A Grande Festa: Pequeno guia prático para o Spectaculum

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá patente na sala maior de exposições temporárias do Museu de Arte de Macau uma mostra chamada Ad Lib, de Konstantin Bessmertny.

Independentemente da etimologia latina e da linguagem musical, Ad Lib representa a convergência dos discursos plásticos e da criatividade patente num autor proveniente da escola russa de pintura.

Porém, para saber é necessário aprender. Depois, opera-se a decantação do aprendido, eliminando o excesso, para que, então, se possa partir para o caminho da identidade e afirmação artística.

Se tivesse vivido na Paris dos finais do século XIX, talvez Konstantin tivesse uma atracção idêntica a Degas ou a Toulouse-Lautrec. Como vive em Macau, é aqui que encontra inspiração para a elaboração de algo que apetece chamar de Espectáculo, para um olhar sobre alguns espectáculos da vida.

Esta não é uma instalação nem uma mera exposição de pintura. É, antes do mais, a apropriação e um retrato plural denotativo de todos os elementos da realidade, com a capacidade de recuperar toda a envolvência para a sua/nossa festa.

Espectaculum vem do latim spectare, ver, e de specere, olhar, e aí caímos no caminho também desejável da semiótica que Konstantin nos oferece. Entre o olhar e o ver vai a distância dos signos.

A MORTE DA LIBIDO E O APETITE

O apetite é essencialmente insaciável e, quando opera como critério de acção e prazer (isto é, em todo o mundo ocidental desde o século XVI), infalivelmente descobrirá modos de expressão (mecânicos e políticos). Marshall McLuhan

Não sendo nem Degas nem Lautrec, afastadas as hipóteses de Bosch e Peter Breughel o Velho, resta admitir que Konstantin só pode ser ele mesmo, elevado à potência que a ele próprio se conferiu nesta exposição.

Entre o Spectaculum e a Grande Boeuffe que é este evento, sente-se patente a libido criativa do artista, que aborda a carne como carne, liquidada que está a subtileza da sensualidade e do erotismo para apenas ficarem mulheres reduzidas a figurantes, que assim os homens querem e anseiam ter à disposição para consumo, sem preliminares que desconhecem, bem como cenas onde a boçalidade e o burlesco presidem. Há, nestes mundos retratados por Konstantin Bessmertny, um apetite insaciável, um elogio à ganância das sensações e à gula dos momentos.

Estas grandes pinturas, não no tamanho mas sobretudo no alcance, de escárnio e sarcasmo, retratam o grotesco e o trágico social, oriundas de uma imaginação toda ela alimentada pelo impenitente e impertinente olhar de Konstantin Bessmertny.

A KINETOGRAFIA E A PINTURA

Em formato panorâmico, Konstantin apresenta uma série de pinturas nas quais transporta para a tela cenas do grande écran e onde introduz subtítulos, mais uma vez provocatórios e inteligentes, intervindo na simulação de uma outra linguagem através da sua.

Artur Bual, quando nos finais dos anos 1960 profetizou que a linguagem do futuro seria o cinema, estaria muito longe de imaginar que hoje qualquer um pode filmar com um telemóvel. Todo o passado converge, assim, para esta interpretação do fotograma, congelamento do kinético, afirmação profética de inquestionáveis e inconvenientes verdades.

É neste constante deambular, nestes saltos entre temáticas onde reside a irrequietude de um espírito culto, lúcido e, consequentemente, crítico, escondido sob a aparente paródia dos excessos e dos gostos kitsch, que emerge o confronto entre a(s) obra(s) e o público, aqui mais habituado ao culto do politicamente inócuo, esse sim, por omissão, ignorância ou auto-censura, falhado.

ASSAMBLAGES

Assambler, juntar, junta. Não de bois, mas do carro outrora de luxo que, para além de objecto recuperado e de desfile de ostentação, nos remete para aquilo em que se tornou: carcaça ferrugenta, passeando cacos de gesso clássico, memórias de outros séculos.

Mais além, um escocês funde-se com um samurai, de mergulho, operando-se a fusão do absurdo, metáfora outra que mereceria mais do que provocar riso ou estupefacção. A arte com conteúdo, perdoe-se-me a redundância, é em si uma afirmação a ser degustada, analisada, reflectida.

VICTORIA, BAKUNIN E RASPUTIN

Três grandes retratos ocupam uma parede da sala de exposições. A rainha Victoria apresenta pechisbeques, unhas de silicone na mão direita, e um sem número de condecorações, cada uma delas merecedora de análise. O olhar deve percorrer toda a tela, porque a cada centímetro quadrado se depararão insólitas surpresas.

E se este retrato é assim, os de Bakunin e Rasputin devem merecer o mesmo escrutínio.

Konstantin Bessmertny estabelece, com esta exposição, um marco na História da arte de Macau difícil de igualar. Na sua mostra estão contidos todos os ingredientes para uma análise e crítica dos costumes que por aqui e em toda a parte reflectem uma porção da natureza do ser humano.

LER ENTREVISTA COM KONSTANTIN BESSMERTNY
15 Dez 2016

Para que serve um exército

29/11/2016

[dropcap]T[/dropcap]itula-se, no matutino O País, de Maputo: «Nakume (o Ministro da Defesa) ameaça de demissão comandantes que falharem metas», e lê-se no seguimento: «Ministro da Defesa quer que todos os ramos e unidades militares produzam comida para fazer face à crise que o país atravessa. Os comandantes que falharem estas metas devem colocar o seu lugar à disposição». Vejo por uma vez que os militares podem ser realmente úteis, num país esfacelado por uma guerra civil estúpida e cretina.

Raras vezes percebi a utilidade e a necessidade absoluta dos exércitos.

Quando Xerxes invadiu a Grécia com um exército tão grande que secava os rios à passagem (e é indubitavelmente uma coisa que assombra: um exército tão grande que sorva os rios por inteiro), Esparta mandou contra ele um primeiro (pequeno) contingente de 300 homens, que travaram os persas em Termópilas – aí percebe-se a absoluta necessidade de um exército. O mundo de hoje seria muito pior e mais triste se Xerxes tivesse vencido; os déspotas demoram sempre mais tempo a morrer que os liberais, é uma verdade dramática.

A existência de Hitler tornou evidentemente obrigatória a existência de exércitos, ou nacionais ou em coligação, que degolassem o perigo do fascismo.

Portanto, há causas e causas. Mas em setenta por cento dos casos não é assim.

Agora, para que quer Portugal um exército, com aquele “volume”? Para se defender de quê? Que proveito tem um país tão pequeno e dependente em ter um exército que lhe devora uma fatia substancial do bolo que devia ser gasto em cultura, em bibliotecas, em educação, numa melhor distribuição social? Claro que há compromissos internacionais a respeitar, mas à tal Europa cínica e estritamente económica não deviam os pequenos países entregar a factura pela obrigação de estarem envolvidos em compromissos que lhes exigem um dispêndio desproporcional em relação às suas pequenas economias?

E a questão é:

Quantas consultas em oncologia custa uma bazuca?

Quantos ginásios custa um submarino?

Quantas bolsas de estudo se pagavam com um tanque?

Quantos carros de bombeiros se pagavam com um avião de combate?

Quantas peças de teatro custa um simples Tatoo Militar?

Não quero ser mal interpretado, mas constato que ou as mulheres portuguesas e moçambicanas não sabem onde têm a cabeça, ou não têm lido muito. Pelo menos não têm lido a Lisístrata, do Aristófanes.

É uma simples história de mobilização das mulheres contra o prolongamento da guerra do Peloponeso, que, face à teimosia dos homens em mantê-la, impulsionadas pela lucidez de Lisístrata, fazem uma letal greve de sexo. A guerra não durou muito mais!

Aí está uma forma clara de atenuar as dívidas portuguesa e moçambicana: enquanto Portugal e Moçambique mantiverem um exército desproporcionado para as suas reais necessidades, as mulheres deviam vestir as calças quando fossem para a cama. Convictamente: calças sem fecho-éclair.

Ao fim de três meses julgo que teríamos os militares de gatas, voluntariamente, a pedir demissão.

Isto também vale para a posse das armas. PISTOLA EM CASA: PERNAS CRUZADAS!

Se a boa metade da humanidade, tomando o exemplo de Lisístrata, fizesse o seu trabalho e não caísse na ladainha de um mundo congeminado pelo imaginário masculino haveria menos escolas ameaçadas por fanáticos.

Eia as palavras de ordem que escolheria para uma campanhia anti-bélica: « Minha amiga: acorde a Lisístrata que há em si! Time out: pernas cruzadas, mulheres do meu país. É o futuro que está em jogo, não o engravide!». Mas nunca me perguntam a opinião! E as mulheres, de facto, não têm feito o seu trabalho.

As mulheres na Líbia eram mais voluntárias. Só que em sentido contrário. Ao Kadhafi, sempre invejei os penteados e a guarda-pessoal de moçoilas. E elas disputavam a primazia de fazerem parte da Guarda de Honra de Kadhafi.

Depois do Kadhafi ter sido despachado como foi, acidentalmente (nunca soube como se produziu esta maravilha), recebi este mail:

«Saheera Mohamed Jamila, de 26 anos, virgem, 1,85 m, versada nas técnicas de tortura suava e mandarim, cinturão negro quarto dan em karaté-suc, especialista em estrangulamentos com arame, c/ nano pistola-metralhadora hk mp5 dissimulada nas axilas, carta para pesados e para merkava 3, patton M47, m-60, Leopard, domínio de quatro línguas europeias, para além do árabe, do swaali e do chinês, expert em amaciar detractores com uma culinária alucinogénica, ex-membro do body guard de Kadhafi, a quem partia as nozes; com carta de recomendação de Berlusconi, amiga de Mugabe, procura emprego compatível, de preferência a sul do Sahara, em país laico e firme em aplicar as leis e a sua defesa e dá desconto nos primeiros três meses de serviço».

Virgem? Hum. Mas, confesso que fiquei agitado. E por quê a mim, confessado pacifista? Com um remorso antecipado reencaminhei o mail para o Ministério da Defesa, espero que tenham dado provimento, é sempre triste ver alguém tão competente de mãos a abanar.

Porém ficam as perguntas: Quanto custa manter um exército? Desmantelar um exército sai mais caro que mantê-lo? É prioritário para Portugal, neste momento, manter um exército? Não é possível reconverter a indústria do armamento? De que dívidas se fala se não se tem a força moral de se abater nas balas para se injectar no crédito às pequenas e médias empresas? E em nome de quê as tão judicativas instâncias do mercado internacional, quando avaliam em recessão a economia de um país, não preconizam de imediato: querem crédito, abatam primeiro o exército?

Está para além do meu entendimento que depois de escolher a entropia um país peça emprestado para pagar o diligente serviço das carpideiras.

Todos os anos, pelo ano novo, cresce-me nas costas um bocado de asa e tenho de a meter para dentro, deve ser disso.

15 Dez 2016

Língua suja

Santa Bárbara, Lisboa, 4 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] domingo havia já amarelecido antes do e-mail do Helder Macedo trazer comentário à morte de Ferreira Gullar, construtor desse alto lugar nesta nossa língua chamado «Poema Sujo» (Ulisseia). Brota tanta vida pelos poros dos versos que custa invocá-los a propósito da morte. Vejo-o a encolher os ombros ao ler isto. Então a morte faz parte do quê se não da vida, cara? Encontrei-o uma única vez, no Rio, com o Helder, fazendo da língua mesa de conversa, a convite da minha querida irmã zuca, Paula Ribeiro, para a revista UP, a maior ponte aérea alguma vez feita entre os dois lados do Atlântico. A inteligência surpreende-me sempre, tem qualquer coisa de navalha. Sem dor, se não incluirmos o desconforto de perdermos o chão.

Por causa dos assuntos estendidos entre nós, na casa onde os gatos disputavam a irrequietude às artes plásticas como no calçadão onde não deixou de responder às interpelações dos transeuntes, gravei com goiva a imagem cada vez mais perdida do intelectual, alguém que, livre, libertário, usa a língua para descobrir enigmas nos caminhos que rasga. Retiro da dita entrevista um exemplo apenas, agora que a culpa é bastante regada pelas cenas pós, tolhendo demais o pensamento, que, para o ser, obrigatoriamente se exige livre, libertário, sem destino marcado, como poema de Gullar.

«Eu fico imaginando o Brasil, sem o colonizador: seria o quê hoje? O índio brasileiro é da Idade da Pedra: não construiu palácios, faz umas palhotas; ia dar em quê? Sei que é chato falar dessas coisas porque tem que se ser contra o colonizador, mas eu estou-me lixando para esses conselhos. O Brasil que existe se deve ao colonizador, com as coisas boas e más. E não é verdade que mataram essa quantidade de índio aqui, é mentira. Até ao século XVIII, a língua que se falava no Brasil era tupi-guarani, a língua nacional, a língua geral do Brasil. Os nossos índios, a nossa civilização, era nómada, nómada não cresce. A humanidade só passou a crescer quando os caras se estabeleceram e viraram sedentários; aí criaram agricultura e tal. Nómada não cresce, é toda uma história inventada para amaldiçoar o colonizador. […] E porque é que falavam a língua geral do Brasil no século XVI? Porque o português que veio para cá – nenhum nobre queria vir para cá – era o cara que ia para a cadeia: “Quer ficar preso aqui ou quer ir para o Brasil?” Ia para o Brasil; chegava aqui não tinha mulher, não tinha nada, transava com a índia, fazia filho. Quem criava o filho era a índia, então ele virava índio e falava tupi-guarani, claro. O Matias de Albuquerque, quando foi chamado para acabar com a rebelião dos palmares em Pernambuco, não conseguia se entender com o governador que falava português e ele dizia que falava tupi-guarani, Matias de Albuquerque! [risos] Não é tão simples como o pessoal diz.»

Dói-me a falta de uma entrevista de vida. Pensando melhor, posso encontrá-la nas páginas de carne e sangue, de suor e merda, com que aumentou a nossa língua comum.

Mymosa, Lisboa, 6 Dezembro

Em almoço a despropósito com o Sérgio Godinho, a que se juntou o José Teófilo, acabámos falando de Elza Soares, um dos meus monstros íntimos, que passou recentemente por Lisboa. Apresento-lhes, percebi, o seu desafiante primeiro disco de inéditos, em mais de 55 anos, em A Mulher do Fim do Mundo, e que abre com poema Oswald de Andrade: «Coração do mar / É terra que ninguém conhece / Permanece ao largo/ E contém o próprio mundo / Como hospedeiro». E segue compondo retrato de mulher inteira, contando com indescritível energia e criatividade as histórias, suas e dos outros, como convém a um criador, com uma voz toda feita de carne, livre, libertária. Uma mulher do fim do mundo que, aos 86 ou 79 anos, pois não se sabe com rigor quando nasceu, canta «Meu temporal me transforma em loba/ Presa, você vai gemer/ Feito cordeiro entregue pra morte/ Seu sussurrar a pedir// Pra fuder, pra fuder, pra fuder, pra fuder.»

Nisto, o Sérgio atira para cima da mesa Carminho canta Tom Jobim. Usa até argumento ao qual não posso responder pois trauteia excertos de Sabiá. Corro, claro, que não se desperdiçam dicas de quem sabe, de cá e de lá. Fez-se logo banda sonora dos dias, embora àquela prefira de longe Retrato em Branco e Preto. Por estranho que pareça, a tristeza gritada do Fado encaixa com perfeição no alegre veludo da Bossa. Na nossa língua morrem com extrema e estrondosa elegância as ideias feitas.

Bar Irreal, Lisboa, 7 Dezembro

O mano Luís Carmelo dá-me a beber em voz alta Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar. Levanta-se bruscamente, esbraceja, esquece o microfone, segue o fio caudaloso, alteia a voz no momento preciso, para logo voltar à torrente e todo ele brilha. Parece um miúdo a desenrolar ali uma língua nova, sinuosa nas dores e intensidades, afinal tão comuns.

Estive quase para entrevistar Raduan, quando por instantes me julguei jornalista. Arrependo-me amargamente de o ter falhado. Aliás, arrependo-me tanto de ainda não ter descoberto o Brasil…

Cine-Teatro, Pombal, 9 Dezembro

Não terá sido exactamente o primeiro concerto de No Precipício Era o Verbo, projecto de palco no qual Carlos Barretto ilumina com o seu contrabaixo os poemas ditos, escritos, traduzidos e encenados por António de Castro Caeiro, André Gago e José Anjos, que também os sublinha com percussão. Mais foi a primeira vez que se atirou sem rede a uma cidade que pagou bilhete para assistir a um formato, como agora se diz, desconhecido. Resultado: uma sala que bebeu cada palavra ao longo de quase hora e meia. Experimentei no escuro da plateia um saboroso entendimento entre os quatro criadores, capaz de comover e interpelar e até fazer sorrir. Ouvi bastante, no final: por vezes, compensa sair da caixa.

14 Dez 2016

Afastados 排华 Julie O’yang

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem havia de dizer que nos nossos dias as notícias sobre refugiados e chacinas étnicas voltavam a encher páginas de jornais, fazendo-nos recuar a um passado por demais sinistro. Neste mundo de Deus já só há reedições.  Seguindo esta linha de pensamento, veio recentemente parar-me às mãos o livro Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses de Jean Pfaelzer. Trata-se de uma história chocante que ainda continua por contar, senão mesmo escondida. Nos finais do séc. XIX, inícios do séc. XX, milhares de imigrantes chineses foram alvo de motins e de outros actos de violência que tinham como objectivo afastá-los das cidades americanas da costa oeste. A história pouco conhecida sobre a qual o Professor Pfaelzer escreveu ensinou-me duas coisas: 1. Neste mundo já foi tudo visto. 2. Os chineses não se deixam ficar. E também serve para que os milhares de chineses apoiantes de Trump, que bradam sobre o “autoritarismo carismático” da personagem”, pensem melhor. Há pouco tempo recebi pelo Wechat a imagem de uma pedra tumular que tinha gravada uma mensagem que gostava de partilhar com os meus leitores.

“Primeiro vieram buscar os comunistas. Como não era comunista, não protestei.

“Depois vieram buscar os judeus. Como não era judeu, não protestei.

“A seguir vieram buscar os sindicalistas. Como não era sindicalista, não protestei.

“Depois vieram buscar os católicos. Como não era católico, não protestei.

“No fim vieram buscar-me a mim e ninguém protestou.”

Por isso da próxima vez tentem ser um bocadinho menos egoístas, está bem?

E agora um excerto de Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses:

Às 9.00 da manhã de 3 de Novembro de 1885, as sirenes apitaram em todas as fundições e fábricas de Tacoma, para anunciar o início da expulsão dos chineses da cidade. Os bares fecharam e a polícia montou guarda, enquanto quinhentos homens, brandindo cacetes e pistolas, se dirigiram ao bairro chinês para despejar todas as casas e atirar os seus conteúdos no cais. No início da semana, quando se aperceberam do clima ameaçador que pairava no ar, quinhentos chineses fugiram de Tacoma. Aos que ficaram foram dadas quatro horas para deixar a cidade. Em desespero, tinham de guardar anos de vida em sacas, trouxas e cestas, penduradas em varas apoiadas nos ombros— com colchões, roupas, tachos e alguma comida. Ao meio-dia, a multidão começou a arrancar os trabalhadores chineses das suas casas, a pilhar as roupas e a atirar as mobílias para o meio da rua. Os comerciantes chineses rogaram ao Mayor e ao Xerife que lhes dessem mais 24 horas para desmontar as lojas.

Ao início da tarde daquela fria terça-feira, vigilantes armados escoltaram duzentos homens e mulheres chineses até às docas. O Governador do Distrito de Washington, Watson C. Squire, fez vista grossa aos muitos telegramas vindos da China, que solicitavam a sua intervenção. O Mayor e o Xerife fecharam-se no edifício da Câmara enquanto a multidão conduzia os chineses, debaixo de chuva torrencial, ao longo de uma linha de comboio lamacenta que se estendia por 15 quilómetros para lá da cidade. As mulheres dos comerciantes, impossibilitadas de fazer o percurso a pé por causa dos pés enfaixados, foram atiradas para vagões.

Lake View Junction era uma estação da linha ferroviária do Pacífico Norte, que tinha sido construída por trabalhadores chineses. Um pequeno número de desalojados encontrou abrigo nas barracas de armazenamento, nos estábulos, ou dentro do exíguo edifício da estação. A maioria pernoitou ao ar livre. Durante a noite, que estava fria e chuvosa, dois ou três comboios pararam na estação. As pessoas que tinham algum dinheiro pagaram seis dólares para apanhar o comboio para Portland e para Oregon. Outros apinharam-se num comboio de mercadorias. Os restantes iniciaram uma caminhada de 150 quilómetros para sul, em direcção à Chinatown de Portland, onde esperavam encontram refúgio numa comunidade que se tinha recusado a obedecer à ordem de abandonar a cidade. Durante vários dias foram vistos a seguir a linha do comboio. Houve também quem tivesse fugido para o Canadá.

