e em seguida três, com Sófocles, embora esta alteração tenha sido contemporânea de Ésquilo, tendo este inclusivamente usado mais tarde nas suas tragédias o terceiro actor, nomeadamente na sua famosa Oresteia. É no diálogo entre os actores que se concentra quase a totalidade da acção dramática. Os três actores tinham nomes que revelam uma relação hierárquica: protagonista – primeiro actor; deuteragonista – segundo actor; e tritagonista – terceiro actor. Os actores têm a sua etimologia conectada com agón, isto é, a luta, o confronto, embora originalmente o termo se referisse à assembleia, a uma reunião em praça pública, na agora. Proto + agón + ista quer literalmente dizer o primeiro lutador a entrar em cena, a entrar na skenê, o lugar onde se representava, para enfrentar os deuses. O actor ou actores representavam na skenê e o coro cantava e dançava nas orchestra, recinto grande em frente da skenê e que era envolvido pelo theatron, o auditório onde o público se sentava. A “orquestra” era o espaço cénico em frente e abaixo do palco (onde na nossa ópera, hoje, ficam os músicos, ao que chamamos o lugar da orquestra). Por conseguinte, os agonistas eram aqueles que subiam ao palco para enfrentar os deuses.
Passemos então agora a examinar a tragédia grega do ponto de vista da sua forma, quer na sua divisão em partes principais, quer na ocorrência de cenas típicas. É contudo extremamente importante não esquecermos o aspecto criativo e inovador dos autores trágicos, que os levava muitas vezes nas suas tragédias a romper com estas regras. Ao arrepio da ideia que uma leitura equivocada da Poética de Aristóteles disseminou desde o Renascimento, não havia uma norma que não pudesse ser quebrada. O objectivo dos tragediógrafos era vencer a competição e agradar ao público, e para isso usavam tanto o recurso da tradição quanto o da inovação. Mas veja-se a divisão da maioria das tragédias.

1. Prólogo: 
É a primeira cena antes da entrada do coro ou antes da primeira intervenção do coro. Trata-se de uma narrativa preliminar que visava introduzir o tema, que pode estar ou não presente numa tragédia. Os dramas antigos (séc. VI a.C.) e alguns de Ésquilo começavam sem prólogo, veja-se o caso de Os Persas e de As Suplicantes. No entanto, depois de As Suplicantes não temos nenhum outro exemplo de introdução puramente musical nas tragédias, como deveria ter sido na sua origem. 
Há vários tipos de prólogo: a) com apenas um actor, na forma de solilóquio ou monólogo – é o caso do Agamémnon, de Ésquilo, onde o solilóquio do vigia, que durante a noite espera o sinal da vitória em Tróia, nos antecipa tanto as circunstâncias da como o próprio clima ansioso e opressivo da tragédia; b) com mais de um actor, em cena aberta com diálogo e acção – que é o caso de O Prometeu Agrilhoado, também de Ésquilo, onde a peça abre com Prometeu sendo agrilhoado por Hefesto, indicando também onde se situa a peça e quais as circunstâncias; mas também em Medeia, de Eurípedes, ocorre esse tipo de prólogo com mais acção, através do diálogo entre a ama e o preceptor. 



2. Párodo: Inicialmente era a entrada do coro cantando e dançando na “orquestra” – por exemplo As Coéforas. Pode ser também a primeira ode do coro, pois este já estaria presente, em silêncio, desde o início da peça. Embora seja raro, acontece por exemplo em As Euménides.
Mas o párado pode ser executado de vários modos: a) por todo o coro – que é o caso mais frequente, por exemplo, em Agamémnon, de Ésquilo; b) por dois semi-coros em sucessão – por exemplo, em As Suplicantes, de Eurípides; c) pelos membros individuais do coro em falas rápidas – por exemplo, em As Euménides. Ao invés de um párodo cantado exclusivamente pelo coro, podemos ainda encontrar em vários dramas um “diálogo lírico”, isto é, uma parte musical, entre coro e actores – por exemplo, em Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo. Mas podemos encontrar esta escolha em muitas outras tragédias: Electra, Filoctetes e Édipo em Colono, de Sófocles; Reso, Medeia, Troianas, Héracles, Helena, Electra, e Efigénia em Tauris. 
Depois da sua entrada, o coro, em geral, fica presente durante toda a peça. São poucos os casos de saída de cena. Das peças que chegaram até nós, acontece apenas em As Euménides, Ájax, Helena, Alceste e Reso. O canto de retorno da orquestra é chamado de epipárodo. 


3. Episódio: é a cena que acontece no palco, entre os cantos corais, sejam estásimos (ver adiante) ou diálogos líricos, em que participa no mínimo um actor. Os episódios podem variar muito de tamanho e de importância. Além dos actores, podem também participar figurantes. Estes distinguem-se dos actores pelo facto de não terem falas. Podem ocorrer diálogos de tipo actor-corifeu ou actor-actor, nos quais predominam as narrativas. Os solilóquios, contrariamente ao teatro posterior, são pouco frequentes, pois o coro em geral está sempre presente depois do párodo. Um exemplo de solilóquio, durante um episódio, encontramos no Ájax, de Sófocles. Em geral, as falas dos actores durante os episódios são recitadas e não cantadas. Em certos momentos, porém, as personagens podem ser levadas por suas paixões a uma performance musical, cantada. As partes cantadas nas tragédias encontravam-se diferenciadas pelas mudanças da métrica do verso em grego. Não obstante, e de modo geral, nas traduções essas diferenças são imperceptíveis.
A actuação musical dos actores podia dar-se de duas maneiras: 
1. Com coro – os chamados “diálogos líricos ou musicais”, usualmente cenas de profunda emoção (o “diálogo lírico” pode apresentar uma grande variedade de estrutura) – e que se subdividem em: a) 1 actor + coro, são em geral os mais antigos, predominante nas obras de Ésquilo, por exemplo no 1.º estásimo de Os Persas, onde ocorre um diálogo lírico entre o arauto e o coro; b) 2 ou 3 actores + coro – por exemplo As Coéforas e Ájax –, que poderiam ser lírico-epirremático, isto é, cantada pelo coro e recitada pelo actor; ou então – e que era o mais comum em Ésquilo – o diálogo lírico propriamente dito, ou seja, coro e actores cantam juntamente. 

2. A solo, “monodias”, ou em duetos, era uma forma mais comum em Sófocles e em Eurípides. Pois com a diminuição do papel do coro aumentou o espaço no drama para os actores, havendo uma transferência do interesse da “orquestra” para o palco. É uma das características fundamentais nas cenas de violenta paixão nas tragédias de Eurípides.
3) Vários actores: diálogo entre 2 ou 3 actores. Forma também muito frequente em Eurípides. Neste formato, um actor canta e o outro responde em récita; o coro pode também fazer uma intervenção musical isolada dentro de um episódio, mas não temos certeza se o coro inteiro cantava ou cantava apenas uma parte dele – veja-se em Prometeu Agrilhoado, 4º episódio. Nestes casos a extensão do coro é pequena dentro do episódio. 
O número dos episódios não era fixo, variava de 4 (Persas) a 7 (Édipo em Colono), mas a regra generalizada era que as tragédias fossem compostas por cinco episódios. 

4. Estásimos: Eram os cantos e danças do coro na orquestra que separavam os episódios, marcando pausas na acção. Seu número é variável, em geral, de 2 a 5 estásimos por drama. A dança podia restringir-se a uma gesticulação enfática e era de carácter grave e trágico. Por vezes o coro podia apresentar um canto e uma dança mais viva, chamada de hipórquema, geralmente colocado antes da cena de catástrofe (ver adiante), para intensificá-la. Ao invés do estásimo, cantado exclusivamente pelo coro, poderiam ocorrer diálogos líricos com actores, como definidos acima no caso do párodo. No final de um episódio era muito comum a saída de actores para a skene, de forma a trocarem de roupas e de máscaras durante o estásimo, aproveitando esta pausa na acção. 

5. Êxodo: Inicialmente, como seu nome indica, era simplesmente a saída do coro cantando e dançando ao final da peça, como por exemplo em As Suplicantes e em As Euménides. Posteriormente, com a diminuição gradual do papel do coro, passou a ser a última cena depois do último estásimo e que encerra o drama – por exemplo, no Agamémnon. Assim, com a diminuição do papel do coro no êxodo, este poderia ser apresentado de dois modos: a) num diálogo lírico entre o coro e os actores – como por exemplo em Os Persas; ou, b) com versos finais do corifeu – neste caso poderia haver nesta última cena uma fala final de um deus que seria o epílogo, e que era a forma mais comum nas tragédias de Eurípides. 
Vejamos então como era arquitectura geral, mais usual, das tragédias gregas no seu período áureo:
PRÓLOGO (que faltava nas tragédias mais antigas) 


PÁRODO 


1º EPISÓDIO 


1º ESTÁSIMO 


2º EPISÓDIO 


2º ESTÁSIMO 


3º EPISÓDIO 


3º ESTÁSIMO 


4º EPISÓDIO 


4º ESTÁSIMO 


5º EPISÓDIO 


ÊXODO 
 


(continua)

20 Set 2016

Diário de Pequim | Pequim, 10 de Abril de 1978

António Graça de Abreu

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Portugal, com o PCP (m-l), comprometi-me a assinar um contrato de trabalho com os chineses que se estenderia por quatro anos na China. Chegado às Edições, nunca os camaradas me falaram em assinar o tal contrato ou na duração da estada em Pequim. Trataram-me da papelada de trabalho e dos documentos de estadia, subentendendo os chineses que ficarei por quatro anos.
Não estou preocupado. Sinto-me bem no que faço, aprendo todos os dias, estou numa fase de transição da minha vida. Depois da Alemanha, da Guiné-Bissau, agora a China, três continentes, Europa, África e Ásia, nada mau, três experiências riquíssimas em dez anos: Ou seja a emigração, a guerra de África, a vivência num grande, sinuoso e fascinante país socialista. Ainda só tenho trinta anos. Isto promete!…

Jinghong, Xishuanbanna, 19 de Abril de 1978

O nome Xishuangbanna soa estranho. A região fica a umas poucas léguas das florestas da Birmânia, a uma centena de quilómetros do Laos, não longe da Tailândia. É habitada por umas tantas minorias nacionais, dezasseis a saber, pequenos grupos étnicos quase todos com língua e escrita própria, bem diferentes dos chineses han. Os tai, aparentados com os tailandeses, são a grande minoria nesta região.
Voei de Pequim para Kunming, capital da província de Yunnan, num Bac 111, o Trident, o bimotor a jacto inglês que equipa as linhas aéreas comerciais chinesas. Depois, um Antonov 24, a hélice, avião construído na União Soviética e já fora de moda, furou montanhas de nuvens, serpenteou no vazio sobre cumes e cumes de montanhas e deixou-me em Simao, a cidadezinha com aeroporto mais próxima de Xishuangbanna. Continuei viagem por mais 160 quilómetros de estrada, entre montes e vales num pequeno autocarro encavalitado numa esplendorosa paisagem sub-tropical, esfuziante de cores, perfumes e surpresas.
Vim, com um pequeno grupo das Edições de Pequim para, em Xishuangbanna, assistir e participar na Festa da Água, o ano novo destas populações que fazem do rejuvenescer da Primavera o tempo certo para depurar corpo e mente, com libações em honra da perfeita água.
Estou alojado numa pequena pousada, uma espécie de bungalows unidos por caramanchões e varandas, entre jardins e palmares, na sombra serena do silêncio da floresta tropical. O meu quarto, com chão de cimento e as comodidades mínimas, é o número 5. Sete metros ao lado, já transformado em museu, fica o quarto número 1 onde se alojou o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai na sua vinda a Xishuangbanna em 1973, exactamente para a Festa da Água. Na memória de tão excelsa companhia, sinto-me uma pessoa importante.
Ontem em Jinghong, a sede da prefeitura de Xishuangbana, encaminharam-me para uma aldeia dos arredores, deixaram-me num dos terreiros para a grande festa. Vesti uma camisola interior vermelha, umas calças velhas, calcei uns chinelos de dedo e levei uma bacia de esmalte, novinha em folha. Ali estava o pobre letrado lusitano a cirandar entre a gente da terra, armado para a faiscante, encharcante e entusiasmante batalha da água. E que batalha, e que festa, meus senhores!…
Os tambores dos tai começam a rufar, as marimbas a tanger, as flautas a tocar. Iniciam-se os singulares folguedos, dança-se em círculo em volta dos músicos, cada um vai encher a sua bacia no interior de umas tantas canoas espalhadas em redor, o casco vazio funciona como reservatório da água trazida para aqui em grandes bidons. Regressamos à roda e lançamos, aspergimos o excelente líquido sobre o parceiro ou parceira da frente, do lado, de trás. Alguma confusão mas depois apanhamos o ritmo do bailado nos grandes círculos, há água e mais água a borrifar toda a gente, as pessoas estão esplendorosamente encharcadas, da cabeça aos pés. Quanto mais inundadas, mais limpas e mais saem os pecados. As meninas tai, jovens, esbeltas, riem, dançam, amaneiram os gestos, rodam as mãos e os dedos no ar como requintadas andaluzas. Usam flores e um pente nos cabelos, mostram as saias ou calças finas, justas, bem molhadas, as reduzidas blusas humedecidas agarradas ao corpo, os perfeitos umbigos desnudados, as curvas redondas abaixo da pequena anca, os seios húmidos, túmidos, meio escondidos, meio ao léu, de bicos empinados e bonitos. Dançam como deusas nas terras dos confins do mundo, gráceis, femininas, raiz e tronco da vida dos homens.

Lá em baixo, no rio Lancang, há mais festa. Este grande rio, o quarto maior de toda a Ásia, desce desde o Tibete até aqui, quase que por socalcos. Ao sair da China, 50 quilómetros a sul de Xishuanbanna, passa a chamar-se Mekong e a ser não só parcialmente navegável, mas também a assumir-se como a grande estrada fluvial entre a China, o Laos e o Vietnam. No delta, a sul de Saigão, cansado da movimentada jornada, dilui-se aos poucos no grande Oceano Pacífico.
No rio Lancang chinês, ou melhor no Mekong, há hoje corridas de barcos-dragão, petardos, fogo-de-artifício, danças do pavão, jogos, cantos e danças. Na margem, acompanho o desfile meio espontâneo de centenas de mulheres, homens e crianças ataviadas com os seus melhores trajes, tudo gente das minorias nacionais locais. Há toucados enfeitados com adereços brilhantes, roupas de seda bordada com cintos de prata, túnicas de veludo, casaquinhos de algodão entrançado. Tudo colorido, a cheirar a novo e a festa. São os povos da planície ou das montanhas, as minorais nacionais estranhas para os chineses han na fala, entendimentos, usos e costumes.

19 Set 2016

Exílio e Alteridade

Sales Lopes, Fernando, 2014, Geometria & Exercícios em Busca da Perfeição, Macau 2014
Cota: 821.134.3(512.318)-1 Lop

A.
Estes exercícios podem ir da pura retórica ou de uma busca e de uma demanda, mas visam sempre a perfeição.
Aquilo que Fernando Sales Lopes nos oferece tem mais o sentido de uma demanda, de uma procura interior mas também de uma partilha. Na voz de Sales Lopes fala a sua voz própria mas também uma experiência que o ultrapassa.
“Aprendi tudo como me ensinaram / (…) Mas não me ensinaram / (Talvez nem o soubessem) / o que sentimos / quando / tanto tempo depois / numa velha igreja em ruínas / se ouve rezar em português / (…)”.
A sua voz tanto se apaga diante daquilo que ele sente que mais do que ele o justifica, como faz sentir a sua presença, própria, idiossincrática. Ele pensa, ou pensará, que alguma realidade o justifica, quando eu penso que é o contrário que acontece, é o poeta, e no caso ele, que pode justificar e tudo justifica. E por isso para mim, na maior parte das vezes em que Fernando Sales Lopes utiliza a primeira pessoa do plural, em boa verdade refere-se, mas com pudor, à primeira pessoa do singular.
“Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…)”.
O plural, vagamente majestático, e a ideia de uma pertença não negada limita-se a reforçar o destino próprio. A aventura colectiva serve apenas ou pelo menos essencialmente como caução para si mesmo, ainda que o poeta o não considere eventualmente nos seus pressupostos ideológicos. O nós tem tendência, progressivamente, a não representar senão o eu, mesmo que, por pudor insisto, se esconda por detrás de um plural.
“Se querem saber de nós, procurem // Procurem em todas as terras / onde o mar se espreguiça em largos areais / Procurem no sonho, onde não penetram”.
É claro que os poemas possuem uma referencialidade histórica e cultural, mas apenas enquanto pretexto para que se possa falar de si próprio sem constrangimento e por essa via este nós, mesmo que também se deixe ler assim, e essa ambiguidade é em si mesmo um recurso estilístico entre os demais, assume o desígnio de um eu desdobrado. E ao longo do livro sê-lo-á cada vez mais. Até não ser senão isso. É como se dentro do próprio texto, da sua narrativa implícita, assistíssemos à metamorfose do poeta cidadão deste mundo no demiurgo de um mundo outro e novo.

B.
Neste livro de Sales Lopes assistimos à narrativa dessa metamorfose, com avanços e recuos, como não podia deixar de ser. Os partos são difíceis:
1. A expressão do anseio
“O branco que só este sol me dá / Cedo. Muito cedo / Que o cinzento de sempre logo fará desaparecer // Deixem-me mergulhar nesta luz / Estou farto de grades”.
2. E depois a certeza
“Aquilo que eu vejo é só meu. Só eu o vejo assim”
3. Mas antes do Mundo, antes do seu nascimento há a angústia do nada
“Olho a profundidade / um imenso vazio / a totalidade do nada”
4. E há momentos cruciais
O momento e cito do “sono dos deuses / no infinito dos tempos” em que o demiurgo está “suspenso no vazio”. Ou o momento da dor
“Doloroso atingir o nada / viajando entre o tudo // pesa-me o caminho”
ou da perda
“é com a ausência que vivo / cresce a distancia das coisas / tudo é já intocável”
Pois é necessário que o criador se desfaça de um mundo para poder ganhar outro.

C.
Ao mesmo tempo que o texto dá conta do nascimento de um mundo mostra-nos a trama que o engendra. O que alimenta ideologicamente o mundo novo é a problemática da relação.
A tensão é, ao longo do livro, permanente entre o Eu Poético e o Outro e se algumas vezes esse Outro aparece configurado com as roupagens do Mesmo, em muitos momentos o Outro é expressão de pura alteridade. O elemento mais sedutor na poética de Fernando Sales Lopes, reside mesmo no facto de que o Outro é compósito e nele não se distingue, por vezes, o que é da ordem da mesmidade ou da alteridade. Como se para lá do Eu ou seja da sua ipseidade, não fizesse muito sentido a separação entre os dois pronomes pessoais que em geral se opõem: o Nós e o Eles. Todos são da ordem do Nós e todos são ao mesmo tempo Outro relativamente ao Eu que é Nós. E em certos momentos o próprio Eu se dilui no caudal caótico da indiferenciação.
“Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / (…) / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”.
Na maior parte das vezes a procura do outro é orientada por Eros.
Como neste intenso poema:
“Queria navegar-te / rasgando canais / pela terra virgem // Desvendar-te os mistérios / numa orquídea lilás / explodindo em Budas / de ouro… // E depois… amar-te // Deslizando pelo veludo / da tua pele branca / e macia. // Na volúpia dos cheiros / sobre um imenso / pano laranja // Açafrão benzido / que te cobrisse / na loucura do êxtase // Misturados nas águas / que são o teu sangue / E na terra que a consome / até ao mar // Ao grande mar / dos nosso suados corpos”
Mas eros, pode ser amor ou amizade. A grande aventura da alteridade é a assunção de que o que promove a diferença é o abraço…
O outro transcende-me como facto do mundo, mas fá-lo de uma forma dinâmica. Ele provoca uma mutação na minha intencionalidade. A consciência recebe o outro como um facto insólito. A minha intencionalidade só pode ser imediatamente ética quando é estimulada pelo outro. Porque o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade. Eu torno-me abrigo para o meu semelhante porque ele coabita o meu mistério, a minha condição, porque ele, sou eu visto a partir de mim próprio, porque todos somos o outro. A nossa condição é sermos sempre o outro. Se nos desfizermos do outro é de nós mesmo que nos desfazemos.
“Eis-me de volta / dos tempos // do cravo / da canela / do gengibre / da pimenta // Ficou este abraço / que nos torna diferentes…”
Pois a alteridade deve persistir sempre.
E porque um dos mais poderosos referentes da diferença é a cor, Fernando Sales Lopes traz a cor à sua intenção fenomenológica e poética e o que nos diz é que as cores não comportam em si uma essência, a essência permanece, aquilo que é substantivo e axial sofre a mutação das cores para ficar inalterável (inalterado), ou seja não reduzido ao mesmo.
“Negro / Negro como os malabares / que te adoram // Negro / pelos fumos / dos incensos e óleos // As setas do teu martírio / escondem-se / sob colares floridos / grinaldas de abolim / com que te pagam / o milagre do amanhã // Levámos-te santo de Roma / transformaram-te em ídolo // Ganesh / duma outra fé”.
É a transcendência intrínseca do mundo que fundamenta a intencionalidade fenomenológica e é essa intencionalidade que fundamenta o papel dinâmico a priori da consciência. Por isso a consciência é fenomenológica mas também transcendental, pois que ela está desde sempre comprometida com o mundo que visa. Não há qualquer coisa como o mundo e a consciência, separados à maneira cartesiana. O mundo é mundo para a consciência e a consciência é consciência de e para o mundo.
É neste contexto que o outro aparece como figuração / encenação da transcendência. Eu viso-o porque sou visado. Eu respondo a um apelo, a uma provocação.
Este livro de Sales Lopes está cheio de momentos em que esta dramaturgia é consagrada. Mas eros predomina como intriga e tensão, uma vez que a inalienável relação com o Outro não é ontologicamente neutra. A relação com o outro não é Logos. A alteridade é Eros. A alteridade é talvez ainda mais. A alteridade é a sabedoria de Eros. Ora na génese desta sabedoria do amor está o desejo.
“Entreabertas, as janelas / rasgam as paredes de açafrão // Para lá das conchas / aqueles imensos olhos / negros, sedutores, / misteriosos / fixos e indiferentes // Por eles viajo / numa paixão sem tempo // Eu sabia que estavas à minha espera”. (P. 35)
Repare-se como aqui, neste poema que citei, aparece clara a ideia nuclear de que a alteridade é desejo e eros ou seja como eu disse acima, a ideia de que “Eu viso porque sou visado”. A ideia afinal de que eu respondo a um apelo, a uma provocação”. E essa ideia aparece neste caso reforçada por uma espécie de antecipação estruturante. De alguma maneira o mundo do Outro não é uma descoberta fortuita. O mundo do Outro é a descoberta de uma confirmação. Ora, só há confirmação e ao mesmo tempo descoberta se houver ambivalência. Ou seja se eu procurar o Outro com a certeza de que ele me espera. Ora, o que determina que eu saiba que ele me espera é o desejo de que assim seja. E reversivamente é essa convicção e certeza que reforça a determinação da minha procura e que desde logo, a montante a justifica. Ora só há uma possibilidade para esta confluência, para que eu possua a certeza de ir encontrar aquilo que eu procuro e que ressalve-se desde já é sempre da ordem da aventura; essa possibilidade enraíza no facto de que como eu disse acima: “o outro é, apesar da sua inalienável alteridade, a erupção, fenomenologicamente outra, de mim mesmo. O outro sou eu separado da minha autoconsciência. O outro sou eu sem o abrigo da minha identidade”.
Repare-se como de uma assentada confluem para a compreensão todos os elementos da alteridade, tal como aqui a concebo e que o texto poético de Sales Lopes confirma e cauciona:
— A coincidência entre o Mesmo e o Outro
e
—- ao mesmo tempo a sua inalienável separação.
e sobretudo
— o sentimento de aventura e perigo que o outro encerra.
Perigo que aparece apenas como aventura, desejo e epopeia sem regresso, portanto às avessas de todas as odisseias. Em Sales Lopes, no seu livro, prevalece um inequívoco sentido da errância, de uma diáspora sem fim.
No livro nós encontramos todas estas referências de forma explícita:
— “Quero navegar o universo / talvez por dentro de mim / e que fique escrita em verso / a grande viagem sem fim”.
— “Somos o vinho da loucura. / O herói e o vencido, da grande aventura / que é estarmos em todo o lado diferentes / mas nós!”
— “Deambulo por estas ruas sem esquadria / Veias aonde o sangue roça as margens / Tau-fu, tendas, t’chá, gente que me apetece abraçar / Confundo-me / Tudo e todos vivem em mim e eu sou já um deles”.
— Somos dos que nunca mais regressámos / desde a longa caminhada das Índias / Perdidos, para sempre, no interior de nós / (…).
Sublinho sem ambiguidades possíveis, este último verso “Perdidos, para sempre, no interior de nós”
O Outro é uma aventura sem fim. O outro está sempre aí, ganho e perdido, perdido mas procurado e ganho por que encontrado e logo por isso perdido. O Outro está e estará sempre dentro de mim. Então por que o procuro? Justamente porque é a mim que eu procuro. Procuro o Outro em mim, procuro-me a mim na diáspora essencial que me coloca diante do outro. Sempre em movimento, sempre em travessia. Não há paragem nem regresso. Mas se procuro o outro dentro de mim sei bem que não acabarei por encontrá-lo, mas nesta procura, nesta demanda corro risco de me perder eu próprio. Simplesmente à boa maneira levinasiana a alienação que aqui se esboça, o esboroamento da minha autarcia identitária é a grande chance no quadro justificativo do meu processo salvífico.
O Outro é um desafio permanente e eterno para o desejo. E, volto a repetir, a expressão desse desejo é e será sempre eros, mas em boa verdade só o desejo de eros, mais do que eros propriamente, exprime toda a tensão ontológica da relação com o outro. O desejo de uma casa e o seu inevitável abandono, a procura de um abrigo e a urgência da demanda, da aventura e do perigo. E ocorre-me aqui um poema de Pessoa … (Mensagem, III Parte, O Encoberto, Os Símbolos, Quinto Império). Excelente jogo de oxímoros e que começa assim:
“Triste de quem fica em casa / Contente com o seu lar”.

