Paisagens que não existem

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ei bem como fui deixando que acontecesse, as festas são apenas sinónimo de mais afazeres. Faltou-me tempo para lamber mais uma cria: Poesia I – Odes Modernas e Primaveras Românticas, o primeiro volume de uma edição crítica da poesia de Antero de Quental muito laboriosamente preparada pelo Luiz Fagundes Duarte. A todas as suas outras qualidades, devo acrescentar o entusiasmo com que foi recebendo as propostas gráficas do Miguel Macedo. Sem desrespeitar o lado científico, a opção foi colocar algum aparato ao serviço do poema. Sabendo dos cuidados de ex-tipógrafo que punha nas suas edições, agrada-me sobremaneira a elegância da mancha, usando pela primeira vez a Gazeta, a fonte de Ricardo Santos, bem como o papel diferente nas páginas do aparato crítico. O alto-relevo no Antero da capa dá-lhe carácter, com o fundo azul a fazer regressar as primeiras edições. Tudo somado, as mãos não querem largar o objecto e os olhos lêem nele paisagem. E depois há o logótipo. Não sei se sabem, a abysmo não se fixou num logótipo, antes convidando cada designer ou ilustrador a interpretar a palavra. A brincadeira virou um caso e temos agora dezenas de identidades. Nos estudos preparatórios, o Miguel descobriu-a nos manuscritos de Antero. Deixou-lhe ficar uma vírgula, a pausa que se torna a sua marca de autor, e eis-me impante por ter para lá do tempo o poeta a dizer a editora.

CCB, Lisboa, 20 Dezembro (2016)

Ziguezague, os passos em volta estendem-se assim mesmo. Não se estranhe, não pedirei desculpa pelos saltos no tempo. Ao fim de mais de um ano de intenso trabalho e de uma mão-cheia de concertos, os No Precipício Era o Verbo subiram ao palco do pequeno auditório. O frio ficou fora e confirmou-se, para mim, o essencial: temos espectáculo. Encontro espessa coerência no alinhamento, na subtil encenação, feita sobretudo de luz, de chegadas à boca de cena e recuos para a escuridão, com o diferente grão das vozes e a melodia dos modos de dizer calibrados. Bom trabalho de grupo, sob respiração ansiosa do José Anjos. Escusado será dizer que o contrabaixo de Carlos Barretto se faz o eixo sobre qual tudo gira. Aqui, faz-se furacão e arrasta em remoinho palavras, corpos, gestos. Ali, faz-se farol atraindo olhares, desviando atenções. Não deixa nunca de ser feixe luminoso dirigido ao coração da palavra suspensa do corpo que a diz. Não há nada de novo nisto do espectáculo de poesia. Há qualquer coisa de novo neste. Não acho espectáculo a palavra exacta. Não sei ainda o que trazem de radicalmente novo os NPEV. Houve muita alegria, humor, densidade. Houve memória nos dias seguintes. Estão para as curvas.

Enquanto não chega o livro, cujo esboço da dupla André da Loba e Dulce Cruz anuncia ser entusiasmante, circula já o disco, embrulhado em cartaz onde quatro corpos dançam rodando sobre si nas coloridas cinzas de um vulcão por extinguir. Da Loba tem recolhido um conjunto de figurações que se alinham como letras de alfabeto criativo, seres dispostos a falar dos seus lugares no mundo. Estes quatro estão agora nessa paisagem que inclui jornais, paredes, impressões do mais variado tipo. A Dulce dobrou um origami que aconchega uma «bolacha» onde os corpos parecem peças de «puzzle», restos de branco boiando em negro com transparência. Sem os terem visto ao vivo adivinharam que muito disto resulta do namoro entre a luz e a obscuridade.

Horta Seca, Lisboa, 4 de Janeiro

A Associação para a Promoção Cultural da Criança pontua a sua programação anual com a edição, por esta altura, de um par de pequenos álbuns. Este ano o desafio foi uma visita ao seminal «Utopia», de Moore. A Inês Fonseca Santos juntou-se ao Nicolau para contar «Vincos», história na qual as marcas no corpo fazem anunciar possibilidades, onde os corpos podem até tornar-se mapas e as personagens caminham sobre as nuvens do sonho. Vi o pequeno álbum em tons laranja ir se desdobrando perante os meus olhos. E soube-me a tangerina. Naturalmente, pois está uma delícia.

O segundo coube-me a mim, que há muito não escrevia para os putos, independentemente da idade. O desgraçado que teve que absorver os meus atrasos de vida foi o Rui Rasquinho, que se desenrascou de modo notável, com ligeireza e elegância. Fomos ver do avesso das cidades, tocando-as com as mãos, até descobrirmos um velho marinheiro que fala de palavras e do modo como se tornam navalhas de rasgar impossibilidades. Este velho marinheiro, que prefere as paisagens que não existem, trouxe-me de volta o velho amigo Júlio Pinto. Saudades.

Passevite, Lisboa, 9 Janeiro

Dois anos depois do atentado ao Charlie Hebdo, e a pretexto do lançamento do fanzine Uppercut (stolen books), que reúne cartoons do André Carrilho, juntámo-nos coma Cristina Sampaio e o António Jorge Gonçalves, no atelier galeria do Rui Lourenço e cúmplices, para discutir se «somos todos charlie». Duas ou três conclusões breves de uma conversa rasgada. O humor é o lugar da absoluta irresponsabilidade. Somos melhor sociedade, mais oxigenada, se nos dermos esta liberdade. O humor gráfico nacional nunca foi punk e tempera a raiva com o apuramento estético. Estas conversas, em torno do ofício do desenho de opinião, deviam prolongar-se indefinidamente, talvez mesmo passarem a papel, em busca de mais olhos e ouvidos. Sugiro aqui fazermos nova edição do fanzine desenhando a conversa.

Os 300 exemplares (assinados e numerados) de Uppercut foram impressos em riso, essa nova técnica, barata, portátil, artesanal, algo primária, que reintroduz o erro humano na impressão. Quando os ecrãs brilham a ponto de esconderem o original, a maneira de o multiplicar faz de cada objecto caso único. Isto do regresso do erro diverte-me.

11 Jan 2017

“Fala demais, constróis frases cheias de erros e as suas cenas de sexo são muito vulgares… etc. etc.” 高行健同志

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ao Xingjian (nascido a 4 de Janeiro de 1940) é um romancista, dramaturgo e crítico, naturalizado francês, que em 2000 recebeu o Nobel da Literatura por “uma obra de valor universal, de uma lucidez amarga e uma ingenuidade linguística…”.

Em 1990, Gao recebeu uma carta de rejeição da parte de uma afamada editora chinesa, a propósito do seu romance A Montanha da Alma e que rezava assim:

Camarada Gao Xingjian,

Saudações! 

Lemos o seu manuscrito de A Montanha da Alma. Devo informá-lo que tivemos dificuldade concluir a sua leitura. A julgar pela sua linguagem, fomos forçados a concluir que deve ser muito novo e inexperiente. Contudo, a sua dedicação à literatura agradou-me bastante, bem como a todos os que trabalham nesta editora.

       Apesar do que acabei de referir, o seu trabalho demonstra muitas       falhas. Listámos algumas, que passamos a citar:

Em primeiro lugar, o tema do romance não é claro. Os conteúdos são retrógrados e as técnicas de narrativa são datadas. Será que ficou preso nos anos 80?

Em segundo lugar, fala demasiado. Um romance deve contar uma história e desenvolver as personagens. Demasiada reflexão pode aborrecer os leitores. Pessoalmente, acho que os seus pontos de vista não passam de clichés. Além disso, é um grande erro usar a reflexão como enquadramento do romance. Claro que, se conseguisse apresentar ideias filosóficas como Milan Kundera, que estão profundamente interligadas à estrutura orgânica do livro, seria atractivo para os leitores. Repare que não estamos necessariamente a ser injustos consigo, porque pode não ter lido a obra do escritor checo.

Em terceiro lugar, a sua linguagem é pobre, constrói frases cheias de erros, é como se misturássemos arroz com areia. Fez-me dores de cabeça. Sugiro-lhe que leia os clássicos, os chineses e os estrangeiros, para desenvolver o seu gosto literário.

Em quarto lugar, existem muitas cenas de sexo, o que não vai ao encontro das políticas do nosso país. A propósito, as cenas de sexo são muito vulgares, parecem fantasias sexuais de um campónio. Apesar disto, você batalha para escrever e desenvolver um trabalho intelectual. Aconselho-o a cortar nas cenas de sexo nas próximas revisões.

        Existem ainda mais falhas no seu trabalho, mas não as vou  mencionar agora. Resumindo, não acho que o seu manuscrito esteja em condições de ser publicado. Iremos devolver a cópia por correio registado.

Com os melhores cumprimentos,

Assinatura do Editor

Departamento Editorial (selo oficial)

5 de Fevereiro de 1990

11 Jan 2017

O tempo dentro do tempo 

Em “Aves de Incêndio” (poética edições, 2016), de Raquel Serejo Martins, há dois tons a percorrer os poemas, que se interligam: a dor que se carrega no dia a dia, tentando ligar as horas umas às outras; e a memória que nos assalta, à nossa revelia, e contra a qual não podemos nada, acabando quase sempre por trazer mais dor. Veja-se apenas como exemplos estes versos: “(…) / tudo é uma dor pungente, / tudo é nada, / e o nada / finge-se em gente” (62) ou o poema 64 “Só quero dizer que sofro tanto / que até a dor me alivia”; e como exemplos do segundo tom, leiam-se “Um amor velho e seco / como uma giesta, / folha de ervário, / corolário de todos os que o seguiram, / porque o amor quando acaba, / no âmago do coração quieto, / fica sempre amargo.” (5. Primeiro Amor)

Neste livro fica-se a saber que o tempo foi. Aqui, o tempo nunca é, o tempo nunca será, o tempo sempre foi; nunca é e nem será, foi. É o mundo da memória que nos fustiga continuamente os dias, a memória dos dias bons, dos dias maduros, que caem da árvore e nos sabem bem ao comer. “E a cada Verão o amor acontecia, / sem palavras de preâmbulo, / nem palavras de adeus. / O amor acontecia (…)” (11.) Este pretérito imperfeito, “acontecia”, não acusa apenas o amor, acusa também a poeta que o escreve, o humano que se dá conta de que tudo acontecia, “eu acontecia” ou “o amor acontecia” partilham a mesma desinência imperfeita, a mesma desinência de um acontecido que já não volta, a não ser em forma de memória, para nos magoar, para nos mostrar que afinal não é só “eu” e “amor” que partilhamos a imperfeição pretérita, mas também a vida. A vida humana é um inteiro pretérito imperfeito. A vida humana, toda ela, a vida de cada um de nós, acontecia. A vida humana é “um coração que o tempo quase apagou. / Enquanto ao longe, / na melancolia do passado, / um violino gemia (…).” E como viver, se a vida está lá atrás? E como viver, se a vida ficou lá atrás, como se entrássemos no comboio e tivéssemos deixado na estação o amor da nossa vida e tivéssemos disso consciência? Como viver, se deixámos a vida de onde partimos? O amor, hoje, e adivinha-se que também assim seja a vida, é como o final do poema 17: “(…) um cardume de peixes dourados / a boiar sem vida no aquário / dos meus pensamentos, / todos teus / e nem percebes que existo.” Se eu vivo soterrado pelo passado, pela infância, pelos anos de fruta madura e farta da juventude, tenho de sentir a vida como se ela nem percebe que eu existo. Este escândalo de se existir e a vida nem saber disso é do que este livro trata. Ao passearmo-nos pelas páginas damo-nos conta de ser mortos-vivos, estamos numa vida que já não é, nem nossa nem de ninguém, onde só o passado poderia ser uma possibilidade de futuro, como o diz tão bem este verso do poema 99 “O futuro é a Primavera”, ou ainda os versos do poema 20: “Tu, um vendaval / que perdeu o ânimo / que envelheceu sem festejar. / Sabes, às vezes parece-me que sabes / que ainda podias ser feliz, / que há sempre tempo dentro do tempo, / mas há tanto tempo que não andas de bicicleta (…)”. Há sempre tempo dentro do tempo, mas esse tempo dentro do tempo é sempre um tempo dorido, um tempo de memória, um tempo que mede a distância entre o nada em que vamos ficando e o tudo que já fomos. A distância entre “tenho milhões de anos / de solidão dentro de mim” (58) e “todos os sonhos em embrião / a vida no princípio e cheia de tesão” (55). Por vezes sentimos o sopro de Pessanha, em alguns dos poemas, naquela sua exigência de delapidação do verso em torno do som e da dor, como no poema 21:

Corpo corroído pela saudade,

uma saudade que transpira lágrimas,

que se desfaz em dor,

que se acumula em pó,

que fermenta dia após dia,

que se multiplica ao segundo,

que quase abarca o mundo,

que nasce e morre no quarto do fundo.

A vida é triste, “ tal como uma lágrima / sentindo saudade” ( versos finais do poema 22, que parece querer continuar o 21, e que encontra eco no último verso do 35: “pois não há mal que não me venha.” Mas, e como já ficou claro, a vida não é triste pelo que é, pelo que acontece, a vida é triste porque ela revelou-se-nos como sendo um pretérito imperfeito, esse tempo dentro do tempo: acontecia, era, vinha. “O amor era o avô / a descascar uma romã / para a avó.” Esta consciência acaba por trazer sabedoria, ou pelo menos alguma, em forma de pragmatismo e versos belos, como no caso do poema 24: “Difícil é ser feliz, / quando tudo se perde por um triz. (…) e come todo o amor antes que o amor acabe.” Ou ainda a consciência de que mesmo quando a vida parece estar a ser, e não ter sido, ainda assim ela é só aparência, como viver num hotel: “Pensei, que metade do amor é isso, pensar / e que é fácil ser feliz num quarto de hotel, / a cama sempre feita, as garrafinhas no minibar / um pequeno arco-íris particular / no fim do qual quase uma esperança, / um quadradinho de chocolate em cada almofada / de penas de pato depois do foie gras, / um sossego, allegro, andante, fugaz / como se a vida pudesse ser menos voraz.”

A dor que percorre este livro, que na nossa cartografia poética nos remete a António Nobre, advém de se entender a vida não apenas, como já se disse atrás, uma espécie de sermos mortos-vivos, pois a vida ficou lá atrás, mas também de a memória estar continuamente a lembrar-nos disso. O livro faz-nos ver a vida segundo o ponto de vista daquilo a que usualmente chamamos de “saudosista” – e realmente a palavra saudade aparece inúmeras vezes ao longo do livro –, com uma diferença, que parece ser substancial: a da consciência. De modo geral o saudosista sente saudades do “tempo em que tudo era bom”; aqui, neste livro, pelo contrário, há a consciência de que não era o tempo que era bom, mas a poeta é que era boa. Todos os tempos são bons, porque em todos os tempos há quem esteja a estender as asas, esteja a abrir sonhos pela primeira vez, esteja de pés bem firmes na alegria dos beijos frescos como as primeiras manhãs de Natal. Raquel Serejo Martins, pelo contrário, não sente saudades do tempo, sente saudades de si mesma, como fica bem vincado no poema 67:

Às vezes ando à minha procura

como uma mãe à procura de um filho desaparecido.

Esta consciência, e que muda tudo, de que não era antes que tudo era bom, éramos nós que antes éramos bons, éramos nós lá, onde nada ainda se tinha partido de importante, nem a confiança, nem a esperança, nem corações, só braços, cabeças e uma ou outra perna, faz deste livro um espécie de escarro na cara da vida. Vida essa, que também é mostrada nos seus momentos escatológicos e quotidianos, e sempre ligados à solidão da vida, à irrecuperabilidade da verdadeira vida, a que antes acontecia, como nos versos finais do poema 70: “A série da BBC. / A leitura de uma revista na latrina. / A higiene íntima da vagina. / A solidão / ou Napoleão no exílio sem Josefina.” Antes de deixarmos um poema da poeta, resta dizer que o livro, alem dos poemas de Raquel Serejo Martins, traz ainda desenhos de Ana Cristina Dias.

9. Aves de incêndio

Era Verão

e as tardes infinitas,

duas garrafas de Sumol,

um pacote de batatas fritas,

e os dois na esplanada

na sombra-aquário do guarda-sol.

Eu um peixe,

a tua boca isco no anzol.

Lábios que não sabiam beijar,

que aprendiam a beijar

que beijavam por tudo e por nada,

sofregamente, por tudo e por nada.

O corpo a arder,

os pés descalços,

o chão em chamas,

vá lá, diz que me amas.

Era Verão,

a estação dos incêndios,

das flores na pele a queimar,

dos corpos em brasa,

do grão na asa,

do na minha ou na tua casa.

Era verão,

as noites tão vivas como os dias.

Nos céus luas, estrelas,

foguetes a explodir em flores coloridas,

sobre o som da banda a tocar no coreto.

No chão o bulício de cigarras em cantatas de Bach

e tu a dançar.

A dançar comigo,

até ao romper da aurora.

Dizias sempre bela aurora,

como a canção

e não gostavas de dançar, mentias,

fingias que eu te pisava e rias.

E a dançar

chegou a tarde do nosso adeus,

uma tarde igual a todas as tardes

sem nuvens no céu ou ameaças de chuva,

apenas levemente mais fria,

porque já Outono

e nós aves de uma só estação,

aves de incêndio.

10 Jan 2017

What’s new pussycat?

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente perguntarem-me, até em eventos de carácter literário, nos quais as perguntas tendem a ser sobre personagens, contextos ou sobre o papel da inspiração – seja lá o que isso for – no ofício da escrita – seja lá o que isso for – “então e os gatos, qual a importância dos gatos na sua vida?” E isso reconduz-nos inevitavelmente ao Facebook e à minha prolífica actividade de divulgador do que de melhor se faz no campo dos gifs, vídeos e memes de gatos. Para além desse meritório trabalho de interesse público, sou também biógrafo oficial dos dois gatos que generosamente acedem a dividir casa comigo, o Rim e o Croquete, e não me poupo ao esforço documental de registar nos mais diversos formatos e suportes as suas aventuras domésticas e as suas muitas, muitas tropelias.