Dois dias mais tarde a Chinatown de Tacoma foi destruída pelo fogo.

Jean Pfaelzer, “Afastados: A Guerra Esquecida contra os Americanos Chineses Comunicado da Universidade da Califórnia”, 2008

14 Dez 2016

O luxo e o lixo

Leitura de Página Órfã, de Régis Bonvicino

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] livro de poesia acerca do qual vou aqui escrever é um luxo. Não é um Ferrari, é o silêncio que o Ferrari produz à sua volta, assim como a aridez dos solos ao redor dos eucaliptos. Por conseguinte, o luxo de aqui se trata é o lixo. O lixo é o silêncio do luxo, a aridez provocada pelo luxo. O sexto poema do livro, à página 21, chama-se precisamente “O lixo”. Ao lixo havemos de voltar, mas por ora comecemos pelo uso da língua, pelo modo como o instrumento é tocado. Aquilo que faz com que alguém seja maior do que é é a sintaxe. Há momentos, neste livro, em que a sintaxe nos faz ver a língua, nos faz ver o pensar, o ato de pensar, momentos em que a sintaxe nos faz ver que não estávamos a ver antes. A sintaxe é a língua pensando-se a si mesma e mostrando-se, nesse ato, à nossa consciência.

Cai a tarde / e não há quem o retarde / o cair da tarde / Cai a tarde” O artigo defino masculino do segundo verso é tudo (obviamente exagero, mas é tudo). Quero dizer que aquele “o” nos faz ver o verbo, nos faz ver o verdadeiro sentido de uma frase, aquele “o” nos revela a língua. “Cai” não é cai, cai é cair, e cair, aqui, não é qualquer cair, é “o” cair. Que este poema “Resgate” é excelente, não está em causa. Mas a excelência da poesia não é apenas o sentido do que diz, mas o manuseio da língua a fazer-nos ver a língua, a fazer-nos ver o que é a língua. Não basta dizer o que não pode ser dito para ser poesia, é preciso dizer o que não pode ser dito de um modo absolutamente sintáctico. Dizer de um modo onde a língua se pense a si mesma e nos faça pensar nesse seu gesto interior.

Por exemplo, sem o terceiro verso pensaríamos tudo completamente diferente. Para além da musicalidade, do parentesco entre tarde e retarde, isto é, para além do belo há a verdade, há o pensar, há o cair na própria língua, na sintaxe e no sentido dela. Por outro lado, “o cair” da tarde já não é mais verbo. “O cair da tarde” é complemento directo de um sujeito: “vejo o cair da tarde”; “sinto o cair da tarde”. Ou, no seu sentido mais dilatado: “impossível impedir o cair da tarde”. Mas este sentido dilatado recupera o primeiro verso “cai a tarde”. Cai a vida. Impossível retardar este cair. Este pensar, este cair em todo este sentido não é outra coisa senão a exposição da sintaxe e do seu mistério. Estamos, no fundo, diante de um livro que, desde o seu primeiro poema e a um mesmo tempo, não recusa a narrativa nem deixa de privilegiar o verso. Nada para um homem sujo / só a água numa cuba / sequer um olhar // (…) [p. 13] A narratividade expressa na primeira estrofe não anula a pertinência do primeiro verso isolado: Nada para um homem sujo (…).

E é deste homem sujo do primeiro verso que todo o livro irá tratar, isto é, de nós aqui dependurados numa cidade de costas viradas para a sua língua, para a sua história, para a sua humanidade. Que cidade é esta? São Paulo? Não. São Paulo é apenas a metonímia deste nosso tempo. A cidade é este nosso tempo exíguo, de onde dependurados vivemos com medo de cair. A primeira estrofe deste poema inaugural mostra, acusa, predica o isolamento a que alguém – um homem sujo – está votado.

Mas essa solidão ao invés de ser amenizada por um outro, pela presença de outro, é, pelo contrario, intensificada, amplificada. 1 + 1 dá quatro. Quatro solidões, ou mais, emergem quando um e outro se juntam. A cidade é uma máquina de multiplicar solidão. Na segunda estrofe do poema, o poeta escreve: mãos sujas / aroma de / amantes talvez. // (…) [idem] A possibilidade de trazer agarrado à sua pele o cheiro de amantes está directamente ligado com suas mãos sujas.

O corpo de uma mulher é um coisa, e esta relação entre um homem e uma coisa – com os dez dedos e ter / ao cabo – o corpo dessa mulher [idem] –, mais do que tudo, suja o mundo. O que mais suja o mundo é esta relação entre os humanos, isto é, entre um humano e uma coisa, pois ninguém vê o humano como humano, todo o humano é para um outro uma coisa. Esta coisa nas mãos ou na boca de um humano suja o mundo. Começa assim este livro de Régis Bonvicino. Mas não se fica por aqui. Assim, no dealbar das páginas do livro, poderia parecer que cada um em si mesmo é o luxo ou a procura do luxo e outro para cada um de si mesmo é sempre um lixo. Embora esta equação exerça sobre nós uma forte atracção, contudo, não é certa. Nem todas as coisas são lixo e nem todo o si mesmo é luxo, como veremos ao longo do livro.

Lixo e luxo, veremos em seguida, determinam-se pela utilidade ou não utilidade da relação de um humano com uma coisa. Não se entenda aqui utilidade de modo ordinário, como por exemplo um garfo diante de uma massa ou uma colher diante de um prato de sopa. Utilidade, aqui, é aquilo que nos serve e nos faz esquecer de nós e dos outros. A utilidade é, por exemplo, e no seu esplendor, a publicidade. Vejamos o poema, que se chama “Anúncio” [pp. 25-6], onde o poeta nos mostra como hoje o humano troca todos os dias a realidade pela publicidade, o existente pelo inexistente, como se de um ganho se tratasse. Mais: como se fosse o sentido da vida. O poema tem, uma vez mais, narrativa. Nessa narrativa há um acontecimento que obriga as pessoas a conduzirem seus carros mais devagar, a atravessar um viaduto muito lentamente, como tantas vezes na cidade. O poeta vai junto com os demais, mas não está com os demais. O poeta enuncia a realidade que vê: urina e fezes na calçada, latas velhas de anchova em conserva; em suma, mendigos cultivando detritos. O poeta faz-nos ver assim os novos pobres camponeses da grande metrópole e suas actividades “agrícolas”. Cultivar detritos é a grande agricultura dos miseráveis das grandes cidades.

Por outro lado, o resto das pessoas, a maioria, olha o outdoor com o rosto de uma modelo anunciando não se sabe o quê – pois nunca se sabe o quê. Ninguém vê um homem entre o arame farpado, ninguém vê esse preso no campo de concentração da vida, no campo de concentração dos dias sem nada, mas todos vêem o rosto da modelo que pode muito bem nem existir, que não existe, mesmo. Todos os dias trocamos a realidade pela ficção, trocamos o existente pelo inexistente, trocamos a poesia pela publicidade. Julgo que o titulo do livro, o sentido do titulo do livro explode páginas antes com o poema “Azulejo” [p. 18]: Meu pai e minha mãe / mortos / ninguém / algum // (…). Evidentemente não podemos esquecer o poema da página 84, “Página”. Leia-se a estrofe final: a flor da azálea / o lixo real, / e o verdadeiro / desta página

Poderíamos pensar, biograficamente, isto é, sem interesse nenhum para a poesia, que foi necessário a morte dos pais para o poeta ver a verdade e no-la mostrar. Mas toda a verdade advém sempre de uma morte ou de várias mortes no coração de alguém. Retornemos ao “Azulejo”, ao seu final: cacos ásperos / que, agora, / num ato de acúmulo / rejunto. Aquele que sobrevive à morte de um amor, fica entregue ao a-cúmulo de rejuntar os cacos ásperos da realidade, os cacos que a publicidade de todos os dias teima em fazer esquecer. O poema que dá titulo ao livro, “Página órfã”, os dois últimos versos terminam assim o livro: (…) beco sem saída, página órfã, / nunca, imitação da vida [p. 110] Imitação da vida tanto é o lixo quanto é o luxo.

Para além da sujidade do mundo, também muitos são os versos que nos mostram o seu luxo, não só através da enumeração de várias grifes, mas de hábitos ligados a um mundo de grife. O poema “It’s not looking great!”, referência explícita à top model Kate Moss, mostra que o luxo facilmente se deteriora em lixo, no mundo grife. O que não é mais útil, grifemente útil, torna-se lixo. Mais: deve tornar-se lixo e ser apontado como exemplo. Assim, as referencias contínuas, quase nauseantes de tanto a-cúmulo, a grifes e às modelos que servem de médiuns a esses mortos, tem uma razão de ser: mostrar o outro lado da realidade, mostrar o que não é a poesia, mas a publicidade, o inexistente. O luxo facilmente se vê, no poema, como lixo. À flor da página, a borboleta voa sobre o lixo e o luxo transmutando um no outro, em verdade. É assim que o poeta quer ver a sua palavra e que ela seja vista, testemunhada.

O poeta não é concreto, é duro, violento. O poeta não é lírico, é sintacticamente belo. Não há meio termo neste livro, não há classe média, não há nada médio. Sentimos a vertigem de passar dos muito ricos para os muito pobres, dos miseráveis para os hiper-supérfluos. Atravessamos ainda a rua, o verso, da ignorância medíocre para a cultura erudita. E o poema que melhor diz a poesia em geral e, em particular, a deste livro, chama-se “Prosa”, que começa assim: “Um poema não se vende como música, não se vende como quadro, como canção, ninguém dá um centavo, uma fava, um poema não vive além de suas palavras (…)” [p. 98] Nem mais. Quem investe em poesia? Quem usa a poesia do seu tempo como modo de impressionar, numa reunião social? Quem trauteia um poema enquanto faz a barba? Quem imaginaria um monstro tamanho chamado top ten poético?

E um poeta, como Régis Bonvicino neste seu livro, não canta a sua dor, não resmunga a sua verdade, nem inventa superficialidades ísmicas. Pois ele sabe que a poesia não vale nada, senão uma palavra esperando outra. Por fim, resta-me assinalar a acertada inscrição no pórtico do livro, verso de Frederico García Lorca: “y los que limpian con la lengua”. O lixo e o luxo.

BONVICINO. Régis. Página órfã, Martins, Martins Fontes, São Paulo, 2007

13 Dez 2016

Sim, o cinema português existe

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara quem tivesse dúvida, a exposição de cartazes do cinema português no mês de Novembro no salão da sociedade nacional de belas artes, edifício fronteiro à cinemateca onde ficou instalado o núcleo temático referente ao cinema mudo, afirmou essa impossibilidade. A exposição, com curadoria do presidente da Academia Portuguesa de Cinema, Paulo Trancoso, teve um terceiro núcleo com cartaz / mupis referente ao cinema contemporâneo, na Avenida da Liberdade em frente ao hotel Tivoli, hotel convocado a espaço expositivo de um núcleo dedicado ao realizador Fonseca e Costa ( Angola 1933-Lisboa 2015).

Escasso, de produção incerta, por vezes querido dos públicos ou da crítica, outras indiferente, o certo é que existe e, essa existência, data do tempo da própria invenção do cinematógrafo. Foi em 1896 que Aurélio da Paz dos Reis, realizou a “Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança” com estreia no teatro Sá da Bandeira, Porto, a 12 de Novembro desse ano. Convém relembrar que tinha sido a 22 de Março de 1895 que Auguste e Louis Lumière, tinham exibido “La Sortie de L’usine a Lyon”, que ficou como o primeiro filme doc. da história do cinema.

É de querer que vasto trabalho de arquivo esteja por identificar mas bastante tem vindo a ser feito na actividade do ANIM ( Arquivo Nacional das Imagens em Movimento ) – Cinemateca Portuguesa.

A série de cartazes exposta permite verificar a relação do cinema com o tempo contextual do país quando cada filme é pensado e realizado. Temas, relações entre o cinema português e literatura, relações entre realizadores e artistas plásticos e designers, relações entre cinema e o contexto social e político em que os filmes aconteceram, tornam-se visíveis. Para além da relação gráfica, imediata, que cada cartaz estabelece entre o filme e o design gráfico, é esta possibilidade de construir uma, das muitas possíveis, histórias do cinema português, o que torna a exposição um acontecimento de superior interesse.

Entre muitos outros, Almada Negreiros, artista maior, o português sem mestre, é quem assina o cartaz de um dos filmes ícones nacionais “ A Canção de Lisboa”.

Quando se pensa esta exposição de cartazes de cinema com um olhar que tendo origem nos estudos fílmicos se cruza com as ciências sociais, estudos culturais, historiografia, literatura; facilmente se percebe que se está perante uma história estética e representacional, não só do cinema, mas do país. Coincidente ou não com uma percepção do imaginário colectivo, é dado a ver relações do cinema com as sucessivas ideias do real que vão alicerçando as dinâmicas sociais e culturais ao longo do séc. XX e, este século XXI, prestes a entrar na idade juridicamente adulta. Olhar o cinema no tempo histórico é ver as representações culturais de uma sociedade. Todo o filme enforma, consciente ou inconscientemente, valores estético-ideológicos. “As nossas construções não são diferentes interpretações ou explicações de um mundo pré-existente e independente delas… construções e mundo são uma e mesma coisa”1

Torna-se claro, pelos temas abordados; Fado, Touros, Império, Ribatejo, Canções Populares, mas também Camões, Frei Luís de Sousa, Júlio Dinis, entre outros aspectos, como os carimbos da censura presentes com a palavra “aprovado” nos cartazes expostos ao público, que o cinema sob o Estado Novo teve esforço legitimador para uma ideia de nação nacionalista trabalhada através dos meios de comunicação de massa. No entanto, é também neste período, que o cinema novo começa em Portugal, um cinema movido por outras ambições, e ainda anterior a este movimento, o do Neo-realismo, no cinema português.

“Todavia não é fácil opor cinema convencional e cinema de resistência; eles não são campos opostos; ao contrário, são focos diferentes dirigidos sobre a sociedade, pontos de vista e estéticas diferenciadas, mas não são essencialmente distintos na descrição do mundo que constroem enquanto representação social”2

A “escola Portuguesa”, tem movimento embrionário na geração do cinema novo, em particular António da Cunha Telles, Paulo Rocha, Fernando Lopes, Manuel de Oliveira, entre outros, no contexto por um lado do movimento do cinema europeu independente e próximo da política de autores e, por outro, o real contemporâneo e a memória permanente de um país que sempre procurou outros espaços territoriais muito para além do seu lugar periférico no mapa territorial europeu, como matéria do cinema.

Esta condição não é pacifica nem tem igual entendimento nos diferentes actores do cinema em Portugal, e continua a merecer debate aberto sobre qual a prioridade, a existir, do cinema produzido com fundos públicos, ou seja, 99% dos filmes com capacidade de existir no mercado dos festivais e salas, produzidos em Portugal.

João Maria Mendes,  numa das suas sempre muito interessantes lições, diz sobre a escola portuguesa: “ O conceito de “escola portuguesa”, frequentemente usado para definir o que caracteriza o cinema de autor feito em Portugal, é uma expressão heurística que alude a obras cinematográficas e aos modos de as realizar sem definir com rigor o que lhes dá características idiossincráticas. Está associado à simpatia ou empatia de uma fileira da recepção internacional com “um certo cinema português” e esboçou-se entre scholars e no discurso crítico dos media a partir dos anos 80 do séc. XX, que assistiram à consagração internacional de cineastas como Manoel de Oliveira e António Reis e a uma menorização “política” de outros que defendiam um cinema mais comercial e feito para o entertainment de públicos mais vastos.

Em Portugal, a expressão socializou-se sobretudo a partir da publicação de Histórias do Cinema, de João Bénard da Costa, em 1991.

Paulo Rocha costumava dizer que existe um partido filo-português na crítica cinematográfica internacional, constituído por uma “elite” de cinéfilos atenta aos filmes de autor feitos em Portugal e que vê neles a persistência de uma “escola”. Tal “escola” não é facilmente reconhecida pelos cineastas nacionais, que privilegiam a diversidade de caminhos trilhados por cada um. Mas ao mesmo tempo esses cineastas percebem que a persistência da alusão a essa “escola” os favorece, por criar uma atmosfera internacional favorável às suas criações. De que ideia de cinema é esse interesse sintoma? A que “procura” ou a que “falta” respondem, nas cinematografias actuais, os filmes portugueses valorizados por tais críticos?

Seria Jacques Lemière quem viria a esboçar uma caracterização mais objectiva da “escola portuguesa”, sugerindo que ela é identificável por três tópicos:

 “1. Invenção formal e inscrição do cinema numa nova etapa da modernidade cinematográfica

2. Afirmação da liberdade do cineasta e procura constante dos meios dessa liberdade contra toda a norma industrial

3. Primado da reflexão da questão nacional”.

O primeiro tópico de Lemière remete para 1967 e para o “novo cinema”, quando 15 realizadores portugueses levaram à Fundação Calouste Gulbenkian, então percepcionada como Ministério da Cultura alternativo, o documento “O ofício do cinema em Portugal”, que estará na origem, dois anos mais tarde, da cooperativa Centro Português de Cinema, financiada pela fundação. O segundo tópico remete para a recorrente defesa cultural e política da arte cinematográfica e do cinema de autor contra as normalizações de formatos, géneros e gostos promovidos pelo financiamento, produção, distribuição e exibição de inspiração industrial/comercial. O terceiro tópico refere-se à persistência da reflexão poético/ideológica sobre “o problema português” ou da “sobrevivência nacional” nos realizadores e seus filmes: discussão de equívocos no imaginário histórico do país, sua fantasmática pobre mas imperial, herança complexa da vocação marítima, da longa síndrome salazarista e da guerra colonial, mescla de leituras da abertura gerada pelo pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 e pelo processo revolucionário a que ele deu origem, bem como da normalização política que levou à adesão de Portugal à CEE em 1985. São temas abordados ora em evocações históricas, ora em alegorias poéticas, ora, mais raramente, em filmes-ensaio.” 3

A exposição de cartazes organizada pela Academia de Cinema Portuguesa foi/é, mais uma excelente oportunidade para reflectir sobre o cinema Português.

1 Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, pág. 5 – prefácio de Carmo D’Orey, Porto, ASA 1995

2 Leonor Areal, Cinema Português Um País Imaginado Vol. 1 –Antes de 1974, Edições 70, pág. 17  ( edição com o apoio da FCT)

3 João Maria Mendes é Presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema e professor coordenador no seu Departamento de Cinema. Preside à Comissão Técnico-Científica do Mestrado em Desenvolvimento de Projecto Cinematográfico da ESTC e lecciona no Doutoramento em Artes Performativas e das Imagens em Movimento criado em parceria pela Universidade de Lisboa e pelo Instituto Politécnico de Lisboa. Foi co-fundador e é investigador integrado do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), criado em 2008 pela ESTC e a Universidade do Algarve. Antes de assumir a presidência da ESTC, foi também Professor Associado na Universidade Autónoma de Lisboa e jornalista. É licenciado pela Universidade Católica de Lovaina e doutorado pela Universidade Nova de Lisboa.

12 Dez 2016

Um Canto de mim mesmo

Oh Captain, my captain,
Exult O shores, and ring O bells!
But I with mournful tread,
Walk the deck my Captain lies,
Fallen cold and dead.

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Walt Whitman

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s noites que antecedem o Solstício de Inverno são longas e frias, muito escuras quando a Lua-Nova incide ainda mais na grande muralha do tempo que, desde os cultos de Mitra, forjaram o pavor primitivo dos Homens, que nas fundas grutas pensavam na chegada de uma noite eterna e nas Altamiras oravam ao Sol para que não os abandonasse naquela noite profunda. Tão em silêncio e reclusão estavam, que no meio deste labirinto já nem viam o grande Minotauro, mas foram descobrindo, como a primeira das revelações, que quando chegados ao ponto vernal, ela, a estrela que pediam que voltasse, aos poucos ressurgia no escuro dos dias, timidamente e gloriosa – o Sol – o invictus Sol!

Mais tarde as Saturnais Romanas, o Purim judaico, o Natal católico (faltando o Islão que se anunciou como um crescente lunar) as Civilizações foram as do Sol, e as culturas dos Homens lhe renderam homenagem.

E foi nestas noites trazidas e enlaçadas nas veias que, numa plataforma singular, me recordo dos Poetas Mortos, de todos aqueles que trazem o facho de luz da esperança e da incandescência para a Humanidade, que contacto com o corpo do poema no éter puro: recordo-me de – My Captain – “meu capitão jaz morto e frio” na madrugada exacta da morte daquele que para uns é ígneo de ferocidade, para outros a luz que faltava, para muitos um resquício do «Crepúsculo dos Deuses» e para outros um rico, muito rico, disfarçado Comandante: seja quem for, ele vive no tecido do Poema e não fazer muitos juízos de valor quando encontramos o que faltava saber nas formas não reveladas. Tenhamos apenas o humilde reflexo de as ter sabido interpretar, sem resquício de idolatria, mas relembrando o quão terríveis podem ser, muito embora solares e generosos, aqueles que os destino inventa para representar os mitos – os deuses não nos querem de joelhos, e se inábeis lhes erguemos um altar, ficam parados e tomam a decisão de se calar.

«Um Canto a mim mesmo», redundantemente sinónimo do cantor, pode ser agora «Um Canto a Galiza», um « Canto do Cisne», um Cantar de Juan de La cruz na «La noche escura del alma», tudo o que um profético Ulisses desembarcado na sua ilha tendo como amante a sua Calipso como um sonho a conquistar. Não lhe vamos oferecer flores, a longa fila de outros mortos sugá-las-iam de dor, esses seres vegetais para coroar as fadas, mas as oferendas aos mortos e dos mortos são coisas tão irreveladas, que nos interpelam como os segredos. Concomitantemente ao aniversário de William Blake, ele traz-me Urizen, aquele deus da afirmação auto-suficiente que se afasta do mundo indiviso da eternidade para ver consumado o perpétuo isolamento do seu mundo e fixados lhes foram os caracteres antropomórficos pela via metalúrgica e um novo mundo começa. Como um raio suado de coincidências alerta-se para o estado gasoso da matéria do poema, que se une em factos nas passagens de plano, e desta matéria dos mitos se faz o dedutivo momento de que somos visitados pelo organismo intacto que sobrou da vasta matéria onírica…

Uma Lua-Nova na constelação do Centauro talvez encete longe a sua força e nos deixe naquele espaço que a visão já não alcança e só pelos olhos do assombro podemos visitá-la. Como nota acrescente-se que Blake se situa exactamente na transição da cultura inglesa para o século XIX, entrando em conflito com a civilização igualitária do liberalismo moderno e que Whitman no ano em que nasce Pessoa é atacado de paralisia e publica «November Boughs», os seus últimos sessenta e dois poemas, ajudado por um amigo que angariara fundos para a sua publicação. Novembro das noites altas como catedrais, sim, que hoje mesmo neste trinta de Novembro nos levaram Pessoa e Wilde, e na noite sem estrelas, avança a maravilha do contacto como nos refrões vindos da gruta mágica, emblemas tão vivos que quase se faz luz em todo o interior e a premonição é um estado de alerta e de comunicação tão férteis que devem estar unidas ao imenso grau de empatia dos estratos humanos.

E, em jeito de Barcarola, que as barcas são dos Argos e das ilhas, vamos construindo a viagem e sabendo que ela é a vida que no términus se despede, e se anuncia assim:

Ó Capitão! Meu Capitão, terminou a terrível viagem.
O navio resistiu a todas as tormentas o prémio que buscávamos está ganho.
O porto está próximo, ouço os sinos, toda a gente está exultante.
Caminho agora no convés onde está o meu Capitão.
Tombado, frio e morto.

A viagem de Ulisses terminou. As Ilhas são locais de amor e de alguma sede de reclusão. Sabemos de como a insularidade nos toca, e, de quando em vez, temos vontade de ir para uma só nossa, onde possamos prosseguir o sonho da Utopia. Os continentes não produzem sonhos, nem neles achamos a vasta memória de toda a fonte poética que, podendo ser deleitosa, será em si a terrível face do universo que não quisemos indiviso. Afinal, o pacto foi também que todos os gases nobres não se misturassem, tal como todos os elementos também nobres que tendem a estabilizar. Sem esta fixidez seríamos náufragos baloiçando nos mares ao sabor das coisas indistintas, e, os Velos de Ouro estão guardados para os que, com a persistência das missões quase olímpicas, o resgatem e encontrem.

Nós, no torvelinho de tempos móveis como areias muito movediças não sabemos captar a fantástica função do mito nem dele tirarmos a devida lição da beleza escondida. Daqueles que para o pior e o melhor forjaram os metais de Vulcano não desejando mais que a sua altivez face à banalidade do ouro dos bárbaros, nós, já não sabemos ver para além da moral dos tempos nem ter o espaço para os encantamentos, por isso os Argonautas morreram, e as barcas são essas coisas informes boiando nos mares para velhos ricos que procuram a sua ilha. Ela não está em lado nenhum, nós somos um hiper-Continente, uma cadeia de mercados onde nos abastecemos para lidar com o mundo como se ele fosse linear e igualitariamente programado.

E, porque a noite é longa e os tempos um plasma indistinto, oiço dizer aqui em meu ouvido a frase de Whitman: – se à primeira não me encontrares, não desanimes, se não estiver num lugar, procura-me noutro, algures estarei à tua espera -.

É bom saber desta verdade.

12 Dez 2016

Objecto de si

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma pessoa viaja. Viaja-se ao fim do mundo e de si dia após dia. Um desfiar de ritmos registados no relógio meticulosamente e sem parar. Sem encontrar fim. Viaja-se. Eu viajo. Dia colado a outro dia sem distinção que não a da luz. Uma alternância, no fundo, artificial a uma continuidade de busca. Um número abstrato no calendário dos dias. Uma página morta da agenda. Viajo. Viaja-se no passado. No futuro. No imediatamente agora, no ainda há pouco, e no já mesmo a seguir. Em tempos, em espaços, nomes e rostos. Em projectos e sonhos. Sem parar. À procura talvez de um sinal. Mas chega-se ao fim do dia, e a resposta, a única resposta possível e válida está ali. No espelho da casa de banho, com azulejos brancos e sem padrão, meio escondida nessa espécie de sorriso forçado pela escova e enevoado pela pasta de dentes.

Hoje está uma lua nítida, recortada e fresca, quase uma espécie de sorriso no céu limpo de nuvens. Deitada de costas. Como se com uma placidez lunar, diria, se não fosse a lua ela própria. E sorridente, como disse. Ontem não vi. Anteontem nem me lembrei. A semana passada, já não sei, e a próxima também não. Há dias de noites assim, em que tudo é recortado no assombro liso do céu como se nada duvidasse. Estranho. Se bem que as coisas não contêm em si a dúvida. A dúvida é da matéria orgânica em agitação mental. Onde se esconde este redesenho que subjaz a todo o viaduto dos dias por sobre os dias, como vidas por sobre outras vidas, ou ideias de uma coisa e outra, e volta com a ironia de dizer estava ali sempre. Mas era o refazer do desenho original. O que é modelo ancorado por detrás de um olhar que afere escolhas e fere de materialidade depois aquilo que não era palpável. E um desenho não é. Também não é. Mas a dizer que estava ali sempre. Como essa lua reclinada, plácida, e de rosto limpo e luminoso. Ou em que luminosa foice cortante se desata o escuro de um torno de outras marés. Em que agonia imprecisa se desprende o respirar solto, afinal, como bicho manso a escoicear de alegria. Infantil, afinal. Como guizos límpidos e sem intenção. Ecos de uma montanha para outra. Em que recesso da memória se transcendeu para sempre o andar. Como se já não houvesse que haver fim. Mas só caminho. Só caminho. E a lenta lentidão das pedras a avançar de lá para cá. Serenas e brancas. Lavadas de chuva.

Fascina-me o desenho curvilíneo e sobreposto de viadutos sobre viadutos. Braços múltiplos de um ser estranho percorrido de uma circulação ruidosa. Como em vias de agitar todos aqueles tentáculos. Sempre como se à beira desse movimento. Mas tudo isso visto de longe, de cima, numa imagem captada do alto, sem realidade próxima. E só. Gosto de pontes. Das outras. Coisas de imagem frágil que se aventuram em voo entre margens. Lançadas calmamente num movimento único sobre águas serenas e imparáveis. Às vezes entranhadas de um movimento quase imperceptível. E os carros. Sobre as pontes. A fluir sobre o que já é eternamente fluido nos dois sentidos. Pontes. Como uma asa delicada e solícita poisada no ar, e congelada em todo esse momento. Qualquer momento. E no entanto, serenamente prestáveis ao poder das metáforas. Na arte da engenharia como na arte da guerra. Lançadas. Explodidas.

Depois.

Entro na vida pela mão que tem que ser – a pensar que me apetecia hoje viver fora de mão, mas pelo meio de um campo qualquer – e abro uma escrita lenta e mal acordada a ver que palavras se desprendem desta preguiça de ter que escolher. Entre tantas ainda em pijama e sem vontade de competir por uma verdade qualquer. Olho pela janela que diz que vai ser de sol. Para lá de uma luz ainda pálida a escorregar na parede em frente. Ainda muito cedo para a agilidade de cair a pique. Tímida, ou também ainda na lentidão do sono deixado sem vontade. A pensar porque será ser uma palavra tão curtinha e trabalho aquela em que se tem que saltar três amplas sílabas. Um destino que nem todos os animais têm. Porque uns, ocupam a vida em tarefas cíclicas e sem fim que não daquela. E outros, não. E em nós que tanto ocupa já de si o pensamento, acresce ainda essa espécie de natureza de empréstimo, que traz ocupações delirantemente enfileiradas, dia após noite e assim sucessivamente, coisas estranhas que se alimentam a si próprias. Balcões de finanças, caixas de correio, papéis. Sacos de lixo em testemunho de uma complexidade de que sobra tanto desperdício. Abro todos os dias oitenta vezes o contentor antiquado onde se empilham os cúmulos dos restos. E dos restos dos restos, e fico a espreitar, de olhar fixo, perplexa. Penso então que tanto se explica aí. E andar de transportes públicos. Aqueles mais impessoais que são comboios. Por sítios abstratos e subterrâneos como passagens num tempo fora de órbita. Como o tempo do xadrez em Duchamp. E pensar que não me apetece tropeçar em palavras mas e no entanto e talvez.

E depois.

O problema do ruído. Por todo o lado pode até tudo estar calado e nunca está. O problema do estrondo, é que fere os tímpanos de uma dor que impede de ouvir o sussurro que sobra. A reverberar como uma membrana num orgasmo subtil.

A mim, que raiva, tudo me enternece. Tudo me embevece. Tudo me causa impressão. Chego a casa impressa de sinais que nem todas as águas diluem numa frescura de bem- estar.

Tudo me enternece no universo, quando olho para fora de mim. Tudo me embevece, tudo me intriga, tudo me aborrece. À vez. O mar. Grande e lindo porque me transcende e me transporta. Me remete para a escala ínfima que sou e tudo de caminho, implodido nesse instante de verdade entre escalas e sofrimentos. Mas, por me transcender parece reportar-se a mim como referência que não sou, excepto para mim. E na essência do transcendente está, o ultrapassar desse centralismo incontornável. Mas, transcendendo ou ultrapassando, ou sendo maior, ou submergindo, não encontro as palavras que de um modo diferente se abstraiam de um ser a partir do qual tudo se mede. Mesmo na transição para o absolutamente maior. O inalcançável. Será que ninguém se deteve por segundos que fosse a inventar nas palavras a ausência de si, do ser como aparente medida de tudo e de nada, mesmo do nada a que o remeta a transcendência de si por outrem… Tudo me causa algo de alguma sensação de algum sentimento de alguma prostração. E às vezes eu queria simplesmente alguma indiferença algum descanso e alguma superficialidade confortável de ser de sentir e de ver.

Mas tudo me faz qualquer coisa de dizível e pior, algumas vezes, alguma coisa de indizível. Mau estar. Ou bem. Tão bem, tantas vezes, que é encantamento sedimentado e enraizado em algo de mim que também é o resto.

E depois o dizer. Os dilemas do dizer. Desperto em todos os segundos nessa tremenda batalha de luzes e confetis. Todas as coisas se baralham na ânsia de encontrar caminhos de estrelas, mas se arrastam por vezes bem rente ao solo e bem amesquinhadas da dúvida. De que matéria se faz o estigma da liberdade. De que crueldade respirada e oferecida com formas de flores, às vezes, inadvertidas flores nas formas, dores de golpe seco por detrás de uma pétala, só como se fosse. E não é. Não era, ou é como se não fosse. De que rendas se tece esse paradigma de liberdade de que nunca encontramos o ponto final, nunca um parágrafo deixa por estender mais umas linhas de perplexidade – dúvida com método. Cadeias a inibir um sistema linfático de tentativa e erro na delimitação alheia da liberdade própria. Querida e sonhada. Como uma pintura em projecto. Nítida e pertinente. Cores definidas e composição. E depois, a desmultiplicação das vertentes de um caminho montanhoso de que às vezes sobra uma luz, uma intenção imprecisa e nada mais do que a decisão do passo seguinte. Em memória, um fantasma que se dilui na coragem do olhar. Um pouco isso.

Mas tudo me ajoelha a alma, de uma constatação de ser outro e que não parte, e em nenhum outro momento que não de ser assim. Objecto de uma natureza que se rebela à concepção de objecto de si, se não for a mera circunstância de ser olhar. Alvo. De. Passiva pessoa numa definição, por proximidade com outro, olhar de outro. Ou mesmo outro olhar. Simples olhar roubo de alteridade pura. Mesmo essa, remetente ao ser aquém. Farta de mim como ser. Farta de ser sujeito. Compreendo-me na contemplação do objecto. Fora de mim.

E depois.

A falar comigo, assim, diz-me em que matéria se rende a minha solidão quando há. Diz-me em que presas se prende o pequeno golpe de asa quando há. Em que vastidão afogar o olhar mentiroso. Em que grãos subjugar a pele. Castigar tudo o que a não ser. Diz-me, digo. Vamos beber mais vinho. O que ontem não foi nada em depois.

9 Dez 2016

Cinema Documental sobre Macau dos Anos 20

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma semana em que Macau está virada para o cinema, perguntamos a quem nos souber responder, onde se poderão ver os documentários de propaganda sobre Macau, realizados pela Empresa Cinematográfica Macaense, criada por Lucrécia Maria Borges em 1924? Sim, os que foram no último dia da Feira e Exposição Industrial, a 12 de Dezembro de 1926, exibidos numa sessão dedicada ao Governador Tamagnini Barbosa e ao Almirante Hugo de Lacerda.

O Almirante Hugo de Lacerda Castel Branco foi Governador interino de Macau de 29 de Julho de 1926 até à chegada do titular Artur Tamagnini de Sousa Barbosa, o que ocorreu a 8 Dezembro e por isso, a Exposição foi prolongada até à meia-noite de Domingo dia 12. O novo Governador, chegando de Hong Kong, desembarcou com a esposa e os cinco filhos no cais provisório do novo porto exterior, sendo recebido pelas autoridades civis, militares e eclesiásticas da cidade. Para lhes dar tempo a irem para a praça do Leal Senado, Tamagnini foi dar uma volta pelas obras do novo porto. Assim, quando o carro parou em frente ao edifício do Município ali encontrou a mesma guarda de honra que o recebera à saída do barco. Subindo para o salão nobre e perante a vereação da Câmara tomou posse do Governo de Macau, “pela simbólica entrega da chave de ouro por parte do Presidente da Câmara” Damião Rodrigues. Depois, seguiu para o Palácio do Governo. À noite foi visitar a Exposição, sendo recebido pela Comissão que dera corpo àquele projecto, ficando bem impressionado.

No campo da exposição havia um serviço permanente de bufete servido pelo Grand Restaurant e nesse local tocaram várias bandas, entre elas de jazz.

Cinema na Feira

É preciso lembrar ter sido o cinema inventado nos finais do século XIX e em 1895, os irmãos Lumière foram os primeiros a projectar um filme documental num café em Paris. Na Exposição Industrial de 1926, como a Comissão não poderia dar atenção a tantos trabalhos, entregou a exploração do Cinematógrafo da Feira à Empresa Cinematográfica Macaense de Mário Borges & C.º. Desde 1924 Lucrécia Maria Borges tinha “o exclusivo dessa exploração no território da Colónia pelo prazo de dez anos” e ficou encarregue de realizar documentários sobre Macau, “onde serão apanhados todos os assuntos mais notáveis da vida da colónia”. No entanto, Beatriz Basto da Silva refere existir em 1922 o Cinematógrafo Macau, onde foi exibida “uma fita sobre Macau, destinada à Exposição do Rio de Janeiro” (…) “inteiramente feita por um amador, Sr. Antunes Amor.”

Já na quarta reunião da Comissão, a 24 de Abril de 1926, o Presidente disse que ia oficiar para Portugal a pedir várias fitas cinematográficas panorâmicas a fim de também se fazer propaganda ao nosso país, pois este apenas era conhecido pelo Vinho do Porto vindo de Portugal e do Ópio, em Macau.

A 4 de Dezembro de 1926 A Pátria refere que, no salão cinema da Exposição vão ser exibidas umas fitas produzidas em Macau pela Empresa Cinematográfica Macaense (ECM) e outras de Portugal. No dia 11 de Dezembro foi projectada a fita Os Fidalgos da Casa Mourisca, tirado do romance de Júlio Dinis, que pela segunda vez passou em Macau, sendo a sessão dedicada ao Exército de Terra e Mar. O preço de 60 avos incluía a entrada no recinto da Feira, encontrando-se os bilhetes à venda na Papelaria Progresso e Po-Man-Lau, na Livraria Portugália e na bilheteira do Teatro.

Dedicada ao Governador Artur Tamagnini Barbosa e ao Almirante Hugo de Lacerda houve no dia 12, pelas 21:30, uma sessão de cinema com filmes produzidos pela ECM, assim referido no anúncio que A Pátria publicou.

Entre estes filmes de propaganda, o primeiro a ser apresentado foi “O Vôo Audaz das Águias Portuguesas”, que mostrava a chegada a Macau dos aviadores, Major Brito Pais, Capitão-tenente Sarmento Beires e o mecânico Alferes Manuel Gouveia. Tendo partido de Vila Nova de Milfontes com dois aviões no dia 7 de Abril de 1924, tinham programado chegar a Cantão, para poder evolucionar sobre Macau, visto esta cidade não ter campo de aterragem. Na Índia perderam um avião e a 45 milhas de Macau, às 15 horas do dia 20 de Junho, caiu o avião onde viajavam, sendo recolhidos pela canhoneira Pátria que os trouxe para Macau, onde foram recebidos em grande festa pela população a 25 de Junho de 1924. É sobre a recepção do desembarque à chegada a Macau que trata o documentário.

O segundo filme era sobre “Os Funerais de um Capitalista”. Já o terceiro, “Comemoração do Quarto Centenário de Vasco da Gama”, levanta-nos algumas questões. Seria sobre a abertura da Avenida Vasco da Gama, para comemorar o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia? Tal parece impossível pois esta ocorreu em 1898 e encontrando-se o cinema nos primórdios, seria possível haver já em Macau câmaras de filmar? Ao ler sobre o que retratava o documentário, aparecem duas hipóteses mais plausíveis. Ou era da inauguração em 31 de Janeiro de 1911 do busto de Vasco da Gama do escultor Tomás da Costa, hipótese menos provável, ou sobre o Quarto Centenário da morte de Vasco da Gama, que ocorrera em 1524 e assim já poderia ser uma produção da ECM. É uma reportagem cinematográfica onde consta o desfile do cortejo cívico na Praia Grande, na Avenida de Vasco da Gama, junto da estátua do insigne navegador, com homenagens da Colónia, das comunidades holandesa e chinesa e dos portugueses de Hong Kong, no Leal Senado, uma missa campal e vários aspectos da iluminação na cidade e no porto.

O quarto filme tratava sobre “O Casamento de Mr. & Mrs. Francis Young Po Nam” e o quinto, uma produção muito recente, “O Voo Madrid-Manila” filmado em Maio de 1926, aquando da passagem por Macau dos Ases Espanhóis Capitão Gallarza e Loriga. “O Concílio Episcopal em Xangai” foi o sexto filme exibido. Por último, o documentário de propaganda sobre “As Obras do Porto de Macau”. Uma reportagem completa da cerimónia da dragagem do último metro cúbico de lodo do canal de acesso do novo Porto da Rada, ocorrida a 26 de Agosto de 1926 no Porto Exterior.

A Empresa Cinematográfica Macaense resolveu filmar os pavilhões, barracas e vários aspectos da Feira da Exposição Industrial de Macau e convidou o público a aparecer no recinto no dia 11 de Dezembro pelas 15 horas, “para que o filme possa ficar o mais movimentado possível”. Faltava um dia para esta fechar.

Seria interessante ter disponíveis estes documentários sobre Macau de há 90 anos, assim como todos os filmes realizados anteriormente e os que depois se fizeram, para criar a cinemateca da RAEM.

9 Dez 2016

Gonçalo Waddington: “O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s actor, encenador, realizador, trabalhas no teatro, no cinema e na TV, e és também escritor. Editaste recentemente uma peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, que faz parte de uma tetralogia, e no ano passado editaste Albertine (livro pelo qual viajamos na terça-feira passada, na Máquina Lírica). Quando estudavas teatro já escrevias, pretendias fazê-lo, ou foi algo que aconteceu mais recentemente?
Foi algo que aconteceu mais recentemente. Na verdade, eu e a actriz Carla Maciel, com quem eu sou casado, pedimos a um escritor para adaptar um volume – ou uma “parte”, quanto muito -, da obra Em Busca do Tempo Perdido do Marcel Proust para teatro. O escritor disse-me que não lhe interessava a proposta e que, o melhor, seria eu, Gonçalo, escrever a peça. Foi assim que me apareceu a obra Albertine, O Continente Celeste.

Para além do teatro, quais as tuas leituras mais frequentes, para além obviamente do Proust?
Sebald, Holderlin, Hofmannsthal, Lucrécio, Pynchon, Rui Nunes, Trakl, Ingeborg Bachmann, Michaux, João Miguel Fernandes Jorge, António José Forte, Herberto… entre muitos outros e outras.

Como vês este nosso tempo em relação ao cinema e ao teatro em Portugal?
O cinema e o teatro estão com uma pujança incrível. Há filmes (curtas e longas) a estrear em todos os grandes festivais mundiais, veja-se o exemplo da curta-metragem PEDRO, da dupla André Santos e Marco Leão, que irá estrear no mítico festival Sundance Film Festival. É́ a primeira curta- metragem portuguesa neste festival. No teatro temos o caso do Tiago Rodrigues, a Praga, a Mala Voadora, o Miguelinho Loureiro, a Companhia Maior, os Possessos, os SillySeason, o Tonan Quito… tantos e tantas que têm projectos incríveis.

Quais os próximos projectos em que estás a trabalhar, de momento?
Agora estou a escrever uma nova versão do guião da minha primeira longa-metragem PATRICK, que será rodada no primeiro semestre de 2018. Depois irei para a segunda parte da tetralogia d’O Nosso Desporto Preferido – Futuro Distante.

Explica-nos melhor esse teu projecto da tetralogia, por favor.
O Nosso Desporto Preferido é uma tetralogia em que proponho uma reflexão sobre a nossa evolução como espécie universal. A primeira parte da obra, com o sub-título Presente, é composta por cinco personagens, encabeçada por um cientista misantropo que sonha com a criação de uma espécie humana livre das necessidades básicas como a alimentação, digestão e, talvez a característica mais importante para a peça, a reprodução — tornando-se assim uma espécie exclusivamente dedicada ao hedonismo e à abstracção, seguindo, de acordo com a sua visão, o caminho da evolução natural da nossa civilização tipo 0 para tipo 1, em que seremos finalmente uma sociedade global, multicultural, multiétnica e científica. A segunda parte: Futuro Longínquo, é uma pequena amostra do que serão, daqui a cem mil anos, os Homo Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens Sapiens – ou, recorrendo a um neologismo Houllebecquiano, os Neo-Humanos – de uma Civilização Tipo 3, de acordo com a escala Kardashev, o astrofísico russo que se propôs medir a evolução tecnológica de uma civilização, particularmente no que concerne à produção e consumo de energia. Este grupo será composto por quatro a cinco actores de diferentes nacionalidades. Estes supra-seres dedicam-se apenas a esperar pela morte: consumidos pelo tédio, uma vez que os seus corpos têm uma durabilidade cem vezes maior da que a dos seus antepassados – nós –, tentando compreender a razão de tal desvio evolutivo que levou à espécie humana a que agora pertencem. O seu único desejo é comunicar o seu desagrado pela sua presente condição, tentando, em vão, emitir uma qualquer mensagem que atravesse o Espaço-Tempo e alerte o grupo de cientistas da primeira parte – Agora –, seus criadores, para a tragédia que eles, sem o saberem, irão – no passado – 3 desencadear com as suas experiências. Enquanto não desaparecem, dedicam-se à compreensão da Filosofia, da Arte, da Religião e das Ciências humanas, sociais e políticas, uma vez que eles, seres racionais e científicos, são incapazes de tais abstracções. Conversam e jogam Badminton.

9 Dez 2016

Mark Zuckerberg, Jack Ma e a Chinanet “非死不可”

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes de começar a ler, por favor veja este vídeo.

bit.ly/2g1EQxk

Segundo a Socialbakers, em 2010, a seguir à estreia do filme de David Fincher Social Network, o crescimento da utilização do Facebook na China atingiu nos três meses seguintes a percentagem de 612.19%. Com estes números a “Terra da Fantasia Zuckerbergiana” registou o maior crescimento de sempre.

A 20 de Junho de 2008 o Facebook lançou uma versão chinesa simplificada para atrair utilizadores da RPC. Um ano mais tarde, a 7 de Julho de 2009, o Facebook foi bloqueado pelas autoridades chinesas e deixou de poder ser acedido directamente no país.

Aqui vão algumas razões que justificam o crescimento exponencial dos utilizadores do Facebook na China.

  • • A China conta oficialmente com 420 milhões de utilizadores da Internet, dos quais apenas 160 milhões estão registados no Facebook. O potencial é irresistível.
  • • O filme Social Network despertou a curiosidade dos chineses.
  • • O jogo CityVille.
  • • Razões políticas. Países como a Somália, a Serra Leoa e a República Centro-Africana registaram índices de crescimento semelhantes entre os utilizadores do Facebook.
  • • Os jovens chineses que estudam no estrangeiro, quando voltam a casa por altura do Ano Novo Chinês, criam uma conta no Facebook a partir da RPC.

Mas estas notícias não têm novidade nenhuma. No entanto, recentemente, o assunto voltou a dar que falar. Segundo o New York Times, aparentemente, o Facebook tinha criado uma ferramenta para zonas geográficas onde é censurado, numa tentativa de voltar a abrir caminho até à Rota da China. O jornal citava três empregados da empresa Facebook que afirmaram que esta ferramenta pode filtrar as publicações dos utilizadores em zonas geográficas específicas. Segundo o artigo do Times, Mark Zuckerberg, director executivo do Facebook, apoiou a criação de uma ferramenta destinada a zonas interditas.

A partir da altura em que o Facebook foi banido na China, em 2009, por causa do desejo das autoridades de controlarem os mecanismos de partilha da informação, e os movimentos que usam a internet, Zuckerberg nunca deixou de estar empenhado em “voltar à China”. Passou anos a estudar mandarim e teve encontros com dirigentes chineses de topo, incluindo Xi Jinping. Algumas más línguas insinuam que Mark Zuckerberg guarda um conjunto de livros “sagrados” de Xi na mesa de cabeceira.

No entanto não podemos falar de Zuckerberg sem mencionar o gigante chinês do negócio online, Jack Ma e a sua empresa a Alibaba, que ultimamente viu nascer “a aurora da partilha de dados” na era da internet global. Vai ser uma aurora num céu chinês, não vai Jack?

É certo que Mark e Jack são dois super-heróis dos nossos tempos, a única coisa que os diferencia é o empenhamento com que as pessoas veneram os seus deuses.

Huang Jian, um jovem de Shenzhen, afirma que já despendeu a quantia de um milhão de yuans (145.000 dólares) em cirurgias plásticas para ficar parecido com Jack Ma. Estas operações são efectuadas na Coreia do Sul, o principal destino asiático para quem pretende submeter-se a uma cirurgia plástica. Huang afirma ser um grande fã do segundo homem mais rico da China e passou por esta transformação radical na esperança de um dia poder encontrar-se com o seu ídolo.

Por isso Mark, talvez pôr os livrinhos vermelhos debaixo da almofada não seja o suficiente. Será que planeias vir a ficar parecido com Xi Jinping? Se for o caso, força, não hesites!

7 Dez 2016

Irmãos esquecidos

Santa Bárbara, Lisboa, 27 Novembro

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste exercício de andar à gandaia de sobras dos dias para compor em colagem nem sei bem o quê tem algo de perturbador. Se me pede avaliações, aqui e ali penosas, também me obriga a ser capaz de suspender toneladas de afazeres em atraso. A mão que escreve arrasta esse peso. E quando acontecer que nada tenha vivido ou visto ou lido que interesse, que nos interesse? E quando o cansaço me vencer? Este que rima com as marés.

Biblioteca Camões, 29 Novembro

Foi por mensagem que chegou o aviso da chegada do Carlos Quiroga, com quem tenho assuntos pendentes, que o mesmo é dizer livro no prelo. «Uma cerveja no inferno ainda presta.» Soou-me logo o sotaque, onde noto, vá-se lá saber porquê, nevoeiro e ternura. Descia da Finisterra para atirar de varanda de biblioteca A Imagem de Portugal na Galiza, em espelho com essoutra, de Carlos Pazos-Justo, A Imagem da Galiza em Portugal. Li de um fôlego o pequeno volume e dei-me conta de quão longe morava deste assunto. Sabia vagamente das causas, sobretudo em torno da língua que, apesar dos afastamentos, teima em dizer-se a mesma. Não tinha tomado consciência de que, como o Carlos logo explica a abrir, o seu assunto pedia que o outro fosse estrangeiro, o que não é o caso de Portugal para os galegos. Mesmo resolvida, com porosidades, a questão das fronteiras, «os laços de família por via da emigração e troca continuada», sobretudo mais a norte, fazem com que não haja a distância essencial para o retrato. Que irmão esquecemos no sótão? Que sabemos dele, mais do que nos foi dizendo Fernando Assis Pacheco? Desconfio bem que muito pouco. Solidamente sustentado em numerosas e variadas fontes, começa por tornar claro o óbvio: não nos podemos pensar sem eles, pedaço esquecido de uma mesma entidade, que a língua tanto ajuda a coser como a desatar. «Portugal para a Galiza ou é indiferente ou é uma espécie de Paraíso perdido. A Galiza, sendo Portugal, é o espaço-cabeça de um corpo crescido para o mar e sobre o mar que tem esquizofrenicamente saudades desse corpo, hoje separado. Uma parte da consciência da Galiza, pequena, teima em reverter as consequências de circunstâncias históricas concretas que a separaram de Portugal, que por outra parte e desde há séculos, criou novas cabeças, e acha ainda nessa ligação um ponto de apoio fundamental para construir a sua identidade.» De tão próxima, esta solidão afigura-se-me bastante ingrata. Alguém que nos lê, cultura e língua, com extremosa atenção e disso faz lugar de resistência merece mais, muito mais. Lá vociferava o Assis: «Indignar-me é o meu signo diário. / Abrir janelas. Caminhar sobre espadas. / Parar a meio de uma página, / erguer-me da cadeira, indignar-me / é o meu signo diário.»

Costa da Caparica, 30 Novembro

Acompanho Artur Henriques e a sua pequena tribo a um daqueles não-lugares, ao Centro Comercial O Pescador, para mais uma sessão em torno de livros organizado pela associação Gandaia, que é animada, entre outros, pelo meu velho amigo, de costela macaense, Ricardo Salomão. Goa, Ida e Volta, ao contrário do que o título parece sugerir, não reúne apenas memórias do serviço militar ali passado no final dos anos 1950 e de um regresso ansiado duas décadas depois. Em pinceladas impressivas e grande sentido da pequena história, também o meio publicitário e artístico e a própria cidade de Lisboa vão surgindo no retrato. Fascinante, o seu modo nonchalant de viver, continuamente de bem na própria pele, tomando o mundo por casa, como em canção de Françoise Hardy, mesmo quando o entorno se esboroava. Ele há gente assim, capaz de fumar um cigarro enquanto a polícia política lhe vasculha o atelier. E de, quando um agente lhe pede cigarro, responder “não posso, só tenho 19”. Na plateia, contudo, o interesse ia direitinho e por completo para Goa: como se vivia no quotidiano, como eram vistos os soldados ou tão só Portugal, e mais longuíssimo etecetera. Não me anima, por me parecer aquecido pelos lumes do politicamente correcto, esta tendência outono-inverno do pós-colonialismo, mas as questões da identidade continuam mais vivas que cardamomo em sarapatel. A Gandaia é um daqueles projectos que vivifica os não-lugares, gestos brutos de cidadania que nos vão empurrando para fora da mais salazarenta das heranças: a dependência absurda e claustrofóbica do estado. Sem alarde, estou em crer que esta federação de vontades vai ajudando a perceber o mais óbvio dos esquecimentos de Lisboa. Quantas capitais, no mundo inteiro, estão tão próximas da praia? Do oceano?

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

António Variações nasceu num destes dias (frios) no campo e a norte. Era excêntrico, que o mesmo é dizer, ousou-se. Hoje, até os concêntricos vestem extravagâncias, mas perderam o interesse. Que os move, se Nova Iorque se cruza com Braga? «A vida é sempre uma curiosidade / que me desperta com idade / interessa-me o que está para vir / a vida, em mim é sempre uma certeza / que nasce da minha riqueza/ do meu prazer em descobrir.» Ouvi-lo a cantar Amália (Povo que lavas no rio) e depois ouvir Camané a cantá-lo a ele (Quero é viver) pode bem tornar-se início de conversa sobre identidades.

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

Fidel Castro morreu. A sua importância histórica, se preciso fosse, pode medir-se nas enormidades ditas nestes dias, onde se deve incluir o gosto pelo vinho do Porto e ascendência galega. Edel Rodriguez, ilustrador cubano que lhe desenhou muitas vezes o rosto, escreveu, por dentro do assunto, uma perturbadora metáfora: «Tentei descobrir uma maneira de explicar a situação a alguém que a não viveu. Comparei, então, Castro a um pai abusivo, um monstro, que bate brutalmente nos filhos em casa e depois os leva a jantar ou brinca com eles em público. Toda a gente vê as boas acções, mas não percebe o que, de facto, se passa em casa. A não ser as crianças, que, por terem vivido assim o tempo todo, acham que é a única realidade. Até podem ir ao seu funeral e derramar algumas lágrimas, porque ele foi o único pai que eles conheceram.»

7 Dez 2016

Albertine, o Continente Celeste, de Gonçalo Waddington

61216p12t1[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]onçalo Waddington acaba de editar uma nova peça de teatro, O Nosso Desporto Preferido Presente, na Abysmo, mas no início de 2015 saía na mesma editora Albertine, O Continente Celeste, livro que iremos ver aqui hoje. Esta peça de Gonçalo Waddington, composta em três actos, cruza a mecânica quântica e a teoria da relatividade com a obra de Marcel Proust, Em Busca Do Tempo Perdido, ou, como escreve o escritor Valério Romão no posfácio que acompanha esta edição da Abysmo: “(…) uma fatia do tempo perdido, [e não o todo da obra] através da qual se faz a arqueologia da narrativa de Proust (…)”.

Mas para além das relações cruzadas entre o tempo de Proust e o tempo das ciências do micro e do macro cosmos, aquilo que primeiro salta à vista é a ligação deste texto com os da tragédia grega. Em que sentido? No sentido da tradição, no sentido da mitologia, isto é, no sentido em  que Gonçalo Wadddington toma a obra de Marcel Proust do modo que os tragediógrafos tomavam a tradição mitológica. Através da obra de Proust, Waddigton cria uma peça de teatro; através da mitologia da Hélada, os tragediógrafos criavam as suas tragédias. A fala de Marcel a Albertine, no segundo acto, abre a possibilidade de a “tradição” de Proust ser revisitada, de se escreverem outras peças, outras tragédias acerca deste corpo de mitos que é, agora, o a obra de Proust: “Mas não é para isso que serve esta soirée, minha querida. Se quiseres podemos combinar uma outra noite com essa temática.” (p. 53)

Não é, contudo, somente esta relação transversal com a tragédia grega que encontramos como diálogo estabelecido com a tradição teatral. Há também, e aqui sem dúvida incontestavelmente consciente por parte do autor, uma apropriação, em alguns momentos da peça, dos artifícios técnicos usados por Pirandello em algumas das suas mais conhecidas peças, como sejam o caso de Esta Noite Improvisa-se e Seis Personagens Em Busca De Um Autor. Principalmente na primeira das obras citadas, que começa com o encenador no palco falando aos espectadores, antes do início da peça (aqui, em Waddington, o efeito aparece através do Anfitrião, que se dirige a nós leitores antes de entrarmos na peça propriamente dita); e, depois da fala do Anfitrião, a espera dos autores no palco pela entrada do público. Mas ao longo da peça, encontramos nos diálogos entre Marcel e Albertine um desacordo em relação ao que cada um deveria dizer, em relação ao que estaria ou não escrito pelo autor, mas que os actores deturpam ou improvisam, deixando isso inteiramente a claro. Veja-se à página 40, a fala de Marcel para Albertine: “Mas não é isso que está escrito.”, Ao que responde Albertine com: “É sim.” Ou à página 48, também em uma fala de Marcel: “Eu não escrevi nada disso.” Ao que Albertine replica, na página seguinte, com: “Pois não. Não assim. Mas as memóórias enganam.” O que nos leva a ver que, se por um lado o artifício técnico é o do grande escritor siciliano, por outro serve aqui propósitos diferentes. Não se trata propriamente do autor da peça, a que as personagens se referem, como em Pirandello, mas ao inventado autor personagem Marcel (Proust). E se em Pirandello o jogo de sombras e luz, através da verdade e da mentira, são o grande leitmotiv da pergunta pela realidade, aqui nesta peça de Gonçalo Waddington é a memória e a sua natureza de criação e recriação da realidade passada, do acontecido, que está em causa, que arde na noite.

Por outro lado, a mecânica quântica ou a teoria da relatividade, a teoria das cordas, os buracos negros, os buracos de minhoca, a anti-matéria acabam por aparecer para nós um universo tão paralelo como o universo de Proust, na sua obra, fazendo com que a memória, aquilo que constrói e desconstrói o acontecido, seja um instrumento quântico de alcance de nós e dos nossos actos; um instrumento quântico que, à imagem do princípio de incerteza de Heisenberg, não nos permite certeza nenhuma acerca do acontecido, daquilo que acontece. Não há certeza acerca de nada do que se fez ou fizemos, colocando a obra de Proust numa dimensão ainda mais problemática do que a que ela já tinha antes do início desta peça. A posição de Waddigton face à obra de Proust, ao invés de lhe dar uma mão de coerência, de linearidade, aumenta-lhe a entropia, termo fundamental para a leitura desta peça. “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem) Assim, também toda e qualquer interpretação da obra de Proust, naturalmente exposta à entropia, ao passar do tempo, aumenta-lhe a desorganização, abre brechas nas paredes das páginas, socalcos nos parágrafos; aumentam também os resíduos, o lixo, que cada vez mais nos impede de ver o quarto limpo que Proust escreveu. A chave com que se abre esta peça, que nos permite entrar no mundo de Gonçalo Waddigton, encontra-se nesta surpreendente e bela passagem, à página 29, na cena 5 do primeiro acto, em um monólogo de Marcel: “(…) warmholes (…) um túnel, ou atalho, que junta dois pontos distantes no espaço-tempo. O equivalente às madalenas embebidas em chá, no meu universo.” A existirem, os buracos de minhoca, permitir-nos-ia viajar no tempo e encurtar espaços, por conseguinte, viajar a paragens do universo às quais jamais poderíamos ir, sem esse artifício. Também é assim a memória. Ela faz-nos não só viajar no tempo, como também nos faz viajar no espaço, no sentido em que nos projectamos aos lugares que de algum modo carregamos na memória. Mas aquilo que parece interessar mais, a Gonçalo Waddigton, acerca da memória é o efeito de criação que ela mesma tem. A memória não é apenas um artifício de recolha de informação, de nos lembrarmos do que aconteceu ou do que aprendemos, ela em si mesma, nesse seu modus operandi de retorno, recria a realidade do acontecido. Como textualmente se pode ler na fala de Albertine, à página 49: “(…) Mas as memórias enganam. Fundem-se como buracos negros e tornam-se uma só. Não respeitam as regras espácio-temporais. Cada memória que fabricamos, mais uma memória que engavetamos, mais uma peça para o puzzle-eu, maior a entropia da nossa singularidade [e não esquecer a passagem já aqui citada, acima, “(…) a entropia é a tendência para a desorganização” (p. 27); “A tendência, com o passar do tempo, é para a desorganização” (Ibidem)]. O destaque anterior é de minha responsabilidade. É nesta capacidade de fabricarmos memória, que reside a nossa identidade. A identidade de cada um de nós vai sendo fabricada à medida que também fabricamos as memórias. Nem todas as memórias são fabricadas, evidentemente, mas só essas importam à identidade, só essas importam àquilo que vamos fazendo de nós mesmos. Assim, contrariamente à canção antiga, que dizia que recordar é viver, em Albertine, O Continente Celeste, criar é viver. Vive-se criando o nosso presente, no passado que fomos. Por outro lado, e nas relações estabelecidas na obra entre memória e mecânica quântica, tudo o que se cria, pelo passado que fomos, passa também a existir. Aquilo que alteramos no presente, e em relação ao passado, passa realmente a existir, mesmo que antes não tivesse existido. Veja-se a passagem, já no acto final, à página 61: “Em todos os mundos, ao invés de acontecer um colapso, como na interpretação de Copenhagen, no momento em que levanto a mão direita, há um split, uma divisão. E dois mundos-universos passam a coexistir, como linhas paralelas que nunca se tocam.” O acontecido e o fabricado em relação ao acontecido coexistem em todos os tempos, como aparece no poema final do livro, à página 63:

“Em todos os mundos
Albertine continua a tocar
As minhas sonatas preferidas
Na pianola do meu quarto.

E a acariciar-me,
Como eu quero,
Às horas que eu quero.
Albertine fica trancada no seu quarto,
Quando eu quero, sempre que eu quero.
Albertine, Albertine,
De split, em split, em split”

Mas há também nesta peça, e como não poderia deixar de ser, já que dentro do universo de Proust, o problema das relações humanas, em particular a da relação entre Marcel e Albertine (no segundo acto, apenas), mas que pode ser extensa às relações entre qualquer um de nós, em uma relação amorosa ou, melhor dito, nesse lugar peculiar que é o “depois do fim de uma relação amorosa”, como à página 52: “Porque é que nunca te casaste comigo? Porque é que não respondeste aos meus telegramas?” Ou à página 58: “Porque é que não me salvaste?” Ou ainda o tão conhecido “Achas que nós poderíamos ter ficado juntos?” (Ibidem) Albertine, O Continente Celeste mostra-nos um autor com um mundo próprio, reflexivo e que estabelece um diálogo com várias tradições, sem deixar de expor a fragilidade humana, que levanta voo com o desejo e a criação do amor.

6 Dez 2016

A bizarria como fonte

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e cada vez que vou ao Porto, acontecem-me coisas estranhas. Na verdade, acontecem-me coisas estranhas em todo o lado. Para a maior parte das pessoas, a ingerência cíclica da bizarria nas suas vidas é, no mínimo, um indesejado impedimento de que se livram tão depressa quanto lhes é possível: é aquele maluco no autocarro que afiança transportar material radioactivo nos bolsos e ser perseguido por todas as agências de espionagem mundiais; é a velhota no talho a pedir repetidamente ao incrédulo mas cada vez mais divertido talhante para lhe assegurar que na carne moída não usam gato; são todas conversas com que as pessoas esbarram dia-a-dia e que estão a montante ou a jusante das suas zonas de habitualidade e conforto. Viram costas. Despedem o assunto com um sorriso anémico e um encolher de ombros. Fingem perceber. A criança temente às coisas estranhas do mundo que há em cada um de nós estanca subitamente e, ao longe, o medo criando raízes até passa por uma apreciável e salutar dose de educação.

Para um escritor, no entanto, o absurdo não interrompe a vida. Pelo contrário. O absurdo e as suas diversas tonalidades de bizarria são o combustível que alimenta a linha de montagem da maior parte das produções literárias. Combustível tanto mais valioso como de achamento imprevisível: pode andar-se tempos infindos, nas zonas onde a bizarria mais prolifera, numa procura atenta do melhor e mais refinado absurdo, sem lograr topá-lo sequer de longe. Por isso me é particularmente difícil, mesmo que a intuição me alerte para a possível enxurrada de um tédio interminável, afastar-me das conversas com alguns sujeitos que, a pretexto de me cravarem um cigarro, se entregam imediatamente a uma espécie de confissão diarística temperada com LSD.

Regressava da apresentação do meu livro de contos “da Família”, no Porto, quando, à entrada do hotel, um rapaz aproximadamente da minha idade e cujo ganha-pão é encaixar os carros no tetris confuso do estacionamento urbano disponível, se acerca de mim, numa educação inversamente proporcional ao seu aspecto andrajoso, e me pede o habitual cigarro com que conto aforrar karma suficiente para, na minha velhice, ser agraciado com a bondade alheia de um cigarro ocasional. Acabadas de cumprir as formalidades referentes ao lume e demais agradecimentos, o rapaz, olhando-me fixamente, pergunta-me: não achas que a esquizofrenia pode ser um acto de deus? Não sendo as intervenções divinas a minha especialidade, malgrado ou talvez por causa dos quatro anos num colégio de freiras de onde até da catequese consegui ser dispensado derivado a motivos de fazer “demasiadas questões”, achei precavido esperar pela sequência de pensamentos subjacentes à interrogação, até porque tinha a certeza de quem formula semelhante pergunta deve ter muitas mais coisas a dizer. Deus, como percebi de imediato – e como sempre – foi sol de pouca dura. A esquizofrenia, essa, foi ficando.

A conversa, custosa não tanto pelo tema mas sobretudo pelo frio – uns típicos três graus numa noite de Dezembro, no Porto – assemelhava-se ao percurso confuso de um atirador furtivo incerto do seu alvo: era o pai, os maus-tratos recebidos na infância, a “filha da puta da droga”, expressão repetida ao ponto de se tornar mais uma forma de pontuar a conversa, a mãe, omnipresente pela total ausência dela no discurso, a vida e as suas minudências esclavagistas, a vida de pobre, a vida de quem é abandonado por deus, a vida da rua.

Mais de meia hora decorrida sobre o início da conversa, o Vítor – vamos assumir que se chamava, Vítor, dada a minha impossibilidade crónica de me lembrar de nomes próprios – confessa-me, aliviado como não o vira ainda, que “tinha um problema”. A única coisa que não esperava e que me fez confusão na frase foi, na verdade, o tempo verbal. No entanto, pela primeira vez na conversa, o Vítor não muda de assunto, não tergiversa, não entra e sai dos temas sem qualquer tipo de ordem ou sequência. Pela primeira vez na conversa, o Vítor está absolutamente focado.

Sabes, principia, eu ouvia – para logo corrigir – e ainda ouço, um escaravelho que está sempre num raio de oito milhas à minha volta (escusado será dizer que a custo consegui suprimir a natural tentação de lhe perguntar se se tratavam de milhas marítimas ou terrestres). Não me deixava descansar, dormir, comer uma bucha em tranquilidade. É daqueles barulhos, sabes, tipo frigorífico ou água a pingar, à noite, sabes, e eu abanava a cabeça em sinal de assentimento, cada vez mais curioso, e quando me aproximava dele, estás a ver, prosseguia, o gajo calava-se, mas era só o tempo de eu voltar para onde estava e o gajo começar a fazer barulho outra vez. Ia dando em maluco, afirmava, com aquele olhar de quem procura no interlocutor o conforto da empatia. E como resolveste o assunto, perguntei. O Vítor, não se fazendo de rogado, até porque estava à espera da pergunta desde que começara a falar no escaravelho, começa a despir as múltiplas camisolas com que se protegia da noite invernosa do Porto. Chegado à pele, aponta, orgulhoso, para uma das inúmeras garatujas que tatuara no corpo. Vês, afirma, orgulhoso, ele continua a fazer barulho, mas agora sei sempre onde está.

Queres mais um cigarro, Vítor?

Quero.

5 Dez 2016

António de Castro Caeiro: “A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s professor de filosofia na Universidade Nova de Lisboa, tradutor de Aristóteles e de Píndaro, e recentemente editaste um livro entre a filosofia e a poesia, chamado Um Dia Não São Dias, que tive a honra de apresentar. Como entendes tu esse livro?
O livro é uma tentativa de escrever fenomenologia do tempo fora de um estilo e âmbito estritamente académicos. Usei como embrião um texto escrito na USF (University of South Florida) de 2004 sobre os dias da semana. Cada dia tem o seu tom, a sua vibração específicas. A temporalização que organiza e estrutura o dia tem também diferenças. Assim também a semana, as semanas de um mês, os meses de um ano, os anos. A possibilidade teórica está dada desde a antiguidade. Em Homero e Píndaro, mas também em Tácito, os dias ou o ano são o “sujeito” que serve de plano de fundo estrutural ao ser de tudo o que acontece, ao desenrolar do tempo, ao começar e ao expirar dos prazos. Quis redigir todos os dias um pequeno texto e foi o que fiz, quando tive um Blog no Expresso online. Escrevi todos os dias durante nove meses aproximadamente. Foi esse conjunto de apontamentos que serviu de base para aquilo que depois tu (PJM) editaste.

Quais os próximos projectos de tradução, tanto os que já tenhas terminado quanto os que ainda irás começar?
Estão para sair as constituições perdidas de Aristóteles num conjunto de fragmentos dos livros perdidos de Aristóteles: os Historika. Estão a ser preparados para sair também na Abysmo dois outros volumes de traduções de fragmentos: um volume sobre o que contemporaneamente se pode chamar Estética e um outro dedicado a textos de teor científico. Sairá também pela Abysmo uma tradução das odes Olímpicas de Píndaro. Ainda por fazer está uma tradução dos fragmentos éticos dos velhos estóicos em colaboração com um colega meu, desta feita para o IFIL Nova, unidade de investigação a que pertenço.

A tua relação com a poesia vem de longe, e foi concretizada em livro numa primeira vez na tradução das Píticas, de Píndaro, em 2005, pela Prime Books e depois, mais tarde, reeditado pela Quetzal, em 2010. Recentemente aceitaste participar num projecto de leitura de poesia ao vivo com música (o contrabaixo de Carlos Barretto), chamado No Precipício Era O Verbo, juntamente com o poeta José Anjos e o actor André Gago. Já fizeram vários espectáculos pelo país e gravaram um disco. O que te levou a este projecto?

Sim, a edição das Odes de Píndaro pela Quetzal com ensaios em 2010 é já uma reformulação da tradução das Odes Píticas, editadas em 2005 pela Prime Books. A poesia arcaica, a epopeia, a lírica e a tragédia sempre me interessaram, porque aprendi que para se ler Platão não basta saber o grego em que ele escreveu, mas os princípios genéticos do Ático. A sabedoria popular ou o folclore são formas de manifestação das inquietações do espírito dos tempos e não podem ser ignoradas. No Precipício Era o Verbo não existiria sem vários factores humanos na base do seu nascimento. O João Paulo Cotrim da Abysmo apresentou-me ao José Anjos, este ao Carlos Barretto, e eles ao André Gago. Numa sessão de apresentação de Um Dia Não São Dias, na Barraca, organizada pelo poeta Miguel Martins, o Carlos Barretto propôs que tentássemos fazer leituras com Contrabaixo. O João Paulo Cotrim associou-se ao projecto e, assim, aos poucos, demos corpo a um reportório com poesia ou textos poéticos do José dos Anjos, André Gago e meus, com versões de poesia estrangeira (dórico e alemão) lida no original. A experiência do palco ressuscita a minha juventude quando actuei como baixista nos Mata-Ratos. Tem sido gratificante a partilha e fazer parte de um projecto em que acredito pela sua consistência e originalidade. Aproveito para dizer que o nosso percurso será coroado pela primeira vez com a actuação no CCB, no dia 20 de Dezembro.

Pensas em escrever acerca de poesia, de modo a produzir um livro?
Por defeito, tudo o que leio tem vista poder falar sobre o assunto nas aulas, assim também tudo o que escrevo visa a possibilidade de uma publicação, no sentido lato do termo. Tenho feito várias apresentações de livros de poesia de autores contemporâneos portugueses. Sempre produzi texto para o efeito, porque nunca consigo falar “de cor” nestas circunstâncias. Gostaria, contudo, de fazer despistagens de maior fôlego sobre o modo como a poesia exprime e se posiciona relativamente a problemas mais intimamente ligados à metafísica: a vivência da temporalidade humana, crónica e finita, definição de orientações e direcções em encruzilhadas, indecisões, destino, contra tempos, atrasos de vida, perda de sentido, crises afectivas, impactos emocionais, disposições, etc., etc.. A economia da formulação poética sempre me impressionou muito mais do que o encadeamento argumentativo. Talvez sejam duas formas indispensáveis para “dizer o humano”, complementares, indissociáveis.

E para quando um novo livro teu de filosofia?
Tenho estado a estudar a melancolia como manifestação do espírito desde os Hipocráticos, passando por Platão e, claro, Aristóteles que tem, este último, uma referência explícita ao fenómeno, nos Problemata. Depois, tenho estudado o fenómeno do ponto de vista da psicopatologia e da fenomenologia. O conjunto de estudos que sairá de um semestre que farei sobre melancolia, depressão, mania e euforia, constituirá um conjunto de anotações e de textos. O que sair desse curso permitirá a redacção de um texto. Não sei ainda qual o seu formato, mas pretendia que pudesse ser lido sem os tiques do ensaio académico e que se aproximasse mais do modelo encontrado para Um Dia Não São Dias.

2 Dez 2016

Objecto discreto

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias que são o diabo. Esse cão. Um fim de tarde quase quente a disfarçar a perspectiva de declínio desse Outono de um ano qualquer esquecido de si. As folhas no chão, que, mesmo se não houve uma ventania forte e desarrumada a vencê-las, se deixaram calmamente cair da idade própria. Talvez num voluteio dançante sem pressa. Ou talvez a pique e com um ruído seco quase inaudível. Que não deixa dúvidas de estação. De cor, de dia seguinte. Mas a temperatura da tarde, sim. Não que estivesse calor, não me expliquei bem. Era só que não estava um milímetro de uma sensação de frescura, que fosse, nem um segundo de arrepio ou a vontade de compor melhor o bolero de lã fina. Tão fina como seda. Tarde a querer esquecer o tempo e a poder esquecer a temperatura, lá bem no meio da conversa, só um constatar ligeiro de como estava bom. Ali. Num final de semana de uma liberdade desusual. Horas de conversa mansa e fácil. Numa mesa no coração do jardim, da cidade. Uma estação que como quase todas tem dias que anunciam o seu fim e dias que são como uma quinta estação. Dias sem estação. Aqueles, em que a vida não dá, não tira, nem pesa. É. Simplesmente e com alívio. Mas circulares, estes.

Depois o voltar a casa lento e um pouco triste de voltar. De um esquecimento de toda uma camada do tudo. Que volta a mim, na volta a casa. Por entre as árvores no perímetro máximo do jardim, enquanto possível. O dia baixo. A luz, a já pouca réstia do dia, a esvair-se rápida. Sem frescura de maior. A mesma mansidão de toda a tarde. Foi talvez ao fim dessa linha traçada pelo caminho mais longo e antes de deixar as árvores pelas pestanas dos outdoors publicitários, que comecei a ouvir um som inquietante como uma respiração fantasmagórica a acompanhar-me os passos como um cão. O cão. Porque há dias assim. Como sempre não acredito facilmente em sensações insólitas. Há uma desconfiança atemorizada de entrar nessa porta como a não haver retrocesso possível. Uma hesitação. Uma atenção redobrada e olhar em torno. De mim, dos pés que pararam e com eles a respiração. Uma coisa de outro mundo. Mas eu não acredito. Nem no mal e nem em outro mundo. Em nada, mais. Nem em significados nem em sentidos. Mas nos órgãos dos sentidos, no momento puro de uma sensação. Nítida. Olfativa. Mesmo até presa de matérias da memória. Às vezes o cheiro nítido. Como aquele meio adocicado do alcatrão pastoso em verões de outro tempo. Porque acredito em outro tempo quando regressa em forma de sensações nítidas. Quase tão real ou mais do que o de hoje. Em que não troquei palavra com ninguém, nenhum cheiro me mobilizou a atenção e nenhuma dor a mais me prendeu a uma cadeira. Mas ali, como sempre a ensaiar o andar leve, porque quando os passos são leves, a vida flui. Pensar o contrário é um perigo. Como  nas palavras.

Parei relutante comigo própria por o fazer a partir de uma sensação tão insólita e estranha. Nada. Recomecei os passos com a mesma desenvoltura de sempre. Há que tornar os passos leves e com eles o corpo. E tudo parece perto do voo. E comigo recomeçou à altura dos passos aquela respiração desdenhosa e pesada. Inconfundível. Era. Uma respiração. Bem, uma espécie de respiração, entendi. Sentei-me no banco do final do jardim a fazer contas ao acontecido e mais ainda a toda uma história em potência que imperceptivelmente se insinuara na minha mente receosa de se ter alienado. Era mais isso que me ocupava naquele momento. Rever as sensações, as extensões a partir da perplexidade num primeiro instante, distraída. E que talvez eu tivesse, apesar de tudo a capacidade de acreditar em quase tudo, mas a sorte de pouco me acontecer, na escala do muito estranho.

Fico ali mais um pouco na preguiça de voltar a tudo. Quase noite, entretanto. As luzes a tomar lugar. As sombras no jardim. Olho finalmente com atenção, feitas contas ao sobrenatural,  os sapatos suspeitos. Eles. Afinal. A origem do mal, aquele. E recuei uma vida a partir daí. Os meus sapatos azuis de verão. Com bem mais de quinze anos e rosto sonso de novinhos em folha. De camurça escura e sola compensada. Completamente fora de moda esse ano e outros. Como costumo gostar. Mas como é meu costume, poupados anos a fio no temor de os gastar e na perspectiva de nunca voltar a encontrar uns iguais para sempre. Acontece-me isso com as coisas de que gosto muito. Ficam num museu imaginário de porvir perfeito. Bandidos. Por detrás da sua face impecável, de quem dormiu anos numa caixa, envoltos em papel de seda, escovados e com bolas do mesmo papel a resguardar-lhes os interiores não fossem esmorecer, ganhar dores incómodas, torcicolos. Ali, depois de horas de pouco esforço a ouvir-me a conversa à mesa de uma esplanada no meio de um jardim, no meio da cidade, e sem outros sinais de depressão que aqueles suspiros. Porque eram eles. Mal me levantei a voltar à vida, abateram-se-lhes os interiores da sola espessa e compensada de uma matéria invisível e desconhecida forrada a camurça escura em azul. Qualquer coisa neles, no interior daquelas solas altas, abateu discretamente um centímetro ou dois. E ao sabor dos passos aquele suspiro duplo, emitido por cada um dos sapatos de verão em camurça azul, de que tanto gostava e que ao olhar nada diziam do desastre que lhes comia as entranhas de cada vez que poisavam no chão. Ora um, ora outro. Aquela respiração pesada e desesperada como um suspiro. Alto, audível e sem dúvidas de realidade. Guardo-os, anos, pelas formas anacrónicas. Pelo puro prazer das formas, pelas épocas que evocam, pelos momentos colados a eles como um nome, um dia de um ano. Personagens. Luzes especiais. Como colecionadora que não sou. Odeio colecções mas gosto de formas e de sapatos como registo de vida. Poupo-os demais. E mesmo assim, aparentemente na sua vida própria e resguardada, envelhecem e adoecem. Deprimem. Talvez de falta de luz e existência.

Mais tarde levantei-me com pouca vontade do banco do jardim da cidade, e segui o meu curto caminho para casa, acompanhada agora de dois seres deprimidos, envergonhada daqueles suspiros a acompanhar-me como se torturasse alguém por debaixo dos meus pés. Mas antes, num olhar desprevenido para o lado, ainda a apreciar essa temperatura como ausente, ali mesmo ao meu lado no banco de jardim, como se sempre ali tivesse estado, o objecto. Pequeno, o cano curto e luzidio. A menos de um palmo da minha saia. Jurava pela minha saúde que não estivera ali desde o início. O início da minha pausa para pensar na respiração estoica ou sofrida dos sapatos velhos com ar sonso de novinhos em folha. Como disse.

Reconheci-o sem nunca o ter retirado da bolsa de seda preta, comprada num mercado de rua num outro lugar do mundo, em outro ano. Mas na realidade nunca o tinha visto para além de uma forma imprecisa a avolumar discretamente, por entre o drapeado da seda preta com flores brancas, bordadas. Da bolsa de seda, comprada num mercado de rua. Uma coisa de um contrabando tão implícito que nem o preço negociado o insinuou por instantes que fosse. Mas a bolsa jaz também ela envolta em papel de seda numa gaveta de coisas preciosas e secretas. Algumas. É uma coisa insólita. Esta. Até porque é uma estética de outros tempos também mas que em nada condiz com a dos sapatos. Nessas coisas sou rigorosa. Por isso não a levei comigo. Nem o revólver. Que nunca retirei da bolsa de seda do papel de seda e da gaveta secreta. Olho o revólver pequenino e perigoso e em volta a ver se outros olhos o reconhecem com é. Ou o veem, no mínimo. O que seria, no mínimo, tão embaraçoso como os suspiros a acompanhar-me a casa, pesados e persistentes. A hipótese do invisível, não é melhor. Colho-o nas pontas dos dedos, e no olhar de suspeita, a medo e aninho-o no interior do bolero de lã fininha, como a um pequeno bicho friorento. Sem saber o que lhe fazer. Nem ter nada a ver com ele. Nunca uma palavra o levou ao interior daquela bolsa de seda. À gaveta do roupeiro. Ao caminho. Ao banco de jardim. Caminho pela rua e sem querer algo em mim suspira inadvertidamente como se alguma coisa algures acima dos sapatos num ponto indeterminado, se tivesse abatido aí também Em mim. Para além de um centímetro ou dois de cada vez que poisava um pé no chão. E depois o outro. E sempre o mesmo centímetro ou dois. Talvez a pequena mancha distraída, de um vermelho escuro mesmo por baixo do revólver, no banco de jardim. Inocente. Silenciosa.

No caminho, algo em mim vai esquecendo tudo senão aqueles persistentes suspiros que não param. Afrouxo uma das mãos do peito e do bolero de lã fininha a esconder o insólito e vejo-a colorida de um calor vivo escuro e viscoso. Escondo-a junto ao bicho clandestino e sei de onde, dentro, se verte a cor. De que ponto preciso do meu desconhecimento anatómico desculpado pela pele. Previdência natural mas não infalível. Algo se rompeu dela ali. Não ouvi o som. Não senti a dor. Talvez distraída pela temperatura confortável e ausente. Chego a casa e a chave escapa-me da mão de cansaço. Com o ruído estridente do prédio silencioso por fundo. Percebo que não morri. Pelo ruído. Talvez. Há o som das chaves. De casa. E a casa. Lambo dois dedos para não sujar a chave e o sabor doce, o aroma inconfundível do chocolate. Desconfiava que me corria nas veias. Antes assim, qualquer coisa comestível a partir de um coração de bolacha – ou de suspiro – do que imaginar-me sempre a carregar uma quantidade repugnante de vísceras semi-desconhecidas. Antes um corpo abstrato. A verter chocolate quente. E não houve crime. Mas qualquer coisa.

Se fosse, era passional. O estrondo do estampido do impacto do tiro e o calor de um abraço. Mas a temperatura era ausente. Como disse. Portanto não houve crime. Nem história para contar. Mas houve qualquer coisa. E num dia qualquer começou a doer.

E depois, ela, ali, baixinho, a outra, ela ali baixinho, de frente, em confidência, em desespero, que a morte não pode nunca ser metáfora de nenhum abandono, abandono de si, de nenhuma indiferença, de si, de nenhum outro, de nenhum outro em si ou vice-versa. Que a vida tem um preço maior. Em abismos e seres da natureza deles, em mergulhos e tempos que os relógios param para observar, em perdas e ausências mútuas, ou em trocas de territórios como roupas emprestadas. Existir mental fora de si e existência sentida como habitada em si. E tudo dali, excepto a morte, tem um preço de vida sensível, visível ou invisível de aceitação tácita. Não há morte. Senão a que tem que ser. A única e não amada mas familiar a achegar-se mansa de falas porque o seu dia, ninguém lho tira.

Sentada à mesa da cozinha com aquele caderninho anacrónico das receitas, repensa quantidades e proporções. Um pouco mais de chocolate, mas experimentar com pimenta. Que quantidade arriscar, coisa a pensar muito bem. Talvez por tentativa e erro. Como chegara à receita daquele bolo cremoso, de comer morno, saído do forno. A verter chocolate ao primeiro toque.

2 Dez 2016

Os incidentes de 3 do 12 de 1966

1-2-3
A estátua do Coronel Vicente Nicolau de Mesquita, situada no Largo do Leal Senado desde 1940, antes de ser deitada abaixo

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 3 de Dezembro de 1966 ocorreram confrontos entre a comunidade chinesa de Macau e as forças do Governo português, episódio conhecido pelo “1-2-3” e que se prolongou até 29 de Janeiro de 1967. Era o extravasar de tensões, trazidas como herança do não reconhecimento por parte do Governo de Lisboa da República Popular da China, proclamada a 1 de Outubro de 1949, assim como em Macau, a resistência feita pelo governo português às forças comunistas da cidade e as ajudas que aqui tinham as organizações nacionalistas, partidárias de Chiang Kai-Skek e derrotadas em 1949 pelo Partido Comunista numa longa guerra, levando-os a fugir para Taiwan. Os que para aí não seguiram refugiaram-se em Hong Kong e Macau e daí faziam constantes provocações aos governantes da República Popular da China.

O brigadeiro Nobre de Carvalho aceitara o cargo de Governador, quando Macau era um lugar tranquilo, sem os problemas que enfrentavam os restantes territórios portugueses do Ultramar. Vinha substituir Lopes dos Santos que, devido à doença da sua esposa foi obrigado a ficar por Portugal e apesar de novamente nomeado para um segundo mandato, teve de o recusar. O novo Governador Nobre de Carvalho, só quando chegou a Hong Kong, a 25 de Novembro de 1966, soube pelo seu homólogo da colónia vizinha, Sir David Trench, o problema que o esperava. No barco para Macau, o chefe de gabinete Mesquita Borges e o ajudante de campo, Mendes Liz, explicaram-lhe o problema ocorrido a 15 de Novembro. Tudo começara com a construção de uma escola na Taipa, para a qual a Associação de Moradores da Taipa tinha há longo tempo pedido uma licença às Obras Públicas, mas vendo o tempo a passar e sem resposta, os residentes resolveram começar a construir o edifício. Logo interveio a polícia, havendo feridos, o que revoltou a população chinesa. Acabado de chegar, “Nobre de Carvalho foi apanhado completamente de surpresa e viu-se no meio de algo que não entendia, apesar de ter ficado com o caso para resolver”, segundo Manuel Maria Variz, com quem a partir daqui seguimos o seu relato. A 3 de Dezembro avançou uma manifestação de chineses até ao Leal Senado e perante a fraqueza da polícia, que não recebia ordens do seu comandante, “os amotinados espatifaram o Leal Senado e a Secretaria Notarial e não fizeram mais porque não quiseram…”

Documento secreto

O documento, que passamos a reproduzir, foi considerado «secreto».

Resposta do Governo de Macau ao protesto que lhe foi apresentado pelos representantes dos habitantes chineses de Macau: “O Governo de Macau solenemente declara. Que decidiu assumir a inteira responsabilidade do incidente sangrento de «15 de Novembro», ocorrido na ilha da Taipa. E dos trágicos acontecimentos de «3 de Dezembro», ocorridos em Macau.

A fim de impedir que habitantes chineses da Taipa reconstruíssem a sede da sua Escola, o Governo de Macau, em 15 de Novembro de 1966, destacou polícias para reprimir aqueles habitantes de que resultaram feridos e detidos, o que provocou indignação nos habitantes chineses de Macau.

No dia 3 de Dezembro, quando professores e alunos chineses de Macau se dirigiram ao Palácio do Governo para apresentarem o seu protesto, o Governo de Macau novamente destacou polícia para os reprimir e, em seguida, impôs a lei marcial, reforçou tropas para disparar tiros, dos quais resultaram mortos e feridos entre habitantes chineses.

Nestes incidentes, infortunadamente, ao todo, foram mortas 8 pessoas, ficaram feridos 212 e detidas 62, admitindo o Governo de Macau representarem estes factos sérios crimes dos seus principais causadores.

Por isso, o Governo de Macau dirige-se agora, respeitosamente às famílias dos mortos e aos feridos, aos que estiveram presos e a todos aqueles que porventura tiverem sofrido quaisquer prejuízos durante estes incidentes, bem como a todos os habitantes chineses de Macau, para admitir as culpas havidas, significar as respectivas escusas e manifestar o seu profundo pesar.

Tendo decidido aceitar, na totalidade, os seis pedidos apresentados pelos representantes dos habitantes chineses de Macau e executá-los imediatamente, o Governo de Macau já exonerou sucessivamente das suas funções, por os admitir como causadores destes incidentes e para apuramento das suas responsabilidades, o Comandante Militar Mota Cerveira, o Comandante da Polícia Galvão de Figueiredo, o Segundo Comandante da Polícia Vaz Antunes e o Administrador interino do Conselho da Ilhas Rui de Andrade, ao quais foi ordenada a sua imediata saída de Macau, para regressarem à Metrópole, para aguardar julgamento das instâncias competentes e correspondente punição.

Igualmente decidiu o Governo de Macau chama a si a responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas do enterro e da cerimónias fúnebres, bem como das compensações às famílias dos mortos, pelo pagamento de todas as despesas de hospitalização e tratamento dos feridos e também dos prejuízos inerentes, responsabilizando-se, ainda, pelo pagamento de todos os prejuízos resultantes da invalidez dos feridos, pelo pagamento das indemnizações às demais vítimas, por todos os prejuízos derivados destes incidentes.

O governo de Macau pagará em dinheiro todas as indemnizações acima referidas, cujo montante é de $2.058.424,00 (patacas) e solicita aos representantes de todos os sectores sociais dos habitantes chineses de Macau a indicação de um organismo para se encarregar da sua distribuição.

Aboliu-se já a lei marcial, foram postos em liberdade todos os indivíduos detidos durante estes incidentes e cancelados os processos que respeitam aos seus registos, devendo também considerar-se anulada, por infundada, a sentença proferida contra um dos habitantes chineses presos durante os incidentes da Taipa e cancelado o seu processo.

O governo de Macau já reconheceu a legitimidade da pretensão dos habitantes chineses da Taipa para reconstruir a sede da sua Escola, podendo esta obra ser efectuada imediatamente.

Acrescente-se ainda que foi atendido o protesto do diário «Ou Mun», referente ao caso da sua reportagem o incidente da Taipa, pelo que se assegura que, de futuro, não se repetirá semelhante ocorrência.

O governo de Macau reitera o seu pesar a todos os habitantes chineses de Macau e dar efectivas garantias de segurança das suas vidas e dos seus haveres e de protecção dos seus justos direitos e interesses, para o que, além do mais, reafirma e assevera que, de futuro, não permitirá decididamente que os agentes secretos do grupo do Tchiang Kai-Chek pratiquem quaisquer actividades em Macau. O Governador de Macau – José Manuel Nobre de Carvalho”.

A assinatura do acordo de capitulação, com um texto imposto pela parte chinesa, teve lugar na sede da Associação Comercial a 29 de Janeiro de 1967 e a ordem pública durante todo esse ano foi mantida com o auxílio de milícias das kaifong, como refere José Pedro Castanheira.

2 Dez 2016

Como tornarmo-nos bestas, Capítulo I

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22/11/2016

a-mae-do-dumbo-1[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á nem os animais são o que são. Aliás nunca foram o que pareciam: as sereias, por exemplo, pelo menos as originais, as gregas, nunca tiveram rabo de pescada. São mais harpias, com toscos troncos de ave e garras. Nunca consegui contar a verdade às minhas filhas.

Em Moçambique, em 2010, uma cabra passou a ser mulher. Na Beira, um camponês encontrou dois matulões a violar-lhe a cabra. Levou-os à polícia, na ponta da espingarda. Aí perguntaram-lhe, Que quer o senhor como compensação? E ele, sisudo, respondeu, Quero que me dêem o lobolo (o dote). A coisa seguiu para tribunal, onde foi objecto de uma encarniçada discussão sobre se seria legítimo conceder-se um lobolo a uma cabra. Estrebucharam as associações ligadas à questão do género, mas o que se pode fazer: é cultura!

Houve outro caso espantoso em 2012, mais para o norte. Um régulo (o chefe da aldeia), falecido há pouco tempo, reencarnou num hipopótamo. Foi um sururu. O hipopótamo passou a ser agraciado com o petisco favorito do régulo: picapau ( um prego trinchado) e uma garrafinha de vinho carrascão. Parece que o bichano levantava uma orelha quando o chamavam pelo nome do régulo. Era encantador. A um tal ponto que o governador da província lhe fez uma visita e um tributo: levou-lhe umas caixas de vinho de boa cepa portuguesa e cem quilos de carne já cortada, para um ano de mantimentos. Respeito é respeito. As crianças descalças da aldeia aplaudiram e o professor, que lhes dá aulas sob uma árvore e sem carteiras, fez uma quadra alusiva. É o que se chama desenvolvimento humano. Eu escrevi no Savana:

«(…) literalmente acredito em tudo. Que a alminha do régulo transborde para o quadrúpede é-me pacifico. Mas o facto de acreditar em tudo, e esta é a diferença, não quer dizer que dê o mesmo valor a tudo. Uma coisa ser plausível não quer dizer que seja necessária. This is the question.

E acredito piamente que o facto do régulo ter encarnado no hipopótamo constitui uma demonstração de vanidade total dos poderes sobrenaturais do régulo. Na cadeia evolutiva dos seres, para citar Pascal, estando o homem encravado entre a besta e o anjo (para dar o nome de uma figura ao espírito), qual a vantagem de voltar em hipopótamo?

É um retrocesso. Pode até ser verdade mas é absolutamente improdutivo. Vejam lá o extremo poder que alguém exibe voltando em hipopótamo! Não seria preferível voltar como físico nuclear, o maior da região e arredores? Voltar em hipopótamo parece-me o mais disparatado dispêndio de energias. Ainda por cima pervertendo a natureza sã do hipopótamo, tornando-o alcoólico.»

Os filósofos falam disto – desta convivência entre o animal e o homem e o que deles há em nós e vice-versa. Derrida dedicou um livro ao assunto. O italiano Agamben não lhe quis ficar atrás. E já antes o Deleuze falava do devir-animal.

(Não sei o que os filósofos escreveriam sobre este assombro, ainda maior: em 2007, a STV – o segundo canal de televisão em Moçambique – fez uma reportagem sobre a mulher que supostamente teria dado à luz um bule e três chávenas de chá. Durante essa semana, nas aulas da universidade, tive que debater as dúvidas dos alunos sobre se tal seria possível, porque na verdade a metade deles queria crer nessa possibilidade.

A mim o que me espantava era a falta de ambição da parturiente. Se se pode ser mãe de um serviço inteiro da Vista Alegre, por quê ficar por um bule e três chávenas? E parecia-me até um óptimo princípio para uma economia no casamento, as nubentes primeiro paririam o recheio da casa, mobílias, candelabros, carpetes, panelas e tachos, depois a própria casa, e só depois casariam. Mas voltemos aos animais.)

Uma prova de que o devir-animal não funciona univocamente, mas sim para os dois lados, encontrei-a em Cabora Bassa, onde encontrei a fotografia que ilustra esta crónica. Ela demonstra que a Natureza via o Disney e que adora o Dumbo. Se me tivessem contado não acreditava, mas parece que Deus brinca mesmo connosco, às paródias.

Paródia e das boas foi o que aconteceu a semana passada, no sul da Líbia. Transcrevo:

“Um incidente envolvendo um macaco foi a causa inicial de um confronto tribal de 4 dias, que deixou pelo menos 16 mortes e 54 pessoas feridas na Líbia, informou no domingo um funcionário da área de saúde local.

De acordo com os moradores e relatos locais de Sabha, no sul do país, o surto de violência começou de modo inusitado, depois de um macaco, pertence a um comerciante da tribo Gaddadfa atacar um grupo de garotas estudantes que passavam pelo local.

O macaco teria puxado o véu islâmico de uma das garotas, fazendo com que os integrantes da tribo Awlad Suleiman matassem, em retaliação, três homens da tribo Gaddadfa, além do macaco – de acordo com um morador local que falou com a Reuters. “Houve um aumento da violência no segundo e no terceiro dias, com uso de tanques, morteiros, e outras armas pesadas”, disse o morador à Reuters, pelo telefone, falando na condição de anonimato por temer pela sua própria integridade física.

Na região de Sabha, uma espécie de ponto de entrada de emigrantes e de armas contrabandeadas no sul da Líbia, geralmente negligenciadas pelo Governo Central, os abusos de grupos de milícias e a deterioração nas condições de vida têm sido especialmente alarmantes.

Gaddadfa e Awla Suleimand representam as maiores e mais poderosas facções armadas da região… etc., etc.”

Pobre do véu, era o único inocente nesta história. Porque a rapariga, tenho a certeza, quando se viu sem véu, nua, gozou![/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

1 Dez 2016

Fidel e a complexidade da relação com a China 卡斯特罗:“不到长城非好汉。”

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]idel de Castro morreu a 25 de Novembro de 2016,  com 90 anos de idade. O Presidente da China, Xi Jinping, leu uma mensagem na abertura do noticiário da noite da CCTV: “O povo chinês acaba de perder um companheiro bom e leal. O Camarada Fidel viverá para sempre.”

Em Janeiro de 1959 Fidel de Castro, à frente da Revolução Cubana, derrubou o regime pró-americano de Batista e estabeleceu um governo revolucionário. Foi o início de uma era política que durou  mais de 50 anos. O relacionamento entre a China e Cuba desenvolveu-se rapidamente desde os acordos criados em 1960, e Cuba tornou-se o primeiro país latino-americano a ter relações diplomáticas com a China. Durante o seu longo mandato Fidel teve contactos com várias gerações de líderes chineses.

Em retrospectiva:

A 2 de Setembro de 1960 Cuba proclamou a primeira Declaração de Havana. Fidel de Castro reiterava o estabelecimento das relações diplomáticas com a República Popular da China. No entanto, a “profunda amizade” não se viria a concretizar e, até à morte de Mao em 1976, os dois países socialistas mantiveram-se distantes devido à ligação fechada de Cuba com a União Soviética, a “rival” da China nos anos 60.

Em  Novembro de 1993, quando Jiang Zemin visitou Cuba, Fidel preparou-lhe uma cerimónia muito especial e condecorou-o com a Medalha Jose Marti, a maior homenagem que o Governo cubano pode prestar a um estadista estrangeiro. A seguir à queda da União Soviética, no início dos anos 90, Cuba ficou “órfã” e a China disponibilizou-se para apoiar Fidel incondicionalmente. Nos primeiros anos da década de 90, Cuba importou 500.000 bicicletas da China. Mais tarde a China ajudou a construir várias fábricas de bicicletas na Pátria de Fidel. Nos anos que se seguiram as bicicletas tornaram-se o principal meio de transporte em Cuba.

A 29 de Novembro de 1995 Fidel chegava a Pequim e foi recebido de forma muito calorosa no aeroporto. No dia seguinte, Jiang Zemin homenageou-o com uma cerimónia de boas vindas na capital. Beberam champanhe e assinaram um acordo de colaboração entre os dois governos.

A 1 de Dezembro de 1995 Fidel subiu à Grande Muralha. Na altura declarou que tinha sentido pela primeira vez que “Ninguém pode ser um herói sem ter visto a Grande Muralha”, um trecho de um poema de Mao Tsé Tung. Na sua auto-biografia Fidel defendeu que Mao teria de ser lembrado como um dos maiores políticos, estrategas e líderes militares de sempre.

Em 2003, com 80 anos de idade, Fidel voltou a visitar a China fazendo-se acompanhar desta vez pelo filho e pelo neto. Foram recebidos por Jiang Zemin no Grande Salão do Povo. Este gesto ajudou a incrementar a colaboração de longa data entre os dois regimes e “agradou profundamente” ao velho líder cubano.

A 21 de Julho de 2014, Xi Jinping chegou a Havana para iniciar uma visita oficial a Cuba. Os dois chefes de estado tinham-se conhecido em 2011, quando Xi visitou Cuba noutra ocasião. No final desta vista de estado, Xi enviou parabéns antecipados a Fidel.

No passado dia 25 de Setembro Li Keqiang visitou Castro e mantiveram uma longa conversa.

30 Nov 2016

O leitor cheira a tinta

El Corte Inglés, Lisboa, 21 Novembro

301116p16t1[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]omentos há em que temos de suspender a incredulidade, que o mesmo é dizer, acreditar. Parece ficção, uma sala de cinema com 242 pessoas em fim de tarde chuvoso para ouvir António Mega Ferreira em belíssima dissertação, de quase duas horas, em torno de Cervantes e do seu Quixote, apenas interrompida por tosse esparsa e as fulgurantes leituras de Pedro Lamares. Acredite-se, então, que os ouvintes serão leitores. Aqueles que Mega coloca no centro do jogo. «O texto é de uma generosa abertura ao mundo e ao leitor, e, por isso, preserva uma margem de indeterminação (o não-dito, o indizível, o possível, o imaginável), que é o traço inaugural da narrativa moderna. Veja-se, por exemplo, o capítulo 20 da primeira parte, em que, através de um engenhoso diálogo entre D. Quixote e Sancho, se levantam questões de técnica narrativa (a suspensão e continuidade da narração, a descrição exaustiva e o poder da elipse narrativa) que hão de estar no centro da estética romanesca ocidental nos séculos seguintes. Mais: ao abrir essa margem de indefinição, Dom Quixote não dispensa a participação de quem lê para fazer valer a sua verdade, que é feita de todas as verdades que lá queiramos encontrar. Ao mesmo tempo que se inventa como romancista, Miguel de Cervantes inventa um novo tipo de leitor, o que assume o papel de cúmplice do autor, destinatário e avalista da narrativa improvável.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro

A chegada de um livro abafa o resto. As urgências malditas, a inadiável pressão, o absurdo imediato, nada importa quando o cheiro a tinta nos exige febrilmente o objecto entre os olhos e as mãos. «A Minha Casa Não Tem Dentro», do António Jorge Gonçalves, veio para parar o tempo. Duas ou três linhas a abrir, negro tipográfico sobre branco, anunciam que o autor morreu e regressou à vida, em «acontecimento que atravessou espaço e tempo separando e unindo em simultâneo». Queria colocar a banda desenhada, que pela primeira vez edito, na Arranha-céus, chancela que vejo também como casa de imagens, onde está já a fotografia. Em decisão de última hora, optei pela abysmo, tal o enigma que «A Minha Casa …» contém. Mais do que narrativa, parece-me um poema gráfico, no lugar dos versos imagens fortíssimas, duras, mas sobretudo oníricas, de sonho e pesadelo, que mergulham raízes no grande oceano do imaginário, dos mitos fundadores, das representações da morte, da infância, do desenho e da música, enfim, da criação. Vejo uma mão, a do cuidado e da ameaça, a que se ergue da ruína e a que faz sombra, a mão do lápis. E vejo uma menina, uma Alice que descobre, por detrás de uma cortina de sangue, o peso da mão, uma cidade que se monta e o grande circo do espectáculo. Há anjos caídos no tecto. O trabalho sobre a cor faz dela outro protagonista. O desconcertante conjunto vai explodir ou, muito provavelmente, ser ignorado, como as nuvens no céu e na contracapa. Desafios assim têm a sua exigência e os dias não estão para isso, para que nos deixemos ficar comovidos a olhar para as nuvens. A capa, sem mais que um miúdo desenhando, não é macia, dá-se sem verniz nem plastificação, mas o miolo, tal a quantidade de tinta, ganhou um acetinado, uma segunda pele. Gosto de pensar os livros como segunda pele.

Bar Irreal, Lisboa, 23 Novembro

Nesta altura em que tanto sumo-sacerdote incensa nuns e vigia noutros uma suposta pureza poético-moral, ouvir o Helder Macedo pedir como quem exige, a meio de caóticas leituras da poesia de José Manuel Simões, um dos do Café Gelo, que os lessem sem os entronizarem, sem os sacralizarem, sem os imitar a destempo, aos da sua geração e a ele, que se «limitaram» a incarnar uma ética a partir do acto de recusa, de múltiplas recusas, caiu que nem tromba-d’água. E chovia mesmo. Na noite que Simões traduzia assim: «Do chão onde ontem enterrei / a noite irrompe como um garfo, / noite de hoje que eu não conheço / e todavia já / noite velha que sei de cor.»

Caldas da Rainha, 25 Novembro

Passo demasiado tempo à mesa, dizem-me. E logo os olhares comentam a barriga. Talvez passe demasiado tempo à mesa. Contudo, raras são as vezes em que me limito aos prazeres da dita. Não me sento para comer, entro em campo. Os gestores de topo jogam golfe. Os políticos da mediania vão ao futebol. A sociedade frequenta o ténis. Eu jogo-me à mesa. Quantos projectos acontecem de garfo na mão? Quanto de amizade estiquei, ou encolhi, já agora, de copo na mão? Não me interessa muito fazer essas e as outras contas. Mede-se demasiado nesta vida. Um editor deve cultivar a desmedida. Venha daí outra dose de lingueirão da «Casa Antero», em Caldas da Rainha, capital do meu oeste, para molhar o extraordinário pão com a Luísa, a Graça e o João. Ou de polvo à lagareiro com batatas a murro do «Cruzeiro», regado com Meandro, para saborear com o Carlos e o Jacinto. Nasceram ideias, talvez tenham morrido outras. Tenho por certo que uma refeição nos dá mais do que vida. E por aqui, onde desfearam paisagem e arquitectura, sabem prová-lo com a beleza do humor ao servirem-nos, à laia de ponto final, um pequeno falo de chocolate.

Bar Irreal, Lisboa, 25 Novembro

A cidade estava toda iluminada, mas de concertos num evento musical com nome de marca e mediatizado à náusea. Na exacta lonjura do centro, os «Não Simão» concertavam «reflexos de aventura». A ausência de palco permitiu estar em intimidades lado a lado com a bateria e a sentir na nuca cada nota dos sopros. A inteligência das composições, com a sinuosa variação de ritmos desfez a noite em puro gozo. E não teve nada a ver com a inclusão de um abat-jour no percurso da precursão.

30 Nov 2016

Fera Oculta, de Vasco Gato

[vc_row][vc_column][vc_column_text]feraoculta1[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]era Oculta, de Vasco Gato, editado pela Douda Correria em 2014, é um livro peculiar por várias razões, mas duas delas saltam de imediato à vista: livro pequeníssimo, de 13 páginas escritas, divididas em cinco poemas, e dedicado ao filho que estava para nascer. O nascimento de um filho, embora não salve o mundo, nem produza nenhuma ruptura ontológica, desata nos pais uma vontade de que as coisas sejam diferentes do que têm sido. Não uma diferença na vida pessoal, embora aqui e ali também a vida pessoal pudesse estar mais afinada – “(…) Gostaria no entanto de te receber / num outro lugar / não neste boi tombado / que dá pelo nome de vinte e um / peso morto arrastado pelos cornos / apenas para que não o devassem / as moscas / (…)” –, mas uma diferença universal, ou, para não sermos tão absolutistas, uma diferença nacional – “Perdoa a falta de graça / o tom melancólico a guerra / mas é que vivo numa época / que como muitas antes dela / repetiu os subsídios ao nojo / bateu o sangue em castelo / (…)” – isto é, a consciência do mal do mundo não aumenta, mas agudiza-se. Agudiza-se através daquele ser prestes a nascer, como se fosse uma parte do poeta (e da sua mulher) onde o mundo se faz sentir mais, onde o mundo mais dói ou passa a doer mais. É sabido, um filho é o calcanhar de Aquiles dos pais em relação ao mundo.

E, do centro desta vulnerabilidade, desta dor, Vasco Gato escreve meia dúzia de poemas onde mais do que a vontade de mudar o mundo, ou de que o mundo seja diferente, como por exemplo no poema de Jorge de Sena “Carta A Meus Filhos Sobre Os Fuzilamentos De Goya”, se desenha o absurdo do mundo, a geografia do absurdo do mundo. Logo no primeiro poema:

“(…)
Sei que haverás de te deslocar
timidamente
por estas ruas e prédios que bocejam
dos nomes que lhes deram
e que contigo terão uma razão mais forte
para conspirarem na longa malha
inanimada
em que se decidem os bichos
a que chamamos homens
e que tão pobremente os têm
habitado – garanto-te –
à excepção de uma ou outra carne
mais obstinada em escapar
à bala comum
Para tudo isto terás tempo
ainda que rapidamente te dês conta
de que tudo é já tão tarde
eu próprio lamento o tempo que esperei
(…)”

Apesar do cenário não ser brilhante, apesar de trazer o filho a estas ruas não muito famosas de amor, de todos os amores que as palavras inventaram e aos quais também escondem, apesar de saber que inventa um filho para “o fruto magro que hás-de roer noite dentro / nalgum bairro de pormenor / quando o escasso amor que te deram / for o alimento oportuno / de um amor mais desenvolto”, ainda assim o poeta reconhece que não perdeu tempo em dar ao mundo esta sua invenção, uma invenção conjunta com a mãe do filho, tal como singularmente está inscrito no início do livro: “Com a Inês / para o Rodrigo”.

Há assim neste pequeno livro duas defesas: a da paternidade e a da linguagem. A defesa da paternidade não implica necessariamente a obrigação da paternidade, mas a de alguém que reconhece, pessoalmente e não universalmente, à laia de teoria, ser melhor ser pai do que não ser, como podemos ler no verso citado anteriormente “(…) eu próprio lamento o tempo que esperei (…)” ou “(…) a mulher que transpôs comigo / o limiar do cinismo (…)”. Assim, a paternidade não produz uma ruptura ontológica, mas pode produzir uma ruptura ética, como a que se descreve neste livro: a transposição do limiar do cinismo. E é nesta corda ética, esticada entre o que agora se passa e o que o poeta espera para o filho, embora não espere nada que não exista agora, apenas que não piore a um ponto irrespirável – “Os momentos em que a claridade / é um capricho dos eléctricos / e os corpos se demoram nas praças / como se de facto houvesse alma / e devêssemos salvá-la / da crueldade e do tédio / são esses os momentos que te desejo / nalguma cidade futura / nalguma encruzilhada de gente (…)” –, é aqui que os poemas se estendem do princípio ao fim.

A linguagem, e apesar dos versos do poema V – “(…) / como se fosse possível / ir de verbo / ao segredo de uma boca // Não guardes por isso destes poemas / o que certamente está aquém / das águas que / te trazem / (…)” –, tem uma luz própria: a misteriosa luz que leva o poeta a registar esta passagem em livro. Apesar de um poema como este – “(…) não receies por isso deus nenhum / nem eternidade nenhuma / a tua carne é o único tesouro / (…)” –, onde parece exaltar a transitoriedade, a carne, o poeta não esquece que tudo é mistério, que tudo é inexplicável, que tudo é estar à deriva.

“(…)
Ninguém sabe ao certo
com que esmero será capaz de arrombar
a frágil película das horas
a pilhar esse instantes de fraternidade
com o espanto de existir
(…)”

Este livro, talvez mais do que qualquer outro livro, faz vir à consciência o problema da escrita em geral e da poesia em particular. A realidade é uma página por escrever num mundo sem escrita. Uma vontade que vem não se sabe de onde. E mesmo que alguém soubesse o que é um poema, ainda assim não deixaria de escrevê-lo, se fosse pela sua mão. E mesmo que alguém soubesse o que é um homem, ainda assim não deixaria de recebê-lo, se fosse seu filho. Esta estranha ligação que alguns de nós, humanos, temos com o desconhecido, quer seja o poema quer seja o nascimento de um homem, fica bem expresso na metáfora certeira que Vasco Gato usa para dizê-lo: nadar. “(…) Ouço-te nadar sempre nestes meus dias / de náufrago (…)”. Nadar não é existir, nada-se, enquanto se espera por vir à existência. Nada-se enquanto não se alcança esta terra perdida, indecifrável, que é o mundo, a vida, a existência, o estarmos aqui de mãos fechadas uns para os outros, desconfiados que a comida não chegue, desconfiados que o amor não chegue, desconfiados que a vida não chegue. Por isso, este pequeno livro torna-se o tesouro mais bem guardado que alguém pode deixar a quem chega à vida. De desconhecido para desconhecido, de poema para uma existência a vir, de agora para o futuro. Nunca um livro foi uma tão perfeita imagem de um vir à existência, como este de Vasco Gato. Eis o último poema do livro, VI, onde tudo é dito de modo perfeito:

Que não te enganem
os que compram as horas por atacado
para do teu suor extraírem
a bandeira de um país que nunca será o da atenção
que nunca será o da morada
mas sempre e sempre
o território homeopático da extinção
em que os troféus são
joelhos vergados à condição de cera
para os soalhos do progresso
cujo verdadeiro nome é
despovoamento
Vender-te-ão o conforto
a perseverança o brio
como se tivéssemos por fito
a acumulação de tempo
sem o fruirmos boca a boca
desesperadamente
garantir o futuro dir-te-ão
sem repararem na estupidez do repto
pois que poder temos nós
sobre as válvulas biológicas
do nosso prazo
para nos arrogarmos a garantir
o que quer que seja
quanto mais o sumo fruto da inexistência
esse futuro-cano-enfiado-na-boca
para ser disparado sem falta
de manhã e ao deitar
Em volta sucedem-se clarões
e abismos inóspitos
os elementos torcem-se na pesca à linha
dos lugares fundamentais
há uma convulsão de panoramas
para o brevíssimo turismo
dos olhos
mas o importante é a matemática mesquinha
do sangue que furtamos uns aos outros
a medalha de carne pútrida
com que esperamos aparecer
nas fotografias da época
Que se foda a época
digo-te já
que se foda a sépia dos futuros
eu quero aparecer no dia
do teu nascimento
desarmado como uma árvore
sem outra missão que não
amparar-me o susto
e dizer-te baixinho
bem-vindo ao continente dos frágeis
podes parar de nadar

[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

29 Nov 2016

Espírito do Mundo

[vc_row][vc_column width=”1/2″][vc_column_text][dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mundo transporta no seu seio uma dualidade (dicotomia) que nada nem ninguém pode superar (que é insuperável). NATUREZA E ESPÍRITO representam os dois pólos de uma realidade que é non facientia unum. O ser da natureza consiste cada vez mais em ser objecto de representação, de conhecimento científico, de exploração técnica. O ser do homem consiste em se colocar como sujeito face ao mundo concebido como um objecto essencialmente estranho ao homem, mudo no que diz respeito ao seu destino.

[/vc_column_text][/vc_column][vc_column width=”1/2″][vc_single_image image=”13988″ img_size=”257×400″ add_caption=”yes” alignment=”center” style=”vc_box_shadow_border” css=”.vc_custom_1480424001469{margin-right: 4px !important;margin-left: 4px !important;}”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]A posição do homem era muito clara quer face ao cosmos antigo quer face ao universo teofânico da Idade Média. Mas com a ruína do universo medieval, tudo se desmoronou:

— O lugar do homem que se tornou problemático e

— O universo que se esvaziou progressivamente da sua substância.

Agora a situação do homem é a de um ser afastado de tudo, profundamente isolado no seio de um mundo infinitamente aberto que exclui qualquer sentimento de simpatia entre o eu pensante (sujeito) e as coisas. É nisto que consiste em larga medida o desencantamento do mundo. É o fim de uma relação amorosa.

“It’s all in pieces, all coherence gone” cf. John Donne. E é também esse o sentido da obra de Pascal, … ambos autores do BARROCO exprimem a dolorosa perda da totalidade.

O sentimento de perda da sensação de totalidade.

Daí o sentimento concomitante de estranheza. A perda da totalidade destrói a intimidade. O Universo serve agora para calcular e medir. É uma exterioridade! Já era! Mas agora inapropriável globalmente. O facto de se reduzir a cacos inviabilizando uma reconstrução possível provoca um vazio que nada pode preencher, e uma tristeza incurável.

Em tempos o Mundo fora considerado como um testemunho de Deus. Como o signo por excelência da existência de uma Inteligência ordenadora e fonte de todo o Valor.

Ora o que anacronicamente procuraram fazer todos os grandes apologistas do século XVIII foi Restaurar, ressuscitar, um paradigma já obsoleto. Nesse plano a primeira grande reflexão existencial sobre o tema pertenceu ao Barroco. O que veio depois é empobrecedor.

Já nenhuma certeza ontológica emana do curso do mundo.

O estupor desencantado de Pascal diante da solidão gelada do Universo culmina no verso de Rimbaud: “não somos do mundo!” , ou “nós não pertencemos ao mundo”.

É então que Vico, face à dúvida cartesiana (barroca), viu na HISTÓRIA o único firmum et mansurum ao qual o homem poderia aceder.

Única realidade considerada ao alcance do conhecimento do homem dado que produzida por ele aparece ao homem, no dealbar da modernidade, como a grande fonte de certeza de si, ao mesmo tempo englobante e totalizante…

Face ao desaparecimento de Deus, face à natureza emudecida e inaudível, o homem opunha este fragmento dérisoire do tempo que ele conseguiu fazer seu e do qual espera extrair a verdade o seu ser assim como a norma da sua acção com vista ao futuro. Hegel até extrairá daqui a via do Absoluto.

Hegel propõe um grande sistema filosófico em que o mundo, como Espírito, se encontraria em um processo histórico contínuo de racionalidade e perfeição cada vez maiores. A teleologia proposta por Hegel será explicitada tanto na análise da totalidade do universo, quanto nos diversos processos e desenvolvimentos que o constituem, através do método dialéctico, em que as tendências contrárias (tese e antítese) se entrechocam resultando em uma síntese, por definição mais perfeita e completa que as anteriores. Hegel tem como mérito a criação de uma nova tendência na filosofia: a de abordar os diversos assuntos a partir da investigação de sua génese ao longo da história.

“Na história, o pensamento está subordinado aos dados da realidade, que mais tarde servem como guia e base para os historiadores. Por outro lado, afirma-se que a filosofia produz suas Ideias a partir da especulação, sem levar em conta os dados fornecidos. Se a filosofia abordasse a história com tais Ideias, poder-se-ia sustentar que ela ameaçaria a história como sua matária-prima, não a deixando como é, mas moldando-a conforme essas Ideias, construindo-a, por assim dizer, a priori. Mas, como se supõe que a história compreenda os acontecimentos e acções apenas pelo que são e foram e que, quanto mais factual, mais verdadeira ela é, parece que o método da filosofia estaria em contradição com a função da história.” (HEGEL)

Ao contrário de uma possível contradição metodológica entre essas ciências, Hegel afirma que a história do mundo só pode ser contada e contemplada à medida que ela se valha da filosofia.

É pela especulação e reflexão racional que a filosofia se sustenta. E haja em vista que “na história do mundo as coisas aconteceram racionalmente”, (HEGEL, 2001: 53) vislumbramos o início dessa união entre as ciências supracitadas. Para provar a existência de uma razão no mundo, Hegel dá-nos o exemplo de Anaxágoras, cujo feito foi observar que há um sistema solar no qual os planetas giram ao seu redor. Porém, diz Hegel, ao grego não foi possível inferir qualquer racionalidade sendo contemplada, pois no seu tempo ela estava ainda velada. Percebe-se claramente que a história do mundo hegeliana visa, portanto, uma teleologia. Ora, sendo uma teleologia comandada pela razão, não iria ela ser contra qualquer doutrina religiosa? Não para Hegel, já que ele vê em Deus a Razão Absoluta. Aliás, Razão e Deus são termos correlatos e, pode-se dizer, significam uma mesma coisa: requisito lógico do mundo, cujas potencialidades inerentes se manifestam no decorrer da história. Metodologicamente, Hegel assim compreende o estudo da história do mundo: “devemos tentar seriamente reconhecer os caminhos da providência, os seus significados e as suas manifestações na história, e seu relacionamento com o nosso princípio universal[1]” (HEGEL, 2001:57) (“Reconhecer os caminhos da providência” implica uma certa passividade daquele que estuda ou quer conhecer a história passada; não é a toa que ele emprega o verbo contemplar em sua obra.) Se assim é, qual o objectivo final do mundo?

Dissemos acima que o mundo, para Hegel, deve ser pensado racionalmente, que todos acontecimentos históricos passados foram necessários; donde seu aspecto teleológico. Esse plano divino é manifestado ao mundo mediante o “Espírito de um povo”, visando a Ideia de Liberdade. Ou seja, esta Ideia é a força motriz da história, ao passo que o Espírito de um povo é expressão de uma realidade histórica finita, que por processos dialécticos busca sobrepujar as potencialidades infinitas da Ideia.

Pelo carácter objectivo do “Espírito de um povo”, as subjectividades que constituem uma nação e até mesmo as dos próprios indivíduos, são consideradas por Hegel apenas como um primeiro passo do movimento dialéctico. Todas as paixões particulares servem para serem aniquiladas, dando lugar à universalidade de que a Ideia de Liberdade necessita. Nem mesmo os heróis, aqueles que serviram de exemplo para uma mudança do Espírito de uma época à outra, tinham consciência da objectividade de suas paixões, pois “a história do mundo dá início ao seu objectivo geral – compreender a Ideia de Espírito – apenas em uma forma implícita (ansich), ou seja, como Natureza, como um instinto muito profundo e inconsciente” (HEGEL, 2001: 71). Torna-se preciso, então, compreender a ligação entre o particular e o universal, – entre o subjectivo e o geral – cujo casamento propicia a história do mundo.

Sendo a Ideia, condição lógica para o mundo, ela não está contida nele. Ou melhor, ela não necessita dele para sua preservação. Enquanto tese, a Ideia “é o universal, o imanente, o representado” (HEGEL, 2001: 72), isto é, ela não tem ao quê se comparar. É necessário, pois, um outro lado cujas qualidades neguem o conteúdo da Ideia. Este outro lado é chamado por Hegel de consciência, Ego, ou átomo. Estes conceitos são a “negatividade infinita” da Ideia. Eles são sua finidade e sua forma. É desta lógica dialéctica que Hegel vê surgir o mundo, como síntese entre a Ideia e o Ego[3].

O mundo é composto pela Natureza e pelo Espírito. O primeiro, o campo da necessidade, o segundo da liberdade. Enquanto aquele se manifesta mediante a natureza; este se caracteriza, em uma primeira instância, por meio do indivíduo.

É pela característica da liberdade que o homem é um ser moral. Tal facto implica “em que ele cumpra os deveres de sua posição social” (HEGEL, 2001:76), além de ter a consciência de pertencer a um determinado “Espírito de um povo”. Pois “o indivíduo não cria o seu conteúdo, ele é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo”. (HEGEL, 2001: 77) . Ou seja, a ligação entre o subjectivo e o geral, dá-se neste momento.

A união supracitada, segundo Hegel, só se manifesta por meio do Estado. Esta instituição abarca todo o conjunto moral de seus indivíduos. Só através de sua presença é possível falar em liberdade e auto-consciência no indivíduo. Porque “a Ideia de liberdade necessariamente implica lei e moral”. (HEGEL, 2001, 92). O Estado é o campo das objectividades. Um espaço pontual no qual podemos assinalar e nos referir quando pensamos na História do mundo. Enquanto o indivíduo morre, o Estado, através de abstracções, permanece. Isto é, apesar do Estado grego morrer com o povo grego, ele permanece historicamente. A sua “morte”, deu lugar, concordando com Hegel, a outro Estado mais perfeito, mais consciente de si e tendo seus indivíduos com o conceito da Ideia de Liberdade mais aflorado e rígido.

Por se tratar apenas de um texto de apontamentos sobre a referida obra de Hegel, pararemos por aqui. Entretanto, deixaremos uma última citação de Hegel que confirma a enorme função que o Estado tem para seu sistema filosófico: “O Estado é a realização da Liberdade, do objectivo final absoluto, e existe por si mesmo. Todo o valor que tem o homem, toda sua realidade espiritual, ele só a tem através do Estado.(HEGEL, 2001:90)

Karl Popper, crítico de Hegel em A sociedade aberta e seus inimigos, opina que o sistema de Hegel constitui uma justificação vagamente dissimulada do governo de Frederico Guillermo III e da ideia hegeliana de que o objectivo ulterior da história é chegar a um Estado que se aproxima ao da Prússia do decénio de 1831. Esta visão de Hegel como apólogo do poder estatal e precursor do totalitarismo do século XX foi criticada minuciosamente por Herbert Marcuse em Razão e revolução: Hegel e o surgimento da teoria social, arguindo que Hegel não foi apólogo nem do Estado nem da forma de autoridade, simplesmente porque estes existiram; para Hegel, o Estado deve ser sempre racional. Arthur Schopenhauer desprezou Hegel por seu historicismo e tachou sua obra de pseudofilosofia.

A filosofia da história de Hegel está também marcada pelos conceitos da “astúcia da razão” e do “escárnio da história”. A história conduz os homens que crêem conduzir-se de per si, como indivíduos e como sociedades, castigando suas pretensões, de modo que a história-mundo, ao fazer troça deles, produz resultados exactamente contrários e paradoxais aos pretendidos por seus autores, a despeito de, nos períodos finais, a história se reordenar e, em um cacho fantástico, retroceder sobre si mesma e, com sua gozação sarcástica e paradoxal convertida em mecanismo de criptografia, cria também ela mesma, sem querer, realidades e símbolos ocultos ao mundo e acessíveis tão-somente aos cognoscentes, id est, àqueles que querem conhecer.[/vc_column_text][vc_separator css=”.vc_custom_1480425835216{margin-bottom: 30px !important;}”][vc_tta_tabs style=”modern” shape=”square” active_section=”1″ css=”.vc_custom_1480425795405{margin-top: 5px !important;}”][vc_tta_section title=”Biografia” tab_id=”1480423549556-ac307ab4-8964″][vc_column_text]HEGEL nasceu em Stuttgart a 27 de Agosto de 1770 e faleceu em Berlim a 14 de Novembro. Hegel encontra a sua posição na história da filosofia no seio do chamado Idealismo Alemão, representando por um lado o seu apogeu, o idealismo absoluto e a transição para a Filosofia do Romantismo. Estudou na Tübinger Stift, (seminário da Igreja Protestante, em Württemberg). A sua Fenomenolgia do Espírito desenvolve a ideia dialéctica de que o espírito humano se manifesta através de um conjunto de contradições e oposições que acabam por se integrar numa poderosa síntese. Todos os elementos se integram unem-se, no quadro de superações sistemáticas, o que significa que os elementos em confronto não se eliminam. Exemplos de tais contradições incluem aqueles entre natureza e liberdade e entre imanência e transcendência. Deste ponto de vista ele é o grande filósofo da Modernidade, da ideia de progresso e de totalidade do Espírito.[/vc_column_text][/vc_tta_section][vc_tta_section title=”Ficha” tab_id=”1480423549788-702a8d9a-b0d3″][vc_column_text]Hegel, Georg Wilhelm, Friedrich, A Razão na História (Introdução à Filosofia da História Universal), Edições 70, Lisboa, 1995
Descritores: História da Filosofia, Historicidade e historicismo, Espírito, 223 p.
ISBN: 972-44-0906-6
Cota: A-4-13-9
[/vc_column_text][/vc_tta_section][/vc_tta_tabs][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

Não entres docilmente nessa noite escura

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«Do not go gentle into that good night»

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] este foi o ano em que sem nos apercebermos, os sons foram lembrados para celebrar os poetas. Dylan Thomas, o quase ainda romântico escritor inglês, nascido no início do século passado, anda distante do movimento surrealista, mas próximo do círculo iniciado nos finais do século XIX por Freud e também do legado das expressões míticas que tanto se fizeram sentir em Yeats como em T.S. Eliot. Estava aberto assim o dilema entre o eu poético e a vertente da natureza social e todo este riquíssimo desocultar da psique, conjuntamente com a raiz da herança céltica deu uma poesia absolutamente intransponível na sua dimensão de vínculo cultural. Chegados aqui, todos sabemos então que o Prémio Nobel da Literatura que não tendo, é claro, a importância capital tão discutida, pois que também é certo que o tempo em que vivemos é todo ele o da relatividade quase absoluta, tanta, que a poesia passou a ser feita por agentes que ou não devem entender do que se trata ou tudo tem efectivamente uma outra interpretação.

Bob Dylan, nascido Robert Allen Zimmerman, deve o seu nome a Dylan Thomas. Aqui foi efectivamente o Prémio em Poesia que se fez sentir na vontade de ser e na qualidade de se ter tornado quem foi, o que denota a justa forma de saber homenagear. Há um conflito de posição face ao estereótipo do criativo, como aquele que se faz a si próprio numa auto-suficiência ilusória: no fundo, acaba por ser uma atitude mais política que poética norteando os dados para um conjunto de influências que ajudem a sua causa numa espécie de campanha que norteará o “eleito”. O que se passou com este Prémio foi singular e emblemático pela justa forma de saber ver que o mensageiro que soube tão bem interpretar a mensagem é a título abrangente o depositário do Poema.

Dylan Thomas morreu jovem, tinha trinta e nove anos, tendo publicado o seu primeiro livro aos vinte «Eighteen-Poems». Teve trabalhos, sim, mas aos trinta e dois anos tornara-se poeta a tempo inteiro pois que não há poetas a tempo parcial, nem a vida de um criativo é uma felicidade ingénua à boa maneira do antigo S.N.I. dos «pintores de fim de semana»: talvez até, que para escrever somente isto: “clama, clama, contra o apagar da luz que finda, que a velhice arde e brada ao término do dia“, se precise muito mais que pendor e, mesmo que se morra novo, se tenha experienciado por lucidez a pavorosa passagem do tempo. Não por acaso o tema da morte é tão significativo nesta poesia e acaba por ser o motor de uma tradição poética europeia que Bob Dylan, que humildemente não se considera poeta, soube trazer nessa herança, e não mais que ouvi-lo para saber da contingência entre os movimentos vitais de criação e de destruição. O homem quando nasce, como expressamente nos diz, « é suficientemente idoso para morrer».

Neste poeta há sem dúvida referências bíblicas, tal como em Eliot na «Quarta-feira de Cinzas», e também em toda a estrutura dos poemas vamos desvendando o conhecimento simbólico, que, tal como em Dylan, o torna muito mais simbolista que metafórico. Estamos no campo em que descemos do ego cardíaco e nos adentramos no mistério comum que nos inunda de respeito. Saídos da esfera da perturbação vamos entrando nos assombros e nos próprios abismos de olhos abertos, essa lucidez tão cara a um poeta:

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens irão confundir-se.
Com o homem no vento e na lua do poente;
Quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos.
Hão-de nos braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
Mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir.
Mesmo que os amantes se percam , continuará o amor.
E a morte perderá o seu domínio.

Mesmo que os amantes se percam… sim, o amor continuará e os amantes reencontrar-se-ão, talvez, num tempo descarnado das suas pobres vísceras, mesmo que tudo se perca. Perder é depor as armas e estar mais desperto da essência e no sopro longo do Verbo lá está o amor: ” no fim, ainda que os lábios aceitem as trevas, porque se esgotou o raio das suas palavras, eles não entram docemente nessa noite serena”.

E se mais andarmos vamos até ao rei Artur e Guinevere – a das longas tranças – a Ilha das Maças: “e o tempo deixava-me acenar e subir, dourado, na grande luz dos meus olhos: era, venerado por todos, o príncipe das cidades das maças”.

Pois que já nem temia os dias brancos como cordeiros que lhe viessem erguer o tempo, nem a vida do lado de fora de um reinado mítico acrescentaria mais luz que a doce lã das ovelhas; sim, temos aqui a sacralidade do poeta orando na versicular legenda da escrita e talvez seja esta noção tão íntima que transmite a maravilhosa manifestação de que estamos diante do inesperado que traz em si todo o silêncio antes de reflectirmos o que devemos dizer quando aceitamos as dádivas.

Há aspectos que se isolam ao alcançarem a plenitude, e nós, a quem tanto foi tirado em troca de nada, convém que nos devolvam todas estas noções e um mundo onde elas possam de novo caber, ampliando o sentido do que está retido nestas vozes. Por isso:

– NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE SERENA

que te querem dar, como um Prémio, de que não foste obreiro nem construtor. A vida que nos dão foi-nos imposta, requer-se a vida conquistada, para quando menos esperarmos podermos saber o significado de todas as palavras.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]

28 Nov 2016

Nem pena nem paixão

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando penso que há tanto lugar no mundo. Que ainda não se estragou tudo. Mas que estamos no bom caminho para isso, enrubescidos de vergonha mas irrascíveis de vontade e intensão egocêntrica. Apetece-me mais que muito mergulhar na micro planície calma de uma distância impossível de conseguir senão na consciência. Na alienação de todas as palavras de uma desconstrução que não tem nada de bem querer, de bem querer fazer. Bolas de bilhar sem olhar definido e permeáveis a um toque seco de uma intensão de jogo. Coloridas mas cegas em si. Reacções em cadeia. Empurrões de gotas do mesmo líquido na inquietação febril de impulsos físicos, na inércia da agitação da matéria de uma individualidade contranatura. De entidades que somos, parte de um todo indivisível.  A tessitura da matéria atómica e social, a rede universal.

O realismo global é a nova corrente. A nova prisão. Diálogo universal a fazer contas às estrelas. Gotas e partículas previdentes na expectativa de assistir a qual evapora, qual congela de um frio maior, qual salta por imperativos de dinâmica das mesmas e cai na margem do todo. Qual se infiltra na terra, vítima de um engano do estado do tempo e pelo mesmo erro alimenta uma partícula seca, engelhada e feia, que era afinal a invisível semente de algo.

Aqueles dias, em que me apetece encolher os ombros, os joelhos, tricotar rapidamente um casulo de lã Mohair desde as pontas dos dedos dos pés pintados, até às pontas dos cabelos lineares e bidimensionais. Espalmar toda a subjetividade num pedaço pequeno papel e fechá-lo num livro bom. De palavras boas. Cantilenas de embalar e de encantar. Já agora, com umas pétalas de flores para não esquecer as sensações e ir cheirando um perfume bom. Ou driblar uma bola rapidamente e atirá-la a uma tabela mal desenhada, vezes sem conta, encestar ou não. Com aquele ruído específico, e aquele ruído e aquele ruído do impacto, e de novo, e repetir até à exaustão. E uns calções compridos e contornados a preto para pintar depois num dia mais contente. Ou atirar pedras ao rio e ouvir o ruído do baque na água. E de novo. E de novo. Ou sentar-me e abanar o tronco para a frente e para trás. E vontade de fugir. Para fora deste circuito viciado de violência a que já nem as palavras me fogem. Vontade de ouvir tudo coado pela imensidão da água sobre mim, à minha volta, à minha frente e atrás de mim. Por todos os lados. Em todos os lados e em todos os sentidos. Fechar qualquer coisa por momentos como um casaco pesado de inverno.

E esses dias em que tudo me aparece da esquina mais negra da realidade, tão real e tão reais como os outros em que se alternam momentos de maior lirismo e apaziguamento, tão real este e tão nítidos esses, mas bem mais construtivos. Dos anjos só os mais negros e ausentes. Há uma arquitectura de destruição de que não gosto. As grandes cidades como os pequenos castelos de areia, de nuvens, ou de saber ir indo com os dias sem exigir nada de ninguém, merecem o mesmo respeito. As construções sociais e as empatias coerentes. As pequenas mortes como os grandes genocídios. Todos me fazem aversão. Os grandes princípios edificantes, os pequenos gestos demolidores. De tudo se fazem palavras e mortes. Que arremessadas ao vento ferem rostos de caminho, de passagem ou de indiferença. Na realidade exijo tão pouco dos outros que sempre sou colhida de surpresa. A raiva. O ódio a fermentar numa matéria estranha em rejeição. Mas a encontrar caminho nas palavras e na lógica dos critérios. Sentir palavras infelizes e forasteiras a invadir espaço que não lhes é destinado a desenvolver diálogos que me cansam e calam. A evocar palavrões de violência a desmedir e a libertar de caixas fechadas para o efeito. De guarda. De não querer. De ferir. De recusar. E da recusa sobra o abalo do abalroar sem ter querido.

Tonalidades, texturas e cores de que não gosto, a invadir-me a forma das palavras. Timbres e cheiros a putrefacção e a biis. Perpectivas militares e explodidas, estratégias. Já bastam as guerras. Deformações como doenças dolorosas da pele, dos dias, a vista de cada janela a enrugar de irascibilidade. E nessas alturas todas as palavras amargas e corrosivas se juntam em meu socorro, ansiando por se escapar do lugar fechado onde vivem e fazem alarido incómodo. Mas não as quero para mim, como não as quero para ninguém. Só que me abandonem reabsorvidas numa matéria inócua qualquer.

Há dias em que o meu mundo me aparece coberto de tons de negro, um vozerio desmesurado e agreste, repleto de palavras que não quero dizer. Uma fractura que não quero sentir, um sentido que não quero medir. Há um corpo. E o meu. Imune às palavras. Último reduto a ignorá-las.

E apago a luz. A paisagem de que preciso. Para sentir de que cor ficam afinal todos os negros. De que espessura se faz afinal o silêncio relativo. De que formas se prende o tacto às coisas. De que temperatura se lembra o corpo nelas. De que memória se desprendem os objectos. Tudo novo em escuro e silêncio. Mesmo as vozes esparsas da rua, parecem ignorar melhor e mais. Mais exteriores. Assim. E há felizmente pequenas réstias de quase não-luz, a entrar pelas frinchas das portadas, tábuas compridas e gonzos empenados dos anos. Pela janela das traseiras sempre aberta para o lado do avesso das coisas da casa e da rua, por debaixo da porta e por trás da qual se desce e sobe em outras vidas que não tenho que saber e não me falam. E aí ando um pouco pelas cadeiras e cadeirões das divisões imprecisas. Nocturnas de vez, mas silenciosas nunca. Sinto a frescura de paredes e o gelo da pedra e de um copo esquecido talvez no tampo de uma mesa. Bebo um resto de um vinho escuro e apalpo as roupas que não lembro de ter despido espalhadas por ali. Algo de formas invisíveis se me enrodilha nos pés -o gato ou a roupa – que devem ser meus sem os ver e o soalho é macio e não demasiado fresco. Devem estar descalços. Todos. Mesmo a roupa indistinta.

Ele é silencioso. Roupas misturadas, minhas, da véspera, de há três dias, dele. Estendo-me na cama feita já noite. Nunca me deito sem a fazer. E há um corpo morno e adormecido. Minto. As costas frescas. Senti ao de leve com a mão. As omoplatas assimétricas da posição. Toco de novo. Não, não cresceram asas. O corpo dorme. Não é meu. O meu não dorme. Vigiante. Cansado. Inquieto. O outro volta-se no seu silêncio completo e a temperatura atinge-me como uma carícia. Boa. O hálito sereno e lento. Não lembro nomes nem factos ali no alo daquela proximidade viva e adormecida sem ausência. Assim. Só a enorme objectividade mesurável em graus centígrados e confortavelmente destituída de sentido. Um sono imperturbável e não perturbador. Não gosto de o acordar. Nem ninguém. Mas também porque me apetece andar por ali e pela casa solitária assim no escuro. Ele, ali. Noutros dias, não. As luzes acesas contra o desconhecido monstro da casa. Apagam-se para tudo dormir. Está quente. São dois calores, agora. Três. Se contar com o da porta fechada da noite. Viro a almofado do outro lado. O que está sempre fresco por um tempo. Não o toco. Não o quero acordar. Quero sentir toda a casa secreta e confortável. Tudo ao negro sem temor. Sem sombras. Sem relógio.

E de repente, lembro-me, e avanço no outro corredor até ao fundo, com a mão na parede para não tropeçar e com uma alegria infantil dou um piparote no pêndulo do relógio do corredor, que acorda como se nada fosse. Como a iniciar o tempo do escuro. Sempre parado e preguiçoso, mas que deixo em paz para não acordar os vizinhos. E o tempo retoma em cinza fechado, fino e muito, muito escuro. E todos os sons ficam abafados lá muito atrás de qualquer realidade, por esse som ritmado que preenche a casa de uma ponta à outra. Como se fosse ela própria o interior dele. Do relógio. Dele, há um coração a reger serenamente um corpo em descanso. E em mim há algo indefinido a instalar-se sem pressa e sem palavras. Abro um livro sem nome e leio com os dedos as páginas lisas. Palavras baralhadas de vez. Tenho uma suave vontade de rir sem ter bem razão para tal. Porque tropecei, talvez no pé de um banco. Talvez o outro lado, o do ridículo daquilo tudo ao negro e assim. Lembro-me do perfume que não tenho usado e vou senti-lo. Sabe bem, também. Assim na frescura da memória meio esquecida. Como acontece com luz acesa. Tudo igual mas mais suave e mais escuro. Na verdade, tudo finalmente invisível mas palpável. Com uma densidade nova. Como uma cegueira. Uma frescura e uma novidade. E toda a subjectividade da não significação de tudo. Ali, aqui, ao negro de todas as cores. Esquecidas por detrás da luz ausente. Da pele glabra camuflada de noite mais escura, tornada escura e secreta mais do que é sentido normal. Existência discretamente apagada das cores. Apagada das horas, apagada do olhar. 36 graus acima do nada  Ou além da solidão. Ou aquém dela. Ai sentada à beira e prestes a cair no sono, também. Sem olhos, sem respiração, sem ruído, sem nada. Acordo sobressaltada pelas badaladas imprevistas e histéricas de alegria, do relógio do corredor, a que nunca me lembro de dar corda. E que mesmo com corda, muitas vezes adormece esquecido de si. Também. E dou mais uma volta hesitante pela casa, a estender a perfeição do momento nocturno embalado pelas badaladas raras e pelo tique taque do relógio, a que nunca me lembro de dar corda e cujas badaladas não quero que acordem os vizinhos e que por isso deve estar quase a parar de novo. E depois a noite esgota-se e tudo volta a sofrer da luz.

Ela dizia daquelas crianças sossegadas, que brincam sozinhas, que não inspiram cuidado nem preocupação: “não dá pena nem paixão”. Não era uma coisa má na voz dela. Mas há uma literalidade estranha e indivisível aí. E ele tem esse sono sossegado, ali.

25 Nov 2016