D.
Mas porque mais importante do que outro, é o desejo, como já disse, aproximo-me do fim com este notável poema, que o é enquanto poética mas também enquanto ideologia:
“Imagino-te / Sobre lençóis de seda “ numa explosão de vida // Nua, nessa etérea cama de ópio / do teu sorriso // Já vejo os crisântemos / abrindo em explosão de desejo // E o véu transparente / a descobrir-te // Sinto a pura sede do teu corpo // (…) // Alguém te pega no braço / e com um sereno sorriso / olhas-me numa despedida / sem regresso // (…) // Tu ficas, vestal branca, dentro de mim”
Todo o poema é sobre o desejo do Outro e a sua impossível realização.

15 Set 2016

Querida, embora dar umas beijocas debaixo da torre?

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]aris é habitualmente considerada a cidade das luzes e a cidade do amor. No número de clichés que contribuem para essa definição incluem-se, entre outros, a viagem de barco no Sena ou simplesmente um passeio à beira rio,  os campos Elísios, a atmosfera de Montmartre e de Montparnasse, a Notre Dame, uma ida a um espectáculo no Moulin Rouge, um jantar no Tour D’Argent, os inúmeros Museus, os cristais dos candeeiros de rua, o escrever os nomes dos enamorados num cadeado para colocar na Pont Des Arts e mandar a chave para o rio e, claro, uma beijoca debaixo da Torre Eiffel. Depois existe a língua francesa, na qual tudo o que for dito num determinado tom parece incitar à beleza e a tudo o resto que gostamos de associar com o amor. Mas o amor já não é como era. Os enamorados têm que escolher outras pontes, noutras cidades, pois a tradição, iniciada em 2008, fez com que um milhão de cadeados, com três toneladas de peso, fizesse ruir uma parte da Pont Des Arts em 2014 e, em virtude disso, as autoridades francesas removeram todos os cadeados dessa e de outras pontes. Como se não bastasse, no ano passado, Paris tornou-se também numa das cidades vítimas de atentados terroristas. Hoje em dia uma visita à Torre Eiffel implica ter que passar por medidas extremas de segurança e a tal beijoca poderá ter que ser dada a uma distância considerável.
Das mais de 30 réplicas da Torre Eiffel que já existiam por esse mundo fora podiam-se contar na China com: a de Harbin, uma imitação não assumida de 336 metros que serve de torre de comunicações e que portanto não nos interessa para este devaneio; a de Hangzhou, no famoso empreendimento de luxo falhado e hoje cidade fantasma, nos subúrbios da cidade, com 108 metros; a de Shenzhen, também com 108 metros, no parque temático “Window of the Worlds que em dias de céu limpo pode ver-se a partir dos Novos Territórios de Hong Kong; e a de Pequim, no parque temático “World Park”, que serviu de cenário para o filme “The World” de Jia Zhangke, e que foi construído em 1993 (depois do de Shenzhen). Ora a Torre Eiffel de Pequim existe no tamanho real do da torre original e esse facto faz realmente diferença pois praticamente tudo o resto no parque é uma réplica em miniatura. Jia Zhangke aproveita inclusivamente isso para o plano inicial do filme e para uma nota no discurso de um dos personagens.
A nossa torre não é tão ambiciosa como a de Pequim na altura mas tem metade do tamanho da de Paris que tem 320 metros, ficando assim à frente, em tamanho, da de Shenzhen e da de Hangzhou. Boa. Fixe. Infelizmente não tem um chapéu de cowboy, como a da cidade Paris no Texas, mas não interessa porque “Paris não é Paris sem a Torre Eiffel”, como disse o Cônsul Geral de França para Hong Kong e Macau a determinado momento.
Mas quantas mais Torres Eiffel é que o mundo precisa? E quantas mais réplicas precisa Macau? Já não chega o Coliseu de Roma, a Grande (pequeníssima) Muralha da China, umas ruas holandesas, uma praça portuguesa, uns canais de água venezianos interiores, uma pretensa Gotham, e nem sei mais o quê que fico tão entediado que quase adormeço quando começo a pensar nisso? E qual é a próxima réplica? O Taj Mahal? O Big Ben? Uns Guerreiros de Terracota? Uns túmulos da Dinastia Han? Ou umas Ruínas de São Paulo com o dobro do tamanho, que mudam de cor quando a caravana passa? E quantos espaços todos iguais deresorts, com carpetes semelhantes, mármores semelhantes, e nem sei mais o quê que já adormeci, precisa Macau? Quantas lojas mais da Dior, da LV… Ok. Ok. Ok!!! Estou a desconversar.
Diz-me o Facebook que o que as pessoas gostam mesmo é destas pirosadas portanto embora lá viver alegremente nesta cidade por entre dois mundos no qual se vai adensando um abismo imenso entre eles. Vamos fechar os olhos e partilhar o mundo da ilusão fatela, todo “nice” e brilhante, e fazer “gosto”. Sim, embora fazer isso, pois sendo uma cidade tão pequena tudo passou já a ser parte do parque temático e os residentes, quer queiram quer não, são  também uma atracção. O outro mundo onde realmente se vive, que tem pessoas ricas a insultar aqueles que acham serem inferiores a eles, não interessa. O mundo do tráfico humano não interessa. O da violência doméstica também não. O das injustiças e dos desequilíbrios, não interessa. 
Voltando ao que se esmiuçava no início. Paris e o Amor. Ah, o Amor. Essa palavra tão forte que faz até o mais duro dos corações palpitar. Pois é “Parisian loves locals”. É assim que se tenta seduzir os residentes oferecendo “Instant Rewards” e “Special Offers”. Quanto à inequívoca exploração do tema do amor dedicarei os meus pensamentos para outro texto. Quero mesmo ficar-me pela análise da frase na sua versão em chinês, na qual deparamos com uma manipulação publicitária mais eficaz que o “love locals”. Ora na versão em chinês, 巴黎人愛我, lê-se literalmente “Paris pessoa 巴黎人 ama 愛 eu 我”, portanto “Parisian loves me”. É esta inversão de quem fala e de quem pensa que se opera como sedução psicológica. Em vez de assumir a oferta como se fosse o sujeito, dizendo 巴黎人愛你 “Parisian loves you” (Parisian ama-te), o alterar do sujeito de tu 你 para eu 我 imprime no cérebro a segurança desejada, como se estivéssemos a falar para nós próprios, como se nos assegurássemos a nós próprios que é bom, que vale a pena. É exactamente esse o truque psicológico. A definição para os locais também não é deixada ao acaso e acontece com o caracter amor 愛, em chinês tradicional e não no simplificado 爱, que seria a oferta mais óbvia para os turistas da China Continental .
Agora o que falta dizer é que é feio tentar comprar o amor e que ninguém nos pode obrigar a amar de volta. Mas isso não interessa e não importa se a Torre Eiffel é um dos monumentos com mais réplicas no mundo. O mais importante é que agora podemos passar uma noite completamente romântica a dar umas beijocas debaixo da nossa própria Torre Eiffel.

15 Set 2016

Cuidado com a Luxúria 魔鬼调教的张爱玲

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] romancista chinesa Eileen Chang 张爱玲 morreu a 8 de Setembro de 1995 em Los Angeles. Mas será possível celebrar a morte de alguém? Eu decidi que sim, porque ela se encontra entre os poucos romancistas chineses contemporâneos que continuo a ler hoje em dia. Eileen Chang repousa ao lado de Lu Xun no meu altar literário, só um bocadinho mais esquecida.
O filme Cuidado com a Luxúria 色、戒, produzido em Hollywood e realizado por Ang Lee, baseia-se num conto publicado em 1979, em Taiwan (ver foto). O trabalho de Chang desenvolve-se em torno de dois temas: a vida do dia a dia no período pré-comunista, marcado pelo encontro entre o Oriente e o Ocidente, e o cosmopolitismo da autora. Em Cuidado com a Luxúria, Lee demonstra ter-se apaixonado por ambos.
A escrita de Chang parece ser o produto natural da sua educação. O pai era a imagem do aristocrata decadente dos finais do Império, a mãe o tipo perfeito da “Nova Mulher”, ocidentalizada e adepta da reforma cultural. Educada e independente, chegou mesmo a deixar a família durante vários anos para viajar pela Europa e esquiar nos Alpes Suíços. Depois do divórcio dos pais, tinha Chag dez anos, a jovem iria crescer no universo contraditório de Xangai, durante o período pré-comunista, dividida entre o moderno apartamento da mãe e a casa aristocrática do pai, que se tinha tornado num covil de ópio. A transição cultural da China evidencia-se nas suas observações acutilantes.
A maior parte da sua obra foi escrita nas décadas do meio do séc. XX, um período de grandes convulsões políticas. A Dinastia Qing tinha sido deposta por uma revolução democrática em 1911, nove anos antes do seu nascimento. Contudo, passado cinco anos esta democracia viria a soçobrar e a transformar-se numa espécie de ditadura militar e, o período entre a década de 20 e a de 40 foi marcado por um aumento de violentas lutas pelo poder de controlar e remodelar a China. Estas lutas culminaram na sangrenta Guerra Sino-Japonesa e na guerra civil entre os Nacionalistas, de direita, e o Partido Comunista Chinês. Enquanto muito escritores consagrados responderam a estes conflitos reafirmando o seu esquerdismo e escrevendo sobre ideais como a Nação, a Revolução e o Progresso, Chang focou-se num tema mais mundano, como as interacções e as relações entre os homens e as mulheres. Cuidado com a Luxúria, é disto o exemplo máximo e, uma das poucas obras onde ela deixa a política conduzir a história. Parece ter sido a resposta de Chang a quem a criticava por tratar a guerra de forma demasiado banal.

Escolhi cinco frases do livro para partilhar com os meus leitores, que passo a citar:

– Se uma mulher não conquistar a admiração nem o amor dos homens, também não será respeitada pelas mulheres.

– Quando te ris, o mundo ri contigo. Quando choras, choras sozinho.

– A fotografia é a concha da vida. O tempo passa, devoras o interior e só tu conheces o seu verdadeiro sabor. A concha vazia é o que sobra para mostrares aos outros.

– Adoro o dinheiro e nunca compreendi que mal pode ele trazer. Nunca ninguém me demonstrou a sua iniquidade, fui-me sempre apercebendo como o dinheiro é bom.

– A Humanidade é o livro mais interessante que existe, nunca acabarás de o ler.

14 Set 2016

Máquina de pendurar existências, o amor

Raquel Nobre Guerra (Lisboa, 1979), estudou Filosofia. É mestre em Estética e Filosofia da Arte na Universidade de Lisboa, onde investiga para o Doutoramento em Literatura Portuguesa “a categoria de fragmento na obra de Fernando Pessoa”. Publicou “Groto Sato” (Mariposa Azual, 2012), “SMS de Amor e Ódio” (Amor-Livro, 2013), “Saudação a Álvaro de Campos”, (Palavras por dentro, 2014), “Senhor Roubado” (Douda Correria, 2016). E é por este último livro que vamos viajar.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]enhor Roubado é uma estação de metro de Lisboa. Enuncio isto de antemão, pois sei por mim mesmo que é muito fácil não sabermos disso, se não vivemos em Lisboa ou não tivermos vivido nos últimos anos, como é o meu caso. Se alguém em São Paulo intitulasse o seu livro de “Do Paraíso à Consolação”, talvez fosse difícil para quem não é de São Paulo, saber que se trata de duas estações terminais de metro, de uma das linhas da cidade; linha que vai precisamente da estação Paraíso à estação Consolação (nunca se diz o contrário), como se de uma metáfora da vida e do amor se tratasse. E não é por acaso que começamos esta viagem pelos metros de Lisboa e de São Paulo, e suas metáforas, pois o livro da Raquel Nobre Guerra é precisamente uma enorme metáfora da vida e do amor, que no Brasil, quando for editado, deveria até chamar-se “Do Paraíso à Consolação”. Como ela mesma escreve no início de um dos poemas:

“O amor desapareceu, diz-se por aí, e eu tendo a acreditar
porque dormes cada vez mais longe na metade da cama
que ocupaste com edições luxuosas do Paraíso Perdido.”

Sim, é um livro de amor. Um livro de amor como nas canções pop, em que ele já se foi e resta agora a melodia daquilo que ficou, para outros ouvirem e sonharem identificações, que ora se ajustam ao corpo, como se tivessem sido escritas para quem lê, ora ficam largas ou muito apertadas e não assentam bem. Restos de canções que também aparecem, aqui e ali, no corpo do poema. Por vezes aparecem como a única parte do mundo onde a poeta entra. Porque uma canção é o lado de fora menos perigoso, menos entediante aonde ir. Leia-se este poema, onde um verso de uma canção dos The Doors, de An American Prayer, nos surge como a parte mais quotidiana do poema, a parte em que a poeta vai à rua, em que sai de si:

“Deixa que nos chamem
pequeno cemitério de animais em flor.
O meu coração gótico espera por ti
aqui onde ninguém dança.

Porque havemos sempre de brincar
vestidos de santos até adormecer
nos olhos da cabra que, escuta:
I touched her thigh and death smiled.

Se perguntarem por nós aponta para cima
e responde com humor tipicamente irlandês
Senhor Roubado. Linha Amarela. Estação Terminal.”

Aquilo que podemos dizer acerca de nós não é muito mais do que isto: o nome e a posição do lugar onde enfrentamos os dias; e dizê-lo com humor, dizê-lo com a certeza de que a vida, a nossa, além de ter os dias contados, tem também um desconhecimento quase completo, para além de meia dúzia de nomes e algumas definições, que em relação aos frutos têm apenas um período mais alargado de validade. Entremos então no coração do livro:

“Movo-me na medida exacta da nossa distância.
Que direi eu deste lado do mundo?”

Esta passagem poderia ser o mote do livro ou, se preferirmos uma linguagem mais musical, o leitmotiv do livro. Este lado do mundo a que a poeta se refere, não é apenas ela, é a única possibilidade que tem de apreender o mundo e tudo o que lhe acontece: “a exacta medida da nossa distância”. Que não é senão a distância de cada um de nós para nós mesmos e para as coisas, para o mundo. Não estou agora a dar o dito por não dito, isto é, a recusar a leitura de amor que o poema encerra, um amor em cinzas, mas quero alargar a leitura à possibilidade de o próprio poema nos mostrar mais que amor: mostrar que toda a nossa relação com o mundo e connosco mesmos é um amor em cinzas; não é de amor, mas de nós no amor, de nós como o resto do resto do resto do amor. Ficamos cientes de que o amor é uma espécie de beleza que nunca chega para dois. Como a poeta escreve nestes dois versos: “Vim para dividir contigo a doença imaginária dos amantes. / Não tenho culpa de ter achado que a noite serve esse fim.” Mas a beleza nunca chega para dois. E julgais que o que nunca chega para dois é apenas um corpo, ou a impossibilidade de partilha do que se sente, quer seja no amor, quer seja no dia a dia?

“Nenhum clássico alternativo ao homem
mudou alguma vez o fuso do mundo.
A malha cai, o gajo escapa
é uma rosa, senhor, de plástico.”

E julgais vós que uma rosa de plástico é gajo fácil a dizer-se não? Julgais que há outras rosas que não as de plástico, no mundo e nos gajos? A rosa de plástico que um gajo é, é ela mesmo toda a humanidade. Nada muda o fuso do mundo, pois tudo, todos nós somos rosas de plástico. Raquel Nobre Guerra assume esta nossa condição humana sem quaisquer problemas ou pensamentos esotéricos:

“De resto, tenho uma perninha no bem e outra no mal
e mijo no meio, é honesto imaginar-me assim. ”

É honesto. E honestidade não é aqui uma prática ética, nem ontológica, nem estética. A honestidade é um sonho, um “imaginar-me assim”. Tudo é imaginação, menos o corpo que nos pede comida. E pede ainda outras coisas mais tenebrosas, pede imaginação. O corpo imagina. O corpo sonha. E isso, sim, é um problema. Adivinha-se. O corpo exige sonho. O corpo exige que o espírito desça do seu pedestal e se dobre para lavar o soalho, que os pés que o alimentam pisam.

“Sei que qualquer aragem me atravessará o corpo
(…)
Sei, porque me chego para a frente com força
que o poeta transporta um saco de luz
com um coração doente que canta
(…).”

A poeta sabe que é um duelo perdido, e por isso escreve: “Que eu só queria existir um pouco / na definitiva passagem do fogo / e suster a passo veloz os estragos / a força de um corpo resumido ao vento.” Mas nenhum corpo se resume ao vento. Os corpos nascem e morrem para imaginar. Os corpos até imaginam que são espírito. O corpo é em si mesmo um altar onde os amantes rezam. Não se é jovem de espírito, como se usa dizer nos arrabaldes da imaginação. É o contrário: o corpo é sempre adolescente, por mais idade que um espírito tenha. A Raquel Nobre Guerra sabe-o, e escreve: “Ou talvez esta minha inclinação adolescente / de pegar-te nas mãos para ficar nelas / ainda se torne o melhor par de versos de sempre.”
Nenhum poema de amor é somente um poema de amor. Principalmente neste livro de Raquel Nobre Guerra. Aqui, o amor é usado para dizer o mundo, para dizer o pó da humanidade. O amor é usado tal como os humanos são usados nele. Neste livro o amor não é uma máquina lírica, é antes uma máquina de pendurar existências, como nos diz os primeiros versos deste poema:

“Objectos restantes do nosso último encontro:
o tubo de tabaco Lucky Strike (seguramente)
e a pontuada consoante «só».
Coisas sem significado que se deixam ficar
como um piropo sem resposta.”

A inventividade da linguagem não prescinde de fazer sentido, não prescinde de ontologia. A vida, e não a linguagem, e não os efeitos da linguagem, e não o encantamento da linguagem, é o que importa aos versos de Raquel Nobre Guerra. A linguagem existe para dizer a vida, para complicar a vida, para fazer ver a vida, para tentar acalmar a vida. A vida é sempre o horizonte da linguagem, a vida que não existe a não ser que se invente. Nós na vida, aprendemo-lo com a poeta, somos todos “(…) um príncipe melancólico com abalos de amor / por mulheres mais tristes que uma mulher a correr (…)”.

Fora da linguagem, fora dos livros, fora de nós dentro dos livros, tudo é verdadeiramente triste como uma mulher a correr. Tudo é triste como amar uma mulher a correr. A tristeza maior, adivinha-se nos poemas deste livro, não é uma casa, seja ela qual for, não é uma vida, seja ela qual for, é uma vida separada da linguagem. Ir à rua é como se nos cortassem o cordão umbilical que nos liga à mãe linguagem; é essa dor, essa nostalgia que é sentida pela poeta que aqui escreve estes versos. Ainda que haja a consciência de que a linguagem nos mente com todas as letras do alfabeto; e consciência de que é com ela que nós também mentimos, a nós e aos outros:

“Minto, porque cedo ao poder das palavras
o que trago no saco são coisas remendadas
que vou deixando cair.”

Estes versos finais do poema inicial parecem ilustrar bem a falência do quotidiano face à poesia. Porque nada é mais triste do que o quotidiano, a não ser talvez escrever sobre ele. Fora dos livros, fora da leitura e da escrita, o mundo inteiro “ilumina-se de todos os anjos filhos da puta”, porque a tristeza começa sempre que um humano sai da sua casa para ir ao café do seu bairro ou para o trabalho ou simplesmente ir às compras, porque o corpo assim o exige.