Escritores e gatos partilham histórias de amor e afecto desde sempre. Bukowski dizia num poema que estudava os seus gatos e que estes eram os seus mestres, a Doris Lessing escreveu um livro sobre gatos, o Hemingway gostava tanto de gatos polidáctilos que estes acabaram por virem a ser conhecidos por “gatos de Hemingway”. Os gatos e os escritores são criaturas de uma curiosidade inesgotável, são caçadores solitários e, no caso dos escritores mais argutos, são de uma radical honestidade. Os escritores são, no fundo e na melhor das hipóteses, gatos falhados.

O meu pai era caçador e, por isso, um homem de cães. Os gatos, para ele, eram toleráveis meramente por terem uma função no controlo das pragas de roedores. Eram uma ferramenta ao lado das outras, uma espécie de pesticida com cauda e dentes. Foi difícil convencê-lo a ter o meu primeiro gato, um floco de pelo a que chamámos “gatinho”, quando ainda cabia na palma da mão, “gato”, quando de tão gordo eu mal o conseguia erguer e “filho da puta”, quando ocasionalmente arranhava a mobília ou desatava a fugir rua fora com uma fatia de fiambre na boca.

Quando regressámos de França, o gato regressou connosco. Fiz a minha mãe prometer-lhe sardinhas frescas caso ele não fizesse xixi durante os dois dias da viagem de carro. De passagem por Bordéus o carro avariou e tivemos de pernoitar num hotel enquanto o meu pai discutia com os homens da oficina sobre a origem da avaria e a peça a substituir. O gato, esse, desaparecera algures. Inconsolável, pedi à minha mãe para irmos ver se não estaria escondido algures na oficina, com medo, frio e fome. A minha mãe, insensível a lamentos imberbes e pragmática até à medula, garantiu-me que seria a primeira coisa que faríamos pela manhã. O gato estava lá, debaixo do banco do passageiro, miando como quem quer e não quer ser notado. Os meus pais ficaram provavelmente tão felizes como eu, eles que já se viam a fazer o resto da já penosa viagem com uma criança em modo carpideira no banco de trás. Infelizmente, o gato apaixonou-se pelo campo da primeira vez que fomos visitar a minha avó. Acabou por ficar por lá, gárgula de pêlo sobre o beiral do telhado de quatro águas, dono daquilo tudo, e eu, triste mas resignado, soube pela primeira vez na minha vida o que era ser abandonado.

Já na Faculdade, em Lisboa, adoptei a Joana, uma gata preta e, à altura, minúscula, para me fazer companhia nos intermináveis fins-de-semana que eu passava a estudar Platão ou Kant. A Joana acompanhou-me durante o curso, quando comecei a trabalhar, em quatro mudanças de casa, velou pelo meu filho quando ele era apenas um bebé de berço com dedinhos tentaculares, acompanhou-me no meu casamento, na minha separação, na tristeza profunda dos dias em que a morte range os dentes e no solstício das alegrias mais intensas e perenes. A Joana teve a sua primeira e única ninhada em cima de mim. Quando acordei, de olhos ainda fechados, pensei ter urinado na cama pela primeira vez na vida. Abrindo finalmente os olhos, descobri um tufo de pêlo miando, mesmo à frente do meu nariz, e outros dois deambulando cegos sobre a minha barriga. O quarto, esse, já o teve sobre a cama. A Joana foi uma das melhores partes de mim e da minha vida e, quando ela morreu, em 2014, enterrei-a como se enterra um amigo que nos deixa na desconfortável posição de lhe sobreviver. Dediquei-lhe um livro de contos e vários poemas e penso nela sempre que vejo um gato preto.

Por isso quando me perguntam pelo porquê dos gatos e desta obsessão infantil por um animal que, ao contrário do cão, não ama com o coração todo, respondo normalmente com um sorriso e um encolher de ombros, como as pessoas que tentam explicar o amor. Os gatos são os bichos que mais se parecem connosco. Podem ser meigos até à lamechice, violentos ou simplesmente snobs, elegantes ou gordos como lontras de cativeiro. Gostam de carinho, ma non troppo, de atenção a espaços e têm um ronronar que compete com o xanax em eficácia terapêutica. Às vezes olham-nos como se fôssemos nós o animal de estimação. Às vezes, e não tão raramente, têm razão.

9 Jan 2017

O estranho lugar das palavras

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que de súbito acordo num momento qualquer do dia como se pela primeira vez. De novo, mas com uma sensação de estranheza desmesurada, e como se desentranhada à força e antes da hora, a um sono tumultuoso e insuficiente. Arrancada do lugar. E quando mergulho nas palavras sei. Que estas são sempre um lugar estranho. Insustentável estranheza ou lugar.

Há lugares tão estranhos. Para lá de qualquer indizível sensação de reconhecimento. Não que a estranheza seja inscrita no lugar. Os lugares são imanentes como as coisas, como a matéria. Como o corpo, até. E há corpos estranhos. Estranhos que ficam para sempre e para lá da intimidade aparente da pele. Irreconhecíveis enquanto lugares familiares, alheios. Há lugares e pessoas e nomes que nos ficam estranhos para sempre. Ou exteriores. Tive um lugar assim. Pessoas. Talvez não tanto porque não estivesse recamado de todos os objectos que me acompanham a vida, a memória, e dos quais me penduro para não soçobrar sem bússola. Perder. Mas porque foi escolhido com mais liberdade do que outros, utilidade e não paixão, por uma vez. E, de repente ali, tive o tempo de ver nos dias esse não reconhecimento. Talvez um lugar de não encontro. Uma ligeira coincidência de passagem. E só.

E, para afundar a sensação bem num âmago completo de estranheza, e a ferir de inevitabilidade, como se uma verdade qualquer acordasse sequiosa de validação, sento-me no lugar destas palavras, dias depois, sem de todo as reconhecer. Uma manta espessa e contínua, de nós e pontos apertados, que tive de desfazer. Desmanchar, em parte. Porque era hoje. A elas, ao lugar delas e ao lugar que me ocupou no tempo delas. Um lugar outro que não vejo ali. A estranheza completa e desconhecida desse lugar perdido na memória e que aqui serve. E que está bem. Assim. Certo nas palavras e estas na sua lonjura, já. Custo a reconhecê-lo e só muito a custo, abrindo parágrafos e afastando ramos estranhos numa confusão de sentidos desorientada, como num lugar entranhado de floresta sem momentaneamente ver de onde vem a luz. E desse lugar abstracto em que de repente acordo, espreito inúmeras possibilidades de significado. Várias estranhezas outras de territórios alternativos ao que, insignificante, moveu as palavras de início. Porque de significante, só deixou a recordação de deixar.

Mas, outras vezes, caio de repente até numa única simples palavra. Simples e familiar, e deparo-me também com uma equívoca e indeterminada sensação de pura estranheza. Não sei porquê. Talvez não esteja nela. E sim no lugar em que me encontro. O mesmo mas, por erro de percepção. De paralaxe, de novo. Eu lia dantes. E relia e retomava o prazer intenso de algumas palavras quase até ao desgaste da sua superfície doce. E relia-as cada vez mais suaves e niveladas dos volumes e texturas da emoção. Quase a tornar-se inócuas. Depois tinha que parar. Deixá-las regenerar todo esse perfume antes de consumi-las de novo. Depois, muito depois foi como se as palavras tivessem enlouquecido. Mutáveis, ambíguas, irónicas e fugidias na sua perversão. De querer seduzir magias e de querer recobri-las de dúvida.

Mas o lugar de que falava. Nem sequer chegado a ser desconfortável. Nem de perto. Apenas uma distância, no conforto, de não ser a minha pele. Uma pele alheia, familiar e anódina. Há lugares assim como pessoas. Esse confronto de múltiplos contornos entre familiaridade e desconhecimento, entre conforto e indiferença, fez-me um dia mudar de casa. Com toda a nitidez. Houve uma música e uma emoção forte. E, de súbito a certeza de ter que mudar e o ânimo para todo um terramoto dos objectos e de tudo. Como mudar de pele. Mais complicado do que de face ou de roupa. E há lugares que se nos colam imediatamente como uma seda fina, uma musselina etérea se quiser vê-la com essa separação do que é o corpo que se transporta, ou simplesmente e invisível ao próprio, a pele. E outras estranhezas. E outros lugares. Igualmente feridos dessa imaterialidade que lhes imprime interrogações e inúmeras sensações dentro do leque do visível aos olhos ou do visível à cegueira dos olhos. E de entre lugares estranhos, o amor. Assim, a dizer de repente.

Há lugares tão estranhos. Lembro-me de quando era pequenina, e mesmo mais tarde, um bocadinho menos de tudo, e agora tudo isso em muito mais. E encantada por uma pedra bonita, e como uma formiga, por isso pensava levá-la para casa. Naqueles gestos lentos de pontinhas dos dedos a tentar fugir aos grãos de terra, de olhos postos e só na pedra de uma cor curiosa, ou de uma textura lisa, lisa e boa de tocar. E, no preciso momento de levantá-la da terra em que repousava há tempo suficiente, uma miríade de vidas de vermes ou de insectos por debaixo. E o susto, a repugnância ante a possibilidade do tacto por engano das expectativas dos sentidos. Essa vida surpreendida escondida e em paz nos seus desígnios. Mais perturbadora, muito mais do que a pedra que por erro ou injustiça me detivera a deslocar do nicho original. A roubar à harmonia. Ainda hoje, o prazer fresco de encher as mãos de punhados de terra, neles construir camas para rebentos, mudas, sementes, ou raízes já feitas, é inquieto por essa possibilidade da vida minúscula e oculta nos seus grãos. A eminência do tacto, arrepiante. Dos vermes. Que se tratará, para além da leitura associada à morte, de uma repugnância estranha, é.  E perante os bichos queridos quando partem de si. Como se com a temperatura do corpo se esvaísse deles a alma que os distancia dos objectos e nessa ausência injustamente tornados menores do que eles. Os objectos que, mesmo frios, agarramos com prazer nas mãos. Não os bichos.

Um dia uma mulher estranha com quem trabalho, e poucas devem ser mais estranhas do que ela,  quando, no entanto, sempre que fala eu reconheço de dentro as palavras que acho bem, e porque lhe toquei no braço no decorrer de um diálogo, afastou-se com agressividade e disse horrorizada não me toques, eu odeio que me toquem…respeito tanto isso que muitas vezes não toco aquilo de que gosto. Tenho medo que mais alguém odeie que eu lhe toque. É odioso fazer isso a alguém. E no entanto faz-se de muitas maneiras cuja escala não intuímos. Coisas de esconder o afecto. De o recobrir de ironia. De agressividade. Eu tenho saudades desse tempo de álbum de fotografias e da parte em mim que pertence a esse tempo. Em que as pessoas se tocavam com o tacto.

Lugares estranhos. Viver com essa outra de mim que não domino. Toda uma vida, vendo bem. Aquela que é fabricada do lado de lá e de que não conheço contornos nítidos. Que sou. Ou pareço. Mas esse é um conflito que imagino que nos tolhe a todos. Esse fantasma instalado em nós pela percepção de quem é exterior e dessa paisagem exterior olha. Resguardado também pela invisibilidade inerente a essa película grossa de que nos recobrimos. Mesmo sem querer. Com aversão, ódio. Ou exterioridade. Só. Mas lugar certo Sem força e sem saber o gesto alógica, a regra. Há sempre o momento a surpreender. Esse olhar extrínseco. Não inerente à essência. Inventado, até. Tantos conflitos se geram nessa gestão descontrolada de representações de nós e em nós de cada um desse que somos.  E, curiosamente é na subjectividade inteira para dentro desse casulo tão inviolado, estanque e translúcido quanto muito, que melhor sinto o que sou.  Nesse conflito triste de um vulto a que falta o perfume daquele calor intenso de sentimentos puros soterrados por mil cuidados e mil cobardias. Se algo em mim quereria ter cura é esse lado externo a mim e que anda pelo mundo como se fosse eu. Um eu que não reconheço ter a competência de me representar. Todo o calor de sentimentos, toda a solidez de que se faz o etéreo, toda a alma em desvelo. Pelo que gosto. Mais ainda pelo que amo. E nada. Quase nada transpira dessa mortalha grossa de que me sinto recoberta. Pelos outros. Alguns. Algumas vezes. Esta insularidade intransposta do ser. Talvez por isso sou só. Não em mim. A solidão não é em nós, mas sempre nos outros. Sou só nos outros. Se me não veem e me não vivem. Nessa representação de nós, que muitas vezes penso como uma peça de roupa oferecida. Raramente a reconhecemos. Raramente acerta em nós com um tiro certeiro de maravilha. Ego contra ego. Com ego.

Arriscava dizer que também os outros sofrem desta distância. De embarcações frágeis enviadas para longe sem ter visto de perto. Temos um problema com intimidade. Temos um problema com confiança. Temos um problema de entrega. E temos problemas por ter problemas. Destes. E dos outros. Dos dos outros. Mundo complicado como uma nave de loucos (em) que somos. Outros lugares estranhos. Alienamos nessa zona etérea do mundo que é a fantasia, o desespero d a realidade. A revelar-se escorregadia como um verme, e impalpável como uma ideia. Ou o ruído dos passos nas pedras do caminho e o intransponível poder de um abraço.

Interrogo muitas vezes as coisas nessa lamela de laboratório científico, debaixo das lentes de microscópio. A incredulidade tem crescido em mim, comigo, a passar a outras idades. Mas não é que os sentimentos me ofereçam dúvidas em mim. Emprestam-me de forma permanente em dúvidas de mim nos outros. Cada vez mais estamos menos sós mas em lugares estranhos de nós. Nos outros. Por isso e sempre voltar ao lugar do silêncio. E não poder querer permanecer. Reduzir por momentos o ruído de dentro e de fora. É no silêncio que melhor me encontro no que de melhor deve haver em mim. Ou baixar os braços. Nesse silêncio onde não se entra nem ninguém facilmente. E de onde falo para dentro destas palavras quando posso. Sim. Quando posso sentir-me recoberta pela casa e pelas roupas sem despir menos que o necessário. Senão, é também aqui que me prendo a esse fantoche que vejo de fora como se fora eu não sendo. Eu que conheço outras camadas que os fios não gerem, os dedos não manipulam, e os olhos não tolhem.

Um dia vivi num lugar pequenino e talvez feio, que nunca foi estranho. E todo um chão em malmequeres. Podia parecer uma metáfora no mosaico da memória. Mas é rigor. Longe. Um lugar longe de tudo. E que nunca foi estranho. Com alguém que nunca foi estranho e até hoje está ali. A uma distância em quilómetros e em meses que nunca foi mais matéria do que isso. Que o tempo tem inexoravelmente diluído do quotidiano e está ainda, mesmo assim ao alcance. Deixou-me e ao lugar, num dia em que o ar e o mundo precisava de estabelecer regras de distância física mas só, um manuscrito. Folhas de uma caligrafia azul, reconhecível e tatuada do gesto, em folhas grandes e pautadas de finas linhas. Azuis. Como eram dantes. Um ensaio sobre a angústia. “A superação da angústia”. Escrito em dias a dois metros de mim porque o lugar não esticava mais de pequenino. Mas com toda a distância entre mim e o segredo das palavras a cair lentamente nas folhas, como gotas, de folhas, muito depois da chuva. Da angústia. Que era necessária verter num espaço curto. Em palavras ditas. Contadas. No espaço curto longitudinal, com o abismo pelo meio. Em si. Escritas, durante anos e anos não li. É esse o lugar estranho do amor. Um. Ou estranheza é o lugar em si. Para além da ética ou da estética. Quando visto do lado de dentro, umas vezes. Ou quando visto de fora e outro. Estranheza é um lugar. Que é um não lugar. Por isso. Não o amor. Lugar entranhado de si. O lugar estranho do amor, de tanto ser estranho não ser lugar nem estranho, mas ser em si.

6 Jan 2017

A Colecção do Museu Luís de Camões

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] trabalho realizado no conseguir reunir um espólio para o Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, criado pela primeira vez em 4 de Novembro de 1910 por Portaria Provincial do Governador Eduardo Marques, mas nunca aberto ao público e provisoriamente instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, “gorou-se devido a uma defeituosa orgânica. Para emendar esse erro, o Governador interino Álvaro de Melo Machado pela Portaria n.º 214 de 12 de Outubro de 1911, exonerou tão numerosa e decorativa comissão, substituindo-a (…) na mesma data, por uma composta apenas de três vogais, o capitão Albino Ribas da Silva, o intérprete-sinólogo e coleccionador de arte chinesa José Vicente Jorge, e o apontador da Repartição das Obras Públicas, Manuel Ignácio Rezende, que tinha também manhas de coleccionador de arte chinesa”, como refere Gonzaga Gomes. Mas também estes não deram conta do trabalho e assim se perdeu a ocasião para a criação de um Museu em Macau. Tanto mais que, lamentavelmente, “entretanto, muitas antigualhas de interesse que poderiam figurar nele e que então ainda existiam em Macau, tanto na posse dos particulares como nas igrejas, conventos e estabelecimentos públicos, se foram sumindo ou estragando-se, por desleixo, incúria ou ignorância e, não poucas vezes, vendidas ao desbarato.”

Os anos passavam e nada de Museu. A 17 de Junho de 1920 foram aprovados os estatutos do Instituto de Macau, uma associação científica, literária e artística que pretendia promover a criação de um museu e a conservação de edifícios e objectos de valor documental, históricos ou artísticos existentes em Macau. Dela apenas se registam algumas conferências, mas o Museu…, nem vê-lo!

A 20 de Janeiro de 1926, a Direcção das Obras dos Portos propunha-se organizar uma ‘Exposição Industrial e de Estudo’ para servir de início a um futuro Museu e Exposição Permanente dos produtos das indústrias locais e mostruário de produtos da Metrópole e das Colónias Portuguesas e em que se reunissem todos os elementos dispersos e alguns talvez desconhecidos do público, sendo por isso dividida em várias secções: Secção Fotográfica, Secção Cartográfica, Hidrográfica e de Maquetes, e Secção Industrial. Estava-se próximo da conclusão das obras do novo porto da Rada, que se cria vir dar um novo alento à cidade. A ideia evoluiu para uma Exposição Industrial e com os artigos que aí iriam ser expostos, é proposto criar um museu em Macau, instituído pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda por Portaria de 5 de Novembro de 1926. Mas o Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões só abriu portas a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento. Encontrava-se dividido por dois edifícios; no 1º andar do edifício de Leal Senado, sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Museu, Dr. Telo de Azevedo Gomes, a secção histórica do Museu continha as pedras com inscrições históricas, armas, brasões, etc., assim como espécies artísticas e pictóricas, obtidas principalmente por empréstimo de particulares. Já a secção comercial e Sacra do Museu, estava exposta no rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia. (Local onde até 2016 esteve o Cartório Notarial e que agora foi alugado pela Pharmacia Popular.) No entanto o recheio do museu era paupérrimo.

Das ofertas

Ainda antes do Museu abrir, encontrando-se com o espólio armazenado no Palacete da Flora, a fábrica de vidro Shimada de Osaka no Japão, ofereceu-lhe um mostruário de artigos de vidro. Um mês depois, o Boletim Oficial de 3 de Dezembro de 1927 publica o Regulamento dos Serviços do Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões. O semanário A Verdade de 1 de Novembro de 1928 refere ter Hee Cheong feito a magnífica oferta para o Museu Luís de Camões de uma artística vitrina de curiosas porcelanas no valor de cerca de duas mil patacas.

A 13 de Agosto de 1931, a explosão no Paiol Novo da Flora, que fez vinte e um mortos e cinquenta feridos, destruiu completamente o Palacete da Flora e provocou grandes estragos nas redondezas. Na mansão do coleccionador de arte chinesa Dr. Manuel da Silva Mendes, situada na encosta Sul do Monte da Guia, a explosão reduziu a cacos grande parte dos seus pratos brasonados de porcelana. Este advogado, professor de Liceu e jornalista, escritor de assuntos chineses, veio a falecer quatro meses depois. Os herdeiros venderam algumas das mais importantes peças a coleccionadores estrangeiros, já que o Governo não se decidia a adquirir a preciosa colecção para o recheio do Museu Luís de Camões. Até que, constituída uma comissão, o museu foi enriquecido com esses “bronzes, objectos de barro tumulares, barros vidrados de Seák-Uán (Shiwan, em Foshan, onde se encontra o forno imperial Nanfeng), algumas peças de celadão, uma ou outra peça em esmalte, uns poucos exemplares de jade, havendo numerosas aguarelas chinesas, mais de uma dezena de retratos de mandarins a óleo, sendo, contudo, raríssimas as peças em porcelana”, como refere Luís Gonzaga Gomes. Ficaram expostos no primeiro andar do edifício do Leal Senado onde, em 28 de Dezembro de 1933 se fez uma exposição também para mostrar os quadros adquiridos pelo Leal Senado, assim como pelo seu presidente, Luís Gonzaga Nolasco da Silva, que os ofereceram ao Museu.

No entanto, um lugar permanente para o Museu estava difícil de se encontrar. Os mostruários adquiridos pelo Governo após a Exposição Industrial tiveram que sair da Santa Casa, pois esta precisava da sala. O mesmo aconteceu três anos mais tarde com os objectos colocados no edifício do Leal Senado em consequência do desenvolvimento da Biblioteca Pública, que estava instalada no mesmo andar e na mesma ala desse edifício, sendo por isso removidos para o Palacete de Santa Sancha, que abriu ao público a 12 de Dezembro de 1936. Aí teve uma passagem efémera pois, logo no ano seguinte foi o Museu instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, actual Casa Garden.

Da passagem do Museu pelo edifício do Leal Senado, para onde lá nunca mais voltou, ficaram as lápides de granito encontradas em diversas localidades da cidade e incrustadas nas paredes do átrio. Já as lajes sepulcrais, que estavam colocadas no chão do átrio, foram removidas e colocadas no Museu Arqueológico das Ruínas de S. Paulo, instituído pelo então Governador Jaime Silvério Marques (1959-1962).

6 Jan 2017

José Anjos: “Escrever é o acto de resistir”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta (acerca do teu livro de poesia, primeiro e até agora único, Manual De Instruções Para Desaparecer, acerca do qual escrevi aqui neste jornal), músico (baterista na banda Não Simão) e fazes muitas leituras de poesia, um pouco por toda a cidade de Lisboa, mas tens dois lugares mais recorrentes, que são dois bares, O Povo e o Irreal. Fazes ainda parte de um grupo de performance de poesia, onde se reúne a música e a palavra, No Precipício Era O Verbo (acerca do qual já se falou aqui, aquando da entrevista ao António de Castro Caeiro). Qual de todas estas actividades é para ti a principal, se é que há uma principal?

Não posso dizer que algumas delas seja, em absoluto, a principal, embora tenha noção da prioridade que cada uma ocupa na minha vida e a cada momento. Há uma hierarquia móvel na definição dessa prioridade, até porque me vou dedicando a várias áreas ao mesmo tempo, entre as quais o direito, e tenho cada vez mais projectos na área da música e da poesia (alguns dos quais me dão já imenso trabalho mesmo ainda sem terem saído da cabeça). Este ano foi, sem qualquer dúvida e para meu imenso gáudio, mais dedicado à poesia, à música e ao palco: escrevi um novo livro de poemas, que sairá pela chancela da abysmo no início deste ano, gravei um álbum, cujo EP sairá no início deste ano também, com a banda Não-Simão, liderada pelo Simão Palmeirim e onde sou baterista, gravei um trabalho do projecto No Precipício era o Verbo, com o Carlos Barretto, o André Gago, o António de Castro Caeiro e eu, projecto este que nos levou ao CCB em Dezembro passado pela mão do João Paulo Cotrim (abysmo) e do Fernando Luís Sampaio (CCB) e cujo cd está já à venda, com art-work do André da Loba. Será também lançado, previsivelmente em Abril deste ano, a segunda fase deste projecto – que consiste na edição de um livro/cd (também pela abysmo) com todos os poemas e textos incluídos no cd, interpretados por ilustrações do André da Loba. Aparte estes projectos, tento fazer e organizar o máximo número de leituras possível.

E como vês a relação entre a escrita de poesia e o ler poesia nos bares?

Ler em público é uma actividade à qual me dediquei muito nos últimos anos, especialmente desde a criação – pelo Alex Cortez, pelo Nuno Miguel Guedes e por mim – das noites dos Poetas do Povo, projecto do qual já não faço parte mas visito com pertinente frequência, seja como espectador ou convidado. Presentemente organizo, com o João Paulo Cotrim, as quartas de poesia do poço, no bar Irreal. Quanto à relação da escrita de poesia com a sua leitura nos bares, considero, em primeiro lugar, que existe quase acidentalmente e que, mercê do facto de juntar no mesmo espaço vários poetas e leitores, alargamos necessariamente o campo de autores e obras que compõem a nossa biblioteca íntima. Nem todos leitores escrevem poesia, mas não se pode escrever poesia sem ler poesia. E no meu caso quanto mais leio, mais escrevo – e mais deito fora. Talvez possa dizer que o ler e ouvir poesia nos bares me permitiu conhecer quase todos os autores – vivos e mortos –  que hoje são para mim referências literárias e afectivas inelutáveis (tu és um deles), e me ajudaram não só a compreender e a tornar mais claro o que eu próprio escrevo (ou melhor, aquilo que afinal tenho para – ou tento – dizer) mas também a rejeitar falsos textos e a saber dizer não a mim próprio. Em segundo lugar, o poema contém infinitas possibilidades em suspensão – como um campo quântico – que se concretizam e apresentam quando o mesmo é lido, seja em silêncio ou em voz alta. O mero acto de ler é já de si uma observação interpretativa e uma interferência necessária que cria uma realidade tão íntima que não sabemos se estava lá antes do colapso da leitura. Exemplo disso é o facto de o texto estar sujeito a diferentes leituras e interpretações consoante as pessoas, o que só demonstra, como dizia o Helder Macedo há umas semanas numa conferência a propósito de Shakespeare, que o texto é “um organismo vivo”. Ora, vejo o processo de escrita como uma proposta de investigação e leitura das coisas que se organizam – e a forma como elas se organizam – perante a nossa percepção. Escrever é para mim o resultado (conseguido ou não) de um acto passivo de contemplação. Ler o poema, por sua vez, implica um gesto idêntico ao de abrir uma porta num dado momento da realidade, por trás da qual o poema passa a ser um lugar onde cabe apenas uma única pessoa. Ler um poema em voz alta, maxime perante uma plateia que o desconheça, é multiplicar a invenção de lugares ou, em última instância, de lugar nenhum. A privacidade absoluta num lugar sem privacidade. Por outro lado, o gesto de ler em voz alta, venha ele a revelar-se mais ou menos gratificante na sua intenção, é um prazer inegável e quase inexplicável, embora não desprovido de riscos: é sempre possível fazer explodir um poema por excesso ou defeito na sua interpretação e intenção formais. Nem o poeta nem aquele que lê o poema sente mais ou sabe sentir melhor do que quem o ouve, por muito que assim queira parecer. Neste aspecto concordo em absoluto com o que o Leonard Cohen escreveu: “O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior(…). Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Respeita a privacidade do texto. Foi escrito em silêncio. A coragem da actuação é dizê-las. A disciplina da actuação é não as violar.”

E como entendes a poesia. De outro modo, imagino que leias e gostes de poesia diferente daquela que escreves, que procuras nos poemas que lês e o que procuras nos que escreves?

Creio que a dada altura a poesia tem de ser entendida necessariamente como um acto – ou gesto – de resistência, independentemente dos aspectos concretos e emocionalmente relevantes que daí advêm para cada pessoa e a cada momento, estes sempre mudando, como a memória. Escrever é, para mim, resistir contra e resistir a: (i) resistir à frustração, sem dela abdicar mas sem sucumbir ao seu jugo (o acto criativo forja-se na sustentabilidade da frustração enquanto forma de resistência, desde logo ao próprio eu e às suas artimanhas de imediatez hedonista), e (ii) resistir contra a angústia da nossa existência e da dos outros, que se torna quase insuportável, escrevendo-a, descrevendo a sua beleza terrível. Há uma responsabilidade do artista, do autor, perante o sofrimento e a violência. Há poemas que dizem tudo e que não teriam sido escritos sem essa a intenção de resistir contra a impassividade, a resignação e a cegueira selectiva (começando pela nossa) que, de certo modo, nos permitem sobreviver, mas sem nada fazer para mudar. A humanidade é uma escolha irreversível e lancinante, diria mesmo bruta. Escrever é o acto de resistir contra essa condição, dando-lhe o significado íntimo possível. Ler é aprender esse ofício da resistência. Necessariamente procuro (ou melhor, descubro) novos poetas e estilos de poesia que me afastam de uma noção unívoca de poesia, que, por mais confortável possa parecer, não acredito existir. Por outro lado, e desde já me contrario, encontro em poemas de estilo absolutamente diversos a mesma fonte, talvez até vis-a-vis os meus. Mas é preciso a autodestruição dos processos de escrita, de certa forma aprender a escrever com a “mão esquerda”, como o Miró (simbolicamente é claro); mudar de intenção e nome, queimar o nome, deixar de escrever para – talvez – saber escrever. Neste aspecto, o acto de ler e voz alta e em público têm-me permitido fazer essa mudança de lugar sem cair no meio.

Acreditas que estes eventos de leitura de poesia acabem por levar mais pessoas à poesia?

Não acredito, tenho a certeza! Vejo isso desde que os Poetas do Povo se abriram à cidade, como noutros casos (e.g. as quintas de poesia do Miguel Martins e as sessões do Nuno Moura). Obviamente que se me disseres que a educação, a aquisição e prática de bons hábitos de leitura levam mais pessoas à poesia do que todos estes eventos juntos, estarei de acordo. Mas creio que dificilmente se pode levar poesia a pessoas que fora deste contexto não estariam disponíveis. No fim, estes eventos acabam por confrontar as pessoas com autores, poemas e versos impossíveis de sacudir e levá-las a ler motu proprio. Cumprem talvez uma tradição no verdadeiro sentido da palavra traditio, que é o da partilha.

6 Jan 2017

ZEUS, Manuel Teixeira Gomes no grande ecrã

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] RADICAL DESEJO DE FELICIDADE, não é, mas podia ser, o título do filme ZEUS que nesta quinta feira de inicio de 2017, é distribuído pela NÓS em Portugal e tem, na mesma quinta-feira dia 5 de Janeiro, ante-estreia na Cinemateca Portuguesa.

O filme acompanha a vida do herói, herói relutante, esse tipo de herói que modernidade ocidental inventou e que no caso tem nome próprio, Manuel Teixeira Gomes.

Quem foi este homem, político, diplomata, escritor, que se demite a si mesmo do cargo de presidente da República Portuguesa, e decide viver os últimos anos da sua vida num exílio por ele próprio decidido, na cidade de Bougie, Argélia, margem sul do mediterrâneo? É o que se espera melhor conhecer quando a projecção termina. O filme cumpre essa natural expectativa.

Vivemos um tempo em que é comum títulos de jornal sobre o uso da coisa pública em proveito próprio. Nenhum título nos fala do abandono, da recusa do exercício do Poder.

O que dizer de alguém que, tendo o poder da presidência de República, a abandona por vontade própria e se auto exila entre outras terras e gentes?

Este foi o caso do sétimo presidente da República Portuguesa, Manuel Teixeira Gomes, com fortuna herdada e construída pelo próprio, eleito a 6 de Agosto de 1923 presidente da ainda adolescente República Portuguesa, cargo de que se demite em 1925, para o acaso o instalar na cidade já referida.

Norberto Lopes, no prefácio de “O Exilado de Bougie”, compara Manuel Teixeira Gomes a um grego do século de Péricles e/ ou príncipe florentino da renascença, há quem dele fale evocando a personagem Corto Maltese de Hugo Pratt.

O cargo era grande ou pequeno demais para o homem Manuel Teixeira Gomes?

ZEUS, é o nome do Filme de Paulo Filipe Monteiro, e o do cargueiro, onde o personagem principal desta ficção biográfica embarca 5 dias depois ao abandono das funções de Estado. Com 65 anos, muda de vida.

A história real, desconhecida para a grande maioria dos portugueses, é trazida a filme pelo argumentista e realizador, Paulo Filipe Monteiro.

O filme integra, de forma ficcional e sem acentuados dramatismos os acontecimentos políticos que antecederam a implantação da ditadura e, centra-se sobretudo, nesse tempo do exílio desejado, onde um confortável anonimato permite o prazer sensorial e a disponibilidade para a alteridade, para o encontro com a existência do outro.

De alguma forma o filme também é uma fala sobre o colonialismo, neste caso o da França, sobre essa arrogância que se apresenta a si mesma como factor de civilização.

Formalmente o filme assume uma montagem elíptica, por blocos, com citações não inteiramente conseguidas ao expressionismo alemão e ao mestre Murnau. Trabalha a luz e a sua ausência, é Paulo Filipe Monteiro quem afirma: “ Zeus é um filme sobre a luz. Outros em Portugal filmaram, e tão bem, a escuridão, a tal soturnidade, a tal melancolia, “um desejo absurdo de sofrer”. Eu gosto da luz nas pessoas e das pessoas que procuram a luz”.

O filme trabalha com situações e frases verdadeiras, que permitem um olhar cinematográfico sobre a vida de um homem de espírito, livre, original.

Estruturado em três blocos, cada um com o seu director de fotografia e o seu director de som, esses blocos vão alternando, o que torna a linguagem narrativa mais contemporânea, embora dando a mão ao espectador para que ele não se perca.

Transcreve-se uma conversa breve com o realizador:

ZEUS, é o nome do cargueiro holandês em que o herói viaja quando abandona o exercício do cargo de Presidente da República e procura outra alteridade. ZEUS, o filme, inscreve-se no género ficção histórica, tem como personagem principal Manuel Teixeira Gomes, escritor, diplomata, burguês com fortuna pessoal herdada e construída pelo próprio, eleito a 6 de Agosto de 1923 presidente da adolescente República Portuguesa, cargo de que se demite em 1925. É a partida, a viagem, depois do abandonar o cargo de P.R.P. o que te levou ao filme?
Sim, o meu interesse por essa figura extraordinária e tão desconhecida dos portugueses começou por esse gesto inaudito de coragem e de liberdade: renunciar à Presidência e, aos 65 anos, mudar completamente de vida. Um homem com aquela importância, Presidente da República, ex Vice-Presidente da Sociedade das Nações (antecessora da ONU), sempre tão chic, grande coleccionador de arte, decide largar tudo e partir no primeiro barco que saia de Lisboa, mesmo sendo um cargueiro, não lhe interessa o destino. Passado um tempo está a viver com os nómadas no deserto…

O filme procura resposta sobre o que faltou, ou esteve em excesso, em Manuel Teixeira Gomes, que o levou a abdicar do exercício do Poder?

O que o levou a partir foram um conjunto de questões políticas e pessoais (a instabilidade, o avanço dos militares e dos fascistas, a lucidez de saber que o poder ia cair nas mãos dos militares, o pouco poder constitucional do presidente para travar isso, o desejo de não ser ele a entregar o poder aos militares, a morte do irmão, o escândalo Alves dos Reis, etc.), que o desgostavam de cá estar. Mas também a atracção de sempre pelas viagens, o fascínio pelo anonimato, a admiração antiga pela cultura árabe.

Norberto Lopes, no prefácio de “O Exilado de Bougie”, compara Manuel Teixeira Gomes a um grego do século de Péricles e príncipe florentino da renascença, também há quem fale da personagem Corto Maltese de Hugo Pratt. Como foi o teu processo de casting? Procuras-te o actor, aquele que tem, sensibilidade e técnica, a capacidade da metamorfose, ou o actor que serve o papel por encaixe através de características antropomórficas, cor de olhos, estatura, modos de estar?
Havia actores mais parecidos de cara e corpo com Teixeira Gomes. Mas apostei no Sinde Filipe, que tem a enorme inteligência, elegância e sensibilidade. Foi uma aposta ganha, encarnou completamente a personagem. Ainda só fomos a dois festivais e em ambos ganhou o prémio de melhor actor (em Mombai e em Coimbra).

Filmar época é sempre um problema acrescido, obriga a um investimento ainda mais cuidado nos décores, guarda-roupa, até mesmo na direcção de actores, esta condição limitou, ou a procura dessa materialidade, resgatou o tempo da narrativa da prisão cronológica?
Sim, é preciso mais cuidado, tempo e dinheiro. Creio que conseguimos. O João Torres é um fabuloso director de arte, conseguiu milagres. A Sílvia Grabovski, como sempre, a ganhar o prémio de melhor guarda-roupa. Os actores a tornarem-se pessoas daquele tempo, mas seres vivos, não empoados. Só a música não é de época, achei que seria demais.

ZEUS, chega às salas nacionais a 5 de Janeiro de 2017. Quanto tempo demorou o processo, quando pensaste pela primeira vez fazer este filme ?

Estou há oito anos a trabalhar neste projecto! Exigiu muita investigação, em Portugal e na Argélia, e cuidadosa preparação. É uma grande alegria ele agora chegar às pessoas.

Em quantos ecrãs o filme vai estrear? Como está a ser o circuito dos Festivais, o filme foi proposta a festivais classe A? A distribuição internacional é feita por quem ?
Vai estrear em vinte salas, o que é raríssimo em Portugal, mesmo com grandes filmes estrangeiros. Para já estamos concentrados nisso, depois trabalharemos na saída internacional do filme.

O projecto ZEUS esteve nas primeiras obras, ou conseguiste o quase milagre de teres dois filmes ficção de longa metragem no teu CV, sem passar pelas primeiras obras do ICA?
Eu não realizei duas longas. Fui actor em 10 longas-metragens, portuguesas e estrangeiras. Como guionista, escrevi sete longas para outros realizadores. Como realizador, só fiz Amor Cego, de 25 minutos, e agora Zeus, apoiado pelo ICA no concurso de primeiras obras.

Já sabes qual vai ser o teu próximo filme ?
Anda a fervilhar na minha cabeça. Não julguem que vou continuar a fazer sempre filmes de época: o próximo é bem contemporâneo.

ZEUS é a primeira longa metragem que Paulo Filipe Monteiro assina, no entanto o cinema é central na sua produção teórica e profissional, prova-o a sua tese de doutoramento em 1995, orientada pelo ilustríssimo Eduardo Lourenço “Autos da alma: os guiões de ficção do cinema português entre 1961 e 1990”.

Como estamos neste início de ano, espero que não se oponham a que expresse votos de excelente ano de 2017 para a cinematografia Portuguesa.

5 Jan 2017

Macau

26/12/2016

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m vício (já o Henry Miller tem um livro intitulado Leituras na Retrete): nunca me enfio na casa-de-banho sem me munir de um livro sacado ao acaso da estante que, no corredor, lhe fica em frente. Calhou-me Macau, um livro de poesia do brasileiro Paulo Henriques Britto, que, com este livro, ganhou o antigo prémio Telecom, hoje denominado Oceanos.

Usa-se a palavra “Macau” num único poema, que pertence à série Sete sonetos simétricos, onde se lê: «(…) esse minúsculo/império sem território, Macau/sempre à mercê do latejar de um músculo (…)». Para além da ironia, do leve tom cómico-marítimo que atravessa o livro, não há nenhuma outra referência ou justificação para o título do livro. Contudo, diz-se num poema anterior a este, em Bagatela para a mão esquerda: «À mão esquerda é vedado/ o recurso falso e fácil/ de dispensar a partitura/ a fraqueza (dita força)/ do hábito. (…) (No entanto ela escreve coisas/da mais esconsa eloquência:/atropelar o sentido/ ao contrapêlo da pauta/ é a sua ciência.)». Talvez então Macau represente esse exercício de «pensar contra si próprio» que tem um símil no obrigar-se a escrever à canhota, como exercício de disciplina espiritual, e que simbolizaria muito do não-dito da gesta portuguesa: um louco exercício de descobrir um fundamento fora de si mesmo, ainda que seja nos antípodas. E talvez o quarto de Dez Sonetóides Mancos forneça a chave do livro: «Também já estive aí, no não-lugar/onde você agora não se encontra./Também não me encontrei.//Aliás foi justamente contra/a tal necessidade de seguir alguma/rota que jurei lutar. Lutei, perdi,/ e pronto: agora estou aqui,/ a alguns centímetros do meu próprio umbigo.// Se tudo correr bem, também a tua derrota/ vai ser de bom tamanho. Pode contar comigo.» Este poema é de uma fascinante ambivalência. Por um lado, ao nível mais geral do âmbito do livro, pode ler-se como uma desconstrução sacana de algo que inclusive não nomeia: a Saudade, esse sentimento que os portugueses inventaram para se ejectarem fora-do-lugar onde se encontram, num intangível e oblíquo esplendor ideal, descobrindo-se embora a alguns centímetros do seu próprio umbigo, pois, afinal, quem a si mesmo escapa? Por outro lê-se como auto-derrisão, no sentido de os homens (e o poeta idem) estarem condenados ao auto-engano (a procura da tal rota ou sentido para a vida) e a buscar nos não-lugares as suas miras. Neste sentido, Macau significará o mesmo que Madagáscar, no meu imaginário, quando escrevi:

«Os meus binóculos varrem as águas na direcção de Madagáscar. Enclavinhada na linha do meu olhar desponta a ilha. Enorme, o recorte da sua costa reflecte invertida a costa de Mozambique – é mar que nasceu de cesariana!

Não se vê, a ilha, mas já lá pus os pés e é um bom lugar para morrer, mais belo e intenso que o lado de cá. Escolhi voltar, mas a semente do que daqui não vejo frutificou: eis-me prenhe do que em mim doravante se chama Madagáscar, um cenário onde ainda respiram piratas e lemingues, ideal para uma topografia do sonho.

Vim para África recuperar o primeiro olhar, desapropriar o nome. Terei alguma vez a coragem de o mudar? Identifico-me totalmente com essa figura mítica de São Sebastião de Maranhão que se perdeu nas selva amazónicas, com o seu cortejo de elefantes, serpentes de prata, carroças cheias de tesouros, flores e palmas por toda a parte, pajens, alabardeiros e formosíssimas escravas – só não me identifico mais porque, azar de rosto humano, o processo histórico me negou as escravas.»

Macau: um livro absolutamente a redescobrir.

28/12/2016

Quatro da manhã. Toca o telefone. Nem tenho tempo de atender, vai abaixo. O número não pertence a nenhuma das operadoras telefónicas oficiais em Moçambique. É um 87, dizem ser uma linha que só usa a polícia. Não faço ideia. Ao fim de cinco tentativas, na calada da noite, resolvo atender. É a voz de uma mulher, que me fala em changana, ou ronga, sei lá. Digo-lhe logo que é engano, e corto a chamada. Ela insiste, à quarta vez atendo de novo, explico que não falo a língua dela – ela não parece importar-se. Calo-me e durante cinco minutos ouço o tom lamentoso de alguém que está na agonia de algo, a respiração sai-lhe sôfrega – pede-me ajuda? Fala português, pergunto. Inglês? A toada continua, numa língua que desconheço, parece-me aflita, isso é certo, mas tudo nos separa – e de repente é noite, diria o Ungaretti.

Uma vez, nos idos de 80, fiz uma interrupção no jornalismo e trabalhei na RTP. Numa série de humor miserável. Era «script girl» – anotador. Na edição da série (a montagem, como então se chamava), via-me metido nas catacumbas do Lumiar, onde ao longo de um corredor penumbroso se sucediam os gabinetes para a montagem. E o meu trabalho, em oito horas penosas, consistia em consultar o meu dossier de 20 em 20 m  para responder à pergunta monocórdica do realizador: António, o take 431 é o take 431? Eu consultava os meus apontamentos para responder, Confere. Ao fim de uma hora via-me verde de agonia, três horas depois a cabeça latejava. O meu único entretém era o corrupio no telefone público, encastrado na parede do corredor em frente ao meu gabinete, e permanentemente ocupado por uma miúda de estalo, que era script-girl como eu. Naquele dia as coisas não lhe estavam a correr bem. Estava sôfrega e ansiosa, devido a uma decepção. E às tantas ouço-a gritar, Tu não me podes fazer isso! E sai do telefone numa corrida, deixando o auscultador pendido. Tive de me levantar para ir pousá-lo no bocal e antes, a curiosidade mata, levei-o ao ouvido, no intuito de ouvir a voz do animal que magoava uma lasca daquelas. E ouço do outro lado, “Ao segundo sinal serão 12 horas, 42 minutos e treze segundos…” Era o Serviço do Tempo. Ela já não estava muito boa da cabeça, e aquela era a sua evasão. No dia seguinte demiti-me.

5 Jan 2017

Saltar aos olhos

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or causa da Inês Fonseca Santos e do seu micro-gigante programa da RTP3, Os Livros, regressei a uma das minhas paixões: Nuno Bragança. Este cometa não compôs obra, desenvolveu uma criatura. Cada leitura revela novo livro, como se as bem esculpidas personagens, entretanto tornadas tipos, ficassem por ali a viver as respectivas vidas, a evoluir em pano de fundo tuga. A nossa leitura apanhou-os naquele momento, mas podia ser outro. Pode bem ser outro. Aprendemos tanto sobre «viver em nós nervosos sustos» em modo sempre à beira da dor. Continuam a chamar-lhes romances, mas para mim são ensaios autobiográficos, alguém que na escrita sem fronteiras se busca, questionando a norma e o óbvio, alcatifa poeirenta que calcamos. A escrita foi fazendo e desfazendo o Nuno, não apenas pela língua libertina e desenvolta, fresca e inesgotável, lúbrica e divertida, poética e minuciosa. Soube rasgar-se personagem de romper para cima, putativo rei militando contra a ditadura, católico a pensar-se. Rindo sempre, alarvemente. Eis isso mesmo: a língua de Bragança é uma gargalhada. De ponta e mola. Depois há Lisboa, a Lisboa que o tempo e suas turistagens vai pisando com distracções de fugir. Que escritor nos diz hoje das lisboas por debaixo? Dói de bela e sujidade, descalça de tão despida. Carne viva. E depois há Deus, ao desafio, como convém. Ainda mais carne e verbo. Tenho para mim que a literatura portuguesa do século XX faz-se de casos únicos, mergulhando, pois claro, raízes em tradições e movimentos, mas caderneta de cromos sem grandes equipas. Nuno Bragança surge como o mais vivo dos argumentos nesta tese de trazer por casa.

Facebook, 14 Dezembro

O Cabrita dedica-me, e ao Luís Carmelo, A Arca, um conto inédito que publica na revista online, Caliban (Shakespeare, sim, mas não apenas, também o Grabato Dias da minha primeira adolescência).

Como oásis, a sua escrita desfaz-se lugar de sombra e refrigério com a palavra a galopar atrás das mil ideias, mil imagens, mil sabores, mil perfumes. Tudo começa no momento em que o céu se declarou lotado, causando, no seu embaciado espelho, um tapete de catástrofes, do suicídio papal ao tumulto generalizado, porque «se passaram a confundir o real e o imaginário, o medo e a superstição, as expectativas e o delírio». Na sequência, alguém sonha e convoca, para Tombuctu¸ «uma comunidade cosmopolita e despojada de espírito nacionalista que combatesse fraternalmente contra verdadeiros problemas, terrenos, de ordem prática e física, fundando, a partir desse empenho no trabalho comum e no sacrifício, a dignidade de uma vida arredada do consumismo e os alicerces de uma refundação humanista que pudesse servir de exemplo para os demais homens.» Este teu convite, António, a alguém que já subiu e desceu as dunas côncavas e convexas da utopia, comove-me e diverte-me, cala fundo no coração adolescente. Mas e os lacraus?

Galeria António Prates, Lisboa, 27 Dezembro

Acontece-me muito. A querer fugir da feira de gado do social, evito as inaugurações e depois a agenda desgovernada faz-me andar aos trambolhões até perder o que não queria. Envergonho-me de o escrever, foi assim com o Escada na Fundação Gulbenkian. Por um triz, acontecia com esta Monster’s Ball, do Pedro Zamith, cujo percurso admiro e acompanho há muito. Bebo-lhe a energia explosiva, a irrequietude, o olhar viperino. Desta vez o alvo é a imbecil gourmetização do mundo, estando aqui à mesa a cozinha e a moda. Vai um exemplo ainda quente? O Público presenteou-nos no dia de Natal com a nova revista Culto, cuja matéria principal desafiava chefs a imaginarem a sua última refeição se fossem condenados à morte. Dá para acreditar? Com o Pedro sai tudo esturricado, não podia ser de outro modo. O pincel pop, de cores estridentes e perspectivas delirantes, faz-se faca de cerâmica afiadíssima para esculpir cenas (domésticas) da nova burguesia tardo-cosmopolita, parvo-cosmopolita. Como descreveria Nuno Bragança tais figurinhas? Algumas peças são tridimensionais, mas nem precisavam para nos saltar aos olhos. Arte a fazer o que deve, a obrigar-nos a engolir em seco. Monster’s Ball pode ser, no inglês urbano, clube nocturno cheio de «gente feia» ou a última refeição dos condenados à morte. Dancemos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Dezembro

A interessante Pato Lógico, do mesmo André Letria que já me iluminou, e a INCM juntaram-se para criar a Grandes Vidas Portuguesas, colecção que, com bom gosto escrito e ilustrado e paginado, procura apresentar velhos ilustres a jovens leitores. Alguns textos foram brutas desilusões, mas chega-me agora às mãos um belíssimo José Saramago – Homem-rio, da Inês Fonseca Santos e do João Maio Pinto, gente daqui do coração. Brutal dupla, esta! Quando a palavra desperta destas imagens, estamos feitos. A Inês vai namorando a metáfora, nascida em poema, com a delicadeza que lhe habita o peito para traçar o sensível retrato de um escritor que, afinal, respeitava as muitas infâncias. Convém dar atenção ao trabalho da Inês com os putos, longe que está de se esgotar na escrita. O João deu um passo em frente no seu estilo, em direcção à luxúria, mais rico em detalhe e com subtil gestão da cor e do preto e branco. Refrescante ou caloroso, consoante a estação em que nos sentemos/sintamos.

Mouriscas, 30 Dezembro

Devia estar a fazer balanços, que o ano, apesar de gordo em fracassos, também ofereceu alegrias. Não me apetece. Foi excessivo, como deveríamos viver sempre se aplicássemos os delirantes mandamentos de Bragança. Vou dormir a sesta, uma que valha pelos dias todos: bissexta.

4 Jan 2017

O fim de 2016 e mais alguns tópicos 年底的礼物

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo os media chineses que se movem nos mesmos círculos que eu, as comemorações natalícias na China este ano foram feitas um bocadinho contra vontade. Durante as ultimas décadas a festa cristã foi homenageada na RPC, não propriamente de forma oficial, mas, por qualquer razão, foi sempre uma festa que as pessoas acarinharam.

No dia a seguir ao Natal, um post muito visto chamou a minha atenção, dizia assim:

“Hoje é o verdadeiro dia de Natal na China. Querido Presidente Mao, vamos sempre sentir a tua falta!”

Mao Tsé Tung nasceu a 26 de Dezembro. Aqui vai um breve sumário do sentimento geral:

“No tempo de Mao Tsé Tung o céu era azul, a água límpida, existia igualdade e o políticos eram justos! Agora ‘as três grandes montanhas’ (uma alegoria de Mao para o imperialismo, o feudalismo, e o capitalismo de estado burocrático – J O’y) que oprimem o povo, estão de volta!”

“Mao deu ao nosso País céus azuis, nuvens brancas, pessoas boas e ar fresco. Deu-nos harmonia social, garantida por quadros do partido justos e honestos. O nosso Sol era o mais vermelho e o Presidente Mao e mais querido!”

“Obrigado, Presidente Mao! Defendeste os verdadeiros valores sociais!   Defendeste a igualdade social e um rendimento justo para todos!”

“O Grande Líder viverá sempre nos corações de centenas de milhões de pessoas! No seu tempo, o povo chinês podia dormir tranquilo sem medo de ser roubado e as mulheres e as crianças não eram vendidas em plena luz do dia. As casas também eram baratas. A China estava perto de ser o paraíso.”

O fim do ano trouxe a um outro círculo de amigos chineses um presente que os encheu de orgulho. No título lia-se:

“Fábrica chinesa muda-se para os EUA para reduzir despesas.”

A vidreira Fuyao Glass comprou as instalações de uma antiga fábrica da GM nos subúrbios de Dayton, Ohio. Espera-se que crie 3.000 postos de trabalho quando estiver a operar em pleno. A Fuyao Glass America já empregou cerca de 2.000 pessoas desde a inauguração em Outubro.

Fundada em 1987, a Fuyao Glass tem fama de ser a maior vidreira a nível mundial. Tem 18.000 empregados em todo o mundo e, para além da China, tem fábricas na Austrália, no Brasil, Alemanha, Japão, Rússia, Coreia do Sul, e agora nos Estados Unidos.

Na passada segunda-feira em Pequim, o presidente da Fuyao Glass, Cao Dewang (de 70 anos), afirmou que os EUA são um local mais barato e melhor para produzir vidro, porque os impostos são muito mais baixos do que na China. Como o Presidente eleito Donald Trump está a tentar atrair as empresas para regressarem aos Estados Unidos, sob o estandarte ‘Make America Great Again’ as empresas estão a reconsiderar a sua presença na China.

4 Jan 2017

Desvão

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão há livros absolutos, muito menos em poesia. A poesia impõe-se mais pelo que deixa ler do que pelo que escreve. Não digo que a palavra escrita não seja importante, por que é, mas que o que a palavra deixa ler é mais. Aquilo que se consegue ver, ou que o poema deixa ver, que sugere, é mais importante do que o que escreve. E é nesta esteira que encontramos os poemas de Miguel Martins. Num dos seus livros mais recentes, Desvão – “num”, porque Miguel Martins é um poeta prolixo, que edita vários livros por ano, contando já quase com 30 livros de poesia editados –, debatemo-nos com esta tradição de entendimento e vivência da poesia.

Desde logo o título é fenomenologicamente rico. Para além da evidente semântica da palavra, que diz um espaço entre o telhado e o tecto do último andar de um prédio ou de uma casa, usualmente chamado de águas-furtadas, e que por si só já nos remete para um espaço de mistério, um espaço “entre”, entre o útil e o inútil, entre o necessário e o acessório, sugere também a leitura da divisão da palavra em des-vão, remetendo-nos para um neologismo, que faz todo o sentido neste livro. Tal como já Camilo Pessanha usara “desviver” – uma vontade de desviver – para melhor nos mostrar o seu sentimento perante não só a vida, mas o modo como sentia o seu lugar no mundo, Miguel Martins usa “desvão” e faz-nos ver, não ele no mundo, mas nós todos no mundo. O substantivo é transformado em verbo, um desverbo. Nós estamos não a ir, não a não querer ir, a não ir, mas a des-ir. A vida é um contínuos des-ir, não só através da memória, como nos mostra logo no início do livro – Num refúgio de sombra, / abrigado de tudo menos deste desvão da memória / assídua como um roncar de uma besta turva (…) –, mas também através da insónia, esse modo especial de estar alerta, como nos indicam os versos “a minha maneira de bocejar sem sono” (p. 19), “a eternidade dá-me sono” (p. 9) ou “sem insónias nem gritos” (p. 18). Eles, que des-vão na vida, entre a insónia e os gritos, e que somos nós todos, até o próprio poeta quando não é poeta, é o assunto deste livro. Mas entender o nosso modo de estar no mundo como um contínuo des-vão faz toda a diferença. Fazer ver, o que quer que seja, faz sempre toda a diferença. “Agora, és outra pessoa, / cheia de banalidades e pequenas alegrias. / O tempo e a distância encarregaram-se disso.”, diz-nos o início do poema, à página 18. Porque nós não podemos nada, de nós, das nossas coisas e dos nossos actos, deles encarregam-se o tempo e a distância. E não somos sempre outra pessoa, para os outros e para nós próprios, quando o tempo e a distância se encarregam disso? Não é esta mesma a condição inexorável daquele que está a des-ir? “Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos / escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados / como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar / entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se” (p. 11) E esta trágica condição, de tudo o que somos ser posto a ridículo pelo tempo e pelo espaço, a cada esquina, não invalida, não risca a necessidade de se viver “como se”. A memória não serve para nada, se não para nos dizer que tudo foi há muito tempo. A memória, adivinha-se neste livro, é uma máquina de cobrar a existência, uma espécie de pica-bilhetes, que quando menos se espera nos exige a comprovação de que estamos a des-ir no sentido certo, que realmente tivemos um lugar antes e estamos a des-ir na direcção de um depois. Não serve de nada, mas é como se servisse. Não serve de nada naquilo que é mais próximo ao coração, daquilo que é mais próximo à alma, daquilo que é mais próximo de algo como metafísica. A memória só serve para não nos esquecermos de fazer contas, é o mundo da tabuada. Pois só os números não mudam. Só os números podem ser recordados como eles mesmos são, pois na realidade só eles são, só eles nunca mudam. Nunca ninguém disse a um número “agora, és outro número” ou “já não és o número que conheci”. A memória não muda os números, mas muda as pessoas e as acções praticadas. A memória é o reino do “como se”, só existe na matemática. E isto é visível até quase à náusea, neste livro de Miguel Martins. A memória é uma espécie de insónia. Mais: insónia e memória estão tão ligadas que inventaram a noite, a noite “de todas as praias a que não voltaremos.”, como o poeta termina um dos seus poemas, onde a memória macera a carne, ou aquilo “a que se chama vida quando se tem ainda a vida intacta.” Eu sei que não basta morrer para acabar com a memória. Sei que não basta morrer para dar razão à sua pouca eficiência. Mas sem memória seriamos melhores? Sem memória não morreríamos?

(…) Resta-nos

a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado

até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partitura de Bach

para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós

(…)” (p.11)

Esta consciência aguda de nós não sermos carne ou, talvez melhor, que nós somos para além da carne, “como se” a consciência da mesma, mas ao mesmo tempo também não somos memória, faz desta nossa existência um des-ir contínuo para nada. E nada se sabe enquanto se desvai. Desvaímo-nos a medo, é o que nos resta, medo e tristeza, como escreve Miguel Martins  página 12:

“(…)

São esses os instantes em que se torna óbvio sermos apenas

gente, gente condenada a uma tristeza perene, pano

de fundo de breves alegrias, ao sabor dos jogos de cartas

e da meteorologia. (…)”

Este retrato da existência não é, contudo, um retrato pessimista, um retrato do humano como alguém perdido, esquecido no desvão, entre a memória e a carne flácida. Pois precisamente o que parece ser um mal, o não se saber o que andamos aqui a fazer, acaba por se tornar um estranho aliado, ou pelo menos um estranho companheiro de estrada, como se pode ver pelos últimos sete versos do poema à página 22:

“(…)

Tem idade para ser sua filha, provavelmente namora

um tipo que de Monteverdi não ouviu nem o nome.

É ruiva como um pêssego maduro, pequena como um pónei

de feira. E ele, impotente vai para dois anos, observa-a

como se fosse um quadro num museu de província, cheio

de condescendência e abandono. Pensa na arma que herdou

do tio, pensa que é chegada a hora de tomar uma decisão.

Mas, sem dúvida, aguardará a chegada e a partida

do 39, que vai, sem pressa, para não se sabe onde.”

E eis este nosso des-ir a fazer-se sentir em todo o nosso ser como uma forte trovoada. Um livro feito de espanto e de fazer ver, como se estivéssemos acabado de chegar à vida e nos debruçássemos na janela a ver as estruturas da existência a passar. Ainda antes de darmos as últimas palavras ao poeta, resta dizer que esta edição da editora “não [edições]” teve uma tiragem de apenas 200 exemplares, com composição e desenhos de João Concha.

Queimar tudo. Alugar uma casa num lugar sem história

na história da minha vida, um lugar de postais antigos,

desbotados, e do passado guardar apenas uma urna

de cinzas, no compartimento por baixo do lava-louças.

Ver filmes sem mérito, ler livros sem arte, ouvir óperas

cómicas e inêxitos impopulares e anacrónicos. Tentar,

sem sucesso, pescar, e ir ao mercado comprar peixe

miúdo e roupas com defeito às ciganas. Ser anónimo

por fora e por dentro, criança que não se conhece

nem quer conhecer e que procura apenas o início e o fim

de um carreiro de formigas, revelação suficiente

par aquém ainda não desperdiçou a vida a perscrutar

os gloriosos fundos de um oceano de merda. Beber

pouco. Foder com a moderação que a improbabilidade

do diálogo impõe. Emular os pioneiros americanos,

pecadores em busca de recomeço e horizonte, longe

das catedrais e de si próprios, longe dos quiromantes

e das sílabas e, sobretudo, da inexorável morte do amor.”

3 Jan 2017

Coleccionadores de arte em Macau

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m seguimento do artigo O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, regressamos ao tema para referir o processo até à sua criação.

Para coleccionar os produtos da região a enviar para Portugal fora em 1879 criada uma Comissão, “que por serem, ao tempo, os indivíduos de mais destaque na terra e conhecedores mais profundos dos produtos nativos, melhor garantia ofereciam para uma escrupulosa e minuciosa selecção dos artigos pedidos pelas duas instituições metropolitanas”, segundo refere Luís Gonzaga Gomes. E com ele continuando, “O Leal Senado da Câmara de Macau, da presidência de Domingos Clemente Pacheco, na ilusória persuasão de que uma exposição permanente dos principais produtos chineses em dois estabelecimentos públicos do reino poderiam estimular o gosto das pessoas que viviam na metrópole pelos produtos fabricados na China, concorrendo, assim, para promover e fomentar o comércio directo entre esta província e Portugal continental, apressou-se a contribuir com três caixas de artigos destinados ao Museu Colonial e outras tantas para o Museu da Universidade de Coimbra”. Estes e outros artefactos reunidos pela Comissão, antes de serem enviados, foram expostos no Leal Senado a 2 de Maio de 1880 e passados vinte dias ficava pronta a lista numerada dos 581 objectos, descrevendo para que serviam, o preço de custo de cada um e algumas observações. Continuou-se depois o trabalho de coleccionar objectos para os museus do país e a segunda remessa foi efectuada em 1882, seguindo para Portugal no navio de guerra África.

Na carta de despedida de Macau, José Alberto Corte Real, a 10 de Julho de 1883 refere, “Logo que tive a honra de ficar encarregado dos negócios diplomáticos na China, Japão e Siam, dirigi aos cônsules portugueses nestas três nações e na Oceânia uma circular, acompanhado de um questionário, em que lhes pedia esclarecimentos tendentes a saber se nos distritos das suas jurisdições consulares, haveria alguns objectos ou monumentos antigos relativos às relações dos portugueses, pedido este que eu fazia com o meu pensamentos no Museu Municipal também, o qual por pertencer à única municipalidade portuguesa estabelecida nesta parte da Ásia, me parecia e parece o ponto mais adequado para reunir e guardar estes monumentos. (…) A meu pedido, havia o Ex.mo ex-Governador de Timor, Bento de França Salema organizado uma comissão encarregada de coligir novos produtos para o Museu Municipal de Macau.” Nessa carta fica-se a saber dever “existir em Lisboa documentos valiosos, alguns que foram comprados pelo Ministério da Marinha em 1875, pertencentes à livraria do falecido José de Torres, os quais não sei se serão parte dos ou os mesmos que foram em tempo mandados pelo Comendador Lourenço Marques para Lisboa, e cuja notícia não se sabe até que data retrocede, ignorando-se também o destino que tiveram”.

Lamentava-se ainda Corte Real, na mesma carta, serem os objectos até então coleccionados “muito poucos e de pequeno valor”. Mais à frente refere, “O pequeno número de objectos que agora envio a V. Ex.a (Presidente do Leal Senado) representam costumes, indústrias, manufacturas de Timor e a existência incontestável de jazigos auríferos naquela tão rica quanto desaproveitada ilha; as duas facas, assim toscas, são uma espécie de moeda ou mercadoria tipo de que os indígenas se servem nas suas transacções. Envio mais um pequeno número de jornais chineses e siameses escritos nas línguas nativas, dos quais eu procurava fazer colecção para Macau, por me parecer também que uma secção bibliográfica desta natureza seria valiosa para o futuro, e mais remeto alguns selos e timbres siameses, os quais juntos a outros espécimes iguais e análogos eu destinava para uma secção numismática…” Esse princípio de “trabalho que eu tinha em mãos e que a pouco e pouco ia fazendo, poderão servir de norte a quem por ventura julgar a sua continuação útil”. “Pensei sempre que o Museu Municipal de Macau, constituindo um estabelecimento de grande utilidade para o comércio e para a instrução popular, à semelhança de muitas municipalidades das nações mais civilizadas do mundo, poderia conter também uma secção histórica de grande valor, não somente para Macau, mas também para as tradições de nação portuguesa nesta parte do extremo oriente…”

Museu por instalar

A iniciativa de Corte Real para dotar a província de um museu não vingou e o jornal Independente de 8/8/1883 refere, <apenas sobre a porta de um húmido e escuro quarto o letreiro – Museu Municipal>. No entanto, a 9 de Setembro desse mesmo ano registava-se o envio de duas caixas proveniente de Sião, contendo objectos para o Museu, remetidas pelo encarregado do Consulado de Portugal.

Já em 1899, o Museu da Sociedade de Geografia recebeu do Sr. Dr. Lourenço Pereira Marques uma numerosa colecção etnográfica chinesa composta por aproximadamente mil objectos. Para além dos que ele ofereceu vinham outros, como costumes, adornos, utensílios da vida e sociedade chinesa doados por João Maria Placé da Silva e velhos ídolos enviados pelo Sr. Camilo Pessanha.

Com o advento da República foi criado, em 4 de Novembro de 1910 por Portaria Provincial do Governador Eduardo Marques, pela primeira vez o “museu histórico, etnográfico, fisiográfico, comercial e industrial sobre a designação de Museu Luiz de Camões contendo uma secção de carácter histórico, referente principalmente à colónia de Macau e outra secção destinada à representação da província de Timor, sobre os seus diversos aspectos e sobretudo do ponto de vista agrícola e industrial. Foi então, nomeada uma comissão (…) constituída por duas categorias de vogais, natos e nomeados, sendo os primeiros, o Secretário Geral do Governo, o Director das Obras Públicas, o Chefe do Serviço de Saúde, o Presidente do Leal Senado, o Reitor do Liceu Nacional e o Reitor do Seminário de S. José. Para os da segunda categoria foram nomeados o bacharel Camilo d’Almeida Pessanha, o dr. Lourenço Pereira Marques, o Capitão Eduardo Cirilo Lourenço e o intérprete-sinólogo Carlos da Rocha Assunção”, como refere Luís G. Gomes. Compreende-se que com tão numerosas individualidades esta comissão “estava condenada ao malogro, pois era impossível reunir tanta gente, sobrecarregada com tantos afazeres profissionais, (…) tanto mais que muitos deles deveriam ser completamente alérgicos às coisas de arte ou de história.”

Enquanto não se arranjou instalações próprias para o museu, ficou este instalado na Casa do Jardim da Gruta de Camões, actual Casa Garden, na parte contígua à ocupada pela Direcção das Obras Públicas.

30 Dez 2016

Inês Fonseca Santos: “O meu tempo é da espera”

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap]s poeta, escritora de livros para crianças, onde tens sido distinguida com prémios, e apresentas neste momento um programa na televisão “Os Livros”, acerca de livros. Qual a principal diferença entre escrever para crianças e escrever poesia?

Para além de “Os Livros”, também edito e apresento o “Todas as Palavras”, sendo que neste caso o programa é partilhado com o Luís Caetano e a Ana Daniela Soares. Não há grande diferença, na verdade. Se houver, é meramente formal. A poesia e a literatura infanto-juvenil são irmãs gémeas, gémeas siamesas, para ser rigorosa, porque nascem do mesmo “zigoto”, do mesmo ovo. Que normalmente é a imaginação e o espanto, sobretudo no que diz respeito ao modo de nos relacionarmos com o mundo e com a linguagem. Em suma, poesia e literatura para a infância e a juventude partilham da mesma natureza e em ambas é possível aproximarmo-nos das essências, questionando a regra, libertando-nos dela.

De qualquer modo, o teu livro de poesia A Habitação de Jonas, acerca do qual escrevi aqui no jornal e pelo qual tenho grande apreço, tem um tom de “realidade” que não é próprio para crianças.

Claro. Mas não é para crianças. Os outros, ditos “para crianças”, é que são para todos. Seja como for, o que disse na resposta anterior, tem a ver com a criação, com as “ferramentas” e os “truques” e os “recursos” que tem ao dispor quem escreve poesia e quem escreve literatura “para crianças”.

Recentemente lançaste um novo livro para crianças, que é também uma biografia, de José Saramago, com ilustrações de João Maio Pinto, na editora Pato-Lógico. Que te levou a este projecto, o autor, o género biografia ou a literatura para crianças?

O livro é co-editado pela Pato Lógico e pela INCM. A editora Pato Lógico, em parceria com a INCM, tem uma colecção de biografias para os mais novos que se chama “Grandes Vidas Portuguesas”. É nessa colecção que está integrado o livro “José Saramago — Homem-Rio”. Escrevi-o porque o André Letria, editor da Pato Lógico, me convidou a fazê-lo. Aceitei de imediato precisamente por me permitir somar todas essas parcelas que referes: a literatura para os mais novos, a biografia, a obra de um grande escritor e ainda a criação de um álbum ilustrado, que é sempre um desafio acrescido, uma vez que temos que escrever deixando espaço para que alguém acrescente significados com imagens. Esta combinação de parcelas permite que o livro não fique confinado a um só território, pois, em rigor, não estamos perante uma biografia convencional; tentei escapar a isso precisamente por ser um álbum ilustrado para a infância e a juventude. Tive que escolher o que contar e, mais importante, como contar.

Tens dois livros de poesia – escrevi neste jornal acerca do teu segundo e último livro – As Coisas (Abysmo, 2012) e A Habitação de Jonas (Abysmo, 2013). Para quando um novo livro de poesia?

Para breve, espero. Tenho um livro por acabar há uns anos. Chama-se “Suite Sem Vista”. E um outro que reúne poemas dispersos, publicados em antologias e revistas, e alguns inéditos. Este aguarda que lhe ponha ordem, se é que tal é possível; o outro aguarda algumas palavras. Costumo ser uma pessoa organizada, excepto quando escrevo. Escrever é, na essência, uma actividade livre. Por isso, só escrevo quando preciso mesmo de escrever, quando não há maneira de escapar àquela qualquer coisa em mim que se quer transformar em palavras, para lembrar Paul Claudel. O meu tempo é o da espera.

Tens alguma ideia de programa, que gostasses de fazer na TV, acerca de livros ou de livros e crianças?

Tantas, que terias que pedir mais páginas de jornal para as podermos partilhar todas. Resta saber se essas ideias cabem numa televisão…

Sei que estiveste uma vez em Macau, tinhas acabado de ser mãe há pouco tempo. Como sentiste essa tua experiência?

Fui a Macau para um encontro de poetas lusófonos e chineses, a convite do Centro Nacional de Cultura. Foram muito intensos esses dias em Macau por vários motivos. Partilho os bons: ter ficado muito amiga do Luís Quintais, um dos poetas com quem fiz essa viagem e que eu já lia há muitos anos, mas não conhecia pessoalmente; ter conhecido um lugar onde o meu Pai viveu uns tempos e sobre o qual escreveu e me contou histórias; ter partilhado poemas e experiências com pessoas que desconhecem em absoluto as línguas que eu sei falar; ter sentido o medo e a adrenalina de ser estrangeira; e ter sentido que, em qualquer sítio do mundo, estamos sempre com os nossos, estamos sempre a regressar a eles, a casa.

30 Dez 2016

Dias de Oceania

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque se arruma pelo som, no lugar da melancolia. No lugar escancarado – aqueles dias repentinos – como uma janela. Varrido de uma ventania. Uma pressa. Arrasadora. Que tudo desarruma. Talvez pelo Natal. Que chega sempre depressa demais. E porque ventania rima vagamente com melancolia. Com apatia. Talvez por essa veste de insularidade que se usa mesmo em dias de festa.

Talvez porque um naturalista, médico e farmacêutico naval, empolgado pela anatomia e taxonomia dos beija-flores em longa viagem pelo Pacífico – o naturalista – envolveu numa falsa ideia continental aquilo que eram, afinal e nada mais que conjuntos de ilhas, isoladas e plenas na sua inviolada insularidade. Talvez porque somos assim também. Falsamente aglomerados num conjunto de que mentalmente, e a intervalos irregulares, um se escapa como num voo ansioso pelas águas circundantes. Como um batedor da alma. Só em verificação de segurança e de haver espaço. De haver esperança de espaço. Depois. De silêncio final e vazio de excessos. De gente. De coisas que não são. Porque vendo bem a encontramos na mesma gaveta da rebeldia, discreta e surda rebeldia estoica e subliminar. Na mesma arrumação se junta por acasos insondáveis a nostalgia, o que é menos estranho, a fobia, a alegria, a utopia, a correria e a euforia. Essa sim. Remexendo distraidamente soltou-se, ligeiramente colada de tanto tempo sem uso à utopia e à melancolia, À alquimia. Retirei lentamente e descolei com cuidado umas das outras, sem evitar rasgar um pouco as pontas. Fragilizadas de humidade e seca. A alquimia a que este ano retirei as mãos. Nem um doce delas se desenrolou. Se distraiu. Talvez no receio de estragar de lágrimas ou de não lhe dar o tempo que não tinha. De cozedura. De fritura. Nem um doce fiz neste natal nem nada. Um desenho. Fiz para quem me fez o seu natal há muitos anos. E só. Para lhe levar antes do esbaforido splash no meio da Oceania.

Mas é Oceânia. Gosto tanto deste nome. Topónimo belo e antiquado. Oceano com o sufixo “ia”. Como um vasto desenrolar de vagas numa pradaria volante. Ondulante, a vogar pelo tempo da memória. Qualquer coisa que alarga o conceito inicial e o desfaz do corrente e sólido limite espacial, atirando-o ao vento como se incerto, numa deriva acima da crosta enrugada de continentes outros e terrestre. Essa sim continentalmente ancorada ao planeta como uma pele envelhecida de rugas de expressão. Da Oceânia resta um vago recorte na matéria do mar. Vago e perdido no meio de um Oceano que é de calmaria intemporal. Sons que reúnem em si o eco e o reverberar das cordas de um instrumento musical. Sons possíveis de dizer, muito acima da garganta que grita outros mais crus e cavos, mais a ecoar no céu. Da boca. E daí para cima em toda a zona do pensamento mas com vibração em todo o peito, na barriga. De um insólito corpo – búzio. Ou antes, talvez, caixa de ressonância de uma guitarra clássica. Pleno. Como um fogo a alastrar do centro da palavra. Natal. Também é palavra para se dizer um pouco acima da linha da garganta. Tem outro som de distante eco no tempo e no espaço de fantasia. Outra palavra saída da mesma gaveta do mês de dezembro. E depois, naqueles momentos de olhar em torno, nada mais do que anseio de acalmia. E de novo a rimar com melancolia.

Mas tirando ser como é, Natal é em si um tempo bom. Era para ser. E de espaço e luz de estrela caminhante uma vez de muitos em muitos anos e depois a memória da luz acompanhada pelo fervor de quem nela acreditou. Estrela que não era estrela mas o que importa se era de luz. E foi. E há-de ser de novo quando voltar do espaço para onde foi. Tempo de memória e tempo de história. Mas lembra-me sempre espaço talvez uma imagem da mitologia que encenou presépios a fingir toda uma distância caminhada até ao Menino. O que é que o Natal tem a ver com o amor? Essa outra palavra de tonalidade contrária e som aveludado e sóbrio. Essa palavra a olhar para o interior que rima com ela. E o oposto a tudo o resto. Talvez uma e outra, palavras, faces de um mesmo dinamismo psíquico que nos atira para dentro em amplitude e profundidade e para um espaço amplo como reflexo figurado deste. Invisível, imenso como o outro. Ambas palavras tão falsamente ligadas por nós doridos, frouxos ou equívocos inábeis. Misturadas como num desvario de histeria colectiva. Não existem mais em magia em lugar nenhum do tempo de um ano, do que noutro de outro tempo desse mesmo ou outro ano. Noite de Natal, ou a vida numa câmara escura. Uma família mergulhada numa tina de químicos a tornar-se visível com toda a nitidez progressiva. A revelar-se. Em tudo o que existe nos outros dias. Passou uma estrela. Incidiu no papel emulsionado. Sensibilizou na medida do tempo, da intensidade da luz e da sensibilidade do papel. O revelador reproduz contrastes ou nuances subtis. Lentamente. E há um tempo de paragem. O limite daquilo que se suporta numa noite qualquer de natal. Lava-se profusamente a folha de papel. Lava-se até desaparecer todo o vestígio de qualquer químico. Ou a fotografia continuaria a evoluir em tons cada vez mais escuros. Indiferenciados. Até à noite total. Passou a estrela. Não voltará tão cedo. Não já no imite do possível. Resta a fantasia de cada um. Divergente. O que é pena. É isso o Natal. Depois sair para as ruas as estradas entre ilhas de gente, de súbito, desaparecida. O silêncio em tudo em todos os lugares. Esse silêncio em que era preciso parar tudo antes do Natal. Antes, dois dias antes, parar. A tempo de decidir cada detalhe entre ilhas. Cada ponte. E depois. Depois quando vem afinal o silêncio, é bom e triste. Sempre. E. Parar então para pensar para onde foi o Natal depois de tudo…

30 Dez 2016

Do amigo e do amado

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a Terra era maior e os homens mais pequenos por uma proporcionalidade de escalas o amor também perfilhava do mistério insondável da demanda do saber, vivendo-se na ilusão expansionista de uma Boa-Nova e tecendo-se histórias que levadas de um local para outro começavam a denotar um carácter de lenda, na distante Idade Média fundara-se o estatuto do romeiro e do eremita que tanto oravam a santos como a poetas  na linhagem da herança do Império do Al-Andaluz. Do amor nos chega ainda aqui os mais belos ecos e formas de louvor- amor cortês, amor amigo, amor paixão, amor sacral- que traziam para o terreiro dos dias a mais fina interpretação das coisas do Verbo.  Sem dúvida que falamos de outra Humanidade, de outras agentes, de outras demandas e estruturas, onde o casamento ainda era instituição insipiente e a família um laço alargado de Unanimidade. Morria-se muito mais….morria-se ao nascer, morria-se ao amar, morria-se pela terra…. e esta constante presença parecia limar o tecido do amor de forma redentora, e por isso também os reis eram amantes, compiladores de Cantigas, bastardos e legítimos, um laço de uma mesma árvore que brotava sem severas separações… o tempo posterior foi cerrando este respirar até ao estertor  do amor tabu que é onde estamos mais ou menos agora, mas o amor existe tal como as visitações e tem leis que tendemos a esquecer e merecimentos que não vemos,  muito ao estilo de Yourcenar quando afirma  ” não ser amado é tornarmo-nos invisíveis” .

Sabemos das leis da opacidade, mas desconhecemos as outras, numa vaga de sucessivos impulsos procuramos na nossa já quase invisibilidade um ponto de retorno à oração, ao desvendar de nós pelo outro, mas que outro que não há, e nos torna mais em nada? Sabemos lá no fundo que os amantes são a grande proposta de redenção, uma espécie de elemento predestinado sem noção de mudança ou separação, que são férteis, indivisos, poderosos, não expostos aos abrigos das traições sendo quase sempre uma natureza outra fora do ciclo das coisas transformáveis. A sua legenda era, seria, aquilo em que não deveríamos falhar, e foi por ela, afinal, que o erro se instalou.

Ramom Lull foi um prodigioso homem do seu tempo  (século XIII) aquele que fora apelidado como o criador da língua catalã, foi simultaneamente um teólogo, um poeta, um cientista, um místico e um homem da retórica, pois que tempo era que nada estava separado e da sua vasta obra talvez o «Livro do amigo e do amado»  nos devolva quase intacto o tempo em que viveu; fala-nos ele de um eremita que depois do Sol posto ficava em oração até ao primeiro sono, que se levantava pela meia-noite abrindo a cela a fim de contemplar  as estrelas e com oblatas se alimentava da sua ideia de Deus, é um tipo de vida da qual nada sabemos nem  os verdadeiros estados de espírito de quem toma por cada verso do « Livro das Contemplações» a chave do enleio dos dias, pois que esta obra de Lull é uma osmose entre a receptividade e a fé, esse elemento de amor que reflecte o princípio criador. O interlocutor melhorado é esse amado ser, ressonância talvez do seu alter ego que lhe fala da totalidade, da maravilha, é o outro, aquele ” a quem serve o vencedor” e mais tarde é Juan de La Cruz que o vem reabilitar na sua incomparável poesia de inviolável amor na «Noite escura» e« Cântico espiritual»  uma exegese, um ritmo, um anunciado….

São assuntos extensos e porventura intensos para uma abordagem só, mas neles se reflecte toda uma noção poetizante  do «pactum» da alma com a sua natureza, natureza essa que se perdeu na imensa selva do poeta das árvores sem raízes e dos sentidos sem disciplina, não sendo de prever mais que a morte desta arte que mais que exercício de escrita continha a noção de Humanidade, de ciclo criador, e nós, que distantes ficámos, estamos talvez como nunca no mais misterioso de todos os Invernos poéticos, porém, sem a sua existência teríamos perecido e nem aqui teríamos chegado.

Não devem no entanto abeirarem-se as gentes destes oficiantes com suas “botas cardadas” e ilusões vãs, pois não sabendo de quem se trata, pode a vida acordá-los de formas várias e nem sempre as melhores, vezes sem conta numa incontável falta de tacto de que dão provas: mau e bom, perdem aqui aquela moral tão cara ao código primitivo das suas fontes, e só o amor, que não sabem,  parece por fim misteriosamente intrigar neste mensageiro. Sem esta rara estranheza- pensam elas- que o mundo se equilibrava em si mesmo- mas não- pois que há leis que podem fazer compensar as falhas e as tormentas, e como taumaturgos cada um é uma fonte de equilíbrio que  impede que os elementos destruam ainda mais a “casa” dos Homens.

-Adoeceu o amigo e pensava o amado: de méritos o alimentava e com amor lhe saciava a sede, em paciência o abrigava de humildade e vestia com a verdade que curava.-

….e esta dialéctica do outro em permanência só uma delicada presença pode saciar.

         – Libertou amado o amor e permitiu que as gentes tomassem dele a sua vontade; e só encontrou amor aquele que o pôs no seu coração. E por isso chorou o amigo e teve tristeza da desonra que o amor recebia aqui em baixo por causa de falsos amantes.-

Toda a construção enaltece aqui a linguagem dos amantes numa quase unanimidade e concordância. Foi desenvolvido o hábito quase litúrgico da inspiração nestes tempos idos, e por isso, também o Cavaleiro honrava a sua Dama, a Dama defendia o Cavaleiro, e de todas as fontes a que abençoa mais é sem dúvida aquela que nos inspira. Por isso a ordem era Amar.

Aqui me lembro das velhas obras esquecidas como «Os Cavaleiros do Amor» de Sampaio Bruno que perto estão deste mito amoroso, e, quando descidos dos nossos cavalos, vemos a blasfémia do amor reduzido a insidiosa interpretação apetece morrer de amor por algo de irrevelado e do tamanho deste livro.

       -Desejava o amigo solidão e foi viver completamente só para que tivesse a companhia do seu amado com o qual está só entre as gentes-

  Os amantes estão sós no mundo.

29 Dez 2016

Da hospitalidade e dos usos que damos ao tempo

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]empre tive a mola da ambição (ou da competição) avariada. Nunca quis subir num emprego, nunca quis ser chefe, nunca ambicionei liderar nenhum departamento, não me importo nada de perder às cartas (desde que não seja a dinheiro), só ganhei ao xadrez uma vez na vida, etc., etc.

Um dos maiores alívios da minha vida foi quando fui exonerado de Coordenador do Curso de Ciência de Comunicação, na Universidade Politécnica, em Maputo, cinco horas depois de numa reunião de professores (e sem que eu o soubesse previamente) ter sido anunciado nesse cargo. Motivo da exoneração: uma chuva de telefonemas para o reitor a indagar sobre o sentido de nomear um branco para o cargo. Adorei ser branco nesse fim de tarde.

Desisti do judo, depois de seis anos de competição, quando num campeonato nacional por equipas pus a minha equipa fora do pódio ao perder de propósito com um adversário que tinha um cinto três graus abaixo do meu, só para não faltar a um encontro que marcara com uma miúda. Estava “out” da competição.

Numa noite de copos com amigos jornalistas quis pôr a render essa minha inapetência para a competição e escrevi uma longa carta para o departamento de futebol do Real Madrid, em que me oferecia, por metade do ordenado do Emílio Brutragueño, para ser «o melhor suplente do mundo», assegurava, «aquele que nunca, mas nunca joga mas de quem a equipa nunca, mas nunca, prescinde de ter no banco». E prometia «elevar o nível de finta dos jogadores, lendo-lhes no banco trechos de As Mil e uma Noites ou de Henri Michaux». Como passámos a noite em branco, enviámos a carta aos Correios dos Restauradores, às oito da manhã, para um endereço que nos foi facultado por um jornalista desportivo espanhol. Não me admitiram, por falta de humor – técnica eu tinha.

Este relambório para explicar uma coisa simples: a única coisa que sempre quis ganhar na vida – muito mais do que dinheiro – foi tempo.

Ser dono do seu próprio tempo é importantíssimo, podemos comprová-lo pela regra antiga das cortes – conta o poeta francês Guillevic num livro de entrevistas -, que ordenava que só os fidalgos é que podiam atalhar a direito ou na oblíqua nos aposentos do palácio, os criados eram obrigados a percorrer todos os ângulos das salas e corredores, um por um, até esgotarem as solas e o seu tempo. Só um fidalgo podia poupar o seu tempo nos trajectos.

Para que se quer tempo? Aí as motivações diferem.

Um dos meus heróis, o jesuíta Richard Wilhelm que viveu na China trinta anos e foi o primeiro tradutor ocidental do I Ching, diria que o tempo lhe faltava para conhecer melhor o outro enquanto outro, pois, sendo-lhe perguntado de que mais se orgulhava em trinta anos como missionário na China, respondeu: ‘Orgulho-me de em trinta anos não ter feito uma única conversão religiosa’.

Esta recusa de proselitismo atesta uma liberdade inclusive a si mesmo que é a única forma saudável de estarmos no mundo: estarmos diante do outro não para lhe vender algo ou para convencê-lo de alguma coisa, mostrando que o usamos ou que ele é melhor ou pior do que nós, mas num poroso espírito de hospitalidade. Tentando, inclusive, a empatia. É esta virtualidade cada vez mais rara de encontrar entre os homens – sendo este motivo para darmos tempo ao tempo um dos que mais me interessa.

Li uma entrevista no Hoje Macau em que vi que também nessas longes terras isso é, infelizmente, raro. Lamentava-se o médico e escritor Shee Va, numa entrevista, a propósito do seu romance, “Espíritos”: «Acho que tem muito interesse quando se lida com uma cultura diferente poder compreendê-la. Talvez seja isso que quero transmitir. Portugal, neste momento, tem muitos chineses, o mundo inteiro tem muitos chineses. As populações não podem viver fechadas. Uma coisa que sinto em Macau é que foi durante muito tempo – e hoje em dia também – um sítio multicultural, mas em que as comunidades não interagem. Para mim, isso é mau – podia ganhar-se muito mais com a comunicação.»

As comunidades não interagem. Em África é igual. A célebre «reconciliação», tão buscada na África do Sul não aconteceu. Em Moçambique as comunidades étnicas e religiosas – brancos, indianos, negros, cristãos, muçulmanos, outros – não interagem. Co-habitam o mesmo território, sempre procurando algum tipo de poder hegemónico.

Já dei aulas a mil alunos, já escrevi prefácios para uma dúzia de livros, já apresentei vinte livros, já escrevi duas séries de ficção para a televisão oficial, já escrevi cinco ou seis catálogos de exposições, e os meus amigos negros são três, quatro; estou ao fim de doze anos de Moçambique confinado à comunidade de moçambicanos brancos. Nunca o quis. É assim mesmo: as pessoas usam-se, consoante as vantagens pontuais que se podem tirar delas, mas não interagem verdadeiramente, num afecto desinteressado. Há quem ache isto normal, eu acho um escândalo e um sintoma de um profundo mal-estar societário.

É transversal a todas as classes e idades. A famigerada multiculturalidade que se encontra nas aulas – onde o painel humano é um mosaico – não tem expressão na curiosidade sobre o outro e a sua cultura. A multiculturalidade tornou-se, patologicamente, apenas um alíbi que reforça a nossa identidade. O outro é um estrangeiro que está na “nossa terra” a prazo.

Em vez de usarmos o tempo para sermos competitivos e ambiciosos poderíamos usá-lo a aprender a hospitalidade, a acolher. Começa a ser uma urgência, antes que isto acabe mal. Ah, e o tempo nunca se cansará de ocupar-nos com os seus mistérios: por exemplo, metade das coisas que realmente importam só acabamos por levá-las a cabo quando já não temos tempo.

Como foi o caso desta crónica.

29 Dez 2016

Filmes proibidos na República do Povo – o Top Mais 中国十大禁片

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Porque estamos naquela altura do ano.

Ano Novo (1999)


Realizado por Zhang Yuan conquistou o galardão de Melhor Realização na 56ª edição do Festival de Cinema de Veneza. Uma história de amor e tolerância contada a partir do olhar do protagonista, que aqui nos fala dos 17 anos obscuros da sua vida. Zhang Yuan foi castigado por denegrir a imagem do socialismo.

O Papagaio Azul (1993)


Realizado por Tian Zhuangzhuang conquistou todos os prémios mais importantes do Festival de Cinema de Tóquio. Num ambiente carregado e melancólico, fala-nos do destino do indivíduo no quadro alargado do contexto histórico.

Viver (1994)


Baseado no romance homónimo de Yu Hua. O argumento centra-se na Guerra Civil e na Nova China nascida após a fundação da RPC. A história, contada através das diversas tragédias que se sucedem na vida do protagonista, reflecte períodos conturbados que, aparentemente, nunca deixaram de flagelar o povo chinês. Prémio do Júri no Festival de Cinema de Cannes. Realizado por Zhang Yimou.

Carteiro (1995)


Realizado por He Jianjun, acabou de ser rodado na Europa e estreou no Festival de Cinema de Roterdão. O filme “ofende os quadros superiores chineses”.

Palácio Oriental, Palácio Ocidental (1996)


De Zhang Yuan. Prémios para Melhor Realização, Melhor Argumento e Melhor Adaptação ao Cinema – 6ª edição do Festival de Cinema da Argentina. Baseado no romance de Wang Xiaobo, analisa a homossexualidade na China contemporânea.

O Artesão Carteirista (1997)


Realizado por Jia Zhangke. Exemplo perfeito da razão pela qual os filmes chineses vencedores de prémios internacionais não terem nada a ver com o mercado cinematográfico local.

Mr. Zhao (1998)


Filme de estreia de Lu Le que, à semelhança de Zhang Yimou, passou com sucesso de fotógrafo a realizador de cinema.

Rio Suzhou (2000)


Medalha de ouro no Festival de Cinema de Roterdão. Uma trágica história de amor passada na Xangai dos nossos dias. Realizado por Lou Ye.

Do Lado de Fora (2000)


Prémio do Júri no Festival de Cinema de Cannes. Realizado por Jiang Wen, expõe sem reservas o militarismo japonês e acusa figuras políticas proeminentes.

As Bicicletas de Pequim (2000)


Realizado por Wang Xiaoshuai, conquistou o Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim. A história de um jovem de 17 anos vindo do campo para trabalhar em Pequim como estafeta, a quem roubam a bicicleta.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_separator color=”custom” style=”dotted” accent_color=”#dd3333″ css=”.vc_custom_1482929709086{margin-bottom: 5px !important;margin-left: 20px !important;}”][vc_column_text]

PS: Dicas culturais

Ben Hur foi proibido na China por conter “propaganda a crenças supersticiosas, nomeadamente o Cristianismo”. Avatar foi proibido na China porque os seus conteúdos podiam levar as audiências a pensar em deportações forçadas e por apelar à violência. O versão não editada de Avatar em DVD pode encontrar-se em qualquer loja da especialidade na China. As Lojas Walmart chinesas utilizam imagens do filme nos ecrãs de definição de imagem das televisões.

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28 Dez 2016

Desejos em Confronto 中俄边境的一些镜头

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Verão de 2014, Davide Monteleone iniciou uma viagem ao longo da fronteira da Rússia com a China em busca de algo que fosse real e fizesse sentido. Nessa altura o fotógrafo italiano vivia em Moscovo há mais de uma década. As imagens dos locais remotos, capturadas pela sua objectiva, trazem-me à ideia as palavras de Marcel Proust: “Não conseguimos alterar a realidade em função dos nossos desejos, mas aos poucos os nossos desejos vão-se alterando.”

Juntei aqui quatro fotografias cujo significado, tal como um desejo secreto sem pretensões a tornar-se realidade, não se altera nunca.

Monteleone: “Num local remoto como este os russos ficam à espera que algo aconteça, ao passo que os chineses tentam fazer qualquer coisa.”

Réplica da Catedral de São Basílio. A original, mandada construir no séc. XVI por Ivan O Terrível, está na Praça Vermelha em Moscovo. A réplica que aparece na foto foi construída pelos chineses em Jalainur. As torres pintadas e as cúpulas em forma de cebola são ocas; dentro do edifício aloja-se um museu dedicado à Ciência. © Davide Monteleone
Yu Shi está a estudar em São Petersburgo para vir a ser padre ortodoxo. A foto foi tirada em Harbin, na China. © Davide Monteleone
Um vendedor de comida espera os clientes na margem do rio Songhua, em Harbin, sob as duas pontes ferroviárias – a velha e a nova – pertencentes à Linha Chinesa do Leste. A ponte antiga, à esquerda, foi construída pelos russos no início do séc. XX. A nova, à direita, foi construída pelos chineses. © Davide Monteleone
Passageiros no terminal ferroviário da cidade de Manzhouli, uma pequena cidade chinesa junto à fronteira com a Rússia. © Davide Monteleone
21 Dez 2016

Carta ao pai

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]proximamo-nos do Natal que tal como o seu nome indica é uma festa dedicada à Natividade, ao grande projecto que é ser nascido sempre por um mistério mais vasto do que a fecundação ou anunciação. Nascer será sempre o mais belo mistério que temos para festejar, só que esta Festa está repleta de “Cartas ao Pai”, Pai Natal, esse grande senhor velho, emblematicamente, um Saturno feliz que distribui presentes pelos filhos de todos e nos deixa a pensar no patriarcado benévolo e generoso e que é quase como Deus na sua ubiquidade. Depois quem nasce também é menino e da Natividade fica um suporte maternal receptivo e bom, mas sem grande expressão na simbologia final.

Nem sempre as Cartas ao Pai são tão beneméritas e de expectante satisfação. Não, nem os pais são aqueles seres enormes e escarlates que nos protegem nos nossos desassombros perante a dádiva. Existem diálogos e cartas temíveis nesta saga dos pais monoteístas de índole patriarcal e, muito a propósito, a célebre « Carta ao Pai» de Franz Kafka e o diálogo de Jesus no Monte das Oliveiras e o passeio de Abraão com o filho Isaac — ele que expulsará também o seu filho Ismael para o deserto… São encontros verdadeiramente marcantes para a vida dos filhos. Esta é a Carta que pode ser a súmula de muitas outras na relação intempestiva e sombria que estes homens tiveram, numa tribo de progenitores, onde esta relação imediata pareceu sempre ameaçada. Kafka transmite toda a profunda mágoa e tristeza num desabafo, diria intimista e na primeira pessoa, e tenta sem dúvida curar a sua ferida de progenitura.

…. se eu pretendia fugir de ti, devia fugir também da família, incluindo a Mãe, podia-se sempre encontrar protecção junto dela….. Tu mostraste-te sempre afectuoso e afável com ela, mas quanto a isso, também a poupaste muito pouco, tal como a nós…

Um sacrifício que se denuncia por tormento e mágoa de um pai que imperava no topo de um medo profundo, inconsciente, cultural… Uma saga que não deixa ao varão mais do que a sua lei e temor pelo elo da progenitura e assim exerce o seu domínio. Esta «Carta ao Pai» não é uma Carta ao Pai Natal! Porque o pai é seminal ,não busca mais que a continuação da sua espécie por meio de uma realidade que não chega para manter vivo um homem e se Isaac tem a protecção do Anjo, já em Jesus, o Pai derradeiramente se silenciou no estertor da imploração do Filho. Por isso, nós fomos cobrindo de flores e de luzes a chegada de um menino e pondo homens vestidos de vermelho para alegrar esta festa. Ela não devia dar continuidade a uma imperiosa manifestação patriarcal. Mas Kafka, como judeu, também não tinha Natal, esta não era a sua Festa, mas o reflexo dela mantem-se na continuidade da mesma saga, porque da mesma essência se trata aqui. Creio mesmo que este seria um belo presente de Natal na rota da desocultação desta herança – este livro – mas como o tempo é de festa, talvez a família, mesmo cristã, não ficasse com a consciência tranquila de que ela é de facto uma boa instituição.

… Afirmas que facilito as coisas para mim fazendo recair sobre ti a culpa da nossa relação, mas apesar dos teus esforços exteriores, não as tornas mais difíceis para ti, mas bem mais suportáveis. Mas enquanto eu te acuso, tão abertamente como o penso tu queres livrar-me a mim também de toda a culpa…

E esta culpa, na qual se inscreve a filiação, tem no entanto o mérito de em si possuir um vínculo inquebrantável, como se sem ela a própria noção de vida nestes abismos patriarcais fosse inexistente. Existe ainda uma prática transcendental e bela que é a dos judeus ralharem literalmente com Deus, expondo-lhes as suas mágoas, mas numa tal e tão tocante manifestação, que uma razão linear e fora daqui não entenderia. Mais tarde, este pai tem a autoridade exacta de um castrador, quando impede Kafka de casar com a mulher que ele ama, o que por uma lealdade entre homens acaba por ser obedecida, e diz:

eu queria nunca mais estar “no caminho da tua felicidade” e em segundo não quero ouvir uma tal censura da boca do meu filho. E a minha autorização para o teu casamento não impediu as tuas censuras, pois tu provas que, de qualquer forma, sou o responsável pelo teu não casamento. Se não me engano muito, ainda me parasitas com esta Carta enquanto tal”.

Prova-se assim a vontade de ser Um no Pai, de ser Um no Filho, e esta alternância que desmente o mito do individual faz do patriarcado uma história ultra-secreta ou de um amor louco ou de uma vertente consubstancial à vida. Por fim, o Filho entrega-se e espelha-se no Pai que o diz soltar para que cresça, porque olhar para trás, só mesmo uma mulher para ficar transformada numa estátua de sal. A mulher de Lot é uma estátua à desobediência, toda ela petrifica, segundo as leis que aqui estão inscritas. Talvez que Filho e Pai não tenham costas e se debrucem numa forma multifásica para continuarem assim tão indivisos. As Mães têm “costas largas” e acontece sagrarem a vida pela Festa da Natividade, não olhando muito também para trás quando as leis lhes levam os filhos e não sabendo exactamente o porquê do seu imenso amor não os proteger.

Seja o que for a Carta, aqui vai um pedido ao Pai Natal: abençoar as mães e deixá-las no repouso maravilhoso dos seus dias e que os filhos as reconheçam sem precisarem de escrever Cartas. Kafka ainda considerou durante algum tempo ir à Palestina, a eterna terra do Pai, mas adoece morrendo pouco depois.

O grande insecto podia ser, nestas paragens da mente da «Carta», uma estranha Louva-a-Deus, elemento mórbido para um elo assim, que fugiu sempre em frente, num secreto horror, também ele, de poder ser também a própria mulher de Lot, e se viu defronte à imagem do seu mais angustiante medo, que bem pode estar inscrito nalgum gene masculino que representa a saga fascinante do patriarcado. Sabemos que engolir “sapos” pode significar consubstanciar um príncipe, mas que consubstancial, só mesmo ao Pai.

Querido pai

Perguntaste-me recentemente por que motivo eu afirmava ter medo de ti

… começa assim então a longa Carta.

19 Dez 2016

Os filhos dos outros

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha vida civil trabalho em informática, e não raras vezes tenho de ir a Barcelona, ora para resolver problemas específicos da empresa em Portugal, com ajuda dos meus colegas espanhóis, ora para assistir aos infindáveis monólogos motivacionais a que as pessoas, por inexplicável obstinação semântica, continuam a chamar “reuniões”.

A frequência das idas e vindas faz com que acabemos por acompanhar, em jeito de folhetim, a vida uns dos outros: quem casou, quem se separou, quem finalmente se apercebeu de que pagar o dízimo do ginásio sem lá pôr os coutos uma única vez não era suficiente para levar a bom porto o projecto biquíni, que tanto sentido fazia enquanto resolução de ano novo.

O Raul era o mais caladinho dos meus colegas, uma espécie de contraponto ao típico espanhol, normalmente tão efusivo e entusiasmado como ruidoso. O Raul não, caladinho, no seu canto, dedos ágeis sobre o teclado, olhos postos na pantalla onde desfila aquele sânscrito digital que faz com que as coisas que têm que funcionar funcionem. Interrompia-o amiúde, para saber de um procedimento ou para pedir acesso a uma base de dados que ele administrava. Eu associava a sua cordialidade à sua introversão: o Raul não discutia com os colegas, não levantava a voz e, ao contrário dos restantes elementos do departamento, aceitava as reprimendas ocasionais do chefe num silêncio de eremita. Eu sabia da vida dele o que me iam dizendo: que era casado, malgrado ninguém conhecer a sua mulher, por ele nunca a ter levado aos jantares para os quais ambos eram convidados ou ao Family Day, que morava na periferia de Barcelona, como quase toda a gente que trabalhava na empresa e que estava à espera de um filho há cerca de catorze meses. Como, perguntava-se, entre risotas, catorze meses, insistiam os colegas do Raul, sem conterem a galhofa, se espera un elefante, rematavam, para gargalhada geral.

Eu acompanhara a história do filho desde o início. A tímida alegria quando anunciara a novidade no escritório e a reacção dos colegas, adubando-o generosamente com palmadões nas costas, genial, coño, vincavam, o seu sorriso envergonhado perante aquela inédita demonstração de efusividade, ele que estava habituado a que o interpelassem somente quando alguma coisa corria mal e as felicitações do chefe, habitualmente reservado, até soavam bem, naturais, humanizando-o inesperadamente, mas como nem um nem outro estavam habituados aquele trato sem farda o chefe rematava, seco, em jeito de pai: ahora hay que trabajar aún más, Raul.

Os meses passaram tão depressa como o tempo pode passar num escritório. O entusiasmo dos colegas, sobretudo quando se acercava a data na qual se esperava que o pequeno Raul nascesse, deu lugar a um silêncio consternado e árido de perguntas, porque o pequeno Raul, desafiando todos os prazos conhecidos para o desenlace da concepção humana, não havia meio de nascer. Ora era uma complicação clínica que impedia o parto, oram era dois obstetras que se desentendiam sobre a forma mais adequada de entregar aquela criança ao mundo, ora era porque se aproximava o Natal e aquela altura, tão confusa como exasperante, não dava jeito nenhum. Não dava jeito nenhum, chegou mesmo a dizer.

Aquele silêncio de sepulcro, tão inesperado como contranatura – sobretudo para um espanhol – deu rapidamente lugar à zombaria e o filho do Raul tornou-se de repente uma metáfora para tudo quanto tardava demasiado tempo naquele escritório. Mas esta impressora, não imprime, reclamava a directora financeira, para logo alguém por detrás do anonimato de um monitor replicar: deve ser filha do Raul. E o café, quando é que pediram o café, nunca mais chega esse café? Filho do Raul. Ainda não pagaram o subsídio de férias? Filho do Raul. Esse relatório, como vai? Filho do Raul.

A piada durou até o director de recursos humanos, eventualmente necessitado de mostrar algum serviço, decidir convocar o Raul e o chefe do Raul para uma reunião cuja agenda era de ponto único. Raul, esta empresa, principiou o director de recursos humanos, não tem por hábito imiscuir-se na vida pessoal dos seus funcionários, mas há-de convir que esta situação, tendo em conta o seu carácter inusitado, pede de certa forma um esclarecimento, e acredito que o seu chefe estará de acordo comigo neste ponto, ao que o director de informática anuía, silenciosamente, com um acenar de cabeça. Raul, finalizava, podemos saber o que se passa com o seu filho?

Saindo da reunião, Raul passou pela secretária e meteu na mochila os poucos objectos pessoais que lá tinha: uma caneta de tinta permanente, dois livros de poesia, uma miniatura articulada do Wall-e. Despediu-se educadamente dos colegas, como sempre. Nunca mais o vimos.

Há duas semanas fui a Barcelona e lembrei-me de o procurar, de o rever. Mas não tinha a sua morada, não tinha o seu telefone. Não sabia nada dele. Na verdade, nunca soube. Só podia ser uma personagem.

19 Dez 2016

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Exposição Industrial de Macau, organizada como complemento dos trabalhos de propaganda do novo porto, tinha fechado a 12 de Dezembro de 1926 e A Pátria de 21 desse mês referia: “Diariamente têm sido transportados para o novo museu, instalado no Palácio da Flora, vários objectos, entre eles algumas pedras lavradas, lápides e lajes de antigas sepulturas. Dos artigos expostos na Exposição Industrial, saíram algumas amostras gentilmente oferecidas por alguns expositores à Secção Comercial do Museu, tal como a cedência, facilitada por parte de chefes de serviço, de alguns objectos.” Parecia agora a todos que Macau iria conseguir ter por fim um Museu. Luís Gonzaga Gomes refere, “Pela Portaria n.º 221, datada de 5 de Novembro de 1926, foi criado, pelo Governador interino e Director das Obras dos Portos, Almirante Hugo de Lacerda, um mostruário de produtos nacionais de Portugal Continental e Ultramarino, especialmente, de Macau e Timor, com carácter comercial, abrangendo uma secção do museu da Colónia e tendo agregada a colecção de exemplares de Comissão de Pescarias, sobre o nome de Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões e a constituir com os artigos que possam provir da Exposição Industrial e com os que possam ser dispensados por diversas repartições, devendo ir sendo completada à medida das possibilidades. Para orientar e dirigir este Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões foi nomeada uma comissão, por portaria da mesma data, composta, pelo engenheiro João Carlos Alves, director principal; o missionário padre Manuel José Pita, director da secção do mostruário; e o professor do Liceu Central, Dr. Telo de Azevedo Gomes, director da secção do Museu; o pouco que foi possível colher-se do refugo das repartições públicas e de uma ou outra igreja, se instalou, no Palacete da Flora…”

A ideia do Almirante Lacerda era um museu histórico e artístico e em anexo ficava uma exposição comercial. “Ora como não conviesse misturar objectos artísticos e históricos com espécies comerciais e etnográficas e sendo o Palacete de Flora demasiado acanhado para se poder dar um conveniente arrumo ao que se pretendia expor, o Leal Senado resolveu (…) ceder para a secção histórica do Museu, algumas salas do seu andar nobre”, segundo Luís G. Gomes. Já o semanário A Verdade de 1 de Setembro de 1927 informava: “Estão sendo colocadas no átrio do Edifício de Leal Senado, gentilmente cedido pela digna Câmara de Macau, as pedras com inscrições históricas, armas, brazões, etc. sob a direcção de um dos Directores Técnicos do Muzeu, Dr. Telo de Azevedo Gomes. Brevemente deverão começar os trabalhos da instalação da Biblioteca n’algumas salas do andar nobre daquele edifício, passando as Repartições Municipais para o Correio e este para umas dependências do Palácio do Governo.” No entanto, A Pátria de 4 de Novembro de 1927 referia que a secção comercial do museu ainda se encontrava instalado no Palacete da Flora, tendo essa mudança já sido efectuada para o rés-do-chão da Santa Casa da Misericórdia, como referia a Verdade a 2 de Outubro de 1928. Tal poupou essa parte do recheio do museu, pois a explosão do Paiol da Flora em 13 de Agosto de 1931 tê-lo-ia destruído.

O Museu Comercial e Etnográfico Luís de Camões, dividido por dois edifícios, abriu a 24 de Junho de 1929, tendo como Director o Cónego António Maria de Morais Sarmento.

Os antecedentes

Por decreto de 26 de Janeiro de 1871 fora organizado o Museu Colonial em Lisboa e pedira-se aos Governadores de cada uma das Colónias portuguesas para reunirem amostras de produtos industriais ou outros artefactos. Para tal, o Governador da Província de Macau, Joaquim José da Graça (1879-1883), “Considerando que para se reatarem os laços comerciais entre Macau e o Reino muito convém serem conhecidas as qualidades, aplicações e preços dos produtos da indústria e comércio deste mercado, o que melhor se pode conseguir expondo-os nos museus, destinados a reunirem as amostras das riquezas em que as colónias abundam”, mandou constituir oficialmente uma Comissão. Esta era composta pelo Secretário-geral do governo o bacharel José Alberto Côrte Real e os cidadãos, Filomeno Maria da Graça, António José da Fonseca, Maximiano António dos Remédios, Pedro Nolasco da Silva e Lauriano José Martinho Marques. “Outrosim hei por conveniente declarar que se tornou muito digno de louvor o leal senado pela parte com que contribuiu o município, que é o primeiro interessado em todos os esforços tendentes a desenvolver a actividade e a riqueza desta população”. A Comissão não só coleccionava produtos de Macau como de Timor, à data junta com esta Colónia.

No Domingo, 2 de Maio de 1880 pelas 13 horas ocorreu nas salas do Leal Senado da Câmara a Exposição de artefactos, produtos industriais e outros objectos desta província. Era assim em Macau “apresentado ao público numa das salas do Leal Senado da Câmara o resultado dos esforços empregados pela comissão em reunir, classificar, coordenar e expor metodicamente os produtos que vão ser remetidos ao museu Colonial de Lisboa e ao da Universidade de Coimbra, sendo de mais a mais esta a primeira exposição de carácter industrial que se faz na colónia”, como se encontra referido no Boletim da Província de Macau e Timor, Suplemento de 28 de Junho de 1880. Durante a inauguração, o advogado António Joaquim Bastos Júnior propôs a criação do Museu Municipal de Macau.

Esta exposição criou um enorme entusiasmo e a vontade de continuar a coleccionar produtos industriais chineses para enviar para Portugal que, a 31 de Janeiro de 1882, o Presidente da Comissão José Alberto Homem da Cunha Côrte Real, que era também Secretário-Geral do Governo de Macau, pedia ao Leal Senado a cedência das suas salas para fazer uma nova exposição. E foi com esta nova exposição que se reavivou a ideia de António Joaquim Bastos Júnior de criar o Museu Municipal de Macau. Um dos grandes impulsionadores para a existência desse museu foi José Alberto Corte Real que, por se retirar da colónia, na sua carta de despedida de 10 de Julho de 1883 refere remeter ao Presidente do Leal Senado “alguns objectos, que eu ia pouco e pouco reunindo por via dos meus amigos para o museu municipal cuja fundação tão útil se me afigurou sempre.” Seguindo o seu exemplo e como um dos principais mentores, em Macau começaram a aparecer muitos particulares a adquirir peças de arte chinesa, que foram transformando as suas casas em verdadeiros museus.

16 Dez 2016

Pedro Gonzaga: “Meu temor é perdermos a capacidade de dizer”

[dropcap]É[/dropcap]s poeta, cronista do Zero Hora, jornal de Porto Alegre, e professor de literatura. Como vês o estado da língua portuguesa no Brasil? E da literatura? E quais achas que são hoje os piores inimigos da língua e da literatura?
A literatura, me parece, sofre o mal da simplificação e do maniqueísmo que tomaram as ideias e a expressão das ideias (a linguagem) em nossos tempos. A internet de potente forma de divulgação, converteu-se em leitura rápida e leviana, práticas inimigas da poesia. O português aqui em terras brasileiras ganhara, na mãos dos grandes poetas de 1930, uma encantadora fluidez e um impactante poder de expressão para os dramas sociais e individuais da nação. Meu temor é perdermos a capacidade de dizer. Mas acho que esse é o temor de todos os poetas.

O Brasil é um continente e tu vives na capital de um dos estados fronteiriços, Rio Grande do Sul. Há em Porto Alegre conhecimento da poesia que se faz na totalidade do Brasil, ou fica-se pelo chamado eixo Rio – São Paulo? E neste eixo, a poesia do Rio Grande do Sul chega lá?
O Rio Grande do Sul é uma ilha, em certo sentido autônoma, mas, sem dúvida, bastante isolada. Nosso norte máximo é São Paulo, Rio de Janeiro se pensamos no Brasil tropical. A poesia encontra grandes dificuldades de divulgação num país continental como este, e com tantas diferenças regionais. Para muitos, entre os quais me incluo, o nosso eixo cultural está muito mais voltado para a Bacia do Plata, ou seja, Montevideu e Buenos Aires. Também capitais isoladas em países ainda bastante rurais.

As relações culturais entre Porto Alegre e Buenos Aires são mesmo reais, ou isso não passa de um mito, ou talvez de um desejo?
Há um desejo muito grande da cultura dita gaúcha de estabelecer um vínculo com o mundo platino, Uruguai e Argentina. Me parece que há uma ideia difusa, mas talvez verdadeira, de uma sensação das coisas ao sul do mundo.

E por falar ao sul do mundo e em Uruguai e relações fronteiriças, não podia deixar de te perguntar por esse grande romance, que é Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee, passado na Jaguarão de finais do século XIX, e os últimos seis meses de vida de Frutuoso Rivera, o primeiro presidente do Uruguai. Que dizes desse romance? Sei que o Brasil ainda não o descobriu, mas ele já se torna incontornável no Rio Grande do Sul?
Aqui no Brasil, mas creio que no mundo todo, há certas injustiças literárias inexplicáveis. É o caso desse livro magistral chamado Don Frutos, que tem aquele aspecto de narrativa infinita que só os grandes romances podem ter. Seu conteúdo e sua linguagem local me parecem superáveis como acontece com Grande Sertão: Veredas, por exemplo, de Guimarães Rosa. Para a cultura sulista, como tu bem disseste, é incontornável. O que só torna mais grave o silêncio que aqui se faz. Era livro para estar em todas as escolas do Rio Grande do Sul.

Neste momento, no Rio Grande do Sul, parece-te mais pujante a poesia ou a prosa? E no resto do Brasil, és capaz de responder, apesar do continente gigantesco, que é o teu país?
É um momento bastante complicado para a produção artística no Brasil. Com as grandes conturbações sociais, os escritores parecem estar perplexos, incapazes de sínteses e mesmo de depoimentos pessoais consistentes que ultrapassem a mera ideologia partidária. O romance, com seu poder totalizante, e também mercadológico, ainda não viu surgir um panorama da Era FHC, ou da Era Lula. A poesia, num país continental como este, não consegue espaço para divulgação e acaba fenecendo. No entanto, é geralmente nessas horas que se erguem novas vozes criativas. Quem sabe o conto pudesse voltar a explodir, como nos anos 60. Mas nesta arte, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan ainda são para mim as vozes mais interessantes dos últimos cinquenta anos. Quanto ao romance, há um belo romance de Paulo Scott, chamado O Habitante Irreal, que trata da questão indígena no Brasil, com uma visão social contundente e uma forma bem arrojada.

Quanto à poesia no Brasil, ela carece de um ressurgimento. Desde o esgotamento da geração dos poetas marginais, da morte de Ana Cristina César, depois do Leminski, cuja obra me parece supervalorizada, o que há é uma espécie de poesia preguiçosa que lhes é herdeira, feita de trocadilhos e linguagem midiática, ou então um outro caminho também frouxo, de temática social, nada inovativa, seja em forma ou conteúdo. Há um tipo também de poesia desencantada, de cotidiano, que me desagrada bastante, marcada por um prosaísmo que não tem luz ou revelação. Claro que há belas exceções, os consagrados Antônio Cícero, Eucanaã Ferraz e Paulo Henriques Britto, e pelo menos dois nomes da nova geração: a anteriormente mencionada Mariana Ianelli e também um conterrâneo aqui do sul, um poeta chamado Diego Grando.

Esta semana escrevi aqui para o jornal sobre um livro que me impressionou muito, em dez anos de Brasil, Página Órfã (2007), de Regis Bonvicino.
Uma bela lembrança. Bonvicino tem a força, a contundência que me parece tantas vezes faltar em nossos tempos. A verdade é que há muita gente boa espalhada nesse país com tamanho de continente. Impossível não cometer injustiças e esquecimentos.

Tens dois livros de poesia publicados, Última Temporada (2011) – que foi abordado aqui no Hoje Macau – e Falso Começo (2013). Para quando o teu terceiro livro?
Deve sair aqui no Brasil no início de Maio do ano que vem e haverá de se chamar Em Outros Tantos Quartos da Terra. Terá apresentação da Mariana Ianelli.

16 Dez 2016

Das paisagens vagas como vagas são

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]maginar que me detenho simplesmente num intervalo do tempo a olhar um destes objectos. Sempre os objectos-cenário. E um ser encenador. Imaginar que qualquer um que seja me diz de momento tudo o que é suficiente nesta paragem. De alinhar números e letras de equações várias. Afastar essa folha da mente, obsessiva e exaustiva sem soluções visíveis. A faltar um detalhe que desenrole a revelação de uma das incógnitas, que seja. Uma só, e, na inércia seguinte, resolver alguma das equações. Que se alinham irresolutas em letras e números e números e letras. Que desenham ao todo e pelas suas partes incompletas, um padrão bonito a negro sobre o branco da folha, antes vazia, e depois com o mesmo sem sentido. Antes vazia. Talvez. Penso, de caminho. Desenvolver uma fórmula, uma chave. Qualquer coisa distinta. Evoluir do círculo perfeito e estanque. Desenhar bigodes nos vês e florzinhas nos pês.

Mas às vezes a distância abismal entre tudo e nada, está na misteriosa definição de um detalhe ínfimo. Um factor esquivo que se furta à absolvição da incógnita. A Matemática é um universo de abstracção quase de fulgor mágico. Talvez porque a vontade e as suas ramificações por inúmeros andares, lhe é desconhecida. Aqui mesmo ao lado, o candeeiro de luz baixa, a apontar rigorosa e permanente essa luz de todos os dias para baixo. Uma mesa de madeira quente e confortável para encostar um cotovelo e o outro a olhar a vida. Eu. Os cotovelos calmos e sólidos em espera de uma irresolução qualquer. Em redor uma penumbra de recorte difuso em gradação quase invisível, em que se encontram e desencontram os objectos de sempre, mas em segundo plano, como domesticados adormecidos até uma nova luz os contemplar. Animar. Um recanto do mundo que parece só por si suficiente. A terra do nunca e o território do ainda não amanhã talvez. Do talvez já não. Do ainda não ontem, do já, do nem assim, do já nem assim, ou do nem sei bem. Derivas indistintas na rota dos ventos e bolinas nas outras navegações de iguais ondas. De devir, do porvir imiscuído nas variáveis do já visto, ou de sombra diluída em liquidez. Sombras, brilhos, fosforescências nocturnas. Instrumentos de navegação obsoletos. Algo a fechar as pétalas púdicas para a noite. As pálpebras a encostar a uma córnea friorenta. Uma mão a procurar o rosto para conforto mútuo.

O candeeiro de todos os dias. A deixar uma penumbra a vogar sobre a outra metade da casa, daí para cima. A delimitar como se uma força terna dentro do seu abraço, um espaço dentro do espaço. Uma figura, uma espécie de figura, retrógrada como tantas coisas de que gosto, que ilumina da esquerda. Como deve ser. Para que a mão que mais voa não lhe distorça o percurso da luz. Não lhe encha a cabeça metálica de sombras e outras ambiguidades.

Mas, pura ilusão. Porque dele, sem culpa nem intensão, emergem factores de definição que se alternam e acrescentam nos dias, como se uma personalidade própria, definida e animada, respondesse a uma qualquer interrogação muda. Não a faço mas destilo-a talvez dos olhos sonolentos e distraídos com que muitas vezes verifico que está ali, e nele digo que estou. Também. Do que não quero falar me responde o que não pergunto. Por vezes mesmo o que não oiço. E sei que não é dele esse reflexo que dali se emite sem curva possível. Directo e devolvido. Claro. Há sempre qualquer coisa de variável ali. A dimensão. A crescer exorbitante até quase sentir a tentação de me encostar a ele na rua. A luz a variar numa temperatura entre o frio e o quente dos ossos e da pele. Nem sempre complementar. O contorno frio ou a calote como um crânio docemente recoberto de uma pele macia e sem pelo. Quase a apetecer passar-lhe uma mão como se de um bicho se tratasse. Aquela calote por momentos uma cabeça. A haver uma síntese química qualquer na evocação de um objecto de afecto, mesmo por uma forma qualquer de similitude, que apela ao tacto. O afecto precisa do tacto como percurso. De se esvair no tacto como a expiração que retorna a si e se distende sem parar. E de tacto. Muito tacto no lidar. Algum pensamento. Mas não concha. Os pensamentos- concha tendem a ser tóxicos se não evaporam por uma válvula qualquer. Ou as palavras. Que até o podem ser. O brilho metálico de uns dias a reabsorver-se num tom aveludado dos outros. E a tomar um carácter quase orgânico. E a lâmpada como uma ideia fixa mas sempre invisível. À espreita, em cada movimento inadvertido que faça. Que dizer se o óbvio é que há sempre qualquer coisa que não é deste meu candeeiro de anos, que se distrai dele dia após dia e diz algo que não lhe pertence, partindo dele e sendo ele…Sempre igual e igualmente inerte na sua imanência. E sempre um outro em resposta às perguntas que não faço.

Inocentes objectos. Mas nada há neles de inocente depois. De serem arrastados de fantasia em fantasia vindo parar a casa. Neutros nessa decisão. Moldam-se. Sem o fazer. Sem que nada na matéria se mova no sentido dessa outra matéria tremenda que é o olhar. Qualquer olhar despido de limpidez. Ou cegueira, quase podia dizer. E um rosto. Um corpo estranho. De paisagens vagas. Como vagas que são. Mas lá, o olhar.

Gostava tanto de ser de uma aldeia longe. Sem relógios para saber as horas do mundo, as minhas para além do daqui a pouco e do há pouco foi. Esta obsessão pelo tempo que me pára e me foge e me prende e me falta. O tempo uma moda e os horários a tirania. Eu queria fugir do tempo ou tê-lo a todo o tempo. Sem medida. Não esta sucessão de tiras e nós. Eu queria ser numa aldeia o acordar sem horas. De relógio. E sem fios, a que me prende uma mímica em que não me reconheço eu. Reconhece-se ele – esse candeeiro – no olhar que lhe deito, é o que quase suo perguntar.

Às vezes olho essa de mim, a perscrutá-la como se de fora, e como se fora o fosse. Mas não lhe sinto perfume, briho. Não lhe sinto calor, nem no calor que sinto, e porque é das sensações. E frio. Mas é resposta. Defesa da pele. E assim vejo essa personagem-pessoa, visível invisível, e desconfio da desconfiança  e  não reconheço nem conheço. E se ninguém entende, nem eu. E se não conheço não existo. Mas entristeço dela. Dessa que não movo. Como marioneta. De fios estragados, menos um. Um fio, e imprimir um gesto. Um fio e mover-me noutro, a estacar noutro. Impedimentos estruturais, fios a menos, ou fios a mais. Emaranhados e partidos e embaraçosos. Nos braços e nas pernas. De pano.

Passo a partir do candeeiro, que não sendo pessoa, se esgota num momento qualquer. E ali num outro sítio da casa e como sempre, aqueles olhos em vários pares, como continhas e com a mesma natureza dura e objectiva. Ou não. E que nunca dormem. Ou dormem sempre. Como se deitam nos dias, assim ficam para toda a eternidade. Olho. Cada boneca agora, de recreios vagos. Como diz o outro. Rosto hermético de porcelana. Olhos revirados de espanto ou impaciência. Sem mãos que componham o vestido. A ter que esperar que alguém se lembre. Desconfortável, hirta e descomposta em cima do psiché. Coisa ridícula. Sempre à espera. Ou então que não se acenda a luz para ninguém lhe ver os culotes empoeirados e o cabelo sintético talvez natural, um pouco descomposto. Visita-se essa descomposição, em fuga. E aquela poeira nos olhos e sem que os dedinhos lhe cheguem a aliviar as cócegas. Jesus…Que impasse, e sem poder fechar os olhos. Nunca. Destino pesado de charme. Depois falam dela e das roupas estilizadas. Mas as roupas, são ela, e por isso furibunda. Conversas e conversas e desconversas e ninguém que lhe diga na face quebrável um mimo directo. A precisar de um banho. É o que é. E pimenta na língua. Mas a boