A China tal como ela é 真实的中国

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] câmara de Michael Wolf é honesta, mas não é indelicada. Durante mais de vinte anos, o fotógrafo alemão abordou os seus temas com uma frescura que reflecte simultaneamente o passado e sugere o futuro.  Tomemos como exemplo uma das suas muitas sequências conceptuais.  A série de fotografias intitulada “Cadeiras Chinesas” não o fez cair nas boas graças da polícia chinesa, embora ele se tivesse esforçado por explicar que o seu trabalho era “inofensivo”. Mas, a polícia continuava a insistir que “prejudicava a imagem da China”. Não chegaram a prendê-lo, mas detiveram-no durante seis horas e confiscaram-lhe as fotos.  Num contraste marcado entre a bizarria dos edifícios luxuosos e dos Centros Comerciais que inundam o País, as “Cadeiras Chinesas” inventariam todo o tipo de assentos que dão corpo ao humor e à sabedoria da cultura chinesa.  Na minha opinião, estas “cadeiras” são a constância da China. Cada cadeira é um retrato de teimosia e determinação. Passam ao lado da moda, calmas, intimas e audaciosas: são a China como ela é.

Nascido em Munique, Wolf cresceu nos Estados Unidos. Chegou a Hong Kong em 1995. Se o leitor fizer uma visita ao seu website, pode ficar um pouco chocado com a obsessão pela separação e classificação, sob a batuta do rigor alemão.

Em a “Fábrica de Brinquedos” percebemos que para haver uma infinidade de brinquedos são necessários inúmeros trabalhadores. Assistimos à “Verdadeira Toy Story”, numa fábrica de brinquedos chinesa: uma azáfama de trabalhadores, um ambiente abafado, e pilhas de brinquedos de plástico.  Cerca de 75% dos brinquedos produzidos em todo o mundo são “Made in China”. São fabricados por gente real e não por máquinas.

Durante a produção da série “Arte Falsa Real”, Wolf pediu a um falsificador de arte chinês que lhe pintasse os girassóis de Van Gogh. Obteve a seguinte resposta: “É muito simples. Com 400 pinceladas está feito!” Esta conversa decorreu na Dafen Artist Village (subúrbio artístico de Shenzhen), onde vários milhões de “quadros famosos” são produzidos anualmente para exportação. Um “artista” despachado consegue fazer 30 obras-primas por dia.  Sim, claro, isto também é a China.

23 Nov 2016

O poema não fala – Matilde Campilho

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[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m livro de poesia com mais de cento e vinte páginas e primeiro livro de um autor, torna-se difícil de abordar, se formos honestos connosco mesmos. Assim, e como tenho feito, percorrerei apenas as linhas fenomenológicas dos poemas. Matilde Campilho publicou o seu primeiro livro, Jóquei, em 2014, pela Tinta da China. Viveu algum tempo no Rio de Janeiro, e algum outro tempo dividida entre Lisboa e a chamada cidade maravilhosa. Esta vivência além mar é visível no português híbrido com que os poemas foram escritos. Matilde Campilho é também a primeira poeta, das poetas e poetas acerca de quem tenho escrito aqui no Hoje Macau, a ter estado presente no importante Festival Literário de Macau – The Script Road –, e na sua última edição, em 2016.

Em “O Príncipe no Roseiral”, segundo poema do livro, páginas 9-10, somos levados pela nossa imaginação kantiana à Grécia Antiga, a Parménides e à sua inversão de identidade entre pensar e ser. O poema começa assim: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor / não fala de cachecóis / azuis sobre os ombros (…)”. Por um lado “isto é um poema”, e por outro “não fala de”. Todo o poema enuncia aquilo de que não fala – do rolex, da bandeirola da federação uruguaia de esgrima, do lago drenado da floresta americana, de comoções na missa das sete, de tractores quebrados na floresta americana, da ideia de norte na cidade dos revolucionários, de choro, de virgens confusas, de publicitários de cotovelos gastos, de manadas de cervos, de amor, de santos, de Deus – mostrando assim duas coisas: o poema é para além do que diz e o poema  não tem de saber nada de nada; por isso, pensar e ser faz curto-circuito entre ser e pensar, ao afirmar poder-se pensar o que não é, isto é, o poema pode trazer à flor da página e ao nossa consciência aquilo que ele mesmo não é, aquilo de que ele mesmo não fala, mas enunciando-o.

Este curto-circuito da poesia, tal como é enunciado no poema de Campilho, fora já enunciado por Platão, no livro X de A República, isto é, o ponto de vista da falência do conhecimento que grassa a poesia. Escreve o ateniense: “Assentemos, portanto, que, a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais compõem, mas não atingem a verdade; (…) o poeta, por meio de palavras e frases, sabe colorir devidamente [tudo aquilo a que se refere] cada uma das artes, sem entender delas mais do que saber imitá-las (…)” (600e-601a).

Matilde Campilho com este seu poema resolve de uma penada o problema da poesia em relação a Platão e a uma grande parte da filosofia tradicional. O poema não tem de saber nada, ele é um poema. E se o poema não tem de saber nada, assim também aquele que o faz, o poeta, não tem obrigação de mostrar conhecimento no seu poema. O poema não imita, nem bem nem mal, aquilo que não sabe; o poema é um poema, não fala de. Pôr um poema a falar de, seria o mesmo que fazer de alguém uma cidade. Escreve Campilho no início do poema “Mão Dupla”, às páginas 37-9: “Meu filho / tente não fazer de ninguém / uma cidade”. Poderíamos imitar Campilho e dizer: meu filho, tente não fazer do poema uma cidade. Evidentemente a resposta dada pela poeta, na sua forma negativa, como se a positiva fosse comum, é muito mais interessante do que o que aqui possamos escrever. Devemos sempre tentar fazer com que um poema não seja uma cidade, com que um poema não seja uma pessoa, com que o poema não seja uma aula de geometria, de gramática ou de arte. E também é evidente que o poema “Mão Dupla” não está a responder ao poema “O Príncipe no Roseiral”. E também parece ser evidente que Matilde Campilho não pensou ou sequer imaginou tal relação entre os seus dois poemas ou entre os seus poemas e Parménides ou Platão (embora aqui possa ser mais fácil de imaginar que o tenha feito). Mas é isso que a poeta nos diz, antes de mais, quando escreve o seu poema, enunciando o que ele não tem de falar. O poema não fala, ele é. E neste ser do poema, que curto-circuita ser e pensar em Parménides, e de lavada o problema da imitação da arte em Platão, abre todas as possibilidades. Talvez nunca tenha sido dito tão claramente como neste poema de Matilde Campilho, que a poesia não tem complemento directo, nem determinativo, nem circunstancial, nem temporal. O poema é. Vemos agora que não se trata de uma inversão do ser em Parménides, talvez somente de um passar por cima,  ou ao largo, porque o poema é o que pensa e o que não pensa. O poema, vimo-lo anteriormente, enuncia aquilo que não é, não enunciando nunca aquilo que é. O ser não pode não ser, diria o eleata, e o não-ser não pode ser.

Já perto do fim do livro, em “Pedra Explodida Na Mão Do Monge”, Campilho começa assim o poema: “Penso em astronautas / não penso em árvores chinesas / penso na contagem dos cabelos, / não penso em punhais (…)” Que quer dizer pensar aqui? Pode-se pensar em algo sem pensar. E é este o domínio do poema, o do pensar sem pensar, o do ser não sendo. Como se diz no Brasil, Campilho mata a cobra e o mostra o pau. Mas voltemos ao poema que começamos a ler inicialmente: “Escute lá / isto é um poema / não fala de amor”. Este poema torna-se assim o motor de toda a poesia de Campilho, que nos surge verso a verso, página a página como se não lhe interessasse a reflexão, como se não lhe interessasse a tradição metafísica de olhar o poema. A reflexão na poesia de Matilde Campilho não chega chegando, feito carioca, aqui a reflexão é feito mineiro, come pelas beiradas, isto é, faz sem que ninguém perceba, faz pela calada, dir-se-ia em Portugal. Escreve Campilho, em “Conversa de Fim de Tarde Depois de Três Anos no Exílio” (pp. 51-2): “(…) é terrível a existência de duas retas / paralelas porque elas se cruzam no infinito / a verdade é que nunca nos interessou / a questão do infinito mas o resto (…)” A poesia de Campilho diz, se desdizendo, como aquilo que a poeta ou quem nas suas páginas faz de poeta relata, ainda no mesmo poema: “(…) eu na verdade prefiro mais de mil vezes / sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa / enquanto você fala sobre raízes quadradas / enquanto você fala sobre ladrões de figos / enquanto você fala sobre o tropeço da baleia / enquanto você fala (…)” Mais importante que a fala, mais importante que a reflexão é a beleza do mundo, a beleza das coisas, a descoberta das coisas, que passam longe da reflexão, elas são, acontecem. Viver a vida é estar disponível para as migalhas do pão sobre a mesa, disponível para a chávena de chá a arrefecer sobre a mesa, disponível para o silêncio das pessoas e a fala das coisas. E, por isso mesmo, ainda quando um poema parece terminar reflectindo, parece terminar como se nos quisesse fazer pensar alguma coisa, como no final do poema que temos vindo a citar – “porque você e eu a gente é feito de matéria / escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia / e espanto.” – ele só quer dizer o quanto é absurdo mostrar o que se pensa num poema, como alguém aos cinquenta anos aparecer vestido com a roupa de quando tinha vinte. Não deixa de poder ser verdade, o que estes últimos versos dizem, mas aquele “i.e.”, escrito assim à laia de artigo para professor de universidade ver, não deixa dúvidas quanto à ironia da poeta neste final de poema, e eu imagino-a até a escrevê-lo sorrindo e com um copo de caipirinha na mão, no Lucas, junto ao posto 6 de Copacabana, ainda que ela provavelmente o tenha escrito de manhã, bebendo uma xícara de café e de mau humor.

Por tudo isto, quando à pagina 70 e seguintes, nos aparece o poema “Principado Extinto”, num claro contraponto ao segundo poema do livro, “Príncipe no Roseiral”, dizendo “Isto é um poema / fala de amor (… ) Isto é que é poema / fala dos cheiros das flores / e da injustiça da existência / das flores na cidade (…)” este poema não tem a mesma força que até aqui foi propalada e ninguém o pode levar a sério, nem a poeta. É um poema como para ver se estávamos com atenção. Um poema que tem a sua resposta dada por Campilho, umas 13 páginas antes, na última estrofe do poema “Rua do Alecrim”: “Assisto a toda esta cena e penso que esta visão / real ou inventada, / é muito pior do que a verdade a bofetadas.” Porque o poema, ficámo-lo a saber por Matilde Campilho, não fala de; um poema que fala de é pior do que a verdade a bofetadas. O poema à página 70 é uma pegadinha. Pois se atentarmos bem, se lermos com a atenção que os dois poemas merecem, entendemos que, falar de ou não falar de, dá no mesmo. O poema enuncia, abre clareiras, faz ver, não necessariamente através da reflexão, que vem pela beirada, mas pela atenção, por iluminar uma frase, como por exemplo “fala da permanência inútil”, ou iluminar um acontecimento no mundo “fala da aparição do inverno / fala da fuga dos albatrozes”. O poema, adivinha-se, é uma máquina de inverter as coisas, como escreve Campilho à página 100, no início do poema “Rugove”: “Levantei-me para o contrário disto (…)” ou ainda à página 73: “acho que, quando a gente telefona / fora de época, é porque está dando / uma ligadinha para o passado. não / para a pessoa realmente.” Nesta inversão das coisas, que a poesia é, pelo menos para Matilde Campilho, o que fica sempre a claro é aquilo que não se sabe. O poema acrescenta não saber ao que já não se sabe. Depois da leitura de um poema, dizemos: “olha, mais uma coisa que eu não sei!” Ou, com versos da poeta: “(…) e – como disse Adams – bom mesmo é chegar / ao fim da estação sem nenhuma resposta.”

TWO-LANE BLACKTOP
Aprenderei a amar as casas
quando entender que as casas são feitas de gente
que foi feita por gente
e que contem em si a possibilidade
de fazer gente.
(p. 106)

Antes de terminar, digo que gostaria mais que este livro fosse dois, um mais vertical e outro mais horizontal. Mas aprender a ler, essa tarefa diária do leitor, é também aprender que as coisas não são como queremos. Feche-se hoje o bar com um poema de Matilde Campilho.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

22 Nov 2016

Esta é a voz da Europa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o momento em que vivemos é importante a voz de Ezra Pound, esse chamado poeta maldito, designação que não passa de uma interpretação interpelada, interpelante, sempre pouco assertiva, dado que não são eles – ele, neste caso – a causa provável das maldições. Essas vêm de aparelhos com encantos que os povos sustentam e apoiam como formas de felicidade. Um anunciador de factos, mesmo extemporâneos, não pode constituir ameaça, a menos que seja um alucinado fabricante de teorias da conspiração. Neste caso temos um homem que trabalha em simultâneos tempos diversos e os articula com a velocidade visionária de uma mais vasta chamada de consciência. A sua voz ecoa nestes dias de americanas vitórias.

Ezra Pound é o autor de «Cantares», um tratado de poesia absoluto, e o seu léxico não é aqui um exercício metafórico, abstracto: ele usa o chicote da linguagem directa numa forte aceleração cerebral como se de partículas se tratasse, com uma forte vitalidade da essência. Ele liga o Oriente e o Ocidente na forma trabalhada da matéria do poema; ele amplia a linguagem e diz que a poesia difere da prosa pelas cores concretas da sua dicção. O poder inovador é imenso, a sua importância, uma lembrança das melhores, sempre em oposição à ambiguidade de índole surrealista.

Mas voltemos ao nosso instante, ao momento histórico onde, como nunca, ecoa a estranha voz de Pound. As Conversações Radiofónicas foram feitas em Itália, onde falava acerca dos falhanços da economia norte-americana no tempo de Roosevelt, ligando-o de certa forma a regimes que o tornariam impopular, pois que nada lhe fora indiferente. Tentou voltar ao seu país em 1941 mas tal desejo foi-lhe negado, achando que a guerra instalada era devida à Finança e ao que ele chamaria de Usurocracia, lembrando aqui o seu poema Usura, e nesta análise ele não estava só tendo mesmo a seu lado o Nobel Sir Frederico Joddy, numa altura em que tal prémio não era politizado.

Eram vozes que deviam ter sido escutadas com uma maior acutilância e consideração, sem a marca, sem os evangelhos políticos transformados em nova religião, e quando as tropas norte-americanas chegaram a Itália tiveram como preocupação imediata a sua captura e, pior, muito pior, que os seus já volumosos inimigos europeus foram sem dúvida os seus compatriotas: vai para uma cela para ser condenado à morte, é submetido a torturas e finalmente metido numa jaula com barra de ferro deixada na floresta. Acusado em Tribunal, os juízes declaram-no, contudo, louco, e ordenam a sua reclusão num hospital psiquiátrico.

A sua voz não era aquilo que hoje apelidamos de politicamente correcta, sabemos que aquele que se atravessa nos dogmas dos tempos é banido pelas suas épocas e sabemos também como é fácil criar anátemas perante algo que nem entendemos bem. As pessoas, ontem como hoje, são exactamente as mesmas e nem os seus pares – sobretudo os seus pares – não estão lá para acalentar quem os pode de certa forma destronar. Mas Pound resiste, um homem destes não se abate, volta a Itália e aqui chegado declara que saíra de um manicómio de cento e oitenta milhões de habitantes. Hoje são mais, e mais loucos também, mas esqueceram-se nas suas encíclicas neoliberais daqueles que alertaram para o efeito de repetição e a transitoriedade das verdades absolutas.

E andamos mais ou menos por aqui nesta impressionante tirada de Pound:

“Americanos, nunca fizestes nada para vos curardes, maldição! Nada! Infestado o mundo, fez com que o nome da Inglaterra fosse maldito desde Pretória a Singapura até Calcutá. O seu centro é agora o outro lado do Atlântico por isso não vos devemos nenhuma gratidão se agora vos puserdes a devorar as energias vitais – Nem seria pecado se vos afundásseis afogados por um sistema que destroçou toda a cultura clássica…

“Aqui Ezra Pound, que fala de Roma. O significado de Churchill e do bolchevismo encontra-se nas valas de Smolensko.

E talvez tenhamos que ouvir certas vozes, mesmo à revelia dos tempos ou sem a sua concordância. Esperam-nos talvez súbitas revelações que sabemos ter escutado como um grito de advertência onde o eco se desvaneceu; nós, que tanto ouvimos e vemos, estamos em parte toldados para olhar um futuro comum e, no instante em que tudo for a selva da lei da sobrevivência e do mais forte, aí sentiremos a marca de todas as coisas anunciadas e elas repetem-se, como um longínquo coro grego que os nossos sentidos recordam.

“Alguma coisa aconteceu na Velha Europa, aconteceu alguma coisa na Europa e não sabeis o que foi. Não sabeis o que se passou, qualquer passo em direcção ao preço justo, ao controlo do mercado, é um acto de homenagem a Mussolini e a Hitler.”

Em tempos como este os escritores deviam era descer do pedestal e falar sem papas na língua. E lembra Céline: “L´homme n´est pas venu sur la terre pour devenir de la merde!»

Toda esta desdita é o mais fidedigno exemplo da crueldade desta época de desconcerto, toda a saga do pensamento que se escuta rouco e em brasa não é passível de nos fazer entender os «Cantares» e, porque de surdos se trata, no receptor ouvimos agora surdamente os roncos de alguns tambores de guerra que ficam sempre presentes nos disfarçados ouvidos dos bárbaros. De que a Europa é feita! De que a América é feita! Até a um coro ensurdecedor que transformou o mundo num duro lamento.

 

DAQUI A VOZ DA EUROPA.

ESCUTO EZRA POUND.

 

 

22 Nov 2016

O cinema em Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo contemporâneo vive numa afirmação dupla, por vezes paradoxal, entre local e global.  O cinema mais localizado do que local é a indústria-arte do séc. XXI. Desde sempre viu a difusão internacional como o território de excelência sem esquecer  a dimensão doméstica, ou dito de outra forma, o reconhecimento afectivo por parte do público do país de origem.

A produção cinematográfica exige sempre técnicos, actores, realizadores e escritores especialistas de argumento nos países, ou locais, de produção. Mas exige também, por diferentes razões de decisores públicos, políticas próprias, pensamento institucional.