“Acordo com um perfume que não é o meu,
faço contas ao corpo antes de ser bicho
— às vezes penso, esta obsessão não é verdade
estou morta sou infinita
e a manhã despenca como uma grua.”

Apesar de tudo é muito difícil ser-se bicho. É difícil entregar-se a uma animalidade esperada ou sonhada ou simplesmente uma animalidade que parece fácil aos outros. A animalidade não é ser viúvo de espírito, a animalidade é o corpo a deixar de sonhar. O corpo exige, mas o espírito põe os pés pelas mãos e põe-se a fazer contas. E depois há que pensar. Há que pensar, que isto é uma coisa que não nos deixa. Não nos deixa sequer dormir, não nos deixa sequer trocar de sexo com alguém. O cérebro, que serve para inventar tantas coisas belas, não consegue inventar um botão de pausa. Nem a troca de sexo com alguém nos dá descanso. Porque não há uma pausa para o pensar. Pensar não dá descanso à poeta. Pensar é ser viúvo do corpo. Raquel Nobre Guerra parece saber que o poeta quando cai de boca no sexo, a boca não vai sem palavras, não vai sem pensamentos, não vai sem indecisões, que são o departamento de finanças do país pensar, e com isso o poeta dá cabo de tudo. Não dá cabo só da sua vida, dá cabo também da possibilidade de fugir dela. Arruinada que está essa possibilidade de fuga, “a manhã despenca como uma grua.”

Estes poemas mostram a encruzilhada de se ser entre uma boca no amor ou uma boca na linguagem. E não há conciliação para esta poeta (ainda que a pessoa possa não ser assim), porque, como ela mesma escreve:

“Bebo uma bica por dia, às vezes bebo-a fria
depois disto bem que podia morrer, diga-se
com as mãos ao redor de um pescoço amigo
quero dizer, de um livro. Tenho o carácter
objectivo de uma incompetência para a vida.”

Só os livros nos compreendem. Só aos livros compreendemos. Tudo o resto é uma angústia enorme, por ter de ir à rua comprar comida, beber café (a parte boa da existência), fazer a máquina funcionar. “Quem nunca hesitou na paragem do 28 / e pensou: ali via a metáfora da minha vida.”

Vida e poesia não são coisas separadas. A poeta não vai à rua, lambuzar-se de vida, e chega a casa para escrever o seu poema, para afirmar o seu nome no mundo. Ela vai à rua (porque não pode deixar de ir) e sempre com culpa, por mais que haja açudes de alegria. Mas talvez os versos deste livro que melhor nos mostrem a identificação entre vida e poema para Raquel Nobre Guerra se encontrem aqui:

“E um bom poema? Uma banana a apodrecer numa fruteira.
E o que a comove? Uma banana a apodrecer numa fruteira.”

Além desta guerra entre os aliados – que formam um enorme exército e podem ser resumidos no verso “Gente que está viva, diria, pasto para as sensações”, que no fundo são a rua, o amor, o sexo, a vida – contra a escrita, e de traçar uma fenomenologia de bairro bem conseguida – pois toda a fenomenologia é como o fim do mundo, e “O fim do mundo começa sempre no café do bairro” – o livro é repleto de belos versos. Por fim, deixo para mostrar aquilo que é certamente a cor mais visível deste livro: a ironia. Uma ironia quase constante, a fazer-se sentir ao longo dos poemas como uma dor moinha nos dentes. Como nos exemplos seguintes, que não esgotam o caudal irónico desta poética: “Mas a natureza morta da metáfora / não me deu talho para o poema.”; “Mas aprofundei-me na ocupação da violência / um arzinho de filosofia para empernar meninos.”; ou ainda nesta estrofe inteira:

“Sais de casa porque a morte te agita
transpiras pelo empregado de mesa
que lê Balzac, tens ambições literárias
razões, enfim, para andar mal vestido
despenteado com um saco na cabeça
para que se diga ali vai a poesia portuguesa.”

Ironia e ontologia, numa sucessão de duelos, numa sucessão de inversões no modo como vemos as relações entre o corpo e o espírito, entre o corpo e o sonho. Terminemos com a voz da poeta, no final de um dos seus poemas:

“Dei por mim a propor duelos:
Café e pistolas para dois?”

13 Set 2016

Pequim, 6 de Março de 1978

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]erminou ontem a 5ª. Conferência Consultiva do Povo Chinês que aprovou importantes documentos e elegeu alguns dos dirigentes deste país para os próximos anos. Durante a realização da Conferência, viveram-se dias festivos.
Hoje houve manifestações e eu andei saltitando no meio de um milhão de chineses que animaram e coloriram a manhã fresca de Março, em Pequim.
Às sete e meia da manhã, no percurso de autocarro do Hotel da Amizade para as Edições em Línguas Estrangeiras, já havia bandeiras vermelhas, amarelas, azuis, verdes penduradas um pouco por toda a parte. E víamos passar os primeiros grupos de manifestantes a caminho da Praça Tian’anmen instalados na caixa de camionetas, com os taipais decorados com flores de papel e retratos de Mao e do seu sucessor Hua Guofeng. Atrás no camião cabia ainda uma espécie de banda, gongos, pratos pequenos e grandes, tambores, toda a artilharia manejada pelas mãos de incansáveis municiadores de pancadas, a disparar num barulho ritmado, alegre e vivo.
Nas Edições, os camaradas de trabalho aguardavam, prontos para arrancar. Íamos também com destino a Tian’anmen. Alguns, pouquíssimos estrangeiros encorpar-se-iam no cortejo, desfilariam com os chineses. Eu era um deles.
Começámos a andar eram oito e um quarto da manhã, desde Er Li Gou até Tian’anmen, um sete quilómetros bem medidos. A abrir o nosso grupo, uma camioneta engalanada também com flores de papel e atrás, os gongos, pratos e tambores. Depois a grande bandeirola com o nome da nossa entidade Wai Wen Shudian外文书店, ou seja Edições e Livros em Línguas Estrangeiras, e aos ombros do nosso pessoal uma espécie de andor com os retratos padrão de Mao Zedong e Hua Guofeng. Muitas bandeiras vermelhas, bandeiras da República Popular da China, mais bandeiras de várias cores desfraldadas ao vento colorindo e alegrando o cortejo.
O nosso grupo era constituído por umas trezentas pessoas. De início, a marcha foi fácil, depois começámos a cruzar com outros grupos, maiores, com o mesmo destino, a praça Tian’anmen. Havia também grupos pequenos que desfilavam apenas em volta do quarteirão ou do bairro de onde tinham saído. Os ranchos de crianças das escolas primárias e secundárias, muitas vezes encabeçados por pequenas fanfarras, cruzavam-se connosco ou seguiam paralelos a nós pela rua larga, muito organizados, agitando as suas bandeirolas, saudando os manifestantes. Depois regressavam às suas escolas para um dia normal de trabalho e estudo.
Às nove da manhã chegamos a Chang’an Dajie, a grande avenida que atravessa Pequim de ponta a ponta, num eixo leste/oeste, uma recta que se estende quase por quarenta quilómetros, apenas hoje fechada ao trânsito. Estamos ainda longe de Tian’anmen mas um mar de gente e bandeiras desagua constantemente na avenida. Há foguetes e bombas ou panchões a estralejar por tudo quanto é sítio e lado. Os chineses são loucos por fogo de artificio e qualquer comemoração festiva tem de meter os estrondos ensurdecedores dos panchões pendurados num pau que vão rebentando pelo fio abaixo.
Chang’an Dajie é uma alegria de ver e sentir. A marcha é lenta, com sucessivas e longas paragens. Durante o tempo de espera, os chineses falam uns com os outros, aproveitam o tempo para pôr em ordem não sei bem que conversas. O meu pessoal , os colegas de trabalho também me fazem perguntas. Como são as manifestações em Portugal, há bandeiras e petardos, e tambores e música?
O francês Jean Roussel que está em Pequim há pouco tempo e trabalha na revista Littérature Chinoise, diz-me apontando para as sapatilhas de lona. “ Esta manhã, não me lembrei que Pequim não é Paris mas, como sabia que vinha para a ‘manif’, equipei-me a rigor, tal e qual como faço em França, preparado para correr a bom correr quando os ‘flics’, os polícias, começassem a bater…”
A avenida Chang’an, larga de quase cem metros, está pejada de gente. Ultrapassamos e somos ultrapassados por grupos de milhares e milhares de chineses que caminham na mesma direcção que nós. Na faixa oposta da avenida há outros tantos grupos que já regressam de Tian’anmen e se cruzam connosco. Uma barulheira infernal. Nos ares, o ribombar de tambores e gongos, o estrondear de panchões e foguetes, tudo a esvoaçar numa animação contagiante.

Dois enormes dragões de papel empunhados por dez homens cada um volteiam no espaço abrindo o cortejo do grupo compacto de manifestantes da grande Siderurgia de Pequim, milhares de operários em fatos de trabalho. Mais atrás vêm estudantes do Instituto das Minorias Nacionais com os seus trajes típicos garridos e meninas bonitas dançando e agitando flores.
Descubro na berma da avenida uma avó assistindo ao desfile com dois netinhos gémeos, vestidos de amarelo, de pé, dentro de um carrinho de bambu. Fui fotografá-los e, ao focar a câmara, já tenho outra velhota a meter-me um novo bebé à frente para eu retratar.
Aproximamo-nos de Tian’anmen, o espectáculo é total. Faço fotos atrás de fotos. Subo ao palanque vazio onde costumam estar os polícias sinaleiros e tenho uma visão de cima, de conjunto da multidão espraiando-se pela enorme avenida. Somos agora três grupos a caminhar na mesma direcção. À direita, militares da Força Aérea encabeçados por alguns velhos generais, no centro, o nosso grupo das Edições, à esquerda outro grupo de uma fábrica quase totalmente constituído por mulheres, operárias em traje domingueiro, com blusas coloridas. Encontramos estudantes das universidades de Beida e Qinghua, da Faculdade de Línguas Estrangeiras. Nas camionetas, alguns estudantes africanos fazem o gosto ao dedo e rufam impiedosamente nos tambores. O batuque está-lhes na massa do sangue, energia não falta a estes rapazes negros que estudam em Pequim.
Após quatro horas de caminhada, Tian’anmen está à vista. Fico um pouco surpreendido com a aparente desorganização que envolve estas centenas de milhares de chineses. Saem aprumados e juntos das suas entidades de trabalho mas depois encontram-se com mais e mais grupos, misturam-se, rompem a ligação, perdem-se, retomam em pequenas corridas o grupo a que pertencem.
Tian’anmem está bonita, balões vermelhos, bandeiras rubras e amarelas esvoaçam ao vento. Há festa no coração de Pequim.
Nesta China em mudança, estou a viver o início de novos tempos. Depois de gélidos invernos, cheira a Primavera.

12 Set 2016

“Fogos” de Marguerite Yourcenar

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste é o Verão de todos os calores, de todas as ignições, o Estio abrasador, a chama mais alta que a temperatura ambiente e a combustão de todas as nossas células que tentaram a catarse de um grande encontro no limite das nossas forças. Gosto do Verão! Do extremo calor, da luz que cega, de não ter roupas, de não ter fome, de beber, de cheirar o quente que vem do fundo de um deserto… mas foi este Verão revelador do quanto tudo na Terra se radicaliza de modo a testar capacidades para se habitar ainda nela.
O país ardeu, o país pequeno e esguio com mar por fronteira tem metade da sua área ardida. Nem se devia dizer isto desta maneira dado que nos envergonha a simples noção de o constatarmos. Os meios e os socorros, a planificação e as políticas de ordenamento do território falharam em todas as frentes e, caso não fosse a heroicidade sem tréguas dos bombeiros, creio que tínhamos ardido todos. Foi um “rasgão” no tecido social tão fragilizado por realidades tão danosas e que pôs a descoberto a ineficácia dos sistemas e a inutilidade dos governos. Continuar com esta gente pode-se tornar fatal para cada cidadão, estas políticas binárias, estes imensos desastres financeiros, esta deriva, este aleatório sentido das coisas, que já não é passível de ser mantido, mesmo que nos esqueçamos que muitas das vítimas foram adeptas indefesas da sua própria derrocada. Nas cidades viveu-se o tampão do fumo, a imensa carapaça do ar que trazia o obscuro propósito de nos sufocar – não – não foi preciso terrorismo nenhum: este foi o terrorismo interno que tivemos de enfrentar.
A matéria da combustão é sempre alquímica. O Fogo é um elemento que concentra uma imensa variedade de significados paradoxais e nunca nos deixa indiferentes, nem adormecer face à sua acção física ou emocional. Ele galvaniza tudo, ele amplia, destrói, funde e ajuda os processos a um sucessivo grau de purificação. Daí que a paixão, sendo de elemento fogoso, seja tão importante para curar ou reacender as zonas mortas em nós. Esse processo, creio ser da ordem da saúde pura, do curar as “sarnas” pesadas das doces tendências dos pequenos afectos. E também pode muito bem testemunhar o lado arrasador das cinzas e a temperatura a que ficamos depois de um incêndio. Iremos precisar das Lágrimas, da divina maciez do Dom das Lágrimas e como Fénix renascer daquele impacto tão forte para as nossas naturezas corporais e emocionais. É certo que vamos ardendo, vamo-nos gastando num fogo, ora lento, ora acelerado, mas tudo em nós tende um dia a romper o fio que o liga ao acto animado e, mesmo assim, a morte não existe, porque tudo entra de novo no combusto da tormenta dos materiais. Talvez a alma, que é uma subtileza dada ao corpo, um fio límpido de luz, fogo transmutado, se evole e se vá sem uma só mácula deste local onde encerrada andou norteando as brasas; inspiramo-la ao nascer, expiramo-la na morte.

*

«Fogos» é um livro de prosa lírica e novela inspirado no grande rescaldo de uma paixão de Marguerite Yourcenar. Ela vai revisitar as grandes lendas amorosas do passado e o seu profundo e culto sentido do dever de esclarecer levam-na a Aquiles, Fedra, Antígona, Fédon, Safo, Madalena, para nos mostrar da intemporalidade de tal estado e da beleza que pode provocar em quem por maus Fados se foi dela sentido um elemento digno e insuperável perante todas as outras matérias. Começa com « Fedra ou o Desespero» e diz assim: “Fedra tudo consuma. Abandona a mãe ao touro, a irmã à solidão: tais formas de amor não lhe interessam. Abandona o seu país do mesmo modo que renunciamos aos sonhos; renega a família, tal como vendemos os objectos usados. Naquele meio em que a inocência é um crime.”
Mais para a frente, em «Pátroclo ou o Destino», os amores de Pentesileia e Aquiles são de uma densidade poética que nos arrasa: dois chefes guerreiros possuídos por um ódio inaugural apaixonam-se em pleno campo de batalha, mas são guerreiros, ninguém pode desistir do mérito de encaminhar os seus exércitos para a vitória e, entreligando tempos, a rainha tomba, e Aquiles soluça segurando a cabeça daquela que era digna de ser um amigo. Pois era o único ser do mundo que se assemelhava a Pátroclo: “Aquiles defendia as pedras e o cimento que serviam para construir os túmulos. Quando o incêndio desceu das florestas de Ida e veio até ao porto lamber o ventre dos navios, Aquiles tomou, contra os troncos, os mastros e as velas, o partido do fogo que não teme abraçar os mortos no leito mortal das fogueiras”
“Queimada pelo excesso de fogos… Animal fatigado, um chicote em chamas golpeia-me os rins. Reencontrei o verdadeiro sentido das metáforas dos poetas. Desperto todas as noites no incêndio do meu próprio sangue.”
Toda a fuligem de « Fogos» nos leva longe e nos bascula na ofensa grave dos dias tépidos, todo ele nos traz confessionalmente o tratado de um esforço olímpico da alma e do corpo que carregam belezas tais que só desfazendo-se delas podem continuar a marcha. Quando pensamos na brochura das psicanálises sem verve e consciência, sabemos também por que o talento acabou. O génio da transfiguração! Pois como bem diz Yourcenar “deixar de ser amado é ficar invisível.”
“Fazer versos, digo, acender Fogueiras”, Natália Correia. Talvez haja um lado pirótico nas demonstrações poéticas a que não sejam alheias as noções de calor extremo quando os textos se fazem, e ao fazê-los nos abrasem tanto que se nada fizermos para parar, neles ficamos plasmados como grandes mortalhas incandescentes. Já Deus se insurgia como um Fogo Abrasador!
Em «Antígona ou a escolha» começa com a noção de Nietzsche da hora sem sombra: “que diz o meio-dia profundo? O ódio paira sobre Tebas como um sol terrível.”
Foi desta matéria que os dias de Estio foram feitos tentando olhar também os gatos, quais répteis carnívoros prostrados ao sol abrasador, uma centelha de raios florescentes nas pupilas imóveis… o gozo hermético que este animal nocturno adopta como se um deus egípcio fosse nele Rá e a divindade o próprio disco solar dos seus olhos intactos.
Desce o Verão mansamente e em « Maria Madalena ou a Salvação» começamos a entrar nas frescas feridas que a paixão deixou depois dos estigmas em carne viva. Este pequeno conto apazigua assim a tensão passional atravessada pela genial Yourcenar aos trinta e dois anos.
E o tempo serena enfim, tão cansado quanto renovado de uma qualquer coisa que a mente e os sentidos não saberão jamais explicar. Como é o tempo das coisas vividas, e das coisas fruídas, e de como ele, todo, em trança e laço, é uma equação tamanha que ficamos agora a contemplar.

12 Set 2016

Negociações do Acordo para Macau

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or Carta Régia de 22 de Fevereiro de 1547, D. João III faz mercê a Leonel de Sousa de duas viagens sucessivas para a China. “Compreende-se que, desta forma, o conjunto fosse mais rendoso, dado que os contratos fechados num ano, para cumprimento no seguinte, permitiriam, por certo, condições mais favoráveis. Além disso, não se trata ainda de concessão da viagem, mas de uma nomeação para capitão-mor de viagens da coroa, com as vantagens que lhes eram inerentes, mas sob regimento do governador da Índia”, segundo Gonçalo Mesquitela. Data em que se encontravam ainda os mercadores portugueses pelos portos do litoral de Fujian e de Zhejiang, e segundo Jin Guoping e Zhang Zhengchun, no artigo Liampó reexaminado à luz de Fontes Chinesas, “O porto em questão (Liampó) é um lugarejo perdido no meio do mar, que fica a uns 30 quilómetros do Distrito Dinghai. Embora seja uma terra abandonada, só para desterrados, e com rara presença humana, com duas ilhas frente a frente, direcção leste-oeste, separadas por um canal que corre de norte para sul, a sua situação é de grande importância estratégica. Os montes que se erguem nas ilhas constituem bons abrigos. O espaço que se mede entre as duas ilhas é amplo, à volta de uns 10 quilómetros de largura”. Daqui se percebe a impunidade com que os mercadores portugueses viveram meia dúzia de anos clandestinamente numa povoação que, devido a se encontrar longe dos olhares dos mandarins de província e pelos enormes lucros, cresceu para uma cidade. Segundo estes historiadores, os documentos chineses não apresentam a versão de Fernão Mendes Pinto sobre o massacre de Liampó, chacina não relatada por Fr. Gaspar da Cruz, “que nunca foi aceite por estudiosos sérios. Sabemos que o Governador Zhu Wan caiu em desgraça e se suicidou, envenenando-se por ter mandado executar 96 pessoas em Chinchéu em 1549, sem ter autorização da Corte para tal”.
A mercê que por Carta Régia, D. João III faz a Leonel de Sousa, segundo Mesquitela, “Deve estar longe dos privilégios da futura viagem concedida por alvarás depois de 1550. Acresce que no caso de não haver viagem da coroa programada oficialmente, a mercê permitia a alternativa de ser conferida licença para a viagem, mas à custa do próprio Leonel de Sousa, em nau ou navio próprio, obedecendo também a regimento do governador da Índia”.
Leonel de Sousa (c.1500-c.1572), natural do Algarve e casado em Chaul, como refere o Padre Gaspar da Cruz, era “capitão algarvio com longos anos de serviço no Oriente,” segundo Rui Manuel Loureiro e “foi responsável pela normalização do tráfico luso-chinês, ao estabelecer com os mandarins de Cantão, em 1554, as normas que deveriam de futuro reger esse intercâmbio”.

Recusadas as viagens em nau da coroa

“D. Afonso de Noronha, alegando que D. João III não mandara que a Leonel de Sousa fosse dada nau, pois se o mandasse ele daria, nem sequer ordenou que lhe fosse dado o ‘favor’ para a sua viagem que diz ter sido dado a D. Francisco Mascarenhas e António Pereira. Assim , diz ele mais tarde numa carta”, como refere Gonçalo Mesquitela, que continua, “A mercê real de mera licença não era pois uma garantia de concessão de viagem, como se vê.
Leonel de Sousa, vendo que eram recusadas as viagens em nau da coroa, teria conseguido emprestado um terço do espaço de uma nau de mercadores e nela estaria em Sanchoão naquele ano de 1555”. Luís Gonzaga Gomes corrige essa data e refere que “Leonel de Sousa, Capitão-Mor da Viagem do Japão, capitaneando uma esquadra de 17 navios fundeados na Ilha de Sanchoão, desde fins de 1553, escreveu (em 15 de Janeiro de 1556) ao Infante D. Luís, irmão de D. João III, comunicando-lhe que conseguiu assentar com Vam-pé, Segundo Inspector das Costas, um convénio, pelo qual os portugueses foram autorizados a estabelecerem-se em Macau e a construírem habitações em terra”.
“Nos portos da China, que encontrou ‘todos cerrados’, as armadas impediam ‘fazer fazenda’. Devia no entanto, ter feito uso da mercê real, pois afirma que, perante a situação encontrada e os avisos de que poderia vir a haver ataques da armada imperial, . Note-se que se queixa de que não lhe foi dado mais que a licença e os trabalhos de capitão”, isto é, as credenciais e o regimento que lhe davam os poderes de capitão-mor.
“A iniciativa partira do Aitão de Cantão e as negociações não devem ter sido fáceis, mais por questões formais, e legais, do que pela vontade mútua de se encontrar solução”, segundo Mesquitela, que continua, “Acautelada a segurança dos navios e pessoas portuguesas que com ele iam, e recomendado que não provocassem fosse o que fosse que pudesse ‘alevantar a terra’, receoso, portanto, de que a tolerância nas ilhas tivesse sofrido alteração, iniciou as aproximações com o Aitão para negociações”. (…) “Veio visitar os navios um dos chineses, que estava eleito para Aitão. Devem ter inquirido cuidadosamente dos poderes que trazia para com ele poderem negociar. (…) .”
Satisfeita esta condição,’assentarem que era Capitão de Sua Alteza’, tiveram com Leonel de Souza .
G. Mesquitela refere ser o primeiro ponto difícil das negociações, a proibição imperial de negociar com os Fu Lan Ki, questão resolvida do modo mais inesperado para mentalidades ocidentais. “Assim para fazerem esta paz nos mudaram o nome de Franges que nos dantes chamavam a portugueses de Portugal e de Malaca (…) e passamos então a ser os Fan Ian, ‘os homens do Ocidente’, deixando de ser os Franges, ou Fu Lan Ki, nome que ainda hoje se mantém na proibição do Édito Imperial de 1522.
Ficava o outro ponto: a taxa dos direitos a pagar. O Aitão oferecia a aplicação da mesma taxa que era aplicada aos navios e mercadores do Sião, país tributário, a de 20 por cento. Os de Sião, navegam na China por privilégio d’ El Rei. Leonel de Souza não aceitou mais que 10 por cento. A maior dificuldade estava em que a alteração da taxa só podia ser concedida por Pequim, o que significava só se poder resolver o caso – e o acordo – no ano seguinte, e então, só Deus saberia se seria conseguido. O Aitão rodeou então a questão. O problema seria posto a Pequim para que tivesse decisão definitiva, como aliás veio a ter, aprovando a taxa de 10 por cento, a partir do ano seguinte. E, neste ano, pagariam os 20 por cento, mas apenas sobre metade das mercadorias. Assente a solução, o Aitão pediu a Leonel de Sousa que ‘mandasse fazer bom agasalhado dos mandarins que são como Desembargadores que os vissem fazer (os direitos) aos navios e que não olhasse que eram chineses senão as divisas e Armadas do Estado d’El Rey que traziam’ a fim de não se repetirem as causas que inicialmente tinham levado a perder as boas relações com os portugueses”.

Simão de Almeida

O Capitão-mor Leonel de Sousa e o haidão Wang Bo, (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira) realizaram o assentamento de 1553-1554, um acordo que permitia aos portugueses autorização para terem um lugar temporário, do qual dependia a viagem ao Japão e de onde se conseguia assegurar o comércio pacífico com a China. No Kwang Tung Chi, a História de Guangdong refere que “Ting Yi Chung, juiz do crime, se opusera à presença de navios estrangeiros no Kwang Tung, continua referindo que Wong Pak (Wang Bo) não teve sucesso quando tentou convencê-lo a permitir barcos europeus em águas chinesas. Pouco depois, porém, foi promovido ao posto de Comissário da Administração Civil, o que lhe deu a necessária autonomia para decidir conforme entendesse. E o cronista do Kwang Tung Chi indica claramente que um funcionário de alto grau permitiu aos portugueses que ancorassem em portos chineses”, segundo Mesquitela, que refere a seguir, ”Ainda Wong Pak nos aparece nesse ano de 1554 como nomeado pelo comandante-em-chefe do Kwang Tung, Pau Chan In, juntamente com Wong Pui e Mak Mang Yeung e outros, para capturarem os piratas Ah Pat que, com outros, infestava as águas do Kwang Tung.
Com esse acordo tornou-se possível aos portugueses ir a Cantão e ali legalmente negociar. Valeu-se Leonel de Sousa, como intermediário, de “um Simão de Almeida, homem honrado e cavaleiro”, que na China tem feito muita diligência, com “desejos de servir Sua Alteza. Por algumas obrigações do seu serviço que lhe pus diante foi sempre honradamente e veio à sua custa e até do que gastou. Soube que dera algumas dádivas a pessoas e oficiais do Aitão com quem negociou mais breve do que eu pudera fazer sem isso. Nem eu servira Sua Alteza como o servi se não fora sua ajuda e Conselho, porque eu tinha pouco cabedal para suprir, mais do que supri nem ele o quis de mim e disse sempre que se nisso servia a Sua Alteza, que dela queria o galardão e não doutrem”. Por estas razões, Leonel de Sousa recomenda Simão de Almeida para mercês reais “porque não é de Sua Alteza por exemplo dos que se acharem em partes tão remotas, que folgue de servir Sua Alteza com pessoas e fazendas como ele fez”.
Assim terá sido Simão de Almeida quem preparou Leonel de Sousa, para cuidadosamente observar os costumes chineses e as suas cortesias e .
Nas despedidas, o haidão chamou ainda a atenção a Leonel de Sousa, pois mercadores não negoceiam com as armas na cinta, que eles muito nos estranham e que assim lhes é muito defeso nas Cidades, que ninguém traz senão os que defendem na terra e guarda dos Oficiais”.
Nas feiras de Cantão, realizadas normalmente em Março e em Setembro, os comerciantes portugueses passaram a abastecer-se de seda que, depois de vendidas, tanto no Japão como na Europa, davam lucros astronómicos. A mercantil Companhia da Índia Portuguesa, fundada em 1549 com capitais da Coroa, passou a enviar ao Japão a Nau da Prata, como também era chamada a Nau do Trato (trato significava comércio). Era o capitão-mor dessas viagens, o representante em Macau do Rei e do Vice-Rei ou Governador da Índia Portuguesa, quando nos meses de monção, aí se encontrava à espera para seguir viagem. A monção no Mar de Bengala acontecia em Dezembro/Janeiro e no Pacífico em Junho/Julho, tendo as viagens isso em atenção.
Luís Gonzaga Gomes refere, a 15 de Janeiro de 1556 o “Governador da Índia, D. Francisco Barreto, iniciador do assentamento de paz entre os portugueses e os chineses, numa carta em que pedira que lhe fossem concedidas três viagens do Porto Pequeno de Bengala, em navio de sua Alteza, diz: ”. Mas, segundo refere o próprio Leonel de Sousa, .
Leonel de Sousa foi dos primeiros capitães-mor da povoação de Macau, quando em 1557, por duas vezes, aqui esteve com a nau ancorada, desde Julho de 1557 até chegar a monção em Junho do ano seguinte. Substituiu como capitão-mor Francisco Martins, que em Junho desse ano seguiu para o Japão.

9 Set 2016

Caverna de Kafka. Castelo de Platão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á sempre aquela vista do castelo. De baixo para cima. O meu olhar esperançoso de que desta vez seja por uns tempos e que depois tudo. O tudo de sempre. Volte ao normal, por uns tempos, o normal de sempre. Avanço na direcção da porta. Do castelo. A porta ali ao lado, o castelo em frente, em cima.
Ai, ai ai, ai ai. Rola despedida curva abaixo. O castelo pelas costas. Casario acima. O calor a insuportar. A bandeira pendente.
Ai. Responde a caverna ao vento. Cidade acima, bandeira a adejar. Adejou e parou. Ai. Com um guincho de travões.
Take I – Travo a cadeira de rodas com um joelho e um canto da barriga, só um canto, para poder agarrar-lhe, para além da cadeira, os cotovelos. Inclinar-me para ela. Erguê-la. A cadeira escorada contra o carro de ladeira acima. Ou abaixo para ser optimista, ou, já não sei. Os cotovelos e deslindar-lhe os pés dos apoios para os pés. Que se levantam mas caem. Não encontro o travão da cadeira. Se calhar já não tem. Há um momento crucial em que, para dar o impulso de a entornar, quase assim, coitadinha da minha paciente sempre e sempre paciente em tudo isto, para o banco dianteiro do carro, me distraio do canto da barriga, do joelho na cadeira, e avanço o outro joelho em que quase sentada, há-de deslizar um pouco abruptamente para o banco. Enquanto a cadeira se solta e desenfreada descreve um curva vertiginosa em rota de colisão com a ambulância que avança entretanto numa correria desatada e uivante. Ao lado uns metros entre mim e o castelo, o segurança e um paramédico conversam da vida encostados a uma outra ambulância em repouso. Olham eles. Olho eu. Olho estarrecida, muda e estática a curva da cadeira. A ambulância que corre. A minha paciente que pesa e quase cai. A cadeira, que no seu desvario curvo, vence as leis normais da gravidade e sobe desvairada numa rota já escondida do olhar por detrás do carro. Os cotovelos da minha paciente, paciente, e o joelho a amparar-lhe as pernas vagas. Aterra no assento meio de lado. A ambulância pára mais à frente. A cadeira louca também. O segurança e o paramédico olham, eu olho. E disparato um pouco, alivio os fígados: pediu ajuda? Não, não pedi…
Sento-me no carro, aperto-lhe o cinto e digo-lhe qualquer coisa carinhosa. Respiro fundo, furiosamente. Eu respiro sempre fundo quando há tempo. Olho-a no seu alheamento paciente com desvelo. Porque é para além de tudo o mais. Mas um outro lado de mim, tem uma enorme vontade de rir com todo aquele potencial fílmico. A cadeira desvairada e a ambulância, em rota de colisão como nos desenhos animados. Mas o riso, fica um pouco lá atrás da melancolia de tudo.
Take II – Mais tarde na semana, o carro de ladeira acima, ou abaixo consoante a perspectiva. Os cotovelos, um joelho discreto a amparar a paciente, paciente, e outro a cadeira destravada, devia ter um travão mas se calhar já não tem, e o canto da barriga a ajudar. A paciente entornada com a delicadeza possível no banco dianteiro do carro. O joelho a prender a cadeira que gira um pouco sobre si própria, teimosa e impaciente, a querer libertar-se. Fechar a porta. Suspirar fundo e olhar em volta a querer exibir um ar triunfante. Talvez mesmo um sorriso. Ninguém. A observar, a ajudar. Isto correu bem. Devolver a cadeira.
Take III – A mesma cena, só que sem paramédicos, ambulância, segurança, cadeira de rodas, paciente. Na verdade a única coisa em comum é o carro de ladeira acima, com a patinha quase a descambar na valeta com sarjeta abismal, porque o segurança diz sempre encoste o mais à esquerda possível, e o nariz bem encostado ao sinal de sentido proibido, porque o segurança diz sempre encoste o mais possível ao sinal. Fecho a porta do carro de ladeira acima e de monco caído. Eu. O carro também por empatia. Não há cadeira tonta, não há paciente, paciente. Nada. Ficou lá. Para ir logo se vê para onde. De resto só aquela figura que diz, monstruosa, o preto, o macaco que está ali, o segurança. Um outro, neste caso. Mais nada. Devia disparatar de dentro para fora, mas estarreci e engoli em seco, como antes, a olhar para a cadeira, e um pouco reduzida a metade de mim, no dia longo. Desculpem-me todos os que leram aquela frase. Sim, não é que me choque mais a cru, é que me sinto morrer mais um pouco. Este humano demasiado humano. O excesso de realidade nos momentos limite. Hospitais devolvem qualquer um ao seu interior nem sempre belo. Mas há momentos feios de morrer. Lá fui de monco caído, como disse. No sentido contrário ao do castelo. Aliviada. Descansada. Ou não. Quase a antever a saga do cobertor azul. O pico anedótico dos episódios seguintes.
Grande plano final – E depois, aquela arrumação provisória de um trecho de vida a recobrir de qualquer outra coisa que distraia, que faça esquecer até amanhã. Fechar uma gaveta e abrir uma outra de onde se evole uma possibilidade de conforto. Voltar a casa. De caminho uma passagem rápida no supermercado. Uma daquelas latas do costume porque tenho a impressão de que ontem ainda não jantei. E num gesto compulsivo agarro com o mesmo desespero que a uma boia de salvação, um pé de orquídea. Minto, dois, na realidade três, pés de orquídeas. Phalaenopsis floridas, delicadas naqueles tons de branco a esverdear e olhos amarelos. E uma, branca mesmo, de olhos purpura, e a imperfeição de um sinal da mesma cor numa única pétala de cada flor. Como um pequenino borrão de tinta. Um sinal curioso e assimétrico de imperfeição. Como aquele sinal do meu pai. Negro e saliente sobre o canto do lábio superior. Não me lembro de que lado. E que os fotógrafos retocavam sempre, a fazê-lo desaparecer como marca de imperfeição. Havia um único retrato dele em que isso não aconteceu. Não lembro qual. Por aí no baú, tenho que o encontrar, mas não agora. E ela rebelava-se tanto. Gostava daquele sinal. Adorava vê-lo inteiro em cada retrato.
Flashback – Durante mais de dez anos nunca lhe falhámos um domingo. A meio da tarde, fizesse o tempo que fizesse. Até quando a ela já lhe custava muito percorrer aqueles passos. Limpar o mármore. Arranjar as flores frescas na jarra. Conversar sucintamente sobre a composição do ramo. Retirar um pé aqui e pôr ali. Ramos de folhagem recém colhida. Sempre variadas e naquela mistura aleatória de que ele gostava. E da quinta, para lhe serem mais próximas. Algumas plantadas por ele. Ainda. Depois ficávamos um pouco em silêncio. Cada uma no seu. Ou a falar com ele, talvez. E íamos. Mais adiante virávamo-nos sempre, mas sempre, para trás a ver como estava. A jarra. Só dizíamos coisas como hoje ficaram bonitas. Estão bem presas, não vão voar com o vento. Está bem. Hoje ficou bem. Quando deixei de poder ir com ela, deixei de ir. É uma dupla mágoa. Ela a limpar com o lencinho o rosto de esmalte da fotografia. Naquele gesto eterno das viúvas. A minha avó fazia o mesmo. Eterna saudade. Escrevemos-lhe. Sim.
E eu levo-as para casa, as orquídeas. Que mesmo em sombras delicadas na parede, me confortam. Junto-as num único vaso branco, na necessidade urgente de afogar os olhos nelas. O desvio. E deixá-las inundar-me com o animismo daqueles olhares benévolos. Encontrar a doçura possível do dia. Como elas, as flores, com uma marca de imperfeição. Mas é assim a vida. Zoom out.
E, pensando em filmes, só me lembro da cena final de “E tudo o vento levou”, com Scarlett O’Hara, personagem talvez por vezes um pouco tonta, mas corajosa, a dizer esse monumental estereotipo: “amanhã é outro dia…” E é… Acordar. Zoom in sobre um copo bonito de sumo de laranja e começar o dia com uma cor veemente…escrever cartas de amor, talvez, sei lá…e o que fôr. E depois.

9 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O homem sem rosto

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]aphne é tudo culpa minha. Tudo isto. Eu mereço isto. Abandonei a Xiaolian sem sequer olhar para trás. Sem fazer ideia nenhuma que o sofrimento não se apaga. Que o tempo não cura o amor. Daphne as tuas pinturas. Nas tuas pinturas tu foste feliz. Foste feliz? Daphne é tudo culpa minha. O ciúme que tive pelo teu envolvimento com o Chaoxiong. O ciúme cega. E fiz aquilo. Daphne já te podes ir embora. Liberto-te agora desta tua presença. Depois de ter calado as consonantes dos teus olhos enormes que harmonizavam os sons das tuas pinturas voltaste. Sei agora porque voltaste. Não foi uma escolha tua. Não és um fantasma. Voltaste porque eu vivi todo este tempo desde que deixei a Xiaolian sem face. Um homem sem face. Sem honra. Sem vontade própria. Um exemplo miserável da espécie. Um medíocre em todos os aspectos. Voltaste porque eu tinha que chegar a este ponto de te falar na Xiaolian. E de te falar no remorso. Na culpa. No arrependimento. Naquilo que deveria ter feito e não fiz. Naquilo que deveria ter dito e não disse. Naquilo que não deveria ter feito e fiz. Naquilo que não deveria ter dito e disse. É tudo culpa minha. Se eu tivesse sido mais homem. Mais pessoa. Mas não. Fui igual a todos os outros. Um falhado em tudo o que realmente tem importância na vida. Que não é a carreira. Que não é o dinheiro. Que não são as férias em lugares exóticos. Que não são os apertos de mão a pessoas consideradas importantes. Que não são as casas, os carros, as joias, os relógios, as roupas, e todo esse inferno de possessões que não significa nada. Porque quando nos vamos. Quando desaparecemos. Quando desaparecemos de que é que valem essas coisas. De que é que vale esse pavonear de riqueza? Essa falsa riqueza. De que é que vale. A felicidade que se pode comprar com o dinheiro não é real. É momentânea. E de nada vale se dentro de ti não tiveres espaço para perseguir uma vida com real significado. E todas estas vaidades não têm significado. Não escolhemos onde nascemos. Não escolhemos as pessoas que se cruzam connosco. Tu deverias ter sido feliz. Eu deveria ter-te deixado ir com o Chaoxiong. Estive quase para o fazer quando interceptei uma das tuas cartas. As cartas que lhe enviavas quase diariamente do Japão.

As pessoas morrem quando não têm mais energia para viver. Quando perdem a esperança. Algo morre. Uma luz que se apaga. Daphne voltei a ter esperança. Passado tanto tempo. A dor não significa nada. A dor só nos retrai. Vi a Viúva torturar lentamente a Empregada do Bar que serviu de penso rápido para toda a minha estupidez. Vi a Viúva cozinhar o cérebro desta pobre pessoa que não tem culpa nenhuma de se ter cruzado comigo. Daphne eu sei, percebo agora, que realmente a culpa é toda minha. E que mereço isto. Mereço este último desafio. E que só eu posso travar tudo o resto de terrífico que possa acontecer às pessoas que eventualmente se cruzaram comigo. Sem amor. Como pode uma pessoa passar praticamente toda a sua vida sem amor? Mais vale a morte? Será o silêncio uma morte? As memórias do amor são agora vívidas. Será que vivi sem viver?

Olho para trás. Aquilo que mais amei na minha vida, mais o destrui. “Each man kills the thing he loves”1. Daphne. Pode ser que este seja o único momento de lucidez na minha vida. Um homem sem face. Sem rosto. Redescubro-me. Existi apenas naquele caso de amor com a Xiaolian. E todas as minhas tentativas para encontrar um amor como o dela foram falhadas. Daphne. Tu também. Daphne. Derramei a minha vida sem significado e arrastei os outros. Envergonhado de mim próprio desapareci. A Viúva queria que eu acabasse com o Estripador. Seria essa a minha redenção quanto a ela. Matar-lhe o filho. Matar o teu Chaoxiong que enlouqueceu e que te procura em cada mulher que esfaqueia. À procura do bebé que trazias contigo quando os meus dedos foram os de um pianista no teu pescoço. Tenho apenas mais uma coisa para te dizer. Não o farei. Sei que não é esse o meu destino. Espera. A Viúva está mais nervosa que nunca. Aumentou o volume do som da televisão. “O misterioso criminoso apelidado como o Estripador foi encontrado morto esta tarde pela polícia. Os motivos que levaram este homem a fazer o que fez são completamente desconhecidos. A testemunha que encontrou o corpo do Estripador diz julgar ter visto o vulto de uma mulher a desaparecer.” Daphne não sei o que dizer. Mas o sofrimento dele seria horrível. Talvez agora a sua alma se encontre com a tua. É isso que desejo do fundo do meu coração. A Viúva está desolada. Completamente desolada. Todos os seus planos falham agora. O remorso. A culpa. O arrependimento. Daphne obrigado por tudo. Podes ir agora. Eu sei finalmente o que fazer. A campainha da porta. Quem será agora? Xiaolian?

Oscar Wilde, “The Ballad of Reading Gaol”

Fim da primeira parte

8 Set 2016

Um Cântico Agónico e a Nostalgia do Tempo que Passa (continuação)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde o princípio se percebe que Lampedusa não é socialmente neutro e que portanto a sua tipologia social — e não nos podemos esquecer que o romance é tipológico — se insere na linha da captação dos chamados ideal tipos weberianos embora o sociólogo de eleição para o autor seja Vilfredo Pareto, com a sua Teoria dos Resíduos e da Circulação das Elites. Em qualquer dos casos o romance é histórico no plano factual, no plano do cenário escolhido e no plano do enquadramento epocal, mas profundamente sociológico na medida em que aparece centrado sobretudo nas transformações sociais que se dão nessa época da história. Claro que o romance poderia continuar a ser considerado apenas histórico na medida em que foi escrito nos anos sessenta do século XX e portanto algumas décadas já depois da eclosão da Escola do Annalles que se manifestou muito sensível às durações, às conjunturas e estruturas mas ainda mais às oscilações de conjuntura por um lado e sobretudo às grandes mutações estruturais (A Escola dos Annalles é muito sociológica). Essas épocas de grande mudança são de uma enorme riqueza, pois os arquétipos na sua oscilação fazem oscilar tudo à sua volta. As transformações sociais e económicas entrelaçam-se com transformações culturais e de mentalidade e até com profundas revoluções no gosto e com as actividades estéticas. Lampedusa foi de uma enorme coragem ao escolher a época que escolheu, ao escolher o tema que escolheu, no enquadramento histórico em que o fez, ao escolher as personagens que escolheu, portanto na decisão que teve de elaborar um romance genuinamente tipológico. Claro que não é caso único na História da Literatura, e bastaria, sendo parcimonioso nos exemplos, referir apenas no mesmo século o Homem Sem Qualidades de Musil ou Os Sonâmbulos de Broch, ou mudando de século, O Vermelho e o Preto de Stendhal, e até As Ilusões Perdidas de Balzac. Embora o paradigma por excelência e o clássico dos clássicos do género, seja o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes.

No plano do conteúdo factual em sentido estrito o romance narra uma parte da vida de uma família aristocrática e em larga medida feudal, onde contudo se evidencia a personalidade fascinante de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. Na pena de Lampedusa, Fabrízio representa uma espécie de anti-herói ou de anti-clímax, na medida em que assiste de forma indolente à decadência do modelo social que protagoniza e da estrutura política que a suporta, a Monarquia Absoluta, embora anémica, dos Bourbons. O cenário é a Sicília, região italiana imobilizada no tempo e tão idiosincrática que todos ou quase todos, seja qual for a classe social, a pensam inviolável nos seus pressupostos socio-culturais. Uma espécie de inércia atávica que não é indissociável do clima e da história, mantém ou parece manter inalteráveis os quadros de referência mental, embora saibamos, historicamente falando, que o tempo esse grande escultor vai modulando lentamente outras realidades. Contudo Tancredi, sobrinho órfão do Príncipe Salinas, o Tiozão, é de facto certeiro e premonitório quando diz ao tio a frase mais célebre do livro: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude“. A frase fica melhor invertida e foi talvez nessa forma mais incisiva que se imortalizou: “É preciso que tudo mude para que tudo fique como está”, quer dizer, que tudo fique na mesma. Com o tempo o primeiro tudo acabou por dar lugar ao mais moderado e sensato, “… que alguma coisa mude …”. E assim o apotegma gnómico acabou por cristalizar na forma: “É preciso que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma”. O tempo histórico é o abrasador período do Risorgimento e da Unificação Italiana tardia sob a liderança de um condottieri de nome Garibaldi, mas sob a égide da Republicana Jovem Italia de Mazzini e Cavour. Porém, no ambiente já de si abrasador mas indolente da Sicília nada parece mudar o que permite ao Leopardo continuar a mover-se com elegância entre os chacais.

A personalidade olímpica de Fabrizio Corbera, a sua oposição de fundo à mudança, o seu conservadorismo aristocrático constitui o elemento chave do romance para o mal e para o bem. Passo a explicar-me melhor. Compreende-se que um aristocrata de meados do século XIX, membro de uma elite já completamente obsoleta e anacrónica se oponha a qualquer transformação que seria e representaria sempre o princípio do fim. Esta atitude contém um elemento de galhardia e grandeza, mas também de insensatez. Mais avisado e astucioso é o seu sobrinho, Tancredi Falconeri, que de resto não tem património próprio e vive a expensas da magnanimidade do tiozão, o Grande Predador solitário, o Leopardo. Daí que seja de Tancredi e não de Fabrízio a célebre frase citada que também, só por si, imortaliza o livro.

No plano da estrutura narrativa a opção pelo narrador omnisciente com um pé fora e outro pé dentro dos factos e da época permite um realismo e uma verosimilhança muito ambivalente e nesse plano muito sedutora. E é esse estratagema que permite conferir ao mesmo tempo realismo e romantismo às personagens. No plano estilístico a obra de Giuseppe Tomaso di Lampedusa tem um poder descritivo arrebatador usando de uma forma inédita, penso eu, uma forma de intertextualidade entre os elementos físicos do décor e os elementos simbólicos, associados, para reconstituir a materialidade tridimensional da natureza da realidade e dos elementos artísticos decorativos e tudo isto através de um jogo tão sedutor que se torna por vezes abstracto e irrepresentável. Nesse domínio o autor logra uma obra quase inultrapassável no plano do esteticismo decadentista, aqui e ali com alguns desnecessários excessos barrocos. O início do romance em que o autor usa os murais dos seus salões como signos que pontuam o ritmo da descrição e do discurso é para mim sinceramente digno de figurar numa antologia de primeiros capítulos de todos os romances que conheço. Permitam-me um parágrafo só para estimular o desejo:
“«Nunc et in Nora mortis nostrae. Amen.»

Terminara a oração quotidiana do rosário. Durante meia hora, a voz pacata do Príncipe tinha evocado os Mistérios Dolorosos; durante meia hora, misturaram-se outras vozes tecendo um murmúrio ondulante em que se destacavam as florinhas de ouro de palavras invulgares: amor, virgindade, morte; e, enquanto durava aquele murmúrio, o salão rococó parecia ter mudado de aspecto; até os papagaios que abriam as asas irisadas na seda da tapeçaria tinham o ar de intimidados; a própria Madalena, no meio das duas janelas, mais parecia uma penitente em vez de uma bela louraça, distraída sabe-se lá com que devaneios, como se via sempre. Agora, tendo-se calado a voz, tudo reentrava na ordem, ou na desordem, habitual. Pela porta por onde tinham saído os criados, entrou abanando o rabo o alão Bendicò, magoado com a sua exclusão. As mulheres levantavam-se lentamente, e o oscilante refluir das suas saias a pouco a pouco ia deixando descobertas as nudezes mitológicas que se desenhavam no fundo leitoso da tijoleira. Só restou coberta uma Andrómeda a quem a batina do padre Pirrone, retardado pelas suas orações suplementares, impediu a visão do argênteo Perseu que sobrevoando as vagas acorria em seu auxílio apressado pelo antegozo do beijo. No fresco do tecto despertaram as divindades. As alas de Tritões e de Dríades, que dos montes e dos mares, por entre nuvens cor de framboesa e ciclame, se precipitavam sobre uma transfigurada «Concha de Ouro» para enaltecer a glória da Casa de Salina, pareceram de repente colmadas de tanta exultação, que se descuravam as mais simples das regras da perspectiva; e os deuses maiores, os Príncipes dos Deuses, Júpiter fulgurante, Marte carrancudo, Vénus lânguida, que haviam antecedido a turba dos menores, sustinham de bom grado o brasão azul-celeste com o Leopardo. Eles sabiam que, agora e durante vinte e três horas e meia, retomariam a posse da villa. Nas paredes, os macacos recomeçaram a fazer gaifonas às catatuas. Por baixo daquele Olimpo palermitano, também os mortais da Casa de Salina desceram à pressa das esferas místicas(…)”.

Acima deixei passar impune a questão dos chacais, é chegada a hora de voltar ao tema. É Giuseppe Tommasi di Lampedusa, ele próprio um aristocrata, quem assim designa a classe ascendente, a burguesia, através de alguns dos seus membros, mais fáceis de caricaturar, como é o caso de Dom Calogero, pai da bela e sensual Angelica. Angelica que se virá a tornar a esposa de amor e conveniência do azougado, sedutor e pragmático Tancredi.
Ora, esqueçamos lá agora por um bocado a figura altaneira e imponente do Príncipe de Salinas e o carácter rapace e agiota de Dom Calogero e centremo-nos momentaneamente no processo histórico real, tal como o conhecemos através de muitas narrativas quer no plano dos documentos da época quer no plano das reconstituições globais, analíticas, sintéticas e racionalmente compreensivas. Quem eram afinal os chacais!? Quem levou a exploração sobre o mundo camponês até ao patamar da mais torpe ignomínia. Quem é que abusou de forma tão imoral dos mais desprotegidos, destruindo-os nas suas capacidades vitais e atentando de modo infame contra a dignidade de seres humanos reduzidos a coisas sem préstimo e sem quaisquer direitos, ultrapassando até o limiar da racionalidade pois o excesso de exploração e de humilhação foi tão grave que amenizando os camponeses feriu de morte a fonte das suas próprias rendas. Isso foi algo que Marx teorizou muito bem: a sobrexploração torna-se contraproducente e irracional. Mas foi o que aconteceu um pouco por toda a Europa ao longo do Antigo Regime. Portanto quem foram os verdadeiros chacais senão essa aristocracia terratenente que asfixiou a própria fonte dos seus rendimentos levando o seu parasitismo até ao limiar da destruição do hospedeiro que o alimentava. E é por isso que o aristocrata Lampedusa ao construir como paradigma do fim de uma época uma figura tão romanticamente concebida de algum modo falha o scopo da perfeição. Não se pode falhar tanto a realidade e a verdade histórica. De algum modo, é uma questão de decência. Claro que existiram os Príncipes de Salinas e claro que existiram também os Calogeros, mas como no romance só aparecem estes, eles tornam-se paradigmáticos dos grupos sociais que representam e é nesse sentido que o romance no plano tipológico fica empobrecido e algo maniqueísta. E em termos históricos, pode-se dizer que falseia a realidade. E é injusto! O mundo não era assim. O mundo de Antigo Regime era bem diferente e as relações entre os terratenentes feudais cobradores de rendas eram muito mais cruéis, desumanas e rapaces também à sua maneira e finalmente as relações entre os camponeses miseravelmente sobrexplorados e os seus senhores não eram nada idílicas como o romance faz subentender. Com todo o respeito pelos Príncipes de Salinas, que os havia, pululavam indivíduos pérfidos e prepotentes que exploravam de uma forma vergonhosa e ignóbil os camponeses e que os tratavam pior do que tratavam os animais. Lembrem-se dos mecanismos de tortura que esses senhores possuíam e utilizavam nos seus cárceres privados no exercício de uma justiça privada também. Lembrem-se de filmes como O Amante da Rainha onde um camponês é encontrado morto num instrumento de tortura e de morte, designado por O Cavalo, ou como no Rob Roy, os aristocratas ingleses abusam das mulheres de uma aldeia praticamente nas barbas dos maridos e do filhos. Lembrem-se do direito de pernada do qual há provas em França até 1789 e que na nossa querida Sicília terra de Leopardo, chegou até meados do século XIX. Será que dá para fazer uma pequena ideia para os camponeses sicilianos em pleno século XIX, a humilhação de terem de oferecer as filhas e futuras mulheres ao senhor feudal. Afinal quem eram os chacais? Claro que alguns autores têm vindo a procurar reduzir o alcance deste abuso monstruoso numa Europa já tão humanizada e civilizada e eu próprio admito que não fosse uma prática corrente, mas que há fundamentos factuais ao nível das fontes textuais, lá isso há. Mesmo que não fosse, no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, uma prática generalizada… seria sempre, como foi, infame.
Volto no entanto a um ponto importante e faço-o para que estes últimos parágrafos não possam ser mal entendidos, O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa é uma obra prima e um dos meus livros preferidos. Pois que, com o senão de ser uma abordagem parcial, conta magistralmente o lado decadente de uma aristocracia moribunda a estrebuchar, no caso com dignidade, contra os ventos inexoráveis da História. Há sempre algum lirismo e alguma melancolia em todas as épocas que se confrontam com os seus demorados processos de agonia. Vem por vezes ao de cima a par do desespero um profundo sentimento da beleza que pode haver na fragilidade humana e também na sua grandeza caída. O Príncipe de Salinas irá prevalecer sempre, e Tommasi di Lampedusa é o responsável, como o que de melhor podem produzir as aristocracias e como um exemplo de como podem cair os gigantes.
E por aqui me fico!

8 Set 2016

Bela e casta será a esposa do cavalheiro 美

O cisne crocita no banco de areia;
Bela e casta será a esposa do cavalheiro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste poema de amor tem quase 3.000 anos e está incluído no Livro das Odes, um dos Quatro Livros e dos Cinco Clássicos editados (leia-se: censurados) por Confúcio. Confúcio dedicou a vida a explicar ao mundo a importância do carácter e da moralidade na vida do povo chinês. E no fim de contas, damos mesmo importância.
A China foi através dos séculos a casa de uma miríade de mulheres belas e, muitos e diferentes padrões de beleza foram eleitos pela amplitude dos seus conceitos estéticos. Algumas mulheres são louvadas pelos dons no canto e na dança, outras pela natureza virtuosa e ainda outras pela habilidade na intriga política.
Xishi 西施, Wang Zhaojun 王昭君, Diaochan 貂蝉 e Yang Yuhuan 杨玉环 são as chamadas Quatro Beldades, quatro mulheres ancestrais que se destacaram por terem sido “Beldades a Bem do Povo”.
Hoje em dia são ainda recordadas pelo papel significativo que tiveram na História. Quando o Estado de Yue estava na iminência de ser atacado pelo Estado de Wu, Xishi aceitou a missão de seduzir o rei de Wu e induziu-o a mandar matar o seu comandante. O seu patriotismo ajudou Yue a vencer Wu. Diaochan é uma personagem ficcional dos Três Reinos. Ela derrotou um senhor da guerra, um traidor, atraindo-o para uma armadilha e garantindo assim a salvação do seu povo. Wang Zhaojun ofereceu-se para casar no Norte com o bárbaro Khan para garantir a paz do seu povo e, finalmente, Yang Yuhuan enforcou-se para parar um motim.
Estas mulheres foram heroínas, mas acima de tudo, foram figuras trágicas. Os chineses choraram por elas e admiraram-nas por terem sido “boas mulheres”, e uma boa mulher chinesa caracteriza-se ou pelo seu heroísmo, ou pela sua amarga solidão.
A concepção estética chinesa privilegia, mesmo hoje em dia, a virtude sobre a aparência.
Não menos belas eram Daji 妲己e Baosi 褒姒. Mas estes dois nomes provocam aversão e não admiração. Daji, concubina e cúmplice do rei tirano Zhou de Shang, foi cruel para o seu povo. Baosi, foi concubina do rei You de Zhou, e ficou conhecida por raramente sorrir, o que despertava no rei o desejo de a fazer feliz. Um dia o rei ordenou que se acendessem fogos de alerta no cimo dos postos defensivos, enviando aos seus duques um sinal falso de invasão inimiga. Os duques, acompanhados dos seus exércitos, precipitaram-se para a capital onde acabaram por perceber o logro. Baosi estava muito divertida com o caos que tinha causado e, sorria. Mais tarde o inimigo lançou efectivamente um ataque, mas porque o rei, como Pedro, tinha gritado “lobo”, os duques ignoraram os fogos de alerta e o rei acabou por ser morto.
Estas duas mulheres são consideradas a escória das suas nações e dos seus povos. Não são certamente “Beldades a Bem do Povo” e nem chegam a ser uma boa diversão.
Do ponto de vista etimológico, o caracter chinês para beleza é 美 – que é composto por duas partes: 羊 + 大— que quer dizer literalmente “grande ovelha”. Este caracter na sua forma original poderia querer dizer “um sabor delicioso”. Confúcio não se deu ao trabalho de nos explicar.

7 Set 2016

Sem engordurar os dedos de vida

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ela boca morre o peixe, pela palavra morre a vida. Pela palavra morre a miséria da vida e nasce a flor viçosa do esplendor humano. A palavra aponta a miséria para superá-la, para sará-la, curá-la. Só a palavra cura a vida, só a poesia cura a realidade. Esta é a poesia, o sentido primeiro da poesia de Mariana Ianelli, na grande tradição de Fernando Pessoa. Mariana acredita na palavra redentora. A palavra redentora é a palavra poética. A palavra que começa sem começo. Que acaba sem fim. A palavra que magicamente desconhece a vida.
Mariana Ianelli faz uma das coisas mais difíceis de serem feitas em poesia: com os materiais da miséria, com os materiais da história humana repleta de atrocidades, constrói um arranha-céus de optimismo. Mas não se pense que optimismo se identifica com lirismo caduco ou com pieguice de polichinelo. Melhor seria dizermos que, para além da beleza dos seus versos, há ainda a desgraça do optimismo. Desgraça bem maior do que o pessimismo é o optimismo. Acreditar na palavra apesar de tudo, contra tudo e contra todos, acreditar na palavra como transformação, como advento, como o que pode e vai salvar o mundo é mais miserável do que não acreditar. Quem acredita na palavra poética como redentora do humano e do mundo sofre mais do que um pessimista. O que dói é acreditar e carregar essa crença nas costas. Não acreditar em nada não dói sequer uma unha. O optimismo, e isso aprende-se nos poemas de Mariana Ianelli, é a maturidade da miséria. Ao invés de acusar a miséria, de lhe pôr as culpas em cima, estes poemas ordenam as misérias com palavras, e é com este movimento que acontece o inesperado. Este inesperado é o poema que nos faz ver o que já julgávamos ter visto. O pessimismo é a adolescência da miséria. e o optimismo a maturidade da mesma. E quando digo aqui miséria, não falo apenas da miséria humana, mas a miséria de todas as coisas, a miséria do tempo com tudo o que engole.
Embora se tenha dito atrás que Mariana usa os materiais da miséria e os transforma, não se quer com isso dizer que se trate de uma poética da reciclagem. Uma coisa é fazer uma estátua com o lixo da rua, outra bem diferente é ordenar o lixo da rua de modo a poder seguir em frente. Assim são os poemas de Mariana. Nem descreve a realidade, nem a recicla. Os poemas de Mariana ordenam a realidade, de modo a caminharmos melhor e seguirmos em frente. Não temos de ter vergonha do lixo, das nossas misérias, as palavras sabem delas melhor do que nós e ao seguirmos as palavras, seguimos em frente, seguimos acima da vida. Há na poética contemporânea muito de reciclagem, mas não é o caso dos poemas de Mariana Ianelli. Os seus poemas destacam-se radicalmente daquilo a que se usa chamar de poesia contemporânea, tanto na forma quanto no conteúdo, como se verá em seguida ao analisarmos de perto um dos seus livros. A poesia de Mariana é uma poesia apocalíptica, no sentido literal do termo, uma poesia da revelação, uma poesia ainda por vir. Aquilo que está por vir não é contemporâneo, obviamente, mas apocalíptico.

A poesia desta jovem poeta tem a grandiloquência dos mitos, da autoridade do passado e o tom severo e encantatório da elegia. Não é por acaso que os seus versos começam todos em maiúsculas, quer sucedam a um ponto final, a uma virgula ou a nada. A vida é verso a verso e não uma correria até ao fim. Assim são os poemas da Mariana. Os poemas de Mariana Ianelli não falam da vida, não imitam a vida, não a descrevem. A vida é para quem não pode mais nada. Vejam-se exemplos. No seu livro Passagens, à página 31, escreve:
“Eu persisti,”
Neste início de poema, ainda antes de começarmos, paramos. Paramos por duas razões: pela forma e pelo conteúdo. Paramos porque pela primeira vez estamos a ver o sentido pleno e contraditório deste verbo, persistir, nesta primeira pessoa a dizer o verbo: Eu persisti, … a vírgula obriga-nos, aqui, a parar mais do que qualquer ponto final usualmente nos pára. Eu persisti só poderia ter ou vírgula ou nada, nunca um ponto final. E isto compreende-se pelo que falta, pelo que parece faltar à transitividade do verbo. Este verso faz-nos ver que persistir é parar. Persistir, que sempre tomamos por uma acção violenta de continuidade, aqui explode na nossa atenção como sendo o oposto. Eu persisti quer dizer “eu parei”, “eu fiquei”, “eu mantenho-me” “eu estou presente”, “eu sou”, ou como diriam os gregos antigos, “egw andreios eimi” (“eu sou corajoso”), eu mantenho-me no lugar onde sempre estive. Ou ainda, como ela escreve à página 23 do mesmo livro:
“Caiam todos sobre mim: eu subsisto.”
Trata-se em poucos versos de um projecto que depois será sustentado verso a verso ao longo do livro: o sentido de quem se mantém só, repleta de história. Porque a sua poesia não rejeita o conhecimento do passado, não rejeita mostrar-se como parte da miséria que assola o mundo desde o início dos tempos. Esta poesia está muito pouco preocupada com inovações formais. Isso é assumido de imediato pelos versos iniciados sempre por maiúsculas, mas não só, também há versos que no seu conteúdo nos dizem que é assim que esta poeta pensa, que esta poeta assume seu lugar no corpus poeticus, leia-se o verso à página 79:
“Os falsos poetas contemporâneos,”.
E, nesse mesmo poema, o primeiro verso diz: “Retorna para o Tártaro,” e, adiante: “E, depois, as Fúrias aprontarão”. Assim Mariana Ianelli assume a temporalidade, assume o mundo como seu objecto poético, e não apenas o seu lugar claustrofóbico: “Nós temos em comum este corpo que nos trai.” O corpo é uma prisão, viver no corpo e pelo corpo é recusar a totalidade do mundo, da história, da temporalidade. Viver para além da prisão do corpo é, para Mariana, a única possibilidade de fazer poesia. E, a tudo isto, se liga ainda um artifício muito bem conseguido: a voz desta mulher, desta poeta antiga construindo o seu passado, é a voz de um homem, a voz masculina. Por que faz ela isto? Veja-se como ela termina um dos seus poemas, à página 55:
“De um homem frente ao signo da morte, / Homem que eu jamais seria.”
Não se trata de uma imitação da heteronímia de Fernando Pessoa, mas sim de uma impossibilidade de nos aceitarmos, de aceitarmos que “passamos”, que estamos aqui de passagem, que “temos em comum este corpo que nos trai.” E com ele, com esta traição que nos habita, nesta traição que transportamos temos de defender as palavras. Rejeitar a sua própria voz, a voz com a qual responde pela manhã ao seu marido ou à tarde à rapariga da loja, é reconhecer que a vida não tem nada que entrar no poema. A vida não é p’r’aqui chamada. E, neste particular, sim, neste particular tem a ver com Fernando Pessoa. Não enquanto imitação, mas como profundo enraizamento numa estética que recusa que a vida entre poema adentro. Os poemas de Mariana Ianelli têm seus pés fortemente fincados aquém e além da vida, como podemos ver neste verso: “Com meus dedos engordurados de vida.” É assim que a poeta se vê ao chegar ao poema, ao debruçar-se sobre si mesma, sobre a página, sobre o poema: com os dedos engordurados de vida. E lembramos de imediato o verso final de um grande poema de Álvaro de Campos: “Raios parta a vida e quem lá ande.”
Nos poemas de Mariana, há a claridade quase ofuscante da vida não valer nada, da vida não valer senão o que se faz dela, o que se faz com ela. A vida existe para ser ultrapassada. Conhecer a vida é também fazer pouco mais que nada, saber pouco mais que nada, encantar nada. Leia-se outro verso de Mariana: “Com teu mágico desconhecimento da vida”. Desconheça-se a vida para conhecer a magia, a palavra, o mistério. Desconhecer a vida é existir sem engordurar os dedos de vida; é encantar, é ter o poder antigo da magia, o poder das palavras que abrem clareiras, que fazem ver, como se a cegueira fosse antes do poema a nossa única morada. Desconhecer a vida não é desconhecer a palavra. Desconhecer a vida não é desconhecer o que mais importa. Desconhecer a vida é a magia que hoje ainda nos é possível realizar. Mariana sabe que a nossa vida vale menos que um poema, menos que um verso. E esta é a sua guerra: contra a ausência de poesia que nos habita. A poesia dela não é pessimista, embora não nos faça rir, nem sequer ficar contentes. A poesia é de outra ordem. Da ordem da beleza, da ordem do que nos mostra a vida morrendo diante de uma palavra. E isto só pode fazer com que nós, humanos que vivemos nas palavras, tenhamos um esgar de esperança de que há Deus, o outro ou o nada para nos ouvir e compreender. Por fim, a beleza dos versos de Mariana Ianelli, avulso, como a própria poesia dela e a própria vida:
“Vivendo entre a espada, o luto e uma elegia. (…)”
“Esta dor voltou a ser (…)”
“O lugar santo visto à luz da chama, (…)”
“E os nossos iguais, que eram tantos, (…)”
“Que nos misturássemos aos mortos, (…)”
“Não fica o espaço transitório do nosso corpo, (…)”
“Todos nós caímos em desgraça. (…)”
“Desejei um tempo pela manhã (…)”

“Eu te quis vivo,
Transtornado, mas vivo. (…)”

“Contornada a margem fina
Do esquecimento,
Outra capital aparecerá
Sobre a antiga. (…)”

“Para as mão de quem eu nunca vi, (…)”
“Com teu mágico desconhecimento da vida (…)”
“Continuaste errando em nome da tua velha sensibilidade. (…)”
“E a mente padece como se arfasse, (…)”
“Estás muito bem guardado em tua alma. (…)

“O que por ti já passou, mas sempre retornará,
Carrossel do enforcados, profecia de tua desgraça,
Insânia nas alturas, e mais desgraça. (…)”

“Uma tarde cuja noite se tornou algum resíduo amortalhado. (…)”
“Nós temos em comum este corpo que nos trai. (…)”
“Tinha de ser o caos. (…)”

“Chovia no caminho de tabuas,
Ao pé da escada do pátio a lama cheirava bem
E a infância mostrava as suas vísceras. (…)”

“Ignoro se tu és capaz de voltar.”

“O desejo de que tu compareças
Não dura em mim do mesmo modo que tua imagem, (…)”

“Agora eu compreendo as tuas passagens.
Aos quinze tu pegaste corpo (…)

“Quantas vezes o pai te aturdiu no rosto e te cuspiu
Por cresceres apetecendo tanto aos outros… (…)”

“E verás em ti a emoção de uma outra face. (…)”

“E tudo o que amas com fervor
“Reside no absoluto esquecimento do passado. (…)”

“Chegamos ao extremo do caminho
Aonde ninguém vai sem antes dar-se por vencido. (…)”

“Diz que uma febre se esconde
No seio do próximo inverno, (…)”

“O inferno esteja contigo
No dia em que teu pai morrer (…)”

“Os falsos poetas contemporâneos, (…)”
“Atravessamos a época de um verão que faz sofrer, (…)”
“Estamos em ti sempre que te ausentas. (…)”
“Que a chuva descia pelos seus tentáculos d’água (…)”
“Era uma pepita de sangue (…)”
“Tudo o que era nosso nos foi tirado.”

“Mas algo ainda permanece, (…)”
“Penumbra da nossa própria sombra (…)”
“Derramada sobre o chão, (…)”

“Sentinela dos teus vários descendentes, (…)”
“As semanas despendidas à vara e a remo (…)”
“Um desvão onde guardar minha ansiedade. (…)”

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. É autora de sete livros de poesia publicados pela editora Iluminuras, São Paulo – Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010), Amor e depois (2012) – e um, o mais recente, Tempo de Voltar (2016), pela editora Ardotempo, Porto Alegre.

6 Set 2016

Diário (secreto) de Pequim (1977/1983)

Ano 1978

Pequim, 8 de Janeiro de 1978

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez calhou a visita à Universidade de Beida, a mais famosa de toda a China. O nome completo é Beijing Daxue北京大学, o que significa Universidade de Pequim, fundada em 1898. Este vasto império, do tamanho da Europa, com 900 milhões de habitantes, conta com 500.000 estudantes universitários e 380 universidades.
A partir do nosso Hotel da Amizade chega-se com facilidade a Beida, somos quase vizinhos, estamos todos no grande bairro de Haidian, aqui no noroeste de Pequim.
Chegados ao grande campus universitário, somos recebidos pelo prof. Wang Dongxiao que, numa sala de aula, nos vai fazer o relatório introdutório sobre Beida.
Existem aqui vinte faculdades e oitenta e três cursos diferentes, Humanidades, Ciências, Direito, etc., dois mil e setecentos professores e apenas sete mil alunos, cento e sessenta dos quais são estrangeiros. O reduzido número de professores e alunos tem a ver ainda com as sequelas da Revolução Cultural quando esta universidade esteve praticamente encerrada durante anos devido à linha esquerdista que quase ia destruindo o ensino universitário em toda a China. No próximo ano esperam admitir mais 1.500 alunos e, gradualmente, Beida voltará a ser a maior e melhor universidade chinesa.
Porque, segundo me dizem, foi dura a sabotagem do quotidiano universitário levado a cabo pelos apaniguados do “bando dos quatro”. Perseguiram-se professores, até à morte, fecharam-se faculdades, destruíram-se edifícios, enfim uma tenebrosa selvajaria comunista em nome do presidente Mao Zedong, para se acabar com “o ensino burguês” e depois se criar coisa nenhuma. Hoje procura-se reformular tudo, o conhecimento dos professores, a admissão dos alunos, os materiais de estudo e trabalho. Desde a década de sessenta que não há promoções a professores catedráticos. A Universidade é gerida por um comité revolucionário sob a direcção do Partido, conjunto de professores, estudantes e empregados. A maioria dos professores graduaram-se depois de 1949, a data de tomada do poder pelo Partido Comunista. 35% dos professores são mulheres e 40% dos alunos são do sexo feminino. Entram na Universidade entre os 19 e os 25 anos, após selecção e exames. Podem ser operários desde que mostrem vastos conhecimentos e capacidades intelectuais. O objectivo é depois utilizar estas pessoas como professores em pequenas universidades geridas por camponeses e operários, agregadas a comunas agrícolas ou a grandes fábricas.
Estão interessadíssimos no intercâmbio com universidades estrangeiras e em enviar muitos dos seus melhores alunos para completar estudos nos Estados Unidos da América, Canadá, Austrália. De resto a biblioteca desta Universidade de Beida conta com três milhões de livros, 800 mil dos quais em línguas estrangeiras.
É vasto o campus universitário, com as residências para os alunos junto a um grande lago circundado por chorões e um pagode ao fundo, não muito antigo, no interior do qual foi construído um depósito de água.
A Universidade de Beida parece-me uma escola em ebulição lenta, rumo ao fervilhar do futuro.

Pequim, 20 de Janeiro de 1978

Reunião dos quatro portugueses da célula do PCP (m-l) em Pequim.
Eu digo:
“Somos todos diferentes, eu gosto mais do isolamento, dos meus livros, de ouvir o silêncio, de escrever, da minha música na paz da minha casa. O meu tipo de vida terá necessariamente de ser diferente do vosso. Gostava de aproveitar estes quatro anos para aprender tudo o que puder sobre a China, gostava que isso fosse possível convosco. É importante que me compreendam e me aceitem como sou”.

Pequim, 7 de Fevereiro de 1978

Festa da Primavera, o Ano Novo Chinês.
O tempo ainda está gélido em Pequim mas, segundo o calendário sínico, começou hoje a Primavera e há que festejar. A Festa é uma espécie de Natal e Carnaval, ao mesmo tempo. As famílias reúnem-se, comem coisas boas, banqueteiam-se excelentemente pelo menos uma vez por ano, as crianças lançam uma espécie de bombinhas carnavalescas e fogo de artifício.
Uns tantos chineses que trabalham connosco vêm cá a casa, cumprimentar, saudar, desejar felicidades para o Novo Ano, comer uns petiscos e beber uns copos. Correspondo com o que tenho, e tenho sempre mais do que estes meus camaradas chineses, ganho 500 yuans por mês, contra os 40 ou 60 yuans que eles recebem mensalmente. E o patrão é o mesmo, as Edições de Pequim. Sou um privilegiado, um estranho nestas festividades e nesta China diferente do meu alicerce cultural e do mundo de onde provenho.

Pequim, 21 de Fevereiro de 1978

Setecentos e cinquenta milhões de camponeses na China, quantos são os analfabetos? Os que sabem ler, gostam de ler o quê?
Questiono os meus companheiros de trabalho.
Falam-me em contadores de histórias que, na tradição da velha China, andam de aldeia em aldeia, reúnem assembleias de gente e as entretêm com narrações vivas de contos tradicionais e com a descrição dos feitos heróicos acontecidos em velhos e novos tempos.
Os que sabem mesmo ler contam com livros ilustrados, tipo banda desenhada com historietas exaltantes sobre a revolução e o socialismo. Outros lerão romances, mas o nível cultural dos camponeses é baixo. A herança recebida pelos comunistas em 1949 no que à educação diz respeito era pior do que má. Nesse ano existiam 90% de analfabetos no país. Em 1961 a situação havia melhorado muito, segundo dados oficiais, o analfabetismo atingia 66% dos habitantes do campo e 22% da população das cidades.
Podemos talvez assim compreender o voluntarismo de Mao Zedong e do Partido Comunista que a partir de 1966 lançou a Revolução Cultural, também como uma tentativa de elevar o nível educacional do povo chinês, dando ordens para a deslocação das cidades para o campo de milhões de jovens instruídos (ou tidos como tal!) O objectivo era viverem junto dos camponeses, ensinarem e aprenderem com eles, e dar testemunho da sua experiência. Apareceram escritores como Liu Xinwu e Zhao Shuli que se especializaram no conto e na novela sobre a vida no seio da gente do campo. Numa linguagem terra a terra têm tentado retratar as alegrias, tristezas e extremas dificuldades dos quotidianos na China socialista. Um destes homens, de nome Liu Ching viveu durante catorze anos numa aldeia na província de Shaanxi e disse: “Uma árvore lança raízes, cresce na terra, o mesmo deve fazer o escritor em relação ao povo.”
Onde começa a literatura e depois descamba para a propaganda política? Até que ponto são sinceros estes autores que sabem melhor do que ninguém como tem sido dolorosa a sua inserção no meio das pessoas do campo, frequentemente rejeitados pelos próprios camponeses que, sabemos agora, olhavam tantas vezes para os jovens das cidades como alguém que nada produzia e era mais uma boca para sustentar.
“O pão é mais importante do que a poesia” disse Jean Paul Sartre. Pois é, pão e poesia, arroz e revolução.

5 Set 2016

O campo de favas

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz-se que Pitágoras acreditava que a alma dos mortos recolhia ao “olho” das favas e nunca passava por cima de um campo onde crescessem, mesmo que fugisse de um inimigo. Ainda hoje há muita gente que não gosta delas por uma questão enigmática que nunca sabe explicar, pois que são óptimas, alimentícias, dadas aos cavalos para os fortalecer, mas Pitágoras saberia certamente do segredo que não deixava tragá-las, tendo mesmo domesticado um boi para que não pastasse nos seus terrenos fazendo-o assim escapar do matadouro e confiando-o ao templo de Hera.
O senhor do célebre teorema era um homem incomum: diz-se que tinha uma notável beleza e vestia sempre de branca lã, alimentando-se de pão, de mel e frutos secos; é mestre de uma congregação de vida austera e aristocrática e era eloquente como poucos. Ademais do dom da vidência, a lenda atribui-lhe uma ascendência sobre os animais, amansando mesmo uma ursa terrível que aterrorizava as populações .
Este mestre é o ancestral de um Francisco de Assis, um senhor das noves esferas celestes que rivaliza com os «Cânticos das Criaturas» na beleza de um Universo animado e que consegue graças a elevados dons de percepção escutar-lhe a música. A Itália é aqui o lugar onde as duas ordens florescem: os pitagóricos eram conhecidos pela sua imagem de pobres e marginais e o não usarem sapatos bem como uma longa cabeleira, vegetarianos; apenas lhes era impedido comerem peixes de cauda negra, uma semelhança com os Cátaros, que vieram de Itália e povoaram o sul de França. Pitágoras, diz-se, era um amigo muito querido, ele estabelece que entre os amigos tudo é comum: “um amigo é outro eu”, ficando lendária esta sua aliança com o próximo, e, se Francisco era o mestre, ele nem por isso deixou de ser um entre todos aqueles que lhe eram discípulos. São níveis de uma grande totalidade, com ensinamentos universalistas e com gente que partilha escrupulosamente os segredos.
Pensemos nestas coisas hoje, e como, e onde, se pode encontrar amigos assim de forma inequívoca, de tamanha união na composição do todo e que saibam calar o que não deve ser revelado? Pensemos, sim, mas os tempos têm os seus códigos e também a forma de dizer o não dito, de realizarem teoremas com a geometria do interesse de cada membro: pois que querem os membros de todos as sociedades mais fechadas? Destas nossas contemporâneas: poder! Não um poder de indagar estrelas, saber do Cântico do Universo, da chave dos mistérios, das leituras dos poemas; querem poder económico, querem projecção mediática, essa forma magnética pouco desenvolvida que dá a todos uma vaga semelhança a um Teatros de Fantoches; ali não há a frugal essência de uma imanente condição, mas um excesso de usura só comparado a um acto predador.
Quando os conclaves maçónicos convidam pessoas, hoje, a inquirição é feita à boa maneira dos antigos trabalhadores das Polícias Secretas, com a tónica no capital e com aquela figura que vem sondar o novo e possível membro, que da mesma forma que aparece sem revelar fontes, desaparece, desconfiando nós da técnica e da organização de quem faz os “testes”.
Por outro lado, um pequeno país de grandes delatores não será o local mais propício a uma organização amorosa de carácter iniciático e mesmo de novas buscas de um saber de fundo, pois mesmo que não o faça, até pelo seu modo transversal, há aquela ideia sociológica de que tudo é passível de ser entrevistado, ou seja, transmitido. O que restou do mundo forte dos afectos inteligentes parece não ocupar grande espaço na nossa consciência que reclama por dados financeiros estáveis e vida individual como a maior conquista alguma vez realizada na organização Humana, de resto, tudo é paralelo. É certo que não há abelhas para fazerem mel… assim… legumes e frutos estão em prateleiras, nós, em gavetas, os outros, competindo dentro do seu quadrado de hipóteses( não da hipotenusas) para fazerem a obra maior de todos os tempos, à revelia dos próprios tempos, se para tanto forem capazes.
Entre um campo de favas verde e intocável vai a distância de muitas labaredas e já nem me lembro de tais campos… há coisas que morreram nas nossas fontes de reconhecimento. Nós pisamos a Terra inteira porque ela nos pertence e tanto faz serem favas como abrolhos, certamente que jamais suspeitaríamos que a alma é ígnea e quando vai para corpos vegetais continua fogo e somos nós apenas que nada reparamos. O facto de em nada destas coisas repararmos não quer dizer que não existam, e elas- provavelmente ainda existem- pelo simples facto de não termos, ou termos mesmo deixado de reparar nelas.
Há uma cosmogonia muito Pitagórica que diz: “Todas as coisas são três, e o que constitui o valor de cada ser particular é a tríade formada pela inteligência, a força e o acaso.”
Neste patamar onde começamos por campos férteis, intocáveis, sabemos o quanto o pensamento pitagórico funcionou com base em analogias com subtis correspondências que tanto inspiraram os poetas do mundo, e, posto que tudo é número e o número é ponto, estamos diante a científica experiência que engendra o espaço geométrico e físico. Que tem isto a ver com um campo de favas? Tudo. Afinal é lá que reside o mais emblemático do tecido imortal chamado alma e que de natureza ígnea se refresca na vegetal forma que parece um embrião fecundado.
São estas interdições que fazem do mundo um local digno de observação a toda a hora, e, nem interessa tanto mestre de hoje em chãos pisados de Ordens e Graus que soletram a vacuidade da herança a que já não poderão responder, dado que ainda, e pitagoricamente, a alma estava na cabeça, depois, passou para o coração e agora está tão em baixa que pensamos que a matéria animada é apenas puro dejecto e volúpia. Por outro lado há quem desvende os segredos sacrificando a vida, e aquele que protege os mistérios da alma para ganhar um novo nascimento.
“Matematizando” ao invés de “materializando” seria a expressão certa para quem em forte desejo de não pisar nem campos de favas, nem sarças ardentes, retivesse da existência a sua parte imperecível e lega-se uma pequena pedra para a construção e reconstrução deste enorme “puzzle” cujo “Arquitecto do Mundo” se filia à beira de uma habitação onde as janelas não abrem para a natureza incerta que é causa sempre de morte ao não saber juntar o começo e o fim.
Não magicar nem arquitectar: vamos consagrar: este é o nosso campo de favas.

5 Set 2016

Fazer ver

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o fim de pouco mais de um mês de páginas semanais acerca da poesia, ocorreu-me que, por falha minha, não deixei claro aos leitores aquilo que entendo por poesia, independentemente das suas escolas e dos seus maneirismos, pois a poesia diz-se de muitas maneiras, como Aristóteles dizia em relação ao ser. Através de um verso, o primeiro, de “O Regresso dos Guerreiros”, do livro, Paixão e Cinzas (Assírio & Alvim, 1992) de José Agostinho Baptista, vou então tentar explicar o que julgo ser a poesia:

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Repare-se, as camélias deste verso não são seguramente as camélias da botânica nem tão pouco as camélias dos olhos de todos os dias (essa desatenção oriunda do viver em funcionamento, a saber, um viver fechado no específico, espaço e tempo onde as coisas deixam de ser coisas em si mesmas, coisas mesmas, e passam a ser coisas funcionais; a transmutação do essencial em valor de função). Primeiro, as camélias do verso não são, não existem, isoladas do verso que lhes segue (verbo apagar; presente do indicativo, terceira pessoa do plural, conjugação reflexa): apagam-se. Segundo, o verbo sem o qual as camélias não são  recebe de as camélias um ganho que de per si não possui. Terceiro, as camélias apagam-se forma uma unidade indissociável no próprio verso, perde-se nesta unidade as unidades dos seus signos isolados, e ganha-se uma outra unidade, à qual se denominou metáfora. Mas não é a metáfora o que aqui interessa, ela é aqui o que menos importa, pois aquilo que se busca, a intencionalidade do verso, é-lhe muito anterior. A metáfora, de per si, não possui poder para despertar uma emoção, que transcende a estética literária e nos coloca na pura existência. Aliás, é da própria existência que a metáfora recebe o ganho de intencionalidade. Mais ainda, antes da metáfora, as camélias apagam-se, é o resto do verso, ao longe ao fim do dia, que coloca a metáfora em posição de receber a existência. É tempo de reouvir-se o verso.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

Já que se vulgarizou a metáfora, ouça-se atentamente o resto do verso, ao longe ao fim do dia. Temos um advérbio de lugar (longe) que tem como função sintáctica modificar o verbo (neste caso, o verbo apagar), dois substantivos masculinos (fim, dia) e … Bom, os factos são estes: O verso possui uma só oração, um sujeito (camélias), um predicado (apagavam-se), um adjunto adverbial de lugar (ao longe), um adjunto adverbial de tempo (ao fim), e um complemento nominal (do dia). Ainda uma figura de sintaxe (metáfora), três substantivos (camélias, fim, dia), três contracções preposicionais (preposição mais artigo; ao, ao, do), e um artigo definido plural (as). E isto seguramente não é o verso, são considerandos que não conduzem a ele, pelo contrário, afastam-nos para um local onde jamais o recuperaremos. Se nos é impossível alcançar o verso através das análises sintáctica e morfológica, avancemos uma análise semântica.
Evidentemente as flores, quaisquer que elas sejam, não se apagam tal as velas, os candeeiros, as simples lâmpadas ou as ancestrais fogueiras. A multicoloração das camélias, como qualquer cor, com excepção do negro, necessita necessariamente de luz para se fazer aparecer. É a luz que se esgota nas camélias, em reflexo, como um espelho, da parte final do verso “ao fim do dia”. “Ao longe”. intensifica ou reforça a ideia, da impossibilidade das camélias se fazerem ver, embora se perceba que é só no fim do fim do verso. Há um jogo de claro-escuro, dia-noite, luz-trevas, e presença-ausência. “Ao fim do dia”, tem um poder temporal que ultrapassa o simples dia (dia-luz), e alarga-se até ao fim do dia, ao fim do tempo, ao fim de tudo (ao fim da esperança). As camélias que se apagam é, também, o declínio dos ombros, o pensar finito que nada pode contra o envelhecimento, pode nada contra o devir; é só uma parte que agora se esmaga. E, assim, “ao longe”, e uma vez mais, intensifica ou reforça a ideia, alagando todo o verso de melancolia, de uma soturnidade maior que ao fim do dia. Ao longe não é somente espaço, é, aqui, principalmente tempo. Esse ao longe é todo o verso, o tempo que passa, que passou, a própria vida vivida, ao longe. É o local da irrecuperabilidade da infância. Somos nós que estamos “ao longe” de nós mesmos e caminhamos para o fim do dia. Não são as camélias que se apagam, é a vida. Este verso enraíza na tradição Grega de olhar o tempo: caminhamos para o passado, para a morte, porque a vida, o futuro, vamo-la deixando para trás das costas.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

É claro que a análise semântica nada deve, isto é, deve pouco aos conteúdos semânticos da relação dos elementos dentro da proposição, do verso, ou dos conteúdos dos elementos. A análise semântica que se efectuou, foi efectuada por um sujeito vivencial e não por um sujeito abstracto. É o resultado da cristalização do sentir face ao verso. Já não é o verso nem a percepção dele; é um critério do verso. Qualquer análise traz já consigo o seu antecedente, a contemplação, só possível porque se toma contacto com as coisas mesmas. A coisa mesma do verso reside antes do verso. E, se é verdade que um verso não é passível de ser objectivado, não o é menos que a sua subjectividade advém de um ganho objectivo e universal, por parte de um sujeito vivencial. Este objecto, anterioridade da subjectividade do verso, é um dado puro, que tem como base a auto-contemplação imediata, isto é, tudo quanto exista por si mesmo, na vivência e na contemplação, e precede a verdade e a falsidade. Um amor inequívoco pelo essencial, através de um uso da linguagem, cuja técnica tenha apenas uma regra: fazer ver. Mas fazer ver é uma expressão que pode muito bem ser reivindicada pela filosofia. Mas enquanto a filosofia faz ver através de um discurso, em que o pensar se sobrepõe ao sentir, a poesia faz ver através de um discurso em que o sentir se sobrepõe ao pensar, como se viu na análise que se levou a cabo ao verso de José Agostinho Baptista. Fazer ver, em si mesma, é uma expressão rica de sentir e pensar, e por isso mesmo, reivindicada como sendo propriedade quer da filosofia, quer da poesia. Assim como o amor ao essencial. Talvez por isso mesmo, vários filósofos, muito acertadamente, referiram-se à poesia e à filosofia como sendo irmãs. E, como todas as irmãs, muitas vezes desavindas. Nós somos mais o que lemos, do que o que comemos, a não ser que alguém se veja a si mesmo como um corpo, ou julgue que a comida “biológica” é mais importante para a sua formação do que a leitura continuada de filosofia ou de poesia. E é por isso, que o conhecimento de filosofia ajuda na leitura de poesia, pois a filosofia ajuda no conhecimento do que somos, do que julgamos ser, ajuda-nos no conhecimento de estarmos entre um nada de conhecimento sobre nós mesmos e coisa nenhuma sobre o universo. Assim, e do mesmo modo que o Tejo alaga os arrozais das lezírias, a filosofia alaga a poesia.

“As camélias apagam-se ao longe ao fim do dia.”

2 Set 2016

Amotinadas tropas em Zhelin

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stabelecidos os portugueses em Macau pelo acordo de 1554, entre o Capitão-mor Leonel de Sousa e o mandarim Wang Bo (subintendente dos Assuntos de Defesa Costeira), como base temporária para comercializarem, passou a permanente estadia em 1557. Levado de Shanghuan para Goa o corpo de S. Francisco Xavier, perdeu a ilha o comercial interesse para Lampacau que, como porto de veniaga, só deixou de o ser para os portugueses em 1561/62.
A rápida ascensão de Macau resultou “tanto da decisão chinesa de transferir o centro do comércio externo de Cantão, como da interdição imposta aos súbditos chineses de se deslocarem ao estrangeiro”, como indica Tien-Tsê Chang em O Comércio Sino-português entre 1514 e 1644, onde mais à frente refere, “Seguindo a tradicional política de permitir aos estrangeiros que viviam em grupo na China que mantivessem as suas estruturas de governo, de acordo com as suas leis e costumes conquanto estes não se mostrassem incompatíveis com a paz e a ordem da China, as autoridades cantonenses (se bem que de início não de um modo explícito) deram autorização para que os portugueses se governassem a si próprios. Sob a influência de alguns membros mais proeminentes da jovem colónia formou-se, em 1560, um governo rudimentar que consistia num Capitão da Terra, num Ouvidor, cujo poder era o mesmo dum Juiz de Paz, e num Bispo”. Assim com Macau, as autoridades chinesas colhiam “os benefícios do comércio externo sem permitir que os estrangeiros se deslocassem a Cantão ou que os chineses saíssem do país. Aqui, mesmo às portas de Cantão, erguia-se uma comunidade de estrangeiros que, de muito bom grado, levava o que a China tinha para oferecer aos outros países e trazia tudo o que ela precisava de fora, em termos que lhe eram satisfatórios”, segundo Tien-Tsê Chang.
Entre 1558 e 1560 Diogo Pereira é “Capitão de terra nomeado pela população, governando com dois homens-bons, sem prejuízo para o Capitão da Viagem ao Japão, que se sobrepõe enquanto permanece em Macau, e sempre na dependência do Vice-Rei da Índia”, segundo Beatriz Basto da Silva, que refere, “No período entre 1560 e 1564, sensivelmente, o poder português em Macau é alvo de uma luta civil entre moradores e mercadores, sendo que a família-empresa, (como lhe chama L. F. Barreto), de Diogo Pereira se encarrega de organizar o sistema de pagamento alfandegário que Guangdong aceita. É a família Pereira que aproveita o assentamento de Leonel de Sousa e o faz evoluir no quadro do triângulo mercantil Ocidente-China-Japão”. E seguindo pela História de Macau de Gonçalo Mesquitela, “…nas instruções que D. Francisco Coutinho, conde de Redondo, leva ao partir para a Índia, como vice-rei, constava a de que tornasse a mandar Diogo Pereira por Embaixador e Capitão da China, com o presente necessário à Embaixada para a qual trazia de Portugal algumas peças de muita estima. Chegado a Goa em Setembro de 1561, verificou que Diogo Pereira estava na China. As instruções eram tão precisas que o conde de Redondo, logo na monção seguinte, em Abril (1562) mandou fazer prestes um galeão cujo comando confiou ao cunhado de Diogo Pereira, Gil de Góis” (…) “Chegados a Macau em 24 de Agosto de 1562, Diogo Pereira escolheu a capitania-mor (da Cidade do Nome de Deus no Porto de Amacau), passando a embaixada a Gil Góis”. Já com a embaixada recusada pelos mandarins, foi Diogo Pereira eleito a 23 de Agosto de 1562, “não oficialmente, para Capitão de Terra”, cargo abolido no ano seguinte pelo Vice-Rei da Índia. “Isto não implicou, porém, que Diogo Pereira continuasse a ser chefe da comunidade, tal era o seu prestígio”.

Rebelião de tropas chinesas

“Uma rebelião interna nas costas da China, em Guangdong ocorreu em Abril de 1564, questões de salário fizeram amotinar as tropas em Zhelin e estas, unidas a traficantes de sal e piratas de Hainan, moveram corso no litoral e saque a Cantão. A resolução de tão grave perturbação coube à conjugação de esforços das autoridades militares de Guangdong e à artilharia naval dos portugueses de Macau. A vitória foi alcançada a 7 de Outubro seguinte”, segundo Beatriz Basto da Silva e os historiadores Jin Guo Ping, Wu Zhiliang e o padre Manuel Teixeira complementam, após o general cantonense Tang Kekuan vir a Macau pedir ajuda militar portuguesa para reprimir o motim dos marinheiros de Zhelin. “E foi este acontecimento que implicitamente outorgou a posse de Macau aos portugueses, já que nenhum documento (chapa imperial) regista um tratado para conceder a posse”. “Os chineses apenas podiam permanecer durante o dia no território de Macau, devendo regressar às terras de origem ao anoitecer,” Beatriz Basto da Silva e continuando, assim é de 1564 “o primeiro acontecimento documentado em que as autoridades chinesas se referem ao ‘estatuto’ de Macau”, como Beatriz Basto da Silva cita da fonte Fok Kai Cheong, referindo este também para esse ano “um pormenorizado Memorial feito pelo Censor Provincial de Guangdong/Guanxi, Pang Shangpeng, para informar a autoridade imperial sobre Macau”.
Gonçalo Mesquitela, sobre os factos “situados em 1564, 43.º ano do imperador Chia Ching refere que em Sam Moon e Che Ham, no Distrito de Tung Koon, perto de Cantão, houve um sério problema de pirataria. Citando o relatório de um tal Chan Yet Cheng dirigido a Ng Kwei Fong, comandante das forças, acerca do sucesso dos seus esforços para erradicar a área dos ladrões do mar japoneses mancomunados com foragidos chineses, diz: «Em Chiu Chow havia centenas de soldados cujo dever era o guardar os seus postos avançados, mas deitaram fora os seus elmos e rebelaram-se contra o governo. Embarcaram em barcos que tomaram e assaltaram o que encontravam. O assunto foi exposto à Corte e os mandarins, depois de discutido o assunto, dedicaram atacar os bandidos que cometiam depredações e roubavam o povo, fugindo depois. Falhando vários ataques, eles foram criando mais forças e a população de Cantão começou a desesperar… o povo não sabia como lidar com a situação e muitos dos letrados e funcionários expressavam o desejo de se retirarem para outros sítios. Se os piratas não fossem suprimidos toda a Província teria sido atirada para uma situação caótica…» Sobre o mesmo assunto, o autor referido (Chou Chien Lien), cita um memorial de Yue Tai Yan, intitulado Medidas para suprimir os bandidos: «Os preparativos para o ataque aos bandidos levaram mais de dez dias. Entre os barcos de Macau de Hueng Chan, seleccionei certo número de antigos e cansados, incluindo embarcações pertencentes a Lam Wung Chung. Estrangeiros ofereceram-se para auxiliar e se a sua ajuda se revelasse eficaz, o seu chefe seria recompensado amplamente, embora não haja decreto imperial autorizando-o a pagar tributo. Logo que os barcos se aprontaram eles serão distribuídos entre as embarcações de Macau e os barcos de Pak Sek de Nam Tau. Indicarei então a data para a reunião das embarcações e será lançado a seguir o ataque aos piratas.» Descreve a seguir a batalha de Sam Moon, na qual Diogo Pereira venceu” os piratas.

Situação caótica

É do Padre António Franco a descrição desta crise, retirado de Gonçalo Mesquitela: “Pouco antes, tinham-se verificado intensos ataques japoneses à costa do Kwangtung (Guangdong). Retirados os wako, as tropas chinesas que para ali tinham sido destacadas, revoltaram-se por não serem pagas e saltaram em terra nos subúrbios de Cantam e os saquearam à vista dos mandarins que tendo gente prestes, o não o puderam remediar. Depois disto, os amotinados tomaram e fortificaram um porto distante uma jornada de Cantão. Armaram novos juncos e dedicaram-se à pirataria. Nas suas expedições destruíram os lugares marítimos e a gente era obrigada a meter-se por terra dentro. Macau estava também arriscada”. (…) Diogo Pereira não deixou perder a ocasião que in extremis se lhe deparava. Certo de que os portugueses bateriam os piratas se os atacassem, “mandou um criado seu a Cantão para, da sua parte, prometer ao general de armas de Cantão ajuda contra os piratas. Tudo isto fez sem consultar João Pereira, o capitão-mor. Por isso, ao regressar o criado com a resposta do mandarim de , criou-se forte tensão. O criado revelou a missão a que fora e o capitão-mor irou-se porque Diogo Pereira oferecera o auxílio de tropas comuns que não estavam sob o seu comando, mas que dependiam do capitão.” (…) “Mas a situação era tão grave e o auxílio tão necessário que, pouco depois, entrou um mandarim principal, pedindo auxílio, em nome do general de armas. Todos os portugueses concordaram, então, em atacar os piratas que também lhes eram daninhos e porque estavam em terras da China. . Armaram-se 300 portugueses decididos, passaram a sua artilharia para os juncos dos chineses, para melhor enganarem os piratas. Formaram duas esquadras, uma sob o comando de Luís de Mello e outra de Diogo Pereira, simples moradores que chamaram a si a despesa da campanha. Nota-se como foi evitada a presença ostensiva de forças do capitão-mor representativas da Coroa.
Adoptaram o plano do general de armas de Cantão, que era o de Diogo Pereira se colocar na saída do estreito enquanto Luís de Mello ia atacá-los.” E prosseguindo o relato de Mesquitela, “Os piratas, ao verem aproximar-se os juncos, tomaram-nos mais como presas do que como inimigos e prepararam-se para os abordar. Luís de Mello, .
A actuação dos portugueses impressionou fortemente o governador de armas. Mas outro conflito se ia originando quando pediu que lhe fossem entregues os juncos cativos. Os nossos recusaram-se a entregá-los. A situação foi salva a tempo por Luís de Mello e Diogo Pereira que, diplomaticamente, explicaram ao general que os portugueses eram tão disciplinados que só aos seus capitães obedeciam. O general chinês subtilmente retorquiu: ”, segundo refere Gonçalo Mesquitela, que usou as informações do Padre António Franco para a descrição desta crise.
Terminava assim tão grave perturbação criada desde Abril de 1564 pela rebelião interna na marinha imperial estacionada em Zhelin nos arredores de Cantão e a resolução coube à conjugação de esforços das autoridades militares de Guangdong e à artilharia naval dos portugueses de Macau, que a 7 de Outubro alcançaram em Dongguan uma vitória sobre os rebeldes.
O general de armas chinês ficou tão afeiçoado a Diogo Pereira que autorizou os portugueses a irem a Cantão tratar de negócios.

2 Set 2016

Do real absoluto. Do absoluto ideal

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stas coisas dizem-se depois, se houver. A realidade daquela escarpa abissal à beira da cama. À beira do rio de mansidão à beira do travão do carro. Não se dizem. Mas é indiferente ao remorso.
Hoje, no supermercado, comprei uvas com sulfitos. Não sei o que é mas deve ser uma coisa boa. Dizia ali. Provei-as mesmo sem lavar. Eu provo sempre a fruta no supermercado. Enfim, a de menor calibre. Lembro-me sempre de que ela, que aqui dorme ao meu lado no carro, dizia dantes que nos mercados de Tomar, de Tomar dantes, se dava sempre a fruta a provar. A fruta de antigamente. De tamanho variável e sem a alcunha pobre do calibre. De rugosidade variável e de brilho variável. De assimetrias a tornar cada peça uma coisa única da criação. Ela está aqui. Está e não está. Cada vez mais lhe vejo só o prateado do cabelo e menos o rosto. À medida que se vai curvando sobre si própria. Numa curva para dentro de um nada que começou há muito a invadir-lhe o interior. E à mesa, na minha frente, ainda. A minha recusa de a ver doente. Empurra a comida para o garfo com um dedinho infantil, inábil e um pouco trémulo, indeciso do efeito e da intenção. Começámos a comer muito lá atrás. Eu que como devagar, já fumo um cigarro na sua frente e observo-a dando-lhe espaço para alternar os seus estados de consciência. Dando-lhe todo o tempo. Parece uma criança. Cada vez mais. Cada vez mais pequena e próxima do prato por vezes irreconhecível. Às vezes só uma criança muito pequena. Outras vezes, como se com uma síndrome. E criança. De olhos toldados de incompreensão. Ponho-lhe uma taça na frente com um cachinho de uvas que ela adorava. Adorava, quando sabia que adorava. Lavadas agora e frescas. Pega nele, sabe-se lá se com a vaga memória de gostar, e pergunta se pode comer. Sempre. Pergunta sempre, agora. Quando se lembra do que se trata ali. E eu na frente já fumei dois cigarros e agora escrevo. A dar-lhe todo o tempo. A observar e a absorver o que ainda há. A tentar entender. Não há tempo. O tempo do relógio não existe. Nada disto me é estranho porque ela não é uma estranha. É ela. Não sei onde, talvez no corpo, ou em mim. Ainda. É real?
E o gato, há um gato de uma vizinhança de daqui a dois prédios, e que afinal é uma gata, e que passa como se fosse um spot rápido na televisão. Na minha janela. Uma janela no terceiro andar. Ou quinto. Como no outro sítio, o meu vizinho chinês, jovem de idade indefinida, passava de varanda para varanda quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. E ele sem vertigens. A passar de varanda para varanda. Como o gato. Que afinal é uma gata. Como eu num outro terceiro andar, miúda. Sem a noção de preço e de morte. A passar de varanda para varanda. Quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. É isso. Fragmentos abruptos e efémeros de irrealidade.
Todo aquele céu, todo aquele rio, todo aquele silêncio parado. E nada. Falsamente nada. Porque as águas não param de correr, mansas, inexoráveis a querer dizer. Nada. Mais do que nós ali. Eu, a minha enorme indiferença, ela, a sua enorme anulação. E minha, nela, em mim, sem mim. Passamos no corredor. Ontem. Ao lado do móvel onde estão todas aquelas fotografias já quase impertinentes. Em que não reparo, no temor de cair por ali adentro. Ou ela. Naquela espécie de passo de dança indecisa, esquecida, lenta em que a ajudo. Diz as minhas filhas estão todas ali. Um acesso inusitado e estranho de uma lucidez rara, confusa e quase assustadora. De palavras. De profundidade. Do rio. Todas as idades delas, minhas, dela. Há muito tempo que não lhes vê diferença. De pessoa ou de tempo.
E ela abandonada. Ali abandonada de todas nós, no banco dianteiro do carro, na cadeira, na cama. Abandono-a à única indiferença possível à sua desaparição imparável, por detrás do corpo sólido. Também a diminuir. Abandono-a comigo. Nela. E procuro na imensidão do espaço, a indiferença à indiferença. Na diluição, no espaço, na dor. No vocabulário dentro. Do qual, tudo é possível. Começar, imaginar, cometer. De dentro para fora. Da desconstrução.
Deve haver outra maneira de não olhar para a frente para todos os significados possíveis e aquela sensação delimitada. Do pé.
Como uma louca a andar e janela em janela. Às vezes. Outras vezes. Na casa. A tentar sentir. O sabor do rio e ele ali. Pequenino, seguro, longínquo na janela pequenina. O rio. O mesmo de antes. Que estava ali à beira do carro. Na frente do carro. Não há silêncio maior do que o silêncio denso e insólito do verão. Do rio à beira do que quer que seja, no verão. Naquele local de silêncio que escolho longe de tudo. Menos de algumas pessoas que fazem coisas de tempo e de silêncio. Como pescar. Às vezes à noite. Famílias ou algo no género. Vizinhos, talvez. Várias idades, sem smartphone, vozes esparsas, ali, à beira rio. À pesca. Como noites de há muito, antes da televisão e de tudo. Não há silêncio maior do que o do calor do Verão, mais evocativo da planície se esquecer as cigarras. Mas é o tecido da planície. Do ar. Há um vazio especial no ar parado, na temperatura do calor tórrido, do ar. Na temperatura entorpecente do corpo à beira do abismo do rio como do carro à beira do rio sem barreiras, do carro para o rio, para mim. Onde quer que esteja naquele preciso momento. E a questão é sempre a do lugar. Estar ali, mais longe do que em qualquer país estrangeiro. Como um intervalo de sono.
Ela ali sentada sumida ao meu lado no banco dianteiro. Cada vez menor. Dormita e de repente palra um pouco. Como antes de aprender a falar. E peço-lhe que me deixe calada. Que se deixe calada de novo e dormitar. Que me deixe esquecida. Concentrada na indiferença. O que sobra da dor. Do amor, digo.
E ela passa-me na varanda todos os dias, para lá e depois para cá. Pára sempre e olha. Às vezes eu vejo. Já aconteceu estar dentro de casa e eu não reparar, não saber e ela vem dali. Mas muitas vezes eu vejo. Num repente em que desvio os olhos do que penso ou para o que penso. E vejo. E quando vejo, é porque passou. Ali. Na varanda. E se vejo, suponho que existe. Há outras provas determinantes de realidade. E quando vejo, e porque é mansa, e nunca deixa de me olhar naquele fragmento de tempo em que me passa na janela aberta, fico contente com a vida que me faz caminho. E este gato vizinho, é real. Como aquele momento. A concentrar-me na pressão potencial no pedal, possível, a não fazer. Ainda. O pedal do lado da foz. Uma pequena pressão, só, o travão desengatado, e uma pequena pressão como num gatilho para um tiro surdo. Rápido. Com todo o percurso de eternidade de querer e de não querer e não fazer sentido uma coisa ou a outra. E ser só um momento aleatório de possibilidades. E a diferença entre fazer e não fazer é tanta ou tão pouca como a realidade deste gato. Gata. Eu sei. Cinzenta. Tigrada. Gordinha.
Passou por ali um anjo. Dependendo do exacto momento, se determinável, se definido algures naquela paragem, de morte ou salvação. Mas não houve registo nítido desse fragmento na ordem das coisas. Não saber. Era preciso determinar com absoluto rigor. O imperceptível rumor. Que nem ouvi. E quando. Talvez uma ronda de rotina, afinal. Sem mais intencionalidade.
E não sei porquê. Porque voltei, voltámos. Talvez porque restam os anjos. E se restam os anjos, é com eles que eu posso ser feliz. Há maneiras mais pobres de morrer. Mas restam os anjos. E se restam os anjos eu posso ser feliz. À maneira deles. Se restam os anjos. E, quando abro a janela e olho, e ela passa, sei que ainda me parece um resquício surreal e insólito. Mas é tão real como qualquer outra coisa. E fico contente, não sei porquê. E ali na beira do rio, também não sei porquê. Talvez porque restam os anjos. E, se restam os anjos, é com eles que eu ainda posso ser feliz. Se restam os anjos, eu posso ser feliz. Se restam os anjos.

2 Set 2016

Um cântico agónico e a nostalgia do tempo que passa

Lampedusa, Giuseppe Tomasi di, O Leopardo, Editorial Presença Lisboa,1995.
Descritores: Literatura italiana, Aristocracia, Decadência, Unificação de Itália, Garibaldi, Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo 210 p.:23 cm, ISBN: 972-23-1876-4,
Cota: 821.131.1-31  Lam

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ode-se gostar de um texto, no caso concreto, um texto de ficção por muitos motivos. Eu, em particular, valorizo todas as possibilidades lúdicas ou intelectuais de uma narrativa, a saber a arquitectura, o estilo, a capacidade efabulatória do narrador ou dos narradores, a composição dos personagens, o poder narrativo dos diálogos, a capacidade que um autor pode ter para organizar a intriga e os desenvolvimentos temáticos da história através do dinamismo próprio das múltiplas relações dialógicas dos personagens e finalmente, last but not least os ingredientes formais e puramente estéticos concentrados na palavra e na frase. Não há romances aos quais possamos conceder o estatuto de excelência em todos estes domínios simultaneamente. Há contudo romances que se aproximam deste estatuto e que digamos assim podem ser classificados com distinção em mais de 75 por cento dos itens considerados. Quando isso acontece estamos na presença de uma obra prima e portanto de uma obra de génio. O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa conta-se entre o reduzido número de obras que alcançaram esse estatuto. Como se costuma dizer em gíria, falha apenas o pleno por um pequeníssimo pormenor. Mas acontece que por vezes o que parece apenas um pormenor, revela-se, com o tempo e através de um aprofundamento cada vez mais complexo um pormaior, se me faço entender.
Momentaneamente, mudando de assunto, deixando a questão do pormenor lá mais para o fim, vou escrever sobre este romance como se ainda estivesse no final do século passado, quando depois de o ter lido pela primeira vez, exultava de entusiasmo e me faltavam os adjectivos encomiosos, laudatórios e apologéticos para descrever o que pensava dele.
Para que melhor me compreendam devo dizer que romances assim não são o privilégio de nenhuma tradição em especial, de nenhuma época, de nenhuma literatura nacional particular e também não de nenhum estilo ou mesmo dimensão. Se é verdade que para exemplificar o que disse relativamente à dimensão me apetece imediatamente citar o Guerra e Paz ou a Ana Karenina, de Tolstoi, por motivos óbvios, a verdade é que não é menos justa a referência a um romance moderno de dimensão média como a Conversa na Catedral de Mário Vargas Llosa ou ainda a referência a um texto de dimensão muito reduzida e de uma modernidade fulgurante como é o Pedro Páramo de Juan Rulfo, fundador em larga medida do Realismo Mágico sul americano e na mesma medida precursor de obras primas como os Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, Heróis e Túmulos de Ernesto Sábato, Todos os Fogos o Fogo de Cortázar, O Paraíso de Lezama Lima, e francamente muitos outros, que se os citasse a todos seria fastidioso. O que pretendo portanto é que não há e nunca haverá uma forma para as obras primas e que não será nunca por aí que lá mais à frente procederei a uma pequena revisão deste Leopardo, que porém e aviso não será minimamente suficiente para o retirar da minha galeria das obras literárias da minha vida.
Voltando aos grandes paradigmas literários, para mim as figuras patriarcais da tradição que referi, a do realismo mágico, serão sempre Jorge Luís Borges e Rulfo, a que já me referi, contudo, Borges eu coloco-o à margem não porque não tenha tido influência, mas porque a sua obra tal como a de Fernando Pessoa constitui toda uma galáxia literária. Mais do que autores eles são, isto é foram, oficiantes litúrgicos do fenómeno literário e criadores de uma mitologia complexa e são, nesse sentido, inclassificáveis. De dimensão maior ou menor, estes autores e estas obras possuem todos os ingredientes que referi acima e em alguns casos nem precisaram de ser essencialmente romancistas.
E agora para que melhor me percebam ainda, atrevo-me a citar alguns grandes romances que não possuem todos os atributos de excelência a que me referi, percebendo-se bem porquê, para quem os leu, claro: Desde logo o Ulisses de James Joyce a que manifestamente falta virtuosismo poético. De uma maneira geral, as grandes obras do chamado fluxo de consciência às quais falta o fulgor dialógico de muitos romances, salvo talvez O Som e a Fúria, embora possam sobrar outros atributos: a capacidade descritiva, os verdadeiros frescos vivos dos lugares e das situações tanto as presentes como as rememoradas, como é o caso, em particular, das novelas de Virgínia Woolf, mas sobretudo a novela Mrs Dalloway ou a novela Até ao Farol. As gigantescas sinfonias que constituem A Morte de Virgílio e Um Homem Sem Qualidades de, respectivamente, Herman Brock e Robert Musil, são exemplos de fantásticos monumentos literários que porém não atingem o patamar da excelência em todos os itens considerados, embora se excedam noutros, em compensação. A Morte de Virgílio é pobre em estruturas dialógicas, O Homem sem Qualidades não se transcende no poder de efabulação. Ambos se concretizam sobretudo na composição social, mental e intelectual de uma época, o que não é pouco, mas não possuem o charme ficcional e efabulatório das obras primas do género e o melhor exemplo será talvez A Montanha Mágica de Thomas Mann.
Se, então, a perfeição não existe, e trata-se de uma opinião subjectiva e muito pessoal, um exercício intelectual interessante, simétrico do discurso elegíaco e laudatório, seria para cada obra verificar não os motivos da sua grandeza e da genialidade do autor, mas os defeitos que impedem que atinja a perfeição absoluta. Vou por isso deter-me agora um pouco nos eventuais defeitos de O Leopardo de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, se é que os tem e eu penso que de facto tem. Devo proceder a uma declaração prévia: a minha formação no domínio da História, sendo este romance histórico em larga medida, assim como as minhas convicções ideológicas no plano sociológico em estreita conexão com a natureza e dinâmica dessas transformações sociais, acrescentada à minha concepção do conceito de época história com as suas variáveis complexas; torna-me particularmente sensível a alguns aspectos idiossincráticos na caracterização das personagens a que o autor não consegue fugir e eu também não. São escrúpulos e preconceitos que se aceitam no autor, mas por maioria de razão já não na análise crítica que naturalmente possui uma distanciação maior e uma perspectiva mais global.
Devo deixar já muito claro que as minhas análises se situam hoje muito longe da vulgata marxista da Luta de Classes e que procuro combinar alguns elementos de ordem marxiana, mínima, com a predominância das perspectivas braudelianas e em particular de um historiador que me marcou muito no plano teórico e que foi Paul Veyne, mas atrevo-me a não deixar de lado o grande teórico dos Testamentos e das Ordens como foi o católico, nem marxista, nem fiel aos Annalles, Roland Mousnier, por exemplo, que eu ainda hoje levo muito a sério. Tudo isto, entre muitos outros, como é natural.
(continua)

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]iuseppe Tomasi di Lampedusa, aristocrata siciliano, veio ao mundo a 23 de Dezembro de 1896 em Palermo, e partiu deste mundo no dia 23 de Julho de 1957. A última cidade onde foi visto foi em Roma, na cidade eterna. Entre as suas obras conta-se o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento. Em boa verdade à parte isso escreveu pequenos ensaios e uma recolha de textos em prosa, sem grande significado. Esta é verdadeiramente a sua obra. Autor de um só livro, apetece dizer, com propriedade. Deste célebre romance ficou a não menos célebre expressão, infinitamente citada e glosada: Algo deve mudar para que tudo continue na mesma, sugerida pelo príncipe de Falconeri, Tancredi, seu sobrinho. Impõem-se duas informações. Em primeiro lugar a ideia de que o leopardo fez parte da fauna selvagem de Itália e foi progressivamente dizimado, até à sua completa extinção, o que faz do título da obra uma parábola da decadência da classe social de que faz parte o protagonista, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salinas. A monarquia e os aristocratas eram partes de uma raça em extinção. A outra informação prende-se com a adaptação da obra ao cinema levada a cabo por Luchino Visconti, com a designação homónima de O Leopardo, e que projectou ainda mais o romance, talvez para um patamar, que apesar da excelência do texto, o romance não mereça.
Em 1959, foi-lhe atribuído o Prémio Strega e, em 1963, como já disse, o romance foi imortalizado no cinema por Luchino Visconti, com Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale nos principais papéis. Giuseppe Tomasi di Lampedusa, duque de Palma e príncipe de Lampedusa, dedicou-se à escrita apenas nos últimos anos da sua vida, no tranquilo isolamento da sua propriedade, sem contacto com o meio literário. O Leopardo, a sua obra-prima, foi o único romance que escreveu. Inicialmente recusado por duas grandes casas editoriais italianas, viria a ser publicado um ano e meio após a morte de Lampedusa, tendo um sucesso imediato junto do público e da crítica, que o considerou uma das maiores obras literárias do século XX. Traduzido em todas as línguas, O Leopardo é já um clássico incontornável da literatura.

1 Set 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 25 – O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Estou tão confusa. Não sei se a minha última carta chegou até ti. Sinto-me como um deserto ressequido. Olha para mim com este homem e vajo que nunca houve amor. Hoje voltou a deixar-me aqui presa no quarto. Enquanto procurava algo com que pudesse abrir a porta encontrei uma foto dele quando era jovem com esta outra mulher. É impressionante o quanto ela se parece comigo. Nas costas da foto estas palavras: “Para sempre tua baobei, Xiaolian”. E uma data: 1 de Setembro de 2016. Porque continua ele a guardar esta foto passado tanto tempo? Ele sempre me disse que nunca tinha tido ninguém na vida dele. Nenhuma relação séria. “Para sempre tua” parece-me suficientemente sério não achas? Será possível que este homem tenha alguma vez sido bom? Tenha tido bondade dentro dele? Ele não existe aqui, comigo. Não existe. É uma carne que não existe . é uma alma que não existe mas esta foto que encontrei hoje mostra-o feliz. Com um sorriso e uma aura que nunca vi nele. Será que ele alguma vez foi feliz? Que terá acontecido? Não seria tão bom que ele tivesse sido feliz com ela? Esta tal Xiaolian. Nao sei. Talvez os nossos destinos se tivessem cruzado mais cedo. Talvez. Ou talvez não. Talvez seja este o nosso destino. Tu aí, meu querido Chaoxiong, e eu aqui presa num quarto no meio do Japão. Sinto que começo a dar de mim. A não entender os meus processos mentais. Mas não te preocupes. Esta minha descoberta e eu estar a falar-te sobre ela não tem nada a ver com ciúmes. Não tenho ciúmes por ele. Odeio-o. Sinto que depois de passar uma certa idade a vida torna-se num processo de perda contínua. As coisas realmente importantes começam a desaparecer. Escapam-se. E as coisas que ocupam o seu lugar são imitações inúteis. Estou sem força física. A esperança. O que é a esperança? O que é a fé? O que são os sonhos? Os ideais? As convicções? O que significam quando já ase perdeu tudo? De que vale o amor? De que vale o amor se não pode ser cumprido? As pessoas que amamos a desaparecer uma após outra. Uns de forma anunciada e outras sem aviso. Simplesmente a desaparecer. E uma vez que as pessoas desaparecem nunca mais voltam. E tentamos encontrar substitutos. Será que é isso que eu sou para ele? Uma substitua da Xiaolian?

Imagina. Apenas flocos de neve solitários a marcar o começo de um inverno que não acaba. Ao fundo existe um templo. Oiço o badalar dos sinos. Oiço os monges. Todas as manhãs oiço os monges e as suas orações. Oiço os seus passos quando caminham à volta nos seus trajectos de meditação. Sinto estes sons em crescendo. A cada manhã tornam-se mais fortes. Mais profundos. E sinto as reverberações remanescentes. Sinto o fluxo do tempo. E após os sinos do templo do norte aparecem os sinos do templo do sul. Tantos templos e ninguém sabe que eu estou aqui presa. E os quimonos que comprei especialmente para tu mos despires. Será que alguma vez os vais ver? Desculpa-me se estou emocionada. Se me sinto perdida. Gostava de estar contigo. De não me estar a atormentar com esta dor de não saber o que vai realmente acontecer. De não me atormentar por esta tristeza. Por este arrependimento de não ter ido ter contigo e fugir em vez de me ter deixado levar por um sentimento qualquer de que tinha que lhe dizer que estava tudo acabado. Olha agora como eu estou. De que me valeu ter tentado fazer a coisa certa? Os sinos ecoam no meu coração. Mas por quanto tempo?

Odeio este mundo. Odeio esta angústia. Esta inquietação de hoje e tu sempre tão longe de mim. Gostava de ouvir a tua voz. Os teus sussurros quando me dizes que me amas. Por que será que me dói tanto ter descoberto que existiu outra mulher que ele nunca me disse. Que se calhar ainda existe. Ou que pelo menos existe dentro do coração dele. Porque razão guardaria ele a foto se ela não estivesse ainda presente no seu coração? Nunca deveria ter confiado nele. Deveria ter acabado com tudo mais cedo. E mais cedo valorizar o meu tempo contigo meu amor. E este vácuo dentro de mim que não é indolor. Porque existe maldade? Infortúnio? Sofrimento? Destino? Será este o nosso destino? Será este o meu destino? E este vazio. Este nada. Este nada de nada. Esta manhã esteve uma névoa espessa. Muito acima da neblina, nuvens brancas banhadas em uma luz brilhante que parecia irradiar-se da terra. A luz do sol, com raios oblíquos, conseguiu fazer descobrir a montanha em frente. Uma montanha coberta de pinheiros. Mais perto da janela uma moita de bambu com folhas amareladas. O nascer do sol foi roxo. Incomum. Uma suavidade no roxo cheio de graduações subtis. E a neblina ficou rosa por momentos. Isto poderia ser o lugar perfeito para nós. Eu poderia pintar. E até poderia pintar em papel de arroz. E arrastar os pinceis por entre carmins e por entre curvas na distância de nós. Porque estão as pessoas todas trocadas umas com as outras?

1 Set 2016

Chauvinismo e um poema “我是武则天。”

[dropcap style=’circle’]”[/dropcap]Matou a irmã, chacinou os irmãos, assassinou o regente e envenenou a mãe. O choque provocou a morte do próprio filho,” assim relata o cronista.
Wu Zetian 武则天, a única mulher que ascendeu a Imperador da China, teria sido injustamente acusada destes crimes? Para ser breve, a resposta é, sim! E porquê? Porque a História oficial é escrita por homens. Depois da sua morte, o Imperador que lhe sucedeu organizou a uma campanha de difamação para lhe destruir a imagem. É possível que entre todas as mulheres que já dirigiram Nações, ela tenha sido a mais controversa e a mais poderosa, no entanto, o seu carácter e a sua obra permanecem obscuros, sob camadas e camadas de olvido. Na China do séc. VII e, depois de 3.000 anos de História, esta mulher tornou-se a única a governar o Império por direito próprio.
Senhora de excepcional sabedoria e de enorme talento Wu não foi uma heroína complicada. Corajosa e confiante, implacável e decidida, estabilizou e consolidou a dinastia Tang numa altura em que evidenciava sinais de decadência – um feito notável, já que o período Tang é considerado a Era de Ouro da civilização chinesa. Viria a atingir os seus objectivos de forma legítima, mas também com jogos de enganos e intriga palaciana. Seja como for, obteve resultados políticos e diplomáticos surpreendentes e a China alcançou mais poder em termos globais. Budista devota, optou por sistemas de governação mais liberais e benevolentes, rodeou-se de pessoas talentosas, promoveu o desenvolvimento da economia e sabia responder a críticas e vozes dissidentes de forma positiva. Durante o seu reinado a estabilidade social e o desenvolvimento económico criaram condições para lançar os alicerces do que viria a ser conhecido por “Era do Florescimento Kaiyuan”, nos finais da dinastia Tang. Durante este período as mulheres gozaram de uma independência nunca antes vista e, na capital, participavam em exames estatais, montavam a cavalo e usavam roupas masculinas. Li Po, o grande poeta da Dinastia Tang, considerou-a um dos “Setes Sábios” da época, possivelmente devido a sua acção a favor da Imprensa, o que foi muito benéfico para a divulgação da poesia. Wu também deu início à diplomacia dos Pandas, oferta de pandas gigantes a dignatários estrangeiros, ainda hoje adoptada pelos os dirigentes comunistas.
Este foi o lado político desta mulher. Mas como é que ela (ou qualquer outro dirigente chinês do passado) exercia o poder? Uma coisa sabemos, antigamente qualquer chinês culto era também um poeta. Wu não foi excepção. Vejamos um excerto da sua escrita.

Amanhã vou visitar o Parque Shanglin,
e, num repente, hei-de intimar a Primavera:
os botões devem florescer de madrugada,
Não esperem que sopre o vento da manhã!

O poema tem um tom quase controverso. A Imperador Wu fala sobre as suas plantas durante um passeio pelo parque. Tem uma métrica irregular e não rima, o que evidencia a sua natureza informal. Contrasta claramente com o estilo inicial em que preferia uma forma mais regular e mais rígida.
Dizia-se que gostava de criar mitos sobre a sua pessoa e que os usava para manipular a opinião pública. A imagética a que recorre quando intima a Primavera é semelhante à hipérbole mítica de uma rapsódia. É possível que tenha usado este poema para mostrar que o seu poder não se limitava ao mundo dos humanos, mas que se estendia à Natureza. Pelo tom informal do poema, patenteia a uma suprema confiança no seu poder, implicando que possui poderes vedados aos simples mortais. A posição que sempre tomou em defesa do Budismo, e o uso que fez da a religião para justificar posições políticas, podem indicar que este poema se destinava a reforçar a sua reputação de líder divina.
Todos estes séculos após a sua morte, a pedra tumular erigida em seu nome parece dizer-nos: Não faz mal que julguem e demonizem esta mulher, sei que o vão fazer.

31 Ago 2016

A misericórdia da solidão

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ascido em Lisboa, em 1972, Rui Almeida tem seis livros de poesia editados e muitos poemas ainda inéditos. Lábio Cortado (Livrododia, Torres Vedras, 2009), Caderno de Milfontes (volta d’mar, Nazaré, 2011), Leis da Separação (Medula, Coimbra, 2013), Temor Único Imenso (Labirinto, Fafe, 2014), A solidão como um sentido, seguido de Desespero (Lua de Marfim, Lisboa, 2016) e Muito, Menos (Companhia das Ilhas, 2016). Rui Almeida é um poeta pessimista. Não no sentido de pensar que o mundo vai piorar, mas no sentido de ter a consciência de que tudo é já o pior, porque tudo é uma construção humana, tudo é o humano: “Perdes sempre /
Quando vives. Perdes tudo
/ O que nunca foi teu. És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Este tom, de um poema inédito de Almeida, é o leitmotiv da sua poesia, se não da sua vida, que importa tanto aqui como a última camada de electrões do átomo de Bório.
Entramos na poesia de Rui Almeida como se entrássemos na cabeça de um Diógenes de Sinope (o Cínico) radical. Se Diógenes percorria as ruas da antiga Atenas durante o dia, com uma candeia acesa, a ver se encontrava um homem honesto, Rui Almeida percorre as páginas dos seus livros em busca daquilo que mostre de uma vez por todas que o humano não presta, que o humano não vale a tinta que o descreve. Não se sabe se escreve para provar que está errado, se para nos mostrar que está certo, já que muitos dos pessimistas são optimistas falhados, optimistas que não deram certo. Mas o que sabemos, com certeza, a certeza que é possível ter através das palavras, é que ele busca incessantemente em seus poemas a origem do mal humano, aquilo que faz ou fez com que a vida seja um contínuo desespero, uma contínua injustiça. E a poesia torna-se tão mais pujante, mais forte, quanto o poeta se furta a efeitos retóricos de descrições inúteis, porque redundantes, e remete-se ao essencial. De facto, há nestes poemas, concomitantemente, uma aproximação ao pensamento filosófico e um afastamento do mundano e do quotidiano. Como se nos dissesse: falar de uma taberna, de uma paragem de autocarro ou das árvores de um jardim não passa de redundâncias para enunciar o vazio; o vazio não precisa de nada para ser enunciado. E essa é que é a dificuldade, que parece ter sido ultrapassada ou contornada por Rui Almeida: “És
/ Apenas o vazio desolado
/ Em busca de mais vazio. / Nada há senão perder.” Nada há senão perder. Para quê então enunciados que, para o poeta, parecem não passar de máscaras carnavalescas do vazio e não do vazio ele mesmo, ou tão-somente do mais próximo que podemos chegar-lhe com palavras? Almeida já o havia escrito em A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “E sempre o desespero, / (…) A criar atrito e dor. / Sem nome a dor, sem Limite amparado // Por uma linguagem.” Descrições em poemas são, para Almeida, adivinha-se nos seus versos, rodas auxiliares para bicicletas. Mas, e também se suspeita, não como forma de aprendizagem, mas como forma de nos proteger da realidade, criando uma paisagem, campestre ou urbana, que serve de amortecedor ou de entretenimento para o que realmente acontece no humano. Mesmo quando há descrições nos seus poemas, não são verdadeiras descrições, mas abstractos, como no exemplo destes versos de Temor Único Imenso, à página 8:

Diante das aves caem migalhas,
Silenciosos pedaços do mundo,

A prometer sustento. Para as aves,
Fazem parte da existência, do
Convívio com tudo o que existe sempre.

Com as migalhas que caem, as aves
Se alimentam, se divertem, se lembram
Que são aves pequenas, que a queda
É apenas o assombro de ser
Não mais do que ave e ave pequena.

Aves, aqui, é tão abstracto como dizer pedra ou chão ou céu ou mar. Mar, aliás, que é palavra recorrente nos poemas de Almeida e, a maioria das vezes, uma pedra tão abstracta como ave. E tudo vai sempre dar ao nada, ao vazio, ao não se ser, como neste poema, também inédito:

“Voltam o silêncio e o deserto,
Palavras frequentes, demasiado
Frequentes, comuns como sobras
De dias passados, o sabor gasto
Na boca sem saber que dizer.
Silêncio e deserto, apenas palavras,
Apenas a desilusão de uma outra vida,
Limite incerto, viragem súbita
Para fazer algo mais, para alcançar
O inesperado. Outra coisa, nada.”

E à página 28 do mesmo livro, escreve: “Cinco aves pousam nos ramos nus /
De uma árvore no inverno. Pousam / Devagar trazendo o sopro, trazendo /
A distância dos lugares de onde chegam.” Aves e árvores (mais um abstracto) são instrumentos para dizer distância e nada. Lugares de onde chegam e ramos nus de uma árvore no inverno, nós nos afastando de nós mesmos, nos deixando por todos os lugares em fomos até à árvore nua no inverno, que não passa da sorte que nos espera. Sente-se, na poesia de Rui Almeida, metafísica e abstracta, no uso da linguagem, que a existência não nos serve, está-nos apertada, precisávamos de um número acima. E muito provavelmente aquilo que mais choca a nossa sensibilidade – pois como escreveu Miguel de Unamuno, “não se é pessimista por ler livros pessimistas, é por se ser pessimista que se lê livros pessimistas” – encontra-se no início do primeiro poema aqui citado: “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste.” Nestes dois versos, que iniciam o poema, vemos aqueles velhos nos bancos do jardim, junto a nossa casa, ou no caminho par ao trabalho, a seguirem com os olhares as pernas magras e belas da rapariga, que os calções curtos deixam ver ao passar. E, de repente, dói-lhes algo não se sabe onde; dói-lhes a vida perdida, não se sabe onde; dói-lhes o futuro que não volta. Nunca voltarão a ter o que viram. Porque aquilo que agora vêem, as belas pernas da rapariga a passar, não estão realmente a ver; não é a ver, é o visto. Aquelas pernas que passam são o já visto, muito tempo lá atrás, e não o a ver, aqui e agora. Através dos versos ficamos a sentir que o que dói aos velhos, que vêm passar a beleza, não é não a ter, mas não se terem a eles mesmos. “Nunca voltarás a ter / Aquilo que viste” explode como sentença fúnebre, macabra, aterradora. Como se fosse o eco de um verso de um poema de A solidão como um sentido, seguido de Desespero: “A saudade de nunca teres existido.” Nunca existimos, não porque o que desaparece não existe, mas porque o que foi já não é. Ter existido é uma aberração do existir; e o próprio existir só existe na confrontação com a consciência de ter existido. Esta aporia existencial continua ainda no mesmo livro, à página 11: “Lado a lado, a solidão / E a memória queimada / Da infância. Falhas / Na superfície lisa do tempo.” Lado a lado, podemos dizer, a existência e o ter existido. A identificação da existência com solidão não tem carga ética, mas ontológica. E por isso mesmo passível de nos ajudar a carregar o nosso ter existido ao longo do tempo, como neste verso de Lábio Cortado: “– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.” E veja-se neste “respirar”, para além do concreto que é no verso, o abstracto que também não deixa de ser: aquilo que só a cada um de nós nos diz respeito, que só a cada um de nós pode interessar e que só cada um de nós pode resolver.; ninguém pode respirar por nós. A solidão não é um castigo, é a misericórdia que nos é permitida. Estamos diante de uma poesia, toda ela ainda por descobrir, porque recente, eivada de metafísica, de abstracto – que aqui nesta poesia é o concreto sem entretenimento – e um convite a mergulhar na solidão. Porque no fundo somos todos abstractos uns dos outros como as aves das árvores, como a morte, como o Outono, como nestes versos com que o poeta inicia o livro Temor Único Imenso: “Eram de novo as aves e morriam / Doutras armas porém do mesmo modo / Eram de novo e era Outono”. Tudo será sempre da mesma maneira, a morte, as aves, as árvores, os humanos com suas armas, que só diferem na forma como matam, mas não no matar. A redundância da descrição fica completamente às claras nestes versos agora citados, principalmente no primeiro verso do livro: “Eram de novo as aves e morriam”. Para os leitores frequentadores da filosofia contemporânea, já há muito que se coçam de Wittgenstein. E, sem dúvida, estamos perante uma poesia de braços abertos ao solipsismo, que não pretende construir pontes ou descobrir ligações entre um humano e um outro. Uma poética, quase toda ela – com excepção de Caderno de Milfontes – a fazer ver as sombras. A fazer ver que os outros são sombras de nós, que nós somos sombras de nós, quando com os outros, a fazer ver que nós somos sombras de nós mesmos quando sozinhos, embora sem chão ou sem parede para a sombra caminhar. Rui Almeida jamais poderia dizer, como Rimbaud, “Je suis un autre”, pois para Almeida “eu” ou “outro” são o mesmo abstracto que não nos levam ao respirar, à solidão misericordiosa e pessoal. Termine-se, com o poema que abre o livro Lábio Cortado:

“Suave, devastadora, a sombra deste tempo
De pernas dormentes por não caminharem.
Esta coisa de estar parado a assistir a nada,
Consciente da cor de cada objecto à minha frente
Enquanto a visibilidade se fecha dentro de um candeeiro.

Não são crianças que oiço, nem pássaros,
São os pés de quem sabe andar e se desloca,
É o riso de quem reage à sedução e ao modo do desejo.
O peito está vazio e abandonei-o
– respirar é o acto de misericórdia permitido ao corpo.

Penso até à exaustão naquilo que podia ter sido.
Demasiado cedo me reconheci como vivente,
Como servo do movimento e das funções vitais.
Não renego a força que em mim surge
Nem me permito a queda na tentação da morte.

Os braços são pequenos demais para a coragem,
Isso que nem sei que seja ou de que me valha.
O roubo é uma solução como outra qualquer
Para viabilizar a vontade ou o impulso do gesto.
O risco é projectar a voz para além do mar;

Para além de tudo o que de imenso se estende
Diante de um homem que tem olhos perdidos.
Como se perde a distância? – é esta a pergunta
Sussurrada no momento em que se desiste
E da qual nasce a sede que permite a resposta.

É no candeeiro que extingo o excesso do pensamento;
Não reconheço à luz os efeitos salvíficos
A que a aparência poderia levar-me.
Prefiro o vazio sistemático da brancura
Diluído no ar que me envolve e que respiro.”

30 Ago 2016