Arte moderna por excelência,  o cinema nasceu com a modernidade, seja enquanto meio de narração, seja enquanto território de experimentação, seja documental, ou cinema de publicidade, o cinema foi e é construtor de visões,  comportamentos, atitudes, de formas de olhar o eu e o outro.

Diz Deleuze, seguindo uma tradição que remonta a Ovídio nas “Metamorfoses”, que as imagens não são duplos das coisas mas as coisas em si mesmas. As imagens são propriamente as coisas do mundo, e se assim é, o cinema não é o nome de uma arte-indústria, “ é nome do mundo”

É certo que o mundo não precisa cinema, ( o cinema tem 122 anos, é recente na sociedade humana), mas o homem precisa, a construção de narrativas, é determinante e necessária na construção do mundo humano.

Macau, é actualmente um dos laboratórios de ensaio dos rápidos processos de mudança  social que são vividos na grande China inventora do mais novo regime de organização política do Estado, que se consagra na formulação “um país, dois sistemas”. Por razões de identidade que resultam da sua particular história, é plataforma escolhido pela RPC para o desenvolvimento das relações económicas, políticas e culturais com os países do mundo lusofonia.

Desde sempre Macau foi uma cidade porto, lugar de chegada, partida e abrigo, de duas zonas do mundo culturalmente diferenciados, a Europa e o Oriente. Em particular foi e é o lugar de excelência para encontro e conhecimento entre Portugal e a China. Esta característica é fundadora da identidade da cidade e continua relevante hoje, neste tempo de novas configurações das Dinâmicas Sociais Económicas e Geopolíticas.

Vem isto a propósito dos continuados ensaios que são visíveis na direcção da construção de instrumentos que visam posicionar Macau enquanto cidade criativa, em que o cinema tem necessariamente um lugar a desempenhar.

Também na actividade cinematográfica Macau pode desempenhar um lugar único em que Ocidente e Oriente se cruzam, misturam, recriam. O já próximo Festival Internacional de Cinema de Macau começa com alguma turbulência com o abandono do consagrado director Marco Muller, no entanto, é de prever que o Festival se afirme relevante no quadro competitivo dos Festivais Internacionais de Cinema classe A.

Contribuirá em muito para visibilidade internacional do território. Quanto ao seu impute no desenvolvimento da indústria cinematográfica em Macau terá também obviamente relevância, no entanto, olhando os quadros de apoio ao cinema actualmente desenhados, verifica-se a ausência de legislação pensada para a co-produção, seja com os países da Lusofonia ou de outras geografias. Os concursos públicos existentes têm a obrigatoriedade do estatuto difícil da residência na RAEM, se por um lado este fechamento parece não corresponder à especificidade de Macau enquanto lugar de encontro e abertura aos diferentes mundos do mundo, também não está de acordo com o que o desenvolvimento da indústria cinematográfica no modelo de produção independente precisa, instrumentos facilitadores à co-produção. A co-produção, e talvez importe referir que há várias possibilidades de regular no interesse do desenvolvimento do cinema no território esses mecanismos, é seguramente uma das formas que mais pode contribuir para o desenvolvimento da actividade cinematográfica no território. Paralelamente parece igualmente interessante e possível a criação de uma licenciatura, embrionária de uma futura escola de cinema, na Universidade de Macau. São medidas estruturantes que cabem a quem pensa as estratégias de desenvolvimento da cidade, neste tempo que, como afirmou Elia  Kazan em 1986, “os filmes são o diálogo do mundo de hoje”.

21 Nov 2016

Nuno Moura, poeta e editor: “Estamos na Dinastia Flang”

[dropcap]A[/dropcap]lém do teu trabalho como poeta, desenvolveste recentemente um trabalho editorial, com a tua douda correria, onde tens publicado poetas tão diferentes como sejam o caso de Carla Diacov (brasileira) ou António Poppe, e de Raquel Nobre Guerra e Vasco Gato. Talvez os primeiros se enquadrem mais naquilo que tem sido a tua própria poesia, o que mostra uma elasticidade de gosto tão magnífica quanto rara, no nosso pequeno rectângulo encostado ao Atlântico. Por tudo isso, os meus parabéns! Quais os teus critérios para a edição de um livro?
Obrigado. Primeiro ter dinheiro para pagar à gráfica e à nossa compositora Joana Pires. Depois o critério vem com o próprio texto.

Aplicas os mesmos critérios aos teus livros, imagino. Estás a preparar um livro novo?
Vou corromper a Adília “é preciso desentropiar o critério todos os dias”, e ando com o Cavalo Alucinado, mas nem sempre estou para longas caminhadas na mata.

Hoje aceitarias editar em outra editora que não fosse tua, ou isso não faz sentido para ti?
Mais do que aceitar, eu desejo. Gostava muito de ser editado na Medula do Manuel A. Domingos.

Como chegaste a esta nova poesia brasileira? A Carla Diacov e o Diego Moraes li-os antes em revistas literárias de Curitiba, mas nunca pensei que pudessem ser editados tão depressa aqui.
Nos anos 80, 90 do século passado eu esperava dois ou três meses por um livro. Ia sempre nervoso aos Pedidos Internacionais da Livraria Portugal. Com aqueles funcionários adeptos da descontra, entre máquinas de escrever e Madeira, em número suficiente para se criar logo ali um sindicato. Agora alguém te diz ‘tens que ver isto, este autor’ e tu olhas e lês. E falas.

Começaste também muito recentemente uma colaboração entre a Douda Correria e a Demónio Negro, de São Paulo, com a edição de Senhor Roubado, de Raquel Nobre Guerra, no Brasil. Editar-se-ão de seguida Catar Catataus, de Paola D’Agostino, Fruta Feia, de Miguel Cardoso e o teu Canto Nono. Queres explicar melhor como funciona esta colaboração?
Troca de autores e textos. Ele tomou a dianteira e enviou-me alguns exemplares. São belos. Para quê estar a fazer aqui, à maneira da Douda, se podemos ter os, digamos, originais-na-prensa? O Vanderley faz 50 exemplares a mais e envia-me.

Recentemente afirmaste que consideras o António Cabrita o melhor poeta português vivo, e que isso causa muito espanto entre as pessoas. A mim, não me causa espanto, mas porque achas que as pessoas se espantam com isso?
Porque se calhar pensam que é algum ministro ou dirigente desportivo, sem desprimor algum. O presente nunca chega a tempo da escola.

Na China antiga, na época da dinastia Tang, o mundo mais poético que existiu na face da Terra, para se ser mandarim, isto é, empregado público, o teste final (entre outros) era escrever o seu próprio poema, embora os poetas pudessem não ser mandarins, como nos excelsos casos de Li Bai e Du Fu. Quão longe estamos hoje deste mundo? E achas que só pode melhorar, ou ainda vai piorar?
Estamos na Dinastia Flang, ainda usamos parafusos. Eu não seria um mandarim e, como diz a minha mãe ‘filho, eu não trocava isto por nada’. Normalmente diz isto de uma série qualquer de televisão.

18 Nov 2016

Variável dominante

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que se é e não o que se faz, se diz. Essa realidade equívoca. Da obra e da representação. De si. Da imitação, de uma camada de sentido, sentida, eventualmente, mas uma segunda instância. De ser, parecer ser. Uma tangência pontual por definição geométrica. O que se é no que se faz, como um mal feito mesmo na perfeição alheia e distanciada do que é feito. Elaboração da mente mas a voar para longe. Do que é afinal anterior, subjacente, íntegro e absoluto. O que se é. Intangível nesse absoluto. Atingível por camadas. Fragmentos de se ser. O que está ao alcance do olhar. E nunca, quase nunca a totalidade no que nos deixamos fazer, ser visível. Revelados por partes.

Como no papel da escrita. Branco, possível. A escurecer depois nuns pontos, pequenos nós, como grãos de terra, presos de letras avulsas de entre as infinitas possibilidades. Aquelas, por uma vez. Não outras. Todas as outras que não caem, presas numa outra página inalcançável. Como caminhos etéreos uns, visíveis outros, na disposição meticulosa das pedras e das ervas naturais. Das confinações físicas a fazer imperceptivelmente modular os passos até sem intensão, e a desembocar num sentido eventualmente imprevisto. Um caminho como texto escrito. Como este, menos óbvio do que se poderia querer ver. Mesmo depois. De onde se parte e onde se chega. Tudo variável. Como um caminho entre as árvores. Numa disposição indisciplinada de arbustos, ramos caóticos ou a viver a alturas imprevistas, a surgir de direcções que contrariam a ordem natural do crescer. Pequenos galhos e grandes braços caídos. Redes de folhagem que escondem depressões inesperadas do terreno, do lugar dos passos que afinal não são nunca a direito. O estalar das folhas secas, essa memória da infância a procurar distinguir ao olhar as que no chão produziam esse ruído, sabe-se lá porquê, apetecível. E aquelas que, menos secas, ou já húmidas frustravam esse ziguezaguear dos passos pela rua outonal, à procura de tão pequenino prazer. Como comer batatas fritas. Coisas talvez improdutivas do ser mas não do prazer. E um, como o outro, de tudo se faz. E no final a imagem. Uma de muitas. Uma pele de várias. E nela existimos? Na prova concreta do fazer, do caminhar, na forma passageira de tudo, o existir. Prévio mas já não palpável. Prova de ser ou de existir, não sei, de momento. Mas ser, é em geral uma existência impalpável embora inequívoca. Não sei onde. Mas ser encerrados nesse território irredutível de que só se manifesta um reflexo. O gesto temporal. Residual. Ser do corpo para dentro. Tem que chegar.

Tudo me perturba às vezes. O olhar límpido e intencional, o olhar turvo e sem lugar. As pessoas que desviam o olhar. As que não ouvem. Os medos dos outros. As suas frágeis matérias desconhecidas e quebráveis. Não saber.

Mais do que momentos. Pequenos, ínfimos mesmo, como rasgos de luz numa cortina-tempo. Por detrás da qual parece ser a realidade a ser. De passagem. Toldado momento-mundo. E passaram as palavras. E porque eram palavras-instante e não duraram, pensava-se que eram pouco verdadeiras mas é a alma que é plástica e o tempo que corre. E dos mesmos sentires se abeira de outros ângulos da mesma visão. Da mesma visão-palavra. De outro olhar-tempo. Prismático mas não oposto. Ou como organismo vivo, o olhar, as sensações, os sentimentos, agarrados a uma essência de núcleo escondido, mas em renovação epidérmica.

Mesmo numa respiração descompassada, numa batida latejante nas têmporas a demonstrar que um órgão a ressentir-se, muito do metabolismo continua a sua rotina microscópica e arrumada. Gosto de arrumação. Gosto mesmo demais, de ordem e rigor. Objectos paralelos entre si. Linhas rectas de verticalidade e horizontalidade. Perturba-me a obliquidade da queda. Da composição. Tento adaptar-me à desarrumação do mundo, das ideias que não têm tempo para se organizar. De palavras e linhas demais para o tempo. Tento. E a tudo o que é maior e não tem arrumação possível. E às brumas que ocultam e desocultam. E a realidade como uma terra de montanha, na secura e humidade específicas. Ou em vasos, e os minerais a alimentar plantas, mesmo nesse pequeno mundo de brincar. Essa terra onde ponho as mãos em dias demasiado etéreos, a compor o que é possível. Percebo porque me dói. São os grãos mais ásperos. Torrões ressequidos. Q uando me viro para esse lado na cama. Dores finas. Dispersas.

Ando a tomar palavras sem prescrição médica. É o que é. Algumas, amargas e amareladas, ou rosadas ou em branco, redondas ou alongadas. Algumas, a cair como pedras no estômago e que não há água que desfaça. Palavras e vitaminas, para fortalecer a insegurança. Mas tiram-me o sono. E associadas ao álcool, então, é melancolia a entornar o vazio instalado. Derramam-se-me na noite e acordam-me sem razão. Crescem, dão-me trabalho e tiram-me o sono preguiçoso. Fica ali a olhá-las exibindo-se nuas e perfeitas, em arabescos de coreografia invejável. Mas antes chamar-lhes pensamentos. Igualmente impróprios e intrometidos mas dentro do seu lugar como ocupantes de visita. Elas, mais convictas e arrogantes dançam exigentes e definitivas. Demais e a mais. Palavras-comprimido. Palavras que me colhem em jejum sem estômago para elas. Ando indisposta de palavras, pessoas e vidas.

Ah…Às vezes eu penso mesmo que vamos todos enlouquecendo. Com aquela crueza com que viro os olhos sempre para tudo, mas para começar e acabar sempre e com a maior veemência para mim própria. Não me poupo e seguramente menos do que a qualquer outro –  que não poupo, eu sei, dentro de mim, eu sei e não poupo – há um canal sempre desimpedido aí. Sempre limpo de máscaras e panos aquecidos. Um estreito que se atravessa a nado sem maior esforço do que o de uma respiração ofegante. E mesmo esta, sabe-se, pode advir de tantas emoções e tantas pequenas inseguranças, que não é de pregar susto de maior. Enlouquecendo de teatralidade, de experimentalismo sensitivo, de verdade no palco, de amoralidade. De imoralidade, de fantasia. De dispersão. De verdade. De cobardia. Enlouquecendo de coragem. De tudo. De desilusão e de ilusão feroz. De palavras demais e de palavras de menos. De não valer a pena. Nada. De tudo valer a pena, se a alma o suportar imaginar. De pensar os pensamentos e de pensar os sentimentos. Dos dilemas. Porque a certa altura tudo parece conduzir aí mesmo na mais escondida parte de cada um dos nossos olhares. Os antagonismos aparentes entre critérios e convicções, entre sintomas e verdadeiras causas profundas. E sempre um outro olhar a esculpir possibilidades de formas em nós. Penso. Penso mesmo. Mesmo naquela pontual euforia instalada no meio da maior perplexidade e impotência existencial. Coisa estranha. Em divergendo. Lírico, talvez. Descobridor. E um dia, abro a porta da rua, saio, e está ali o Batmobile. De certeza. E nos outros dias, alongo os passos para espaço mais amplo. Saio da minha rua–concha, da minha rua casulo e casa e da minha casa-pele, e caminho por lugares indistintamente só para depurar a respiração sem pensamentos de maior, naquela ocupação ligeira e ténue dos passos sobre passos que não dão muito espaço a espaços mentais. E caminho depressa, como sempre gostei de não caminhar devagar. Na rua. A lei das compensações. Deixar que o corpo adquira uma inércia firme e que seja o espaço a percorrer-me ligeiro como a vista numa janela de comboio. Em velocidade. A vertigem de caminhar em frente no tempo para não voltar atrás na memória.

Por isso é vital a urgência do caminhar. Ou construir paisagens vazias. Caminhos de vazio. Daí a serem mortas, mortos, vai todo um apocalipse. Gosto dos vazios e da serenidade do que está vago. Vago para preencher pausadamente de todo o possível. De livros brancos e de páginas em branco. Como todas as horas vagas. Para caminhar.

18 Nov 2016

Gincana de automóveis na Feira de Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m pleno Grande Prémio, escrevemos hoje sobre a primeira corrida de carros realizada em Macau, organizada por iniciativa do Sporting Club desta cidade, fundado dois meses antes, a 11 de Setembro de 1926 e inserida no programa das festas da Feira e Exposição Industrial.

Às 14 horas de Domingo, 5 de Dezembro, com uma enorme assistência ocorreu a gincana de automóveis, presidida pelo Governador interino Almirante Hugo de Lacerda. Encontravam-se inscritos dezoito concorrentes, cuja lista era a seguinte: o carro número 1, conduzido por A. Luz trazia como acompanhante a Melle. A. Brandão; o n.º 2 por Lo Yam-Man (Lu-Ia-Pat), levava ao lado a Miss Choi; o n.º 3 por Dr. Pedro Lobato e damizela Amália Nolasco; o n.º 4 por Henrique Nolasco e D. Orlinda Leitão; o n.º 5 por Dr. Sousa Afonso e Melle. Luísa Ambar; o n.º 6 por F. Borralho e damizela B. da Silva. A única condutora feminina, Melle. Angelina Santos corria no carro n.º 7 acompanhada por Avelar Machado e ficou em segundo lugar. Já o carro n.º 8 guiado pelo Eng. Brandão de Vasconcelos trazia como pendura Melle. Maria Pacheco; o nº 9, conduzido por D. João Vila-Franca levava ao lado Melle. Beatriz Nolasco; o nº 10 com Elísio Mendes e damizela Alice Ribeiro; o nº 11 com Dr. António Leitão e Mme. Maria Gellion; o nº 12, Rui de Menezes e a sua esposa; o nº 13, Ten. A. Machado e Melle. A. Santos; o nº 14, Carlos Silva e Melle. Celeste Vidigal; o nº 15, M. Ribeiro e Melle. G. Silva; nº 16, M. Borges e Melle. B. Ramalho; nº 17, M. Contreiras e Melle. Si-Ling e o nº 18, L. Rodrigues e Melle. L. Rodrigues. No percurso foram colocados vários obstáculos para criar mais emoção e dar mais interesse à prova. Havia o serviço de fiscalização da pista e para a classificação dos concorrentes, sendo o júri composto pelos Srs., Capitão-de-Mar-e-Guerra Ivens Ferraz, Coronel J. A. dos Santos e Eng. C. Alves. “Os prémios foram seis e ganhos pela ordem numérica ascendente, pelos automóveis concorrentes números 10, 7, 12, 15, 3 e 11. Um dos concorrentes do carro nº 11 referiu que não quiseram aceitar o respectivo prémio, por não ter sido atendida uma reclamação feita ao júri”. Por ocasião da gincana houve apostas sobre os concorrentes, na forma de aposta proporcional (pari-mutuel), pelo sistema das corridas de cavalos. Esta iniciativa reverteu com 20% da importância dos bilhetes vendidos a favor do Asilo da Santa Infância e o produto líquido foi distribuído por três prémios, cabendo ao primeiro 60%, ao segundo 25% e ao terceiro 15%. Os bilhetes premiados, que não foram pagos nesse dia, vieram-no a ser na sede do Sporting, à Avenida Ferreira de Almeida.

Se só a 11 de Outubro de 1914 circulou o primeiro carro em Portugal Continental, um Panhard et Levassor, de 1200 centímetros cúbicos e 3,75 cavalos, guiado entre o Barreiro e Santiago do Cacém pelo Conde Jorge de Avillez, já em Macau e ainda antes de 1906, o chinês Chân Fóng (陈芳, 1825-1906) foi o primeiro a importar um carro, um Chevrolet. Em 1907 existiam já sete automóveis e em 1911, apareceu o primeiro táxi. Os registos mais próximos que encontramos da data desta gincana são de 1928 e referem haver na cidade 134 carros ligeiros particulares.

Outros divertimentos

No dia anterior à gincana automóvel, a 4 de Dezembro, ocorreu às 21:30 no ringue, instalado no meio da Feira ou no cinematógrafo da Exposição, como noutro artigo de A Pátria vem referido, três combates de boxe entre jogadores de Hong Kong e Macau, tendo os últimos vencido em toda a linha. Nesse Sábado, despertando um enorme interesse entre o público, o programa tinha como ponto forte o combate de boxe a opor o mais afamado pugilista de Macau, o amador Sr. Pinto da Silva contra o Sr. Kid Raymond, profissional de Hong Kong e cujo palmarés era invejável, pois vencera por KO, ou aos pontos, os últimos dez combates que realizara, parecendo não haver rivais à altura. Ambos traziam dois dos seus alunos para complementar o programa e aquecer a plateia, jogando-se assim três combates de dez rounds cada um. O júri era composto pelo Tenente-médico João Rosa e o Tenente José Lopes Bragança por Macau e de Hong Kong, o Sr. Ligores e Noronha. O primeiro combate opôs João Conceição contra Batling Ilartino, tendo o representante de Macau vencido no segundo round. O seguinte foi entre Joaquim P. Góis e o representante de HK, J. Soares, que perdeu por pontos ao oitavo round. Por fim veio o combate mais esperado e o que trouxera toda aquela assistência ao recinto. Pinto da Silva venceu logo no segundo round Kid Raymond e se houve um certo desconsolo pela brevidade do combate, a vitória de Macau elevou os ânimos aos habitantes desta cidade, habituados nos desafios desportivos a perder para Hong Kong.

O programa para o feriado de 1 de Dezembro e dia seguinte, propunha no Campo da Feira uma importante festa organizada pelas tropas terrestres da guarnição militar da cidade. Apresentava “divertimentos nunca vistos em Macau, tais como, o combate de galos pelos timorenses, dança de guerra pelos praças indígenas de Moçambique, com lanças e cutelos afiados”. Outras surpresas não específicas estavam programadas e constaram de saltos suecos, corrida de velocidade de 80 metros, lançamento de granadas, corrida de bicicleta (negativa), assim referia A Pátria, de onde retiramos grande parte das informações aqui registadas. Realizaram ainda, corrida de estafetas (com sarilhos), de obstáculos e de púcaros, assim como luta de tracção com equipa de oito praças. Na preparação destes praças, para a festa ter o melhor brilho possível, concorreram vários oficiais, sob a orientação do Coronel Joaquim dos Santos. No dia 2 fez-se um jogo de futebol entre as selecções da Marinha e do Exército.

De referir que o preço da entrada geral no Recinto da Exposição Industrial e Feira de Macau custava 5 avos nota ou prata, ou 10 avos cobre. Nessa altura o jornal A Pátria custava 10 avos em prata. À venda havia também, para comodidade das famílias numerosas, ou colectividades, maços de dez e cem bilhetes, a custar respectivamente 50 avos e 5 patacas prata e podiam-se comprar antecipadamente na Direcção das Obras Públicas do Porto, na Livraria Portugália, na 1ª Secção à Praia Grande e na filial do Banco Nacional Ultramarino. Pelos 12 mil bilhetes de entrada para a Exposição, vendidos até ao fim da tarde do dia da inauguração, percebe-se o enorme interesse que esta teve na cidade e arredores, encontrando-se o recinto, com uma iluminação deslumbrante, até à meia-noite apinhado de visitantes.

18 Nov 2016

A denúncia da ilusão

Finkielkraut, Alain, A Derrota do Pensamento, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1988
Descritores: Filosofia, França, Luzes, Romantismo, Modernidade, 145 páginas
Cota: A-4-6-24

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeçamos o Alain Finkielkraut dos nossos dias e recordemos este notável livro escrito há trinta anos e que prometia um intelectual da estirpe de um Alain Renaut ou de um Luc Ferry. Não posso deixar de assinalar aqui que o livro que hoje me ocupa faz parte de uma curta lista de ensaios aos quais devo muito do que penso hoje em dia. Desses ensaios destaco, Racionalidade e Cinismo de Jacques Bouveresse de 1984, O Elogio do Cosmopolitismo de Guy Scarpetta de 1988, O Tempo do Indivíduo: Contribuição para uma História da Subjectividade de Alain Renaut de 1989, A Nova Ordem Ecológica de Luc Ferry de 1992, O Discurso Filosófico da Modernidade de Jurgen Habermas de 1990, Crítica da Modernidade de Alain Touraine de 1995. O Fim da Modernidade – Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-moderna de Gianni Vattimo de 1986, Contingência, Ironia e Solidariedade de Richard Rorty de 1989, O Inumano de Jean François Lyotard de 1997, Para uma Crítica da Economia Política do Signo de Jean Baudrillard de 1995 (Entre outros). Todos eles foram importantes mas algumas por motivos opostos aos que consagrei no quadro das minhas convicções. O livro de Alain Finkielkraut foi até um dos mais importantes pela forma como coloca em oposição as luzes e o romantismo. Quem quiser adquirir a consciência da incompatibilidade radical entre a filosofia da Aufklarung e o ideário contra-revolucionário das ideologias dos Volkgeists, tem aqui um momento de ouro. Em cima disso só tem que ler o Proceso Civilizacional de Norbert Elias e fica definitivamente vacinado contra todas as formas de enraizamento e localismo. Seguramente, que depois destas lições, dificilmente quererá voltar aos lugarejos de que fala Steiner e só o Mundo poderá satisfazer a sede de humanidade e humanismo, universalidade e espírito livre e cosmopolita.

O pretexto do livro é mostrar o triunfo da barbárie sob as suas diversas formas, desde o fanatismo ao kitsch. Desde o império do obscurantismo religioso e ideológico a coberto da massificação até ao relativismo ético e estético concentrado na expressão do populista russo de que Shakespeare vale tanto quanto um par de botas, a coberto da mesma massificação; é um novo paradigma que está em marcha. A atribuição do prémio Nobel a Bob Dylan é apenas o sinal mais recente da revolta contra o Espírito a coberto agora já de uma ideologia populista e demagógica: ‘o politicamente correcto’. As massas chegaram finalmente ao poder que ambicionavam, ao poder intelectual e cultural, não porque se tenham alçado a ele mas porque pressionaram no sentido do rebaixamento do Espírito (volto a insistir), da genialidade, da excepção dos grandes pensadores e artistas, doravante atirados para uma situação de quase marginalidade. Há portanto que enaltecer esta obra como outras das quais destaco agora de passagem a Sociedade do Espectáculo de Guy Debord, O Sistema dos Objectos de Baudrillard ou a A Cultura Inculta de Allan Bloom. Este último foi particularmente truculento pois estendeu o fenómeno de decadência à educação partindo do facto de que sendo um ensaio sobre o declínio da cultura geral acabou por nos mostrar como a educação superior vem defraudando a democracia e empobrecendo os espíritos dos estudantes de hoje. A crise ocidental é sobretudo intelectual e depois decorrente da confusão estabelecida onde a razão se confunde com a criatividade acaba por se tornar uma crise moral pois o niilismo acaba por triunfar a soldo do relativismo axiológico, tudo isto debaixo do imenso cobertor ideológico da tolerância, uma tolerância sem princípios ou mesmo deletéria.

Para lá da questão cultural e de mentalidade é particularmente importante a análise crítica que o autor faz à cultura do romantismo, estabelecendo uma dicotomia muito clara e pertinente entre o romantismo e a filosofia das luzes. Da artificialidade contra o naturalismo organicista, da razão contra o costume e o instinto, do universal contra o local, do espírito contra a irracionalidade, da modernidade contra a tradição, da Sociedade contra a Comunidade, do Indivíduo contra o Rebanho, da positividade legal contra o direito histórico, do cosmopolitismo contra o enraizamento.

Volto a outro dos grandes objectivos do livro, a condenação do relativismo axiológico subordinado ao multiculturalismo. Desde a lição de Claude Lévy Strauss, pronunciado na Unesco em 1952 e intitulado sob a forma de livro, através da designação da conferência: Raça e História, que o relativismo multiculturalista viu as portas escancaradas relativamente à questão do Outro. A história mais recente tem vindo a mostrar a falência completa do multiculturalismo e a mostrar ainda a falência das ciências sociais e humanas relativamente ao tema. No quadro restritivo de um pensamento pretensamente científico sobre o Outro, o que aconteceu foi o triunfo do paternalismo ou do relativismo e em muitos casos o racismo manteve-se presente e vivo. É essa ilusão que Finkielkraut denuncia.   

Biografia 

Alain Finkielkraut nasceu em Paris no ano de 1940, concretamente a 30 de Junho. É um normalien da Escola Normal de St. Cloud, onde entrou em 1969. Judeu de origem polaca ensina hoje em dia Cultura Geral na Escola Politécnica. Foi eleito membro da Academia Francesa em 10 de Abril de 2014. Vejo-o ligado e integrado no grupo dos novos filósofos, grupo esse a que pertenceram também Pascal BrucknerAndré Glucksmann e Bernard-Henri Lévy. O mais intrigante no percurso de Alain Finkielkraut é que depois de La Défaite de la Pensée, que analiso neste meu texto, e de La Sagesse de l’Amour, obra dedicada a Emanuel Lévinas, veio por via de uma ligação militante ao judaísmo a cair em posições anti-modernas e até neo-reaccionárias como muito bem salientou o sociólogo Daniel Lindenberg no livro Le Rappel à l’Ordre. O mais grave é que Alain Finkielkraut involuiu até ao ponto de assumir pontos de vista racistas. Para mim, isso será o mais chocante mas não é menos chocante o facto de defender hoje posições hostis à modernidade e ao progresso, chegando a criticar os direitos humanos, os quais pela paixão imoderado pelo ‘outro’ alteram, em sua opinião, a reflexão política. Criticar os direitos humanos não é proibido, nem os direitos humanos são da ordem do sagrado, mas nos termos em que o faz, de modo bem diferente do que faz por exemplo Slavoj Zizek, isso releva de uma atitude profundamente reaccionária, onde faço notar uma certa nostalgia pela pré-modernidade e por convicções orgânicas e holistas. É a negação completa das suas teses da Derrota do Pensamento, que li com tanto agrado. Mais do que um neo-reaccionário Alain Finkielkraut incorpora actualmente o exército dos inimigos da Modernidade. Saliento aqui apenas as suas obras mais antigas como é o caso de Le Nouveau Désordre amoureux (A Nova Desordem Amorosa), em colaboração com Pascal Bruckner de 1977, La Sagesse de l’Amour (A Sabedoria do Amor) de 1984 e La Défaite de la pensée (A Derrota do Pensamento) de 1987.

17 Nov 2016

Des-fotar: contra o vórtice das imagens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]conteceu em Maputo. Dois casais. Um deles tinha uma teleobjectiva e entretinham-se a tirar fotos em grupo. Estranho, faziam tudo para tapar a cara. Intrigava-me esse gesto de antepor um punho, três dedos abertos, a mão cerrada entre o clic e o rosto. Punham-se em pose para, afinal, ocultar a cara. Às duas por três, uma transpôs o murete que separa a esplanada do passeio e pediu à amiga, tira-me uma foto. E um segundo antes da outra carregar no botão ela disparou o braço para a frente com os dedos em vê a tapar o rosto e nomeou a coisa: Des-foto. Era um gesto pensado e por desconcertante que pareça tem atrás de si um conceito.

A Des-foto é o oposto da Selfie ou a sua simétrica paródia?

Não imagino se a Des-foto é invenção deles ou a imitação de uma vaga que pela primeira vez vi aflorar em solo moçambicano. A Des-foto organiza uma tensão na imagem: o sujeito aderiu à representação mas suspendendo-a, antepondo à sua imagem algo que a trunca. É uma espécie de burka da fotografia?

Por outro lado, se isto for uma moda, corresponderá este novo rito a uma reacção epidérmica, contra-fóbica, à saturação de imagens em que naufraga o mundo – ainda que usando o pêlo do cão agressor para curar a mordidela?

Gosto da foto que encima esta crónica. É de um fotógrafo moçambicano e chama-se….. O visado reage, como se avisasse: “eh, sou pobre mas resta-me o direito à minha imagem!”. E contra a imagem da sua pobreza contrapõe a dignidade de manter isso em reserva, exige o recato do silêncio.

Uma vez viajei pelo Yémen com um realizador que para disfarçar o seu mal-estar, naquele mundo distintíssimo do nosso, se armava com duzentas máquinas a tiracolo. Por milhares de livros que tenhamos lido, por fotos que tenhamos visto, por volumosa que tenha sido a informação digerida, quando estamos no terreno é o corpo quem reage e não a nossa armação racional. Ele defendia-se com a brutalidade do seu aparato tecnológico. E só conseguia lidar com a fobia que o tomava através da mediação da imagem, do antídoto da distância.

Atravessávamos Hadramouth, um longo oásis ligado às antigas rotas das especiarias, e vimos um grupo de pedreiros a amassar tijolos com a mesma técnica dos tempos bíblicos. Eu dispunha-me a fazer uma reportagem e parámos o carro. Ele correu, para despachar o serviço, e antes de qualquer conversa, do mínimo protocolo, rondou os pedreiros como um urubu e clic, clic, zás, catrapás, colheu duas dúzias de imagens em cima dos atónitos iemanitas. Instalou-se um clima de hostilidade que impediu qualquer conversa útil: os pedreiros dispensavam ser souvenires, e como tínhamos agido sem consentimento saímos dali de mãos vazias e, por sorte, vivos.

Sem consentimento: é assim que mais de metade das imagens percorrem o mundo, através das redes sociais, das revistas, dos canais televisivos, formatando opiniões a partir de simulacros destituídos de contexto. É o modo mais perigoso de sobrepormos à realidade “um banco de irreais” que deformam a nossa percepção e a embaraçam em estereótipos e lugares-comuns que nos coarctam o raciocínio. Temos de reaprender a pensar para-além das imagens, a desnaturalizá-las, mais ainda quando com o advento das imagens digitais se torna suspeita a velha máxima de que “uma imagem vale mil palavras”.

Pior, não apenas proliferam as imagens em que não há nada que ver, como assistimos, como insinuou Braudillard, a uma escalada do politeísmo que tem agora nos objectos e nas suas imagens o seu avatar: «Hoje, todas as coisas querem manifestar-se. Os objectos técnicos, industriais, mediáticos, os artefactos de toda a classe, querem significar ser vistos, ser lidos, ser gravados, ser fotografados. Cremos fotografar tal ou qual coisa por prazer e em realidade é ela que quer ser fotografada nada mais somos que a figura que os põe em cena, secretamente movidos pela perversão auto-publicitária de todo o mundo circundante. (…) Já não é o sujeito quem representa o mundo (i will be your mirror!): é o objecto quem refracta o sujeito e, subtilmente, por meio de todas as nossas tecnologias, e lhe impõe a sua presença e a sua forma aleatória.»

Dir-se-ia, estamos possessos.

Será por isso que uma democracia apoiada sobretudo na retórica das imagens é uma democracia enlanguescida, que já não reflecte no significado das suas emoções colectivas e se limita a traduzi-las em espectáculo? Eis o triste ensinamento que nos trazem os “talk-shows”, cujo formato impede o raciocínio de desenvolver-se e obriga à lógica redutora do slogan, os “reality shows”, os últimos episódios da democracia-capturada-pelos-media, no Brasil, e a deprimente campanha para as eleições nos EUA.

Temo que Des-fotar não passe de mais uma moda idiota, mas se trouxer a alguns a necessidade de reflectir sobre o que é uma imagem, o que é uma representação, e se os levar em conformidade a proceder a uma espécie de “economia das imagens”, constituirá, afinal, um acto ecológico. E talvez ajude aqui um dito de Blanchot, que podemos usar como lema: “todos os dias há uma coisa para não ver”.

17 Nov 2016

Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xiste uma diferença substancial entre culpa e vergonha. Existe uma diferença substancial entre sentirmo-nos culpados de algo e sentirmo-nos com vergonha de algo. Para nos sentirmos culpados não precisamos necessariamente de sentir vergonha e para termos vergonha não precisamos necessariamente de ser culpados. É exactamente aquilo que parece se passar com o caso da demissão de Marco Muller da direcção do Festival internacional de Cinema. O culpado não tem vergonha de como se porta, e nós, pessoas da cultura de Macau, sentimos vergonha. Sentimos vergonha que Macau protagonize continuadamente o desrespeito por qualquer ideia de dignidade para com quem trabalha e dá o melhor de si pela evolução da cultura em Macau. O pior de tudo é que olhamos para o que aconteceu sem surpresa, ora porque somos – também nós programadores e artistas locais repetidamente tratados de forma semelhante, ora porque o vimos acontecer vezes sem conta em relação a tudo.

A oligarquia muito específica de Macau e à qual eu me referia no texto da semana passada antes de passar à situação dos Estados Unidos está, em Macau, sempre descaradamente em prática e quem tiver o assombro de a desafiar sofre com isso. E sofre porque quem beneficia desse estado oligárquico tudo faz para destruir ou apagar quem tem o arrojo de questionar o establishment da cidade.

Repugnância existe mais ou menos em oposição a atracção. Isto para dizer que se o Festival Internacional de Cinema era atraente por ter uma figura de tanta importância na sua direcção torna-se agora repugnante pelo modo como se trata essa pessoa. E este sentimento de repulsa associa-se ao da vergonha quando se pensa no modo como uma determinada associação (MFTPA – Macau Film and Television Production Association) se acha no direito de interferir, manipular, abusar, e ultrapassar as decisões de quem foi contratado para dirigir o festival. Vergonha pelo modo como Macau mais uma vez falha e se maltrata pelo modo como trata uma pessoa com tanta qualidade e que tantos benefícios poderia trazer à cultura de Macau. Vergonha pelo desrespeito para com a pessoa e por não se mostrar ter um pingo de carácter no processo avançando para tribunal em vez de tecer um agradecimento pelo trabalho feito agindo de forma adulta independentemente da diferença de opiniões.

As pessoas que, num processo como este, avançam para tribunal não merecem ser chamadas profissionais. São pessoas que mostram não ter maturidade nem classe para fazer aquilo que estão a fazer. As pessoas que fazem este tipo de coisas são exemplos do vírus continuado do amadorismo existente debaixo da capa do talento local onde apenas se enriquecem a si e que em nada beneficiam a sociedade. Estas pessoas não têm lugar em organizações de eventos culturais. Estas pessoas não respeitam o outro. A estas pessoas não pode ser conferido poder numa área tão importante como a cultura.

Agora voltamos aquilo que conhecemos. Voltamos àquele estado umbilical onde somos olhados de fora com desconfiança e até desprezo por aquilo que representamos. E é esta a santa sina de quem faz cultura em Macau. Para poder ambicionar a ser-se minimamente reconhecido fora de Macau tem-se que: ou dizer que não se é de Macau, para não levar logo com a etiqueta do jogo, do mau ou muito mau, e para evitar aqueles sorrisos condescendentes de quem se controla para não rir directamente na cara; ou tem-se que, através de um trabalho de excelência, conseguir ultrapassar o estigma local do benefício de uns em detrimento da qualidade – prática que durante décadas tem prejudicado a sociedade. Poucos conseguem ser reconhecidos fora de portas e os que conseguem quando voltam à terrinha voltam a ser tratados da mesma forma porque são uma ameaça para quem beneficia financeiramente com todo o circo oligárquico, numa pantominice que exaspera qualquer pessoa séria. A cidade do entretenimento, onde se confundem todos os valores da ética e onde se força a verdadeira cultura e arte a definhar, é nesse sentido uma vergonha.

Macau não está 50 ou 100 anos atrasado culturalmente. Macau simplesmente não existe. E não são patos gigantes, paradas ou carrinhos de choque que a colocam no mapa. Macau não existe porque não quer existir. Porque se quisesse existir percebia que há artistas e programadores de Macau com desempenhos elevados ao nível do discurso contemporâneo, que se tornam internacionais devido ao seu talento, que são apreciados e reconhecidos em festivais, prémios prestigiantes, bienais e Museus no ocidente, na  ásia e no continente, e que em Macau são tratados da mesma forma que se tratam diletantes ou estudantes do secundário. Macau não existe porque há já muito tempo que deveria ter percebido que num mundo global os directores de Museus e festivais são pessoas com cartas dadas na área e não funcionários públicos. Macau não existe porque não respeita uma lenda do cinema mundial e ao não a respeitar não se respeita a si própria.

Para terminar há-que recordar que o mesmo grupo económico que está ligado à MFTPA está também ligado à estranha saída do coordenador do Grande Prémio de F3, que estava no lugar desde 1983, a cerca de dois meses do evento. O mesmo grupo económico que gere os fundos de 55 milhões para o Festival Internacional de Cinema dos quais 20 são das finanças públicas. Coincidência ou piadas de mau gosto que custam muito dinheiro? A cultura em Macau é um cálice que antes de ficar cheio se estilhaça pelo ar. Macau é o perfeito exemplo da Lei de Murphy: “Qualquer coisa que possa correr mal, irá correr mal”.

17 Nov 2016

O presente de Hitler ao Extremo-Oriente 犹太人在中国

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] História dos Judeus na China vem de longe, remonta pelo menos ao séc. VIII. Também durante o Nazismo muitos vieram à procura de refúgio na “terra dos dragões”.

A economia mercantil da antiga China atraiu muitos comerciantes judeus. Viajando através da Rota da Seda, muitos deles instalaram-se na parte ocidental do País. Os judeus foram oficialmente aceites em 960 DC na cidade de Pien-Liang (Kaifen nos dias de hoje). Construíram a Sinagoga da Pureza e da Verdade, a primeira na região, em 1163. A comunidade foi crescendo nos oito séculos que se seguiram, atingindo o seu auge no séc. XVII, com 5.000 membros. Contudo, o período que se seguiu trouxe guerras, pobreza e isolamento religioso, provocando um declínio significativo da comunidade.

Mas em Xangai a história dos judeus é totalmente diferente. Conhecida como a “Pérola do Oriente”, Xangai recebeu, durante a II Guerra Mundial, cerca de 30.000 refugiados judeus, dados que deveriam ser acrescentados ao Registo da Memória do Mundo da UNESCO.

Em 1845 Xangai foi forçada a abrir as suas portas ao comércio externo, por imposição dos Tratados unilaterais que se seguiram às Guerras do Ópio, e uma rede de proeminentes famílias de Judeus Sefarditas – os Kadoories, Hardoons, Ezras, Nissims, Abrahams, os Gubbays, e, muito especialmente, os Sassoons – rumaram à cidade. Na altura, faziam parte da elite dos muitos ocupantes ocidentais da zona.

Pequena, mas poderosa, esta classe de comerciantes financiou muitas das Mansões Belle Époce construídas no distrito de Bund, numa versão local da Ringstrasse, em Viena. O Cathay Hotel, propriedade de Victor Sassoon, foi concluído em 1929 e tornou-se a “jóia da coroa” do Bund, o centro da vida social dos judeus da cidade. Neste sentido, Xangai é possivelmente a Maior Cidade Judaica Alguma Vez Construída. Pouco depois, em meados dos anos 30, chegaram os refugiados, fugidos da Alemanha Nazi. Nessa altura a comunidade judaica de Xangai aumentou consideravelmente, atingindo um número próximo dos 30.000 membros.

Embora os refugiados que se instalaram em Xangai vivessem certamente bastante melhor do que os seus familiares e amigos que ficaram para trás, na Europa, a vida no Extremo-Oriente não deixava de ser conturbada. Em Xangai, inicialmente tudo parecia promissor aos olhos dos judeus alemães acabados de chegar, pouco depois da subida ao poder de Hitler. Muitos deles eram médicos e dentistas. Aparentemente Xangai ficou tão grata pela vinda de pessoas com estas qualificações profissionais que um jornal escreveu num destaque: “O presente de Hitler ao Extremo-Oriente”.

Sam Sanzetti não era médico. O seu verdadeiro nome era Semyon Liphshitz e era fotógrafo. Chegou a Xangai em1922. Depois de trabalhar como aprendiz, abriu o seu próprio estúdio em1927 e tornou-se um dos mais famosos fotógrafos de Xangai. Trinta anos depois mudou-se para Israel, onde permaneceu até à sua morte em 1986. Sanzetti fez cerca de 20.000 retratos de habitantes da cosmopolita Xangai. Fotografou a sépia e a cores trabalhadores, figuras da alta sociedade, mulheres, famílias, crianças, enviados diplomáticos, figuras públicas famosas, etc. A imagem de marca de Sanzetti foi composta pela compleição suave dos seus modelos, pelo olhar intenso, a postura marcada, a beleza feminina e a inocência infantil. Os seus retratos deram origem a uma nova marca “O Xangai look”.

16 Nov 2016

A pele de um independente

Horta Seca, Lisboa, 12 Novembro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre em dúvida, sempre em dívida. Podia tatuá-lo no braço só para me poupar ao trabalho de responder à quotidiana pergunta: como vais? Ou nos cada vez mais frequentes debates sobre edição: defina lá o trabalho do editor independente, se faz favor. Independente tornou-se a minha segunda pele – ainda que não perceba de quê, tantas são as dependências –, do mesmo modo que abysmo passou a primeiro nome: abysmo de joão paulo cotrim.

Estaremos sempre em dívida para com os autores. Cabe-nos ajudá-los a apurar o veneno do texto, a desenvolver o invólucro certo capaz de inocular a potencial multidão dispersa. Não basta um qualquer, tem que ser o leitor: inteligente e conhecedor ou emocional e dedicado, se possível uma hábil mistura de ambos. Capaz de admirar a vanguarda, sem esquecer as tradições, esforçado para reconhecer a explosão das estruturas narrativas, ainda que aceitando dançar com a frase fulgurante, enfim, prazer e esforço algures no cruzamento de físico teórico com groupie ou de bailarina clássica com adepto de futebol. Além dos direitos, claro, no confronto da prática que dá corpo ao livro, esperam ainda que os ajudemos no despertar da vocação: levá-los à frase, ao género, ao tema em que se cumpram.

Duvidaremos sempre do caminho. Isto não é tanto um negócio, mas uma maneira de ver o mundo, de estar no centro das ideias, da criação, da discussão, das coisas. Duvidamos da estratégia, dos tempos, das parcerias. Se corremos contra o tempo, se não devíamos olhar para trás na vez de procurar o futuro. Duvidaremos se não haveria ainda mais uma volta a dar, se não deixámos escapar uma gralha (e deixámos, pois). Se o recusado não era merecedor de segunda alternativa. Se o editado não era merecedor de recusa. Duvidaremos sempre de que tenhamos feito tudo, de que os argumentos oferecidos eram exactos, se estavam afiados como x-acto.

Servirá isto para alguma coisa? Azar. Se estamos, como Wile E. Coyote, no meio do precipício, o melhor é seguir em frente na vez de olhar para baixo. E cair.

A Tout Livre, Paris, 23 Setembro

As rentrées tendem a ser infernais. O ano passa a correr e parece que uns bons dez meses se espatifam contra a montra do Natal. O ano dos livros há anos que dança a mesma dança. Dos pleonasmos, portanto, uma das mais graves maleitas do mundo editorial. Esta reentrada foi quente como bólide celeste rasgando a atmosfera. Contudo, não poderíamos ter tido melhor maneira de comemorar cinco anos de abysmo do que a edição da Chandeigne, por via do empenho da Anne Lima, da bela tradução de Autismo, do Valério, assinada por Elisabeth Monteiro Rodrigues. Foi muito bem recebido pela crítica, nomeado para o Prix Femina, que só não venceu, confirmado por várias fontes, devido às movimentações politicamente correctas que o entregaram a um jordano. Os prémios vivem bastante de correntes de ar, e constipam-se. Saltemos.

Este contacto com o sistema editorial francês, que lançou por esta altura quatrocentos e tal romances e mais de uma centena de romances, sublinhou-me mais as fragilidades do português. Descontemos por ora a diferença estrondosa de um país que gosta de livros, campeonato que Portugal perdeu há anos. Ali, veja-se, os distribuidores e os livreiros lêem os livros. Em Maio, em encontro dos editores com as principais distribuidoras, todas ao barulho, grandes, médias ou pequenas, foram apresentadas as novidades, algumas delas já impressas. Autisme circulou em pdf, mas foi o suficiente para tocar a parte fria da cadeia antes de chegar aos entusiastas: os livreiros. A eles se deve, estou em crer, a fortuna que o romance está a ter [a entrar em segunda edição, por estes dias]. Fui testemunha de um exemplo desse entusiasmo, logo no dia do lançamento, em conjunto com novos títulos do Gonçalo M. Tavares e do Valter Hugo Mãe, mas basta percorrer, no mural das Editions Chandeigne as inúmeras fotos de montras e dos coup-de-coeur, um pouco por todo o país, para perceber que não foi caso único. As apresentações de Quentin Shoëvaërt-Brossault foram de uma profunda simplicidade. Era apenas um leitor, em modo partilha. Fazem-nos tanta falta os leitores.

Centre Pompidou, Paris, 24 Setembro

As filas já eram grandes, mas agora são enormes para garantir que não levamos kalashnikovs para os museus, enfim, além das que já lá moram. Pensei que a exposição pop, Beat Generation – New York, San Francisco, Paris, acrescentaria ainda mais culpas do que Magritte, a sua parceira no andar mais rente ao céu, na mais bela panorâmica da cidade. Pisamos os telhados antes de entrar nos subterrâneos da arte, parece-me programa. Estava errado. As multidões abarrotavam as salas do Magritte, afinal pop. Paris reconciliou-se com o ignorado de há umas décadas? Que poder de atracção possui este óbvio inimigo do óbvio? As imagens dizem muito mais do que mostram e inteligência pode bem ser espectacular e lúdica. Que prazer ler primeiro os títulos e procurar a copa a partir desta raiz! Ou vice-versa.

A Beat apresentava-se com um eixo em torno do qual orbitava tudo o resto, que foi muito e variado: On the road, de Jack Kerouac, feito estrada sobre uma mesa. Ao longo de dezenas de salas podíamos atender telefones e ouvir Giorno, ver filmes com Dylan, gastar horas nas legendas das fotografias de Ginsberg, ler e ouvir Burroughs, Ferlinghetti, Corso, passear por instalações, pinturas, documentários, cartazes, fanzines, colagens, cut ups, perder o olhar nas fotos de Robert Frank, até à Dreamachine, de Brion Gysin, que nos põe a sonhar acordados. Desde o dadaísmo, mais coisa, menos coisa, se pensarmos em movimento literário temos que contar com as outras linguagens. E que cada uma conte as outras.

S. Luiz, Lisboa, 13 Novembro

Arnaldo Antunes em concerto. A energia é arrebatadora e o tom metálico estica os sentidos da língua tuga até altos penhascos. De súbito, uma declaração de amor ao leitor: «Se sou voraz, me sacie./Se for demais, atenue./Se fico atrás, assobie./Se estou em paz, tumultue.//Você é que me continua.»

16 Nov 2016

Furor e mistério

Saber que o mal vem sempre de mais longe do que pensamos e que nem sempre morre na emboscada que lhe lançámos.
René Char

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sta é a obra que todo o poeta gostava de poder reunir sem lhe arderem os dedos e secarem os olhos à medida que vai percorrendo o ciclo do tempo criativo com a gravidade dos que precisam de unir as pontas destes véus por vezes tão soltos, tão sós, tão perdidos, entre as multidões de opacidade vária em que o mundo se tornou, podendo fazer de um poeta, também, um ser em desintegração. Só que, ele tem esse fio de prumo no acento de todas as fórmulas por onde desliza, e em mistério e pensamento, reúne o que esse divino imanente que o habita o manda interpretar. Ao contrário da lixeira poemática dos dias em que se tornaram as referências, com actos isolados e “papéis bordados a tinta” sem nenhuma intimidade com a estrutura poética de uma vida, aqui, isso nunca era passível de ter acontecido. Char, abandonou os pragmatismos da vida comum  para interpretar um destino e fê-lo na singular e alquímica experiência de  um iniciado. Coisas que se não forem exactamente assim, jamais serão o que quer que seja que  valha a pena contemplar.  O poeta René Char não era outra coisa a não ser um  poeta. Não era um fazedor poemático isolado, e isso, só por si, é de um maravilhamento sem limites, nós, os que nos damos, não suportamos a acumulação de funções, nós, os que amamos , amamos sempre, e mais, a mesma coisa, aquela com que nos casámos nos dias felizes dos juramentos eternos.

Nenhuma leviandade, nenhum cansaço, nenhuma infidelidade entram no imenso espírito de um poeta, não pode viver com a fealdade de uma traição nem com uma permanente falta de atenção para consigo num esquecimento sem memória, pois que ele constrói e une todas as memórias e por vezes, a falta de rigor e o desconhecimento  dos outros face à sua,  sempre, e naturalmente, gentil pessoa, abrasa-o, pois que não sabe como encaminhar os outros  e não entende a distância que o mantém tão isolado. Sim, a Humanidade não é polida, nem sensível à sua existência neste mundo, muitas vezes mandam-no fazer coisas que ele só de ouvir se envergonha, pois não sabem, que o seu pacto é uma fera consciência que não sabe  transmitir numa linguagem imediata.  No entanto, há que viver, até para continuar fazendo a obra, viver é muito abstracto, e, se não houver uma causa, um amor, uma demanda… para que serve uma vida? Para que serve o prazer isolado dos dias sem um fio condutor de alguma eternidade?

Neste momento histórico vivemos uma interface programática de incentivo à criatividade, só que, as pessoas andam  na mansidão terrível dos regimes como se cumprissem pactos com eles, e, na profunda superfície de vidro vazio « Furor e  Mistério» não está, por que para estar, seria preciso uma natureza religiosa, uma espécie de êxtase perante o abismo daquilo que é o vazio e o desconhecido , era preciso, entretanto, que a palavra fosse uma lava de matéria ardente para ser desocultada:  nada disto nos dita nestes  dias dos frémitos do esvaziamento pelas explicações indevidas,  como se tudo fosse explicadamente  acessível e em tudo tivéssemos que orientar o pequeno mundo que vai sendo o global instante de um reconhecimento vário.

Se há uma« Homenagem e Fome» em verso livre numa destas páginas, ela transmite o mundo de Elliot junto daqueles ossos que se tornariam vida….- “Hão-de viver estes ossos?”- Aqui é uma  Mulher e não a Senhora de Elliot, toda semente para feras ansiosas, numa hora esteva de ossadas…. daquele homem que para melhor a adorar recuava indefinidamente….com esta sorte sabia então que a terra não iria morrer e a fome era só o tormento de uma espera.. ..- Perguntar-me-ão, do poético da  composição, pois que nada existe de mais poético que a carga de uma insuportável vontade   que não se rende ao espaço da diversão narrativa que retira a força da tenção.   Dar às pessoas uma dose articulada de resultados é adormecê-las, e ao manter a máxima inquietude, a linguagem,  é o puro exercício poético.

O amor que em tempo de consubstancialidade assume o integrar o outro é mais que possessividade, é a legenda de uma absorção  radical  que se deseja, e « Allégeance» é um fenómeno sonoro de longos mistérios a cumprir:

Dans les rues de la ville il y a mon amour, peut importe oú il va dans le temp divisé. Il n´est plus mon amour chacun peut lui parler.

il ne se souvient plus qui au juste l´aima et l´éclaire de loin pour qu´il ne tombe pas.

Nós que atravessamos tão sós os nossos instantes, que trabalhamos para as auroras como se as conhecêssemos, que ficamos  nos limbos das terras alheias, que não tendo chão, também perdemos o gosto de  andar, não estamos nos locais que outros deviam ocupar. Ou estamos? E se sim, por que não os ocupam?  E se estamos por que não fazemos  pontes? Toda esta mágoa…este tecer, e ler a beleza que aqui está, nos faz…não sei, prisioneiros, e depois não mais estaremos juntos sorrindo com o gosto dos dias nos nossos rostos….

Char, nesta bela recolha diz que o poeta vive na maldição, isto é, assume perigos perpétuos e renovados do mesmo modo que recusa, com os olhos abertos, aquilo que outros aceitam com os olhos fechados: o proveito de o ser. Passando por todos os graus solitários  de uma memória colectiva, da qual as regras do jogo o excluem.

Neste imenso brilhantismo incandescente faz a obra  cujo resultado é mais do que podemos suportar, e, no tempo das leves brisas estas Fúrias tão gentis revolvem a nossa natureza que deve estar disforme de tanta voz dissonante e matéria volátil, nós que agarrados às Barcas aguentamos os lemos, não nos atiramos à água por medo da fúria magnética. No fundo as sereias cantam…mas, quem as encanta são ainda os poetas que presos aos mastros continuam a misteriosa Viagem.  E agora que as correntes se foram nos silêncios dos cânticos, nos vazios dos mares,  talvez não se entenda por que se morre nas travessias das guerras que preparámos só  por não  sabermos compor. Sempre que deixamos os Ofícios dos Mistérios os mares tornam-se grandes sepulturas, e os nossos olhos, secam, para não ler o mapa de um mundo que  se liquefaz e se desfaz.

« Viver com semelhantes homens»  tenho tanta fome… durmo sob a canícula das provas. Viajei até à exaustão, a fronte sob o enxugadouro nodoso. Já não é a vontade elíptica da escrupulosa solidão… mostrai  os vossos desígnios e essa vasta abdicação do remorso!

Tanta gente!  São nossos irmãos.

15 Nov 2016

O preço das casas

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]orria o ano de 2002, e a editora Gótica lançava um livro de poesia chamado O Preço das Casas, de Joaquim Cardoso Dias. Livro com 62 páginas e 40 poemas, divididos em duas partes: “Entrada de Emergência” e “De Uma Porta à Outra”. O título, somado à inscrição de Ruy Belo, antes do início do livro – Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade – sugere-nos logo uma leitura junto da fenomenologia. Embora o preço das casas, a que o título se refere, também seja o preço de mercado, o preço que pagamos pelo imóvel, o preço que pagamos com o suor do corpo, o preço das casa aqui é antes de mais o preço da intimidade que nasce entre quatro paredes, o preço da intimidade que nasce entre um coração e outro ou, melhor seria dizer com Cardoso Dias, o preço da intimidade que nasce entre um animal que cheira outro animal – escreve o poeta à página 28, no poema “Another Shade Ten Minutes”: “(…) onde um animal olha outro animal olhando-lhe (…). No fundo, o preço das casas é o preço de amar. Mas o que é amar, neste livro, e que se adivinha que também seja na vida? Esta pergunta – o que é amar – lembra-me sempre um verso de Pedro Tamen: “Amor, é amar”. Aquela vírgula ficou para sempre no meu coração. E aqui neste livro de Joaquim Cardoso Dias a pergunta não é menos pertinente. Começa assim o livro, com o poema “Sem Mentir”:

ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa

e se caminhou nu toda a noite

pelo tecto do quarto mas

eu tirei a roupa toda bebi água

e não te telefonei

qualquer coisa assim atirou-me de bruços

para o coração e lembrei-me

de te esquecer desde o começo

muito longe e alto nas escadas de incêndio

foda-se como acreditar que te amo

sem mentir

Poucos são os livros com começos tão felizes como este. De uma felicidade amarga, como toda a felicidade revisitada – “(…) Nessun maggior dolore / che ricordarsi del tempo felice / ne la miséria (…) / Não há maior dor / que recordar o tempo feliz / já na miséria” (Dante, Divina Comedia, Canto V, vv. 121-23). E o que é um bom poema, se não uma felicidade revisitada? Mas este poema dá-nos o tom do livro, em quatro penadas: uma casa vazia, a noite onde não se dorme, o amor que só tem carne e por isso estraga-se, e a necessidade imperativa de mentir, não só para que o amor exista, mas também para que a vida exista. Escrever poemas aparece logo no início do livro, como a arte superior de mentir. Porquê superior? Porque admite para si mesma a sua essência longe da verdade. Leia-se este poema de uma cintilação rara, “Enquanto A Noite”:

não tenhas medo é tudo o que sei fazer

duas das minhas mãos pelo teu cabelo enquanto a noite

essa idade onde descreveras o calor à volta de mim

e um pouco mais

sei por isso quem morre neste poema

Escrever é mentir, viver é mentir-se. E, entre as mentiras da escrita e da vida, há apenas a beleza; a beleza dos versos, como o início deste poema, e a beleza dos corpos, capazes de descreverem o calor à nossa volta. Ponto de vista este que é reforçado no poema “Mitologia”: “finjo que acredito em ti: amo-te /e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras antes da única verdade / se ter ferido encostada tanto / ao meu peito”. A única verdade: o corpo, a beleza. Há um verso de Ruy Cinatti, que ecoa aqui com uma força ainda maior: “Quem não me deu Amor, não me deu nada” – este livro de Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, é aliás um livro que brilha na escuridão destes poemas. Mas aqui em Cardoso Dias, poderíamos traduzir para: Quem não me deu Beleza, não me deu nada. Pois o amor é apenas parte inexistente, ou desconhecida, da beleza.

Assim, o preço das casas é o preço dos corpos, o preço da beleza, o preço daquilo que faz a vida ser vivida, que faz a vida valer a pena, que faz, no fundo, a vida ter preço. Escreve o poeta em “Salsugem@hotmail.com”: “um segredo é a alquimia mais sincera / uma contradição comum com interesse individual // neste sentido amo-te tanto e amo-te muito // e publicar esta ausência contrária / é um erro trágico que irei pagar com o teu corpo.” Esta contradição comum com interesse individual, com que o poeta nomeia o segredo, essa sinceridade única, que é o silêncio que une dois corpos, e condenada a acabar assim que se enuncia, é também a vida. A vida é um segredo.

Do ponto de vista da técnica, aquilo que mais salta aos nossos olhos, é a duplicidade do verso, como no poema “Mitologias”: “e sem o saber todos os sonhos / caíram no fim das tuas palavras (…)” No primeiro verso somos levados a pôr uma vírgula entre “saber” e “todos”, acabando por ler: e sem o saber, todos os sonhos… Mas o poeta não quis a vírgula porque não quer que se leia apenas assim, quer também que se leia: e sem o saber todos os sonhos… Mesmo sem saber todos os sonhos, ou sem saber “todo” o que seja, que é a condição humana, tudo nos cai ao chão, tudo cai ao chão, como no poema de Dylan Thomas. Terminemos com este poema de Joaquim Cardoso Dias:

O PREÇO DAS CASAS

não foi ao mesmo tempo

uma viagem o mesmo ar entre o teu sorriso

ou esta navegação politica da idade

mas eu acreditei em tudo

desde a primeira vez em que estivemos juntos

eu dava meia volta e a lua

lá estava durante o sono

no meu espelho de atravessar os mares

iludindo a vontade de chorar

até a temperatura se tornar insuportável

na interpretação quase televisiva do mundo

de repente pouco sabíamos um do outro

e a sensibilidade ficou assombrosamente maior

por denunciar a minha barba cada vez mais insistente

agora só o teu corpo consegue despir-me

agora posso sonhar até deixar de ter

e teremos perdido tudo por engano amor

e durmo contigo sem ninguém ver

esta rosa do fundo da minha cabeça

dormirei contigo esta noite aqui devagar

onde atiro pedras a todos os sentidos

apago a luz e espero o sono

as pálpebras limpam este desejo no movimento da respiração

já não tenho comprimidos para te esquecer

Joaquim Cardoso Dias publicou recentemente um novo livro de poesia com o título Pornografia Doméstica, pela editora Gulliver. E, tal como O Preço das Casas, também já está esgotado.

15 Nov 2016

Terror e Beleza em Godard

1. “WEEKEND”

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Lisbon & Estoril Film Festival ’16 a retrospectiva de Godard avança e, no ecrã do teatro da Trindade, foi possível ser público de um dos filmes mais perturbadores da história do cinema, tem como título “Weekend”. Teve estreia em Paris em Dezembro de 1967, mas está longe de ser um filme de Natal. A experiência da sua visão, imagem e som, é, uma imersão no abismo. Uma visão da falência da classe média e da sua construção burguesa, ou da sua aproximação aos ideias internacionais proletários. Com uma estrutura narrativa com poucas concessões à lógica mais imediata da continuidade, este filme terrível, mais do que antecipar o movimento dos estudantes e operários do icónico Maio de 68, visto hoje, em 2016, surge como uma visão pictórica, cinematográfica, de um real que ultrapassa em dimensão e barbárie a que filme vive e anuncia.

Quase sempre os mais terríveis abismos do humano nos chegam em curtos fragmentos, mediados pelo electrodoméstico da comunicação de todos os lares e cozinhas a que chamamos televisão, com aquela previsibilidade e rotina de boletim de meteorologia onde sempre é de querer que em alguma parte do mundo a severidade climática seja mais intensa, pouco ou nada já incomoda, transforma.

Em 2016, já todos vimos em sucessivos telejornais dezenas de carros incendiados na noite dos bairros periféricos de Paris, atentados e massacres em cidades da Europa, Américas, Ásia, África, e ao que parece a vacina da indiferença cumpre a possibilidade de sentir somente o aconselhado pelo termómetro do emocional esperado.

Não é o caso do “Weekend”, aqui a experiência de imersão cinematográfica, mesmo que distanciada – o filme é neste sentido brechtiano -, é de permanente espanto pela expressão cinematográfica, pictórica, do abismo, neste filme que ultrapassa todas as convenções formais anteriores a si próprio. Com inicio no interior confortável de um apartamento o filme precipita-se para um dos mais inquietantes planos sequencia da história do cinema, um travelling continuo lateral a uma estrada no campo, onde um engarrafamento de trânsito tem dimensão hiper, e obriga-nos a um confronto com uma imagem em espelho que não queremos olhar. Se o engarrafamento é ultrapassado, o confronto com um ecrã espelho catártico da barbárie presente neste nosso tempo civilizacional, não. “Weekend” é um filme impossível, Godard sabe-o, o filme termina anunciando o fim do cinema.

Maio de 68 foi anúncio a um tempo novo onde o axioma foi; é proibido proibir. “Weekend” visto em 2016, parece-me um urgente e difícil aviso à Barbárie que somos porque nos habita.

2. “LE MÉPRIS”, França/Itália 1963 (ou a morte de Penélope)

A 5ª longa metragem de Jean- Luc Godard é uma superprodução internacional com a estrela Brigitte Bardot, capaz de iluminar qualquer ecrã, e é também, na primeira parte da obra do autor, o filme mais reflexivo sobre a história do cinema e o seu futuro. Adapta Alberto Moravia, e põe em cena um produtor americano e um cineasta/autor.

Jack Palance permite a Godard ligar Jeremy Prokosch à galeria de produtores hollywoodianos que se comporta como um imperador romano, assina cheques nas costas do seu escravo e líquida os últimos vestígios do humanismo europeu.

Ao ir ter Fritz Lang para interpretar o realizador, Godard relaciona o cinema de “nouvelle vague” e o cinema estúdio de forma aberta enquanto linha narrativa. Lang é o artista que recusou todos os compromissos, resistido tanto à ditadura nazi como à maquinaria hollywoodiana. Encarna a figura do Sábio, cita Dante, Holderlin, Brecht e Corneille.

Godard faz coexistir, ao longo do filme, e muitas das vezes na mesma cena, diferentes tempos. Na segunda cena de abertura do filme, que é a terceira dado que o genérico inicial é também uma cena introdutória e situacionista do posicionamento formal do filme; por um lado através da utilização da voz-off, indica a autoria artística e técnica e, simultaneamente, pela materialidade do filmado e pela forma como faz, o posicionamento, o lugar que o filme quer ocupar no vasto território do cinema. É afirmado que se está num cinema reflexivo, autoral, e numa co-produção entre França e Itália

Na cena seguinte, Camille e Paul, na cama, uma das mais memoráveis cenas eróticas do cinema, estamos em simultâneo no tempo da vida banal e no tempo ficcional. A materialidade dos corpos percorridos lentamente, em particular o corpo de Camille, na situação do banal quotidiano na vida dos afectos de um casal, com um trabalho plástico que distancia e aproxima, que afirmam o lugar do filme enquanto matéria própria. “ …então gostas de mim completamente” pergunta Camille, responde Paul “…sim, Amo-te completamente, ternamente, tragicamente” responde Camille “ Eu também Paul”.

Se a cena se inscreve no tempo da vida banal, é também uma cena que vai permitir o desenvolvimento da linha narrativa do filme que vive na tensão entre possibilidade ou impossibilidade do amor vivido. Permite o confronto do amor icónico de Penélope e Ulisses, e os resíduos desejos e impossibilidade, desse amor, icónico no contemporâneo.

Na cena seguinte, que se decompõe em três cenas, duas exteriores e uma interior, todos os plots do filme ficam em definitivo lançados. Todas as personagens conhecidas e identificadas. Toda a proposição narrativa é conhecida.

No exterior de uma Cinecitá que se aproxima sem possibilidade de retorno do um espaço ruína, afirmando a dimensão narrativa do espaço/décor, conhecemos o produtor “americano”, conhecimento construído de forma fílmica, num continuado discurso e acção, e não de forma meramente informativa/descritiva. Na sala de projecção, assistimos ao visionamento de imagens do filme que é rodado dentro do filme, o plot principal da narrativa.

Diferentes tempos no tempo da materialidade do filme. Um tempo civilizacional, um tempo ficcional. O conflito entre autor e produtor, o detentor das condições de produção, leia-se o dinheiro necessário para o exercício do cinema, é instalado. O poder do produtor é afirmado numa imagem de total expressividade, ao assinar um cheque nas costas dobradas da assistente, a servir de mesa.

O exercício de domínio e submissão continua no exterior quando, instalado ao volante do descapotável, o jogo de captura e sedução a Camille se instala, com a submissão de Paul, marido e escritor contratado, empregado, do produtor. O filme está lançado, materializado na matéria fílmica.

A morte de Penélope. “ O cinema, diz André Bazin, substitui o nosso olhar sobre o mundo que foge aos nossos desejos, Le Mépris é a história desse mundo.”

A morte de Penélope é a impossibilidade do regresso a casa. Quem morre é Camille, mas são as múltiplas leituras tornam o filme notável, magnifico.

O jogo entre o agora “herói relutante” versus o herói guerreiro e de vontade determinada, a impossibilidade da permanência do amor e o amor incondicional, definitivo, atravessa a obra numa contaminação direta com fenomenologia do real, das relações concretas das práticas do social e do cinema.

O homem contemporâneo vive uma orfandade que o assusta e que deseja, e a casa, esse lugar doméstico que pode apaziguar o mundo é um lugar perdido, vivido de forma intermitente, perante a dureza da operacionalidade do mundo e da perda da inocência.

Morre o Produtor e Penélope, mas Ítaca, onde fica?

14 Nov 2016

Piano forte. Piano piano

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é o ir pela escrita adentro, o único lugar. Como mergulhar lentamente, escolher a temperatura e sentir o rumorejar manso e eterno enquanto é. O imergir simplesmente sem violência num silêncio de sentidos múltiplos e distantes. O corpo. Somente o corpo. Palavras como águas sem mais. A única mão a estender para fora do regaço em que um par inerte e serenamente nunca só, pousa sem outra vida própria. Ir por dentro das palavras-pedras ao fundo, e ir por aí fora sobre as palavras-asas, e perder-me o possível nas palavras-gesto, nas palavras-beijo e nas palavras tacto. Varridas do chão de corredores sem fundo e de soalhos sem flor. E sem fim e sem dor. Ir. Ir para o dia que é o outro qualquer que não este que não me quer. Bem. Ir colhendo nas sílabas boas como numa seara de espigas e fenos e ir colhendo em molhos que não importa em que buquê se formam, mas formam. E formam quase a forma de um caminho que é sem fim e sem forma. E de resto mais nada que estas palavras a recobrir a calçada que nem sei se é e está. Como pétalas a disfarçar o que é terreno quando passa o andor. Sobram as ditas. Claro. A secar. A acastanhar. Nelas vou vogando. Nelas como nos dias. E o de hoje como todos na cor e na tonalidade própria, de luz-sombra. De cheio-vazio, de claro-escuro e de saturação pontual. Na indiferenciação da última sílaba da última palavra. E da pontuação. Onde acrescentar um ponto a uma vírgula e obter umas reticências. Onde apagar uma vírgula a um ponto, evidenciar um parágrafo, e observar o precipício abrupto à beira da palavra. A palavra tudo. Que está ali. E a palavra nada que se segue. Era uma história, possível. Mas eu gosto de vírgulas discretas e parágrafos sem exclamação. Escrevo a lápis mas nunca apago. Como um pássaro não seria pássaro se apagasse o vôo. E o lugar não pode deixar de o ser como se o não fosse. Ir pela escrita fora, sim, porque tenho que ir a algum lugar. Lugar marcado e encontro com o que é depois de agora. Sem outro transporte que não uma ânsia que não cessa. Não gosto do fim porque se vai finalizando. O fim que o é tem a hora marcada, registada e sublinhada a nítido fervor. Logo à noite, ver as estrelas. Os meus fins são assim de abrupta definição. Quanto muito esqueço. Quanto muito estrago. Quanto muito reciclo e refaço noutra matéria forma. Mas gosto mais de esquecer. Parar de ouvir vozes de outrora e de agora. Demasiadas vozes. Fazer a apócope de sons como do piano forte. A sobrar o piano, piano. Sem mais perturbação. Esperar a noite. Desligar o telefone dos dias.

Percorro descalça o labirinto dos corredores. Disfórica e cuidadosa comigo que tenho. O que a vida traz e ninguém mandou. Tiro os sapatos e entro na casa. Que mesmo os saltos podem magoar. Ferir de pequenos pontos irrevogáveis a madeira sensível. E que ficam para sempre. A casa é forte. Quanto mais forte, mais frágil. Mas eu tiro. Penso que posso fazê-lo sem querer. Sem saber porquê. Tiro os sapatos para sentir-lhe a realidade. A chuva gelou-me a nuca e não houve carícia posterior. Talvez o sol no outro dia. E dizer bons dias a pessoas para quê…o tempo moído de esperas e desesperos, para quê…e depois aquela euforia avulsa. Um piano forte, de facto vindo dos confins dos séculos e reencontrado em ecos e vozes de natureza digital. Como dedos. A digitar recônditos recantos e bem. A fazer bem. Essa química pura e sem máscara. A música.

Contornar pensamentos tóxicos e os não ditos. Adivinhados no cadinho das possibilidades em menú exponencial. Corrosivos e pela calada do desperdício. Fuga ao circunstancial. Pela escrita adentro como pela noite de todas as noites. A intemporal de sempre e de nunca. De que não sobra nos dias a liberdade. Mas que sempre vem e vai às vezes de exaustão. A noite de já não ser nada do esperado, desesperado ou ressentido. A ponte entre tudo e coisa nenhuma ou talvez. Pela escrita sentidamente e pela frágil e dissonante palavra que é tudo o que tenho. E da máscara digo nada porque é. Digo, só menos a que não quero e  ganha vida para além dos fios e da teia que não quero tecer.

Histeria metabólica em que oscila o amor e o desamor, a vida e a morte em trinta segundos e a rodar sempre a rodar o carrocel à música do tilintar de uma moeda. Ninguém pode invejar sentidos e sentimentos, aparentemente cada um gosta daqueles de que é capaz, vítima, ou roda de moinho. Como os de D. Quixote. Que só ele podia ver, como gigantes. Para quê alucinar as alucinações alheias. Há cogumelos mágicos de sobra para todos. E o mar chão de praias para abrir os braços e maravilhamento de costas ao poente. O lado contrário do mergulho.

O amor é um bicho mamífero. Come mais ou menos de acordo com a indisposição. Entristece e adormece nas noites mais frias. Vigia o dono, espera. Desespera e dorme triste, acorda e dá saltos para desentorpecer as patas dormentes de tanto esperar. Passeia a farejar a vida. Mas não morre e renasce em cada sono. Está por ali nas arritmias e solavancos da vida. Até chegar a sua hora. Não é de modas sentimentais. De teorias estéticas. De uns dias se ser céptico de amor, e dos outros, vítima de fúria e de ardor. Os dias do nunca e nunca mais e os outros do para sempre e demais. Como se é fútil se as coisas não são construção sólida nos alicerces das veias. Sem circunstâncias. As pessoas fazem-se e desfazem-se nas palavras ditas. Nas outras, não se sabe. Sim, talvez mais como o sangue, a circular sem parança, a oxigenar-se quanto pode, sem parar. No seu sistema de vasos e ramificações por todos sem se enganar ou voltar para trás. Mas sempre nesse circuito fechado. De um nome. Um rosto, um corpo. Inconfundível. Esse. Que se vê no escuro. Porque é aí que vive escondido. De modas. Fruto da desnecessidade e mais ainda, sobretudo, infraestruturado na desmesura…e no espanto, de fora, a ver o carrocel com olhos de criança, no susto do ruído atroador. Da velocidade. Da voz que diz vai rodar. Fazem-se e desfazem-se, mas sobram. Umas e outras sem relação nenhuma. Como os dias. Novos ou reaquecidos da véspera. As mãos são a metáfora impossível sem o tacto. Impossível mas não improvável. Talvez pudesse dizer o contrário dependendo dos dias. Mas sobretudo o ar. Ser livre. Ter um espaço amplo. Nada ouvir e nada olhar. Um dia sem circunstâncias sem vozes e sem nada. Para escrever. E escrever ou não. Pela cor. Abstractas e macias como piano piano.

E à noite ali na mesa da cozinha entre sombras, atentas amigas, a mão a um palmo. O olhar desarrumado e sem lugar, e pode ser uma companhia limite. Um ou dois copos. Tanto faz. Encosto a cabeça ao braço porque estou cansada e digo lê. Como quem diz, toca…a luz, baixa. O pano cai. E faz-se silêncio por fim. O de repente, o de sempre e o de nunca. Uma coisa de suave esquecimento. Vem daí.

11 Nov 2016

Discurso de abertura da Exposição Industrial de Macau

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Domingo dia 7 de Novembro de 1926 fora inaugurada a Exposição Industrial de Macau no Campo de Mong-Há, e o jornal A Pátria, diário desde 1 de Outubro de 1925 e que em Abril de 1926 tinha como editor e proprietário o Pe. António José Gomes, doutorado em Teologia, referia a 9 de Novembro de 1926, “não poderia ser, nem mais atraente, nem mais auspiciosa, se atendermos às circunstâncias presentes desta Colónia, conjugadas com o estado político e económico do Sul da China.” A China encontrava-se mergulhada numa guerra civil desde 1917, estando dividida com dois governos rivais. Um a Norte, reconhecido internacionalmente e o do Sul, apoiado pelo Partido Nacionalista e liderado por Sun Zhongshan. Quando este, Sun Yat-Sen para os ocidentais, morreu em 1925, começou uma luta interna no Guomintang entre as duas facções, uma comunista e a outra nacionalista, esta liderada por Chan Kai-Chek.

“A inauguração ocorreu às 14h e pico, sob um Sol escaldante” e estava o recinto da Feira apinhado de gente convidada especialmente para esse fim. No estrado central tomaram assento o Governador da Colónia, tendo à sua direita o Governador do Bispado, Reverendo A. J. Gomes, o Presidente do Leal Senado Damião Rodrigues e à esquerda, o Presidente da Comissão da Exposição, o Engenheiro Carlos Alves, o Professor Chan, representante da Associação Comercial Chinesa e o Sr, Frederico Gellion, manejante da Macau Electric. Depois de tocado o Hino da Maria da Fonte pela banda do Orfanato e cantado o Hino Nacional pelo Orfeão do Liceu Central de Macau, começou a série de discursos.

O discurso do Almirante Lacerda

Presidindo à festa de abertura da primeira Exposição Industrial e Feira de Macau, o então Governador interino, Almirante Hugo de Lacerda fez o seguinte discurso: “Tudo o que vemos em volta, todas estas barracas vistosas e engalanadas, cheias de artigos de variado valor, partiu da ideia de se estabelecer um simples mostruário de produtos de Macau”. Referiu que de início fora a exposição planeada para uma “sala do edifício do Leal Senado para uma exibição de poucos dias; depois passou-se a considerar também o aproveitamento do largo em frente deste edifício; mas a breve trecho, reconheceu-se a necessidade de um mais vasto campo, primeiro Tap Siac e depois o parque da Avenida Vasco da Gama, e por último, o lugar onde estamos, isto é, a baixa de Mong-há a qual por vezes chegou a parecer pequena. Tratava-se então de facto de realizar a feira como fora projectada pelo Governador Rodrigues e para o qual se conseguira $60 mil (patacas) como auxílio a dar por parte do Governo, mas que no caso presente se reduziu à quinta parte, o que foi motivo de bastantes dificuldades.”

“O que vemos em volta não representa um acontecimento isolado e com restrita significação como a alguns poderá parecer; liga-se fundamentalmente com todo o ressurgimento de actividades industriais e comerciais que de há tempos se notam nesta cidade, a despeito de todas as dificuldades do viver político da China; liga-se naturalmente com as previsões do aproveitamento do porto de Macau, este novo e valioso instrumento do progresso. Indústria, comércio, navegação e viação terrestre dão-se as mãos, quando há uma população obreira como a de Macau e a que há em volta de Macau.” (…) “Dentro do progresso material se deve contar muito em Macau com o benefício trazido por forasteiros; não basta a produção e o tráfego de mercadorias, é preciso atrair a concorrência de pessoas por todas as formas dignas de uma cidade moderna; é necessário considerar o valor do que se chama o Turismo. A Direcção das Obras dos Portos não tem descurado este importante aspecto da questão dentro dos limites das suas possibilidades, indo até ao ponto de fazer sacrifícios, como por exemplo o estabelecimento de uma pista de corridas de cavalos, nos terrenos conquistados defronte da Areia Preta, crente em que estes sacrifícios terão largas compensações indirectamente para o porto e sem dúvida mais directamente para a cidade. Pena é que não possamos fazer neste momento, também a inauguração deste melhoramento como se chegou a julgar possível.” A pista de corrida de cavalos na Areia Preta só foi inaugurada em Março de 1927.

“Voltando à exposição propriamente dita e atendamos também aos que nela trabalharam. O que está à vista não é mais do que uma tentativa, é certo, mas quando se considerem todas as dificuldades que resultaram dos fracos recursos, quando se considere ainda que tudo isto representa uma novidade para Macau, quando se atenda a que a maior parte do trabalho directivo e não directivo foi realizado com pessoal das Obras dos Portos, já tão sobrecarregado de serviços, fica-se defronte de qualquer coisa admirável; para cúmulo até a Natureza parece que quis experimentar a resistência do prestimoso Comissariado com um violento tufão (ocorrido inesperadamente a 27 de Setembro, causando grandes estragos no Porto Exterior, mas em terra não houve desastres pessoais) que reduziu o que estava feito já em estado adiantado a um montão de ruínas”. (Em terra os prejuízos materiais limitaram-se à destruição quase completa dos pavilhões destinados à Exposição no Campo de Mong-há, vulgarmente denominado Campo dos Aviadores, de várias barracas de obras de construção, fios partidos de iluminação eléctrica e dos telefones, tabuletas de vários estabelecimentos e cangalhadas e outros estragos de somente importância. De referir que nessa altura, a data da inauguração estava ainda marcada para 30 de Outubro.) “Foi esse momento crítico. Mas o momento mais crítico foi talvez aquele em que, havendo já compromissos importantes, foram negados quase totalmente os recursos ao Comissariado. Felizmente que essa enorme dificuldade foi removida, porque, a instâncias deste Governo, Sua Exa. o actual Ministro das Colónias, Capitão Tenente João Belo, autorizou que, pelos fundos do Conselho de Administração das Obras dos Portos, fosse aumentada aquela importância com $2000 (patacas). Creio que com esta experiência ficará bem vincada em todos a convicção da necessidade de nos futuros orçamentos da Colónia, ou na distribuição de verbas da Direcção das Obras dos Portos, se consignar a importância até pelo menos de $20 mil para anualmente se realizar a Feira de Macau. Aproveito ainda esta ocasião para dizer que este certame veio dar grandes facilidades para se realizar um melhoramento mais permanente – o estabelecimento dum museu comercial e etnográfico da Colónia – cuja falta se vinha fazendo sentir e mais se sentiria com o desenvolvimento da vida do porto” sendo “no Boletim Oficial estabelecido por Portaria”.

“Não está terminada ainda a missão do Comissariado da Exposição, mas por menos que tivesse que fazer de ora avante, já se tornou digna dos maiores louvores por todo o seu trabalho e dedicação, que não poderá ser esquecido por este Governo e pela Colónia.” Assim terminava o discurso do então Governador interino de Macau.

Foi durante a Sétima Sessão da Comissão, a 10 de Julho de 1926, que o Secretário pedira a nomeação de um Comissariado para dar cumprimento às resoluções da Comissão, pois, até ali, tem ele sozinho estado sobrecarregado com todo o trabalho. Assim logo se elegeu para o Comissariado os Srs. Pe. Manuel José Pita, Henrique Nolasco da Silva, Artur Tristão Borges e João Barbosa Pires. A ela se foram juntando Hü-Cheong, o Major Victor de Lacerda, o Capitão Afonso de Veiga Cardoso e desde finais de Setembro, o Tenente Gaudêncio da Conceição, Comandante do Corpo de Salvação Pública e da Polícia de Segurança.

A Feira de Macau e Exposição Industrial ficou aberta até 12 de Dezembro de 1926.

11 Nov 2016

Valério Romão: “Não me interessam os temas da moda”

[dropcap]E[/dropcap]nquanto outros seguem guiões pré-definidos, como por exemplo ter de escrever uma cena de sexo (ou mais de uma) e uma piada (ou mais do que uma), ou seguir um imaginário completamente retórico, quase até ao limite da publicidade, os teus livros começam a partir daí, como a Marina Tsvetaeva para a poesia russa, nas palavras do poeta Joseph Brodsky em “Less Than One”: “Marina começa os seus poemas onde os outros acabam”. Tens a consciência de que escreves ao arrepio do que se escreve hoje em Portugal?
Não sei se é exactamente ao arrepio daquilo que se escreve em Portugal, embora eu tenha uma consciência, ainda que pouco nítida, de que faço um caminho que tem um formato e trajecto com algumas particularidades que o distingue dos restantes. Talvez isso corresponda, grosso modo, à noção de estilo – seja lá o que isso for neste tempo em que parece que a única ocupação moral e eticamente permitida é o estilhaçar de categorias (e não para criar algo de novo, mas para terraplanar diferenças, um ideário paradoxal no qual se propõe que a criação não tem de criar nada e que o seu propósito é normalizar tudo, seja pela ironia, seja pelo pastiche, até nada se distinguir de nada). Não me interessa esse manifesto de terra queimada, não me interessam os temas da moda, não me interessa ser “actual”. Interessa-me sobretudo trabalhar com coisas que me são próximas e, simultaneamente, desconfortáveis. O que me interessa – pedindo desculpa pelo pretensiosismo inerente ao que vou dizer em seguida – é fazer qualquer coisa que, tendo um pé no agora, possa transcendê-lo: qualquer coisa de humano.

A única forma literária que nunca escrevi foi o conto. Nem sei se sei fazer ou não. Tu tens uma predilecção pelos contos, ou entre o conto e o romance venha o diabo e escolha? Qual a diferença dessas duas formas de escrita em ti?
Grande parte da minha formação enquanto leitor tem que ver com a leitura de contos, sobretudo os da escola do absurdo: Gogol, Kafka, Buzzati, Cortázar. Um conto é, passe a obviedade, muito diferente de um romance; um romance é uma corrida de fundo, uma ultra-maratona na qual parágrafos ou páginas inteiros podem estar ligeiramente ao lado ou mesmo desalinhados. Há um grau de tolerância relativamente ao romance que diminui exponencialmente quando passamos para formas mais breves de literatura: é muito menor no conto (talvez um, dois parágrafos) e ainda menor na poesia (às vezes, nem a um verso se permite o coxear). O conto para mim é a forma mais adequada para preparar desfechos inusitados e para testar ambientes e contextos incomuns, duas coisas que eu próprio procuro enquanto leitor. Tem ainda o bónus de ser possível começar e acabar um conto no mesmo dia, coisa que naturalmente não acontece com um romance.

E como entendes a arte da crítica literária, que rareia nesta urbe?
A função essencial da crítica literária é a recondução de um autor e/ou de uma obra ao lugar que pertencem na história da literatura, lato sensu. A crítica dispõe (ou devia dispor) das ferramentas necessárias para aquilatar o grau de novidade, sofisticação e relevância de uma obra. Só ela, dado a sua memória histórica, assente no trabalho de leitura e de crítica, pode encontrar o lugar do autor. O autor não faz isso sozinho. Não faz isso através do público. É o crítico o geógrafo capaz de encontrar o lugar do autor e a sua afiliação. O que normalmente lemos são recensões. E um e outro trabalho podem coexistir. Ambos são necessários. Descuidar a crítica, porém, é prestar, em primeiro lugar, um mau trabalho ao autor e ao público.

Viveste muitos anos em França, qual a razão pela qual não te tornaste um escritor de língua francesa?
Não me senti nunca em casa, em França. E não me sentido em casa, o francês, embora fosse a minha primeira língua, nunca se tornou um médium literário. Há que igualmente notar que saí de França com 11 anos, uma idade insuficiente para que a língua francesa tivesse obtido competência literária. Tornei-me leitor de francês mas não falante, e essa falta de prática aliada ao facto de nunca ter sentido França como “a minha casa”, fez com que acabasse por ser perfeitamente natural escrever em português.

Tens uma licenciatura em filosofia. Achas que o curso que fizeste foi determinativo para seres o escritor que és? Vias-te a fazer outro curso, que não te conduzisse tanto a ti como o de filosofia? Eu não me imagino sem filosofia.
Absolutamente. E atrevo-me a dizer que sou ainda mais específico: é o curso de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Não teria as mesmas competências de análise fenomenológica se não tivesse tido aulas com o Nuno Ferro, com o Mário Jorge de Carvalho, com o António de Castro Caeiro. Do mesmo modo, a minha perspectiva relativamente à estética não seria a mesma se não tivesse sido aluno da Filomena Molder. Não raras vezes socorro-me do que retive da minha passagem pelo curso de filosofia e do que vou lendo, entretanto, para escorar um capítulo, uma personagem, um livro inteiro. A filosofia está sempre presente, é mais que um conteúdo, é uma forma de pensar. Está presente de forma inconspícua, são as costuras das coisas, o espaço entre os retalhos, a geometria oculta que transforma um arrazoado de acontecimentos numa estrutura narrativa. Pode fazer-se tudo isto sem filosofia? Claro. Mas para mim seria mais difícil.

11 Nov 2016

Ecologia das luzes

Ferry, Jean Luc, A Nova Ordem Ecológica, a  Árvore, o Animal e o Homem, Edições Asa, Porto, 1993.
Descritores: Ecologia, Iluminismo, Kant, Rousseau, Fichte, Humanismo, Imanência, Transcendência, 207 p.: 22 cm, ISBN: 972-41-1297-7.
Cota: 574(384999.1)

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de mais esta reflexão de Luc Ferry denota uma inesperada coragem na cultura contemporânea para enfrentar as formas de ecologismo radical que na maior parte das vezes estão associadas a críticas não menos radicais da Modernidade. A partir de uma definição muito clara e equilibrada dos seus pressupostos ideológicos, que mergulham em última instância nas fontes do humanismo iluminista e nas ideias de pacto social, ou seja em Rousseau, Kant e Fichte, entre outros autores, Luc Ferry enfrenta alguns dos mitos da cultura contemporânea. O radicalismo ecologista e as críticas mais ferozes à modernidade, mesmo quando não o confessam, evidenciam um estranho sentimento de nostalgia pelas formas de cultura pré modernas, quer dizer pelo sagrado, pelo comunitário, pelo holismo. O humanismo e o individualismo modernos são os inimigos deste saudosismo pré moderno.

Uma das tendências dos epígonos da soi disant pós-modernidade ecologista consiste em atribuir ao mundo animal e ao mundo vegetal uma dignidade equivalente à dignidade do homem. E essa deriva vai ao ponto de conferir aos animais e plantas um estatuto jurídico equivalente. Ora se os animais e as  plantas podem ser sujeitos e objectos do Direito, como chegam a preconizar alguns radicais, e isso em nome de um hipotético direito biocêntrico, será que poderão, também, ser processados e punidos por decisão judicial? Claro que sim. E não é de agora. Luc Ferry oferece-nos o inventário de uma panóplia de casos em que os animais foram levados a tribunal no passado, em nome do facto de serem, tal como os humanos, criaturas de Deus.

Como o autor salienta com ironia “tentando fazer uso da máscara pós-moderna, essa visão mística do mundo animal e botânico já é antiga e passou por vários ciclos, desde as sacralidades mais antigas”. Ora veja-se a título de exemplo:

“Em 1587, os habitantes de um vilarejo francês iniciam junto a um juizado episcopal um processo contra uma colónia de gorgulhos que estava atacando os vinhedos. Os camponeses solicitam ao «reverendo senhor e vigário geral de Maurienne» que se digne a prescrever as medidas convenientes para aplacar a cólera divina e a proceder dentro das regras, «por intermédio da excomunhão ou qualquer outra censura apropriada» para alcançar a expulsão definitiva dos insectos. (…) Algumas décadas antes, um processo semelhante havia terminado com a vitória dos insectos, defendidos por um advogado escolhido para eles pelo juizado episcopal. «Este último, usando como argumento o fato de os animais, criados por Deus, possuírem os mesmos direitos que os homens de se alimentarem de vegetais, recusara-se a excomungar os besouros, limitando-se a prescrever rezas públicas aos infelizes habitantes, intimados a se arrependerem sinceramente de seus pecados e a invocar a misericórdia divina», … e o pagamento imediato do dízimo, é claro” (Luc Ferry)

O autor mostra de modo muito sagaz e culto que sob a capa de crítica ou mesmo condenação da modernidade, o que os novos ideólogos pretendem é o regresso a um tempo anterior, quando havia desigualdades, hierarquias, descriminações e quando sobretudo ainda não tinha triunfado este reino dos direitos humanos e das liberdades, do contrato social que estipula igualdade de dignidade e de estatuto perante a lei. E sublinhe-se que é de uma lei universal que estamos a falar.

Sabe-se em contrapartida que as metáforas naturalistas e eventualmente orgânicas exprimem sempre posições anti-modernas. E Luc Ferry leva-nos a ver o contexto intelectual em que a Alemanha nazi preparou as primeiras leis sobre a protecção dos animais (1933) e da natureza em geral (1935). É sempre muito elucidativo o modo como o autor articula as reivindicações de um “contrato natural” com sentimentos claramente anti-modernos senão mesmo anti-democráticos simplesmente. A modernidade, a democracia, assim como o contrato social que delas decorre é como se sabe constitutivamente artificial. É esta artificialidade, assim como a secularização que ela exige, que incomoda os saudosistas da pré modernidade, seja ela qual for.

Mais alguns exemplos ilustrativos:

“Primeiramente, com base na petição apresentada pelos habitantes que sofrem os danos, averigua-se os prejuízos que tais animais causaram ou estão em vias de causar e, com a informação obtida,  juiz eclesiástico nomeia um curador para os animais, que se apresentará em juízo por procuração e deduzirá todas as suas razões, e os defenderá contra os habitantes que qureiam fazê-los deixar o lugar onde estão; e consideradas e vistas as razões de uma e de outra parte, o juiz lavra a sentença”. (…) “Houve até mesmo em Marselha uma excomunhão de golfinhos que obstruíam o porto e o tornavam impraticável”. (…) “Na ocasião do processo dos escaravelhos de Coire, o juiz, constatando por sua vez que sua citação para comparecimento continuava sem efeito, considerou que não devia tratar com rigor os animais, dadas sua pouca idade e a exiguidade de seus corpos”. (…) “No processo das sanguessugas de Berna, o bispo, temendo que elas tentassem escapar da corte, mandou capturar alguns exemplares para que fossem postos fisicamente na presença do tribunal.  Feito isso, ordenou que se advertissem as ditas sanguessugas, tanto as que estarão presentes quanto as ausentes, de que devem abandonar os locais que temerariamente invadiram e se retirar para onde sejam incapazes de prejudicar, concedendo-lhes para tanto três breves prazos de um dia cada (…) e estabelecendo a cláusula de que passado esse prazo elas incorrerão na maldição de Deus e de sua corte celeste.  E para testemunhar a seriedade da notificação, as sanguessugas designadas pela corte foram executadas imediatamente depois de ouvirem a reprimenda!” (Luc Ferry)

Alguns ecologistas contemporâneos não andam muito longe por vezes de posições aparentadas sobretudo quando a sua ideologia é reforçada por um anti-humanismo primário.

De facto é intrigante o fundamentalismo de pessoas que se batem por um direito das árvores, e das montanhas, quando muitas vezes se mostram insensíveis aos direitos humanos em particular o direito à liberdade de inovação e progresso. Em vez de um “contrato social” alguns radicais apelam hoje a um “contrato natural”. A obra de Luc Ferry compreende as aspirações razoáveis dos movimentos ecologistas conquanto estes não ponham em causa a democracia, a liberdade e o progresso científico e tecnológico.

Na maior parte dos casos é a aversão ao progresso e a nostalgia  pelas sociedade holistas e pré-modernas que animam o integrismo ecologista.

Em momento algum Luc Ferry se mostra insensível relativamente tanto ao mundo animal como à natureza em geral e a sua posição de base é de crítica insofismável relativamente ao antropocentrismo cartesiano com a concomitante redução mecânica da vida animal, mostrando-se pelo contrário favorável, sem ambiguidades, ao reconhecimento do animal como ser sensível na linha de resto de Maupertuis e Condillac. Pertinente é a todos os títulos a análise da diferença profunda entre uma ecologia romântica e uma ecologia das luzes. Claro que Luc Ferry toma partido pelas luzes vislumbrando aí a fonte da resistência contemporânea humanista, contratualista e democrática ao retorno da barbárie, que na história muitas vezes aparece com roupagens, na aparência, progressistas.

Breve apontamento Biográfico e Bibliográfico

Luc Ferry nasceu a 1 de Janeiro de 1951 em Colombes no departamento de Hauts-de-Seine, em França, é professor de filosofia política na Sorbonne e foi Ministro da Educação Nacional, de 2002 a 2004, sob o governo de Jean-Pierre Raffarin. Com um último volume publicado em colaboração com Alain Renaut, Luc Ferry publicou entre 1984 e 1985, Filosofia Política, em 3 volumes; a que se seguiu ainda em 1985, O Pensamento 68. Ensaio Sobre o Anti Humanismo Contemporâneo, em colaboração com Alain Renaut; ainda em colaboração com Alain Renaut publicou em 1988 Heidegger e os Modernos. Em 1990, publicou a solo a obra Homo Aestheticus. A Invenção do Gosto na Idade da Democracia. Ainda a solo A Nova Ordem Ecológica que analisamos aqui foi publicada em 1992. Depois de um intervalo maior o autor publicou em 1996 O Homem Deus ou o Sentido da Vida. E em 1998 publicou A Sabedoria dos Modernos, agora em colaboração com André Comte-Sponville. Continua a publicar e o último livro data de 2016 e intitula-se Sept Façons d’Être Heureux.

10 Nov 2016

De Dylan aos golpes da espionagem

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é a cerimónia de entrega do Prémio Nobel de Literatura.

A nomeação de Bob Dylan, indubitavelmente um grande artista, como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra.

Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores,  identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.

Na educação clássica e na formação musical não se apurava apenas a educação do gosto e do ouvido, os alunos afeiçoavam-se a uma intensificação da concentração e dos seus vários níveis de escuta. Uma das razões porque o público da pop não ouve Mahler, prende-se – mais do que à complexidade estrutural das sinfonias do músico vienense -, com a sua duração, que excede as pautas de atenção em que foi adestrado. Depois de décadas só a ouvir canções de três minutos, o que equivale a uma corrida de cem metros no atletismo, uma peça musical de uma hora corresponderá a uma maratona.

Acresça-se que a este carácter redutor, a cultura pop institucionalizou a diversão: o mais das vezes uma escapatória para a preguiça intelectual.

Premiar um ícone da cultura de massas é um sinal de cedência a este regime balizado por dois limites: a ideia de diversão como único combustível das intensidades sensoriais  (esquecendo que a aventura intelectual também oferece diversão e até felicidade); a ideia de que o que é difícil e exige mais atenção deve ser reconvertido para se tornar mensurável e acessível.

Esta atribuição também parte do equívoco de considerar-se que a literatura carece de público e de que há que achá-lo onde o público está. Ora, este raciocínio enferma do mesmo erro que cometia a velhinha que, à noite, perdera uma moeda no princípio da rua mas a procurava adiante, debaixo do halo de luz do candeeiro público.

Se as pessoas hoje lêem menos Proust ou Joyce não é porque esses livros não contenham ingredientes que possam interessar os jovens de hoje, mas porque o mundo se trivializou e a atenção se tornou uma habilidade só para especialistas.

1/11/2016

Sinopse para uma comédia, escrita na minha aula de Guionismo, onde desenvolvemos um breve apontamento de Billy Wilder, infelizmente nunca elaborado:

Ano, 2020. Instalou-se no mundo uma Nova Guerra Fria que separa Povos Com Zika de Povos Sem Zika.

Num congresso de cientistas da saúde africanos, realizado em Kingshasa, destaca-se o trabalho de Ónus, um académico moçambicano – um homem íntegro e que só tem por fraqueza gostar de uma pinguinha.

É a ele que os observadores americanos, enviados por Hillary, escolhem para ser o inconsciente portador da fórmula secreta de uma “bomba” cujo poder curativo mudará a face do continente, que será posteriormente resgatada por agentes sul-africanos (- os americanos não se arriscam a passar-lhes directamente a fórmula para não serem acusados de favoritismo na ONU).

Para tal, convidam-no para uma festa, embriagam-no, raptam-no e depois tatuam-lhe no pénis a fórmula. Que só pode ser lida em erecção. O cientista acorda azamboado e de ressaca no hotel, a uma hora do seu embarque de regresso, e, com a pressa, não dá por nada.

Chega a casa, em Maputo, desfaz as malas e toma um duche, antegozando a noite maravilhosa que terá com Bárbara, a sua mulher. É aí que dá conta: tem algo tatuado no sexo. Ónus entra em pânico: não há desculpas que justifiquem aquela inscrição (que não consegue ler) e a sua estranha amnésia. Ainda por cima, acontecer-lhe a ele, fidelíssimo à mulher!

À noite, a culpa inibe-lhe a erecção. Como acontece pela primeira vez, entre eles, a mulher graceja e adormecem após uma boa galhofa. Ou antes, ela. Ele não, está à rasca. E ao longo da semana repete-se a nega. A esposa começa a desconfiar que ele tem outra. E o sentimento de culpa dele adensa-se.

Os outros países africanos começam a enviar-lhe mulheres cientistas de grande aparato físico, para o atraírem a uma cilada sexual.

A lasca zimbaweniana – uma enóloga – embriaga-o ao falar-lhe sobre uma enzima que dá às uvas o tamanho de melões, sem o conseguir levar para o quarto.

A enviada etíope atrai-o ao quarto sob promessa de lhe mostrar um besouro em cuja carapaça a natureza desenhou o Rato Mickey. Mas um copo a mais de Mateus Rosé fá-lo sucumbir no sono, no sofá, antes dela regressar da casa-de-banho, nua e em oferenda.

A África do Sul envia uma Mata-Hari capaz de derreter um iceberg quando expõe o mamilo esquerdo, o menos abrasivo. A ingenuidade de Ónus é mais uma vez enrolada pelo parlapié duma colega cientista e sobe ao quarto dela, num intuito académico. Martini puxa Martini, e eis Ónus enfiado na cama dela, atarantado mas nu.

Contudo, como é homem de uma obstinada fidelidade, a erecção não tem lugar.

A sul-africana – uma cientista de renome – não está com meias medidas e tira da mala um x-acto para decepar o membro murcho. Debruça-se sobre a cama, o olhar amortecido de Ónus nem se apercebe do brilho da lâmina…

É então que Bárbara, que o seguia sorrateira há uma semana, abre a porta num pontapé. Com dois golpes de Karaté despacha a espia boer e amarra-a ao cadeirão.

Ónus, a quem a entrada de rompante da mulher pusera sóbrio, observa deliciado a limpeza com que a sua mulher o salva – sim, é sua, a mais felina das mulheres! E o entusiasmo proporciona-lhe a maior erecção da sua vida.

Ónus e Bárbara, lêem então, contristados, a fórmula que ele exibe, tatuada no pénis: Abstinência!

10 Nov 2016

A recompensa da ignorância

[dropcap style≠’circkle’]N[/dropcap]ão! Nada disto faz sentido! Não faz sentido que continuemos à espera que as coisas se resolvam com medidas políticas ou que exista justiça quando existe tanta gente tão fácil de manipular. Não faz sentido acreditar que alguma vez as coisas vão mudar e que não vão ser sempre os mesmos a ser privilegiados. Não faz sentido acreditar num qualquer qualquer estado de graça onde teremos todos os mesmos direitos e onde ninguém irá sair prejudicado. Não, isso não existe. Não faz sentido pensar que o real valor de cada um será alguma vez reconhecido em vez de serem reconhecidos os amigos ou os oriundos de famílias influentes ou de grupos de poder dominantes. Nada disto faz sentido porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! O estado de graça não existe. O que existe é um continuado exercício do mal no qual se prejudicam muito rapidamente as minorias. O que existe é apenas um tenebroso recolhimento onde permanecemos sem respirar e onde nos fechamos em concha. Onde deixamos de dizer, pensar, ser. O que existe é sermos constantemente empurrados para não falar, não exprimir opinião, não ter vida porque qualquer uma dessa coisas nos prejudica e mesmo assim iremos sempre acabar a mendigar para comer. O que existe é que vão sempre ser os mesmos a ocupar os lugares mais favorecidos, não porque tenham mais qualificações ou mais qualidade para o fazer mas sim porque é assim que o mundo é.

Não! Nada disto faz sentido! É vergar e obedecer. Não questionar a autoridade. A ignorância é recompensada. O venerar falsos ídolos é recompensado. E qualquer luz disfarçada que possamos querer acreditar, neste ou naquele comentário político, não é mais que uma luz falsa, não é mais que uma ilusão. Toda e qualquer luz em que queiramos acreditar será imediatamente usurpada do seu brilho, da sua esperança, pelas elites, pelos demagogos, pelos oportunistas. Toda e qualquer luz será retirada de um e dada a outro que por mérito próprio nenhum a absorverá apenas porque se chama assim ou assado ou tem este ou aquele amigo ou obedece e se porta bem. Não faz sentido acreditar em mérito ou mesmo lutar, trabalhar, fazer melhor, porque tudo isso de nada vale e a tudo isso se renuncia em favor de pessoas menos qualificadas mas com maior poder de intrujar.

Não! Nada disto faz sentido! Não faz sentido acreditar nos direitos humanos, na igualdade das mulheres, no respeito racial. Não! É mesmo uma ilusão! Não faz sentido dedicar toda uma vida a um lugar que nunca reconhece o real valor do trabalho que se faz. Não faz sentido ficar nesse lugar quando fora dele se é reconhecido e acariciado. Não faz sentido que se tenha que renunciar a uma melhor qualidade de vida apenas por amor a esse lugar. Não! Nada disto faz sentido e não vale a pena chorar porque é assim que o mundo é.

Não! Não! Não! Se esse lugar é tão burro que continua a dar tudo a uns e nada a outros o melhor é tomar coragem e tomar a decisão correcta e, como numa separação amorosa, pedir o divórcio. Se esse lugar não reconhece, não dá o devido valor, então é tempo de partir. Se esse lugar não merece quem mais trabalha para a sua evolução, ou para o desenvolvimento de uma área da sua sociedade, então é tempo de o abandonar. Se esse lugar não está interessado em evolução e não está interessado em ser melhor, e se está apenas interessado em proteger os mesmos que sempre protegeu, então não há nada mais para fazer que abdicar da esperança, partir, manter a sanidade mental, porque nesse lugar não importa nada. Nesse lugar o que importa é como é que cada um se chama, assim ou assado, ou se tem este ou aquele amigo, ou se pertence a este ou aquele grupo de poder e é assim que o mundo é. E isto é verdade tanto aqui, deste lado, como aí, do vosso lado, amigos americanos.

Sim! Não faz sentido! Mas era esperado ou pelo menos eu esperava. Assim o previ há 18 meses atrás. Simplesmente óbvio para mim que Baudrillard e a híper realidade se reviam do fenómeno Trump e na teoria do reality TV, e que o asno iria ganhar sobre qualquer outro e é por isso que ainda faz menos sentido. Um predador sexual, mentiroso, aldrabão, racista, misógino, apoiado pelo KKK derruba com qualquer ideia da América como ideia de infinito sucesso individual e de liberdades colectivas. Um homem que nem a universidade terminou, que passou a vida toda a viver à conta do dinheiro do pai, que apresentou bancarrota inúmeras vezes, que tem inúmeros crimes fiscais, empréstimos dúbios, negociatas ilegais, que tem uma acusação de violação a uma menor e mais um número enorme de outras alegações de crimes sexuais e de racismo, chega a presidente e destrói com qualquer possível ideia de equilíbrio e de um futuro melhor e com qualquer ideia de esperança de balanço político e justiça social. É assim. Não faz sentido mas é assim que o mundo é.

Não faz sentido mas a América, que cai vulgarmente no mais grosso nacionalismo, expressou-se em massa de modo naïf pelo candidato que lhe vai retirar direitos. E não irá chocar se a economia voltar a um estado de recessão. É absolutamente fantástico como as pessoas são tão facilmente atraiçoadas por uma questão de empatia. O homem que vai destruir com tudo o que foi conseguido durante as últimas três décadas em direitos sociais e nos últimos oito anos em direitos de saúde e melhorias financeiras ganha, porque na burrice dos americanos, gera mais empatia com a sua malcriadez e porque se resolveu considerar que a sua oponente era a candidata do establishment.

Não faz sentido ser-se tão burro. Trump quer dizer establishment seus burros. Ou o que é que acham que um gajo com hotéis e casinos é? Os vossos direitos estão agora em perigo seus tontos, e isto é tanto verdade que basta apenas saber ler as suas declarações. A América que cai sempre na usurpação do nome do continente como se não houvessem outros países, que confunde continuadamente Estados Unidos com América. Sim essa mesma América que se considera a líder do free world e o país mais importante  do mundo e etc. e tal entregou o seu destino a um wannabe déspota que apresentou como política a fabricação de caminhos ínvios que apenas o beneficiam a ele próprio e aos que continuadamente praticam a mesma arte da intrujice onde tudo vai ser “great, you’ll see, so great, the best.” De repente até parece que estamos numa qualquer continuação do “They Live” do John Carpenter e onde apenas alguns têm o poder de ver os extraterrestres que estão no poder a dominar-nos.

Sim, não faz sentido que o candidato que acha que a China esteve bem no modo como limpou Tiananmen da revolta estudantil, que idolatra Saddam Hussein, Putin, Kim Jong Un e que acha que os países europeus têm que pagar para serem defendidos militarmente tenha ganho – embora que também isto seja uma mentira porque ele vai é aumentar a posição militar no mundo ou não fosse ele republicano. Sim não faz sentido que tenha sido a mesma pessoa que vai destruir com todos os acordos comerciais e que ao fazê-lo irá entregar o mundo de mão beijada à China. Boa sorte na vossa falência minha querida América. Tenho pena que tenhas escolhido o suicídio. A China, neste momento, estará secretamente a celebrar o facto de se ir tornar no país mais rico do mundo muito mais cedo do que o esperado. A Rússia por seu lado celebra ter eleito o seu primeiro presidente dos Estados Unidos. Muitos parabéns a todos.

E muito obrigado América, acabas de fazer com que todos as outras pessoas do mundo se sintam imensamente espertas. Quanto a mim estou oficialmente do lado da resistência e estou ao dispor se alguma cidadã americana se quiser corresponder comigo com vista a casamento. Tenho passaporte europeu, residência permanente de Macau, visto de longa duração na China e sou carinhoso, bom companheiro, não sou um bad hombre e até acho interessante se a senhora for um pouquinho nasty.

10 Nov 2016

Ser “cool” na antiga China 八雅

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos a falar do chinês “cool” e não do coolie chinês

Ser cool na antiga China significava ter adquirido as “oito graças”: 八雅。 

Cítara, Go, caligrafia, pintura, poesia, “apreciar” bebidas, arte floral, praticar o ritual do chá. Estes oito “ingredientes” faziam duma pessoa uma “brasa” da Antiguidade.

Cítara

Vou dedilhando e trauteio quando estou ébrio

Quantos cordas partirei até ficar sóbrio outra vez?

Não se trata de um poema que promova o alcoolismo, mas sim de um poema que nos fala do antigo culto da cítara. A cítara, o Go (jogo chinês de tabuleiro), a caligrafia e a ilustração representam quatro disciplinas eruditas; quatro requisitos para quem queria “dar nas vistas”. A cítara, ou古琴 era o supra-sumo destas habilidades e continha as “nove virtudes”. Ficou conhecida como o “instrumento dos cavalheiros” e era símbolo de bom gosto e de honra. A cítara é sinónimo da verdadeira música.

Go

Sonho com a minha vida entre cada jogada

Gosto de pensar três vezes antes de agir.

Jogar Go é uma arte. O Go foi um elemento importante da vida cultural na Antiguidade. Totalmente distinto de qualquer outro jogo recreativo, acreditava-se que redimensiona a perspectiva moral do jogador, o seu comportamento e a sua noção de estética. Fornece formas alternativas de pensamento.

Caligrafia

Traços fortes e curvas elegantes escrevem palavras intemporais,

O passado esconde-se dentro de cada pincel.

Diz-se que Cang Jie inventou os caracteres chineses, que são também pictogramas. A escrita chinesa contém a um tempo o som e a imagem, razão pela qual continua a ser um dos meios mais importantes para a comunicação do conhecimento.

Pintura tradicional

Como fazer permanecer a Primavera?

Só a pintura capta o perfume das suas flores.

A pintura tradicional na China centra-se na beleza da Natureza e só indirectamente reflecte a vida social da época.  Mergulhava-se o pincel na tinta para pintar em papel ou seda. O tema poderá ser a paisagem, as flores, os pássaros, imaginários ou reais, e surgem quadros de sonho.

Poesia

Flores primaveris e a chuva do Outono tecem os meus poemas

A Lua da aurora e a geada da noite entoam as minhas canções.

A capacidade pictórica da escrita chinesa torna a poesia clássica rica em imagens. Estes poemas são imagens em movimento, livres das regras da gramática, e permitem que o leitor mergulhe de imediato na visão do poeta.

Licores

Viajo até ao fim do mundo para encontrar o caminho do regresso

Mas só esta taça de vinho sabe amar a minha terra natal.

Os vinhos e licores são tão antigos quanto a poesia chinesa. Associa-se frequentemente os poetas chineses a episódios anedóticos sobre embriagados, alguns divertidos, outros trágicos.

Arte Floral

A Primavera convida um imenso esplendor ao meu jardim

A brisa sopra sobre a terra / vestida de todos os perfumes.

Mais conhecida nos nossos dias por ikebana, a antiga arte floral era considerada essencial para a felicidade espiritual.

O ritual do chá

As folhas de chá bebem a essência do sol e da lua,

Penso na solidão, quando as mergulho em silêncio na água cristalina.

O ritual do chá é uma experiência estético-artística.  É uma prática que defende a privacidade e o amor à solidão.

9 Nov 2016

Godart em retrospectiva integral

[vc_row][vc_column][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]idade ecrã, é nome escolhido para este espaço de escrita sobre cinema que aqui hoje começa. Parece com interesse explicitar o porquê do nome. Trata-se de indicar a cartografia assumida, a assunção de que o cinema, em que a definição das fronteiras estéticas, identitárias, temáticas, que respondem à pergunta feita por André Bazin em 1958 “Qu´est-ce le cinema? “, não se fecham, e não se querem fechadas, entendendo-se que a definição de fronteiras fixas enquanto cartografia do território cinema é por definição uma impossibilidade e um caminho do não-cinema.

Não se trata de um espaço que trabalha a relação particular do cinema com a arquitectura, embora também o posso ser. A “cidade” de que aqui se fala tem origem na “polis” grega mas trabalha o tempo contemporâneo. Este nosso tempo de cidade planetária, paradoxal, receosa, ciosa e orgulhosa da sua identidade mas também cosmopolita, aberta e desejosa de mundos. Cidade de contaminação permanente, fluxos constantes, em que o cinema, a língua das imagens em movimento nos múltiplos suportes ecrã, contamina e é contaminado por comportamentos, percepções, desejos, visões, medos e vontades, na construção continuada da cidade. O território do cinema na cidade ecrã é esta relação permanente de transgressão de fronteiras que o cinema é e de que se alimenta. Um cinema que tem por objecto o real sabendo-se cinema. Se se quiser, um cinema que é sempre uma instalação do mundo.

Lisbon & Estoril Film Festival ’16

  1. Ser eterno e depois morrer, Jean-Luc Godard

Feita a breve nota explicativa do título destas crónicas críticas, género jornalístico difuso, onde a reportagem com pretensões de objectividade e a reflexão sobre o que se olha se cruza de forma assumida, avancemos directo para o enorme acontecimento cinematográfico que é o Lisbon & Estoril Film Festival ’16.

De 4 a 13 de Novembro os ecrãs dos Cinemas Monumental, Nimas, Casino Estoril, Casa das Histórias Paula Rego, Cinemas Cascais Shoping, Teatro da Trindade, Centro Cultural de Belém, Teatro Nacional D. Maria II, são ocupados com a programação desta 10ª edição que reconfirma a relevância e afirmação deste festival que tem este ano na retrospectiva integral da obra de Jean-Luc Godart, um dos grandes acontecimentos cinematográficos mundiais de 2016, é a primeira vez que uma retrospectiva integral da obra do cineasta fundador da “nouvelle vague” acontece no mundo.

Não. Godard, não está morto, em breve fará 87 anos, está activo no cinema à 57 anos e é de esperar que o seu fazer cinematográfico não tenha terminado.

O festival tem identidade desenhada no seu director, o produtor Paulo Branco, e no director adjunto António Costa (o assistente de Manuel Oliveira, que mais contribuiu para a obra do Mestre).

Os nomes do comité de selecção são Michel Demopoulos, Roberto Turigliatto e o já referido António Costa.

A retrospectiva de Godard é só por si um acontecimento cinematográfico. O movimento “ Nouvelle Vague” configura a relação epidérmica do cinema com os contextos sociais culturais e tecnológicos, relação mais do que epidérmica, todo um sistema orgânico, abusando da biologia sem excesso de falta de pudor porque é afinal do humano e da falência da máquina antropológica, se quisermos seguir o pensamento de Giorgo Agamben, a que este movimento dá fala e corpo cinema.

As pesadas máquinas de cinema, na década de 50/60, são objectos tecnológicos do passado, torna-se possível filmar fora do estúdio com equipas mais reduzidas, este processo foi ainda mais radical com a chegada do vídeo e do digital, que tão bem conhecemos em décadas posteriores. Socialmente nos países do capitalismo avançado como a França, uma nova geração tem acesso ao ensino superior e está culturalmente preparada para uma relação mais exigente com o cinema, porque também é essa a sua exigência com o mundo em que vive, mundo onde é ainda possível a visão de duas construções possíveis, a da sociedade capitalista e da sociedade socialista. O movimento da crítica cinematográfica francês, fortemente politizado, tem a sua expressão maior nos “cahiers du cinema” revista fundada em 1951, entre outros por André Bazin , revista que no seu movimento originário “Revue du Cinéma” tem nomes como Cocteau, Bresson, Astruc ou Éric Rohmer. Jean-Luc Godard é um dos nomes maiores deste movimento que se pode denominar como cinema de autor, em oposição ao dominante cinema estúdio americano, no qual quando um filme entra em rodagem, nada, ou muito pouco do que já pré-determinado pode, tem espaço, para ser alterado. Este movimento, e particularmente Jean-Luc Godard, tem exactamente na fenomenologia, na abertura ao real no momento preciso da sua fixação na obra no suporte cinematográfico a, então radical, metodologia de trabalho. Não se trata de o realizador não saber o que pretende com a obra, mas de a criar numa abertura constante com a materialidade que esta fixa, o tempo e o movimento, o corpo e a dinâmica dos actores.

Não se trata de recusar o cinema americano, nem sequer o cinema narrativo, mas de ousar novos caminhos em que novos temas e exercícios formais são matéria fílmica.

A retrospectiva começou com O Acossado – A Bout de Soufle, título original, primeira longa metragem do Godard, e foi recebida com enorme entusiasmo na sala cheia do Nimas, longa metragem de 1959, protagonizada por Jean-Paul Belmonte e Jean Seberg. Neste filme, é revisitado o universo do “film noir”, mas toda a operacionalização da narrativa vivem de uma nova estética com recurso a citações; literatura, pintura e, claro, o próprio cinema. A montagem do filme recusa a linearidade, obrigando a uma nova relação do espectador com a narrativa na tela. Reinventa signos, como o do polegar a roçar o lábio, hoje icónico do glamour em atitude irreverente comercialmente usado em publicidade, caso da publicidade ao Martini. É todo um novo retrato da vida urbana de uma capital cosmopolita, Paris, que tem aqui uma singular nova voz, em que irreverência, marginalidade e juventude se cruzam, num mundo onde o afecto é fragmentado e sujeito ao acaso e modelos de sobrevivência, em que a liberdade ainda se sonha possível. É deste filme, a fala Jean-Pierre Melville, à protagonista na sua condição de repórter, o que importa é : ser eterno e depois morrer.

[/vc_column_text][vc_cta h2=”Ficha Técnica” h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:700%20bold%20regular%3A700%3Anormal” h4=”Título original: “À Bout de Souffle“” shape=”square” use_custom_fonts_h2=”true”]Realização: Jean-Luc Godard
Guião: Jean-Luc Godard, baseado numa história de François Truffaut
Género: Policial
Tempo de Duração: 86 minutos
Ano de Lançamento: 1959 (França)
Estúdio: Impéria / Société Nouvelle de Cinématographie / Les Films Georges de Beauregard
Distribuição: Impéria
Produção: Georges de Beauregard
Música: Martial Solal
Fotografia: Raoul Coutard
Desenho de Produção: Claude Chabrol
Montagem: Cécile Decugis e Lila Herman[/vc_cta][/vc_column][/vc_row]

9 Nov 2016

De Profundis

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] arte como epístola deixou há muito de fazer sentido dado que todas as formas de comunicação directa nos distanciaram deste exercício quase lendário que em muitos recantos de nós nos deixam vivas saudades. Aquela espera, aquele interesse nas linhas que dizendo nos indicavam e escavavam coisas tão ilegíveis como proféticas, tão enaltecedoras quanto expectantes… Foi assim, nesta busca de signos esculpidos pelos dedos quantas vezes nervosos, que demos ao amor uma carga imensa e nos fomos fazendo seres da escrita no que ela tem de mais narrativo, sentido, oculto e registador. Estávamos tecendo a renda interna das nossas emoções e tentando dar-lhes o suporte perfeito de um conteúdo: muita gente debruçada  em folhas de papel foi educando os sentidos e deles unindo todas as letras que reverberaram em uniões sentidas e mantidas pela vida fora, pois que nelas inscreveram vontades e tudo o que se escreve a outro adensa o registo do que a ela nos une.

Foram lendárias as cartas, desde Abelardo e Eloísa, a Rilke e Salomé, a Soror Mariana, a Pessoa e Ofélia, em outro registo de Laranjeiro a Unamuno, elas foram tecendo o melhor da identidade literária não podendo por isso serem passíveis de esquecimento ou ficarem num reduto silenciado da matéria da escrita. E é exatamente nesta linha que a longa carta de Oscar Wilde a Lorde Douglas insere neste texto a matéria do discurso. Wilde, que até esta  monumental carta tinha sido o arauto do «esteticismo» na defesa da arte pela arte, na medida em que é a vida que imita a arte e nunca a arte que imita a vida, banindo todo o comprometimento moral  e social, dado que a inteira liberdade nada tem que justificar, alcança aqui a transcendência  do grande desconhecido de si mesmo: dir-se-ia que é o seu legado de redenção este momento em que em golfadas de deslumbrante e dádiva vai expor a sua natureza religiosa abrangente e mística no enaltecer poético de um cristianismo que lhe desconhecíamos. E é aqui, que ele eleva Cristo à figura do grande poeta do mundo, da beleza de ser sem roupagens. Ele que na sua qualidade de antigo “dandy” chorou lágrimas amargas até à consciência que aqui nos presenteia.

Vem esta célebre carta a um tempo de queda e dor e também de tudo aquilo que o despiu de si, que se inicia como todos sabem com uma acção judicial onde vai procurar defender-se da difamação contra o pai do seu amante, Alfredo Douglas, Marquês de Queensberry. Enceta a sua defesa, mas perde, é condenado a uma pena de prisão e Paris vai encontrá-lo na miséria absoluta. Mas neste estertor, neste desmantelamento de si, ele vai então fazer a obra que nos fascina.  Ele vai recordar-se então de muitas passagens bíblicas, vai interligar os factos, enumerá-los, compreendê-los, quase incarná-los na sua desdita que enuncia numa estranha paz para quem passa por tão desconhecido tormento. Ao longo desta leitura vamos nós mesmo pondo em causa tanta coisa… despindo-nos de outras e, não raro, marejarmo-nos de lágrimas, pois não é a sua dor que nos interessa mas a capacidade que tem ao superá-la pelo entendimento da perda.   

Não o reconhecemos, quase, naquela outrora e genial soberba, naquela garbosa e distinta imagem de si mesmo. Ficamos por instantes atónitos, quase que molestados por tanto desassombro e, com ímpeto difícil de entender, começamos a pensar que este inimigo que o levou ao fundo foi afinal um anjo salvador: entender isto é um acto de pura iluminação, saímos limpos desta carta como de um banho no Jordão.  Não há aqui, nem ódio, nem punição, aos carrascos, ao destino, aos fados maus: apenas é gigantesco o narrar daquilo que foi amor e nos faz pensar na estranha maravilha de quem ama, daqueles que são por natureza amantes. Wilde não esconde que é frágil, que está só, que fora abandonado, mas é aqui que paradoxalmente ele fica maior, tão grande, que tudo mingua. Ele fala das feridas como se se psicanalisasse para melhor entender o mistério do mundo, ele diz: – eu fiz, eu dei-te, eu estava… – mas não se lhe nota tristeza, creio que nunca esteve tão lúcido e tão admirado face ao resultado do mundo.

“Os deuses tinham-me dado quase tudo. Tinha génio, um nome reconhecido, uma posição social elevada, brilho, coragem intelectual: tinha feito da arte uma filosofia e da filosofia uma arte … despertei a imaginação do meu século… resumi todos os sistemas numa frase, e toda a existência num epigrama… diverti-me a ser um flâneur, um vaidoso, um homem da moda…

“Estou na prisão há quase dois anos. Agora encontro, escondido no fundo da minha natureza qualquer coisa que me diz que nada, em todo o mundo é sem sentido, e o sofrimento menos que qualquer outra coisa e essa qualquer coisa escondida no fundo da minha natureza é a Humildade.”

Todas estas linhas são litúrgicas e, sendo a verdadeira «Carta aos Coríntios», não deixa de ser também dirigida a cada um de nós, que julgamos e estigmatizamos, que procuramos a culpa e os culpados, que nas formas mais naturais de ser só somos enquanto emitirmos  opinião e dela fizermos alarde. É uma carta aos Douglas escondidos em cada um de nós, tentando comer a presa gigante e derrubá-la  por leviandade; a nós, cujos dons desconhecidos nos fazem enveredar pela protecção alheia, por isso tem duas leituras intensamente vividas em ambos os sentidos.

Ele diz que embora Cristo não tenha dito aos homens «Vivei pelos outros», afirmou que não havia diferença entre as vidas dos outros e a nossa e que por isso mesmo deu ao homem uma personalidade titânica.  Não sei se Douglas alguma vez a leu, talvez isso seja o mais irrelevante, pois não seria este Wilde aquele que lhe interessava , mas caso a tivesse lido, como foi  a sua vida a partir de então?!

Não se nos ocorre dizer muito, de algo que diz tudo, porque dizer de algo assim, é quase nada, é uma demostração de rotina linguística que pode até fazer o efeito contrário e, também, ainda não há exegetas literários em matéria de texto público… mas, detemo-nos a  tentar, talvez ousadamente, neste algo em que a tentação foi para sempre banida.

Estava preso e era pobre, restava-me uma coisa bela: o meu filho! Subitamente, ele foi-me tirado pela lei, cai de joelhos, inclinei a cabeça e chorei. Encontrei a alma intacta como a de uma criança e entendi o que Cristo, enfim, dissera.”

Uma carta para a Eternidade. Uma carta que não se diz.

Não será com as cartas aos «Coronéis» que manteremos vivas as epístolas, nem sabotando o receptor que lhe iniberemos o gosto por outras leituras. Aqui, não há patentes, e fica patente, que o que se disser, não regista o que ela tão brilhantemente nos anunciou.

8 Nov 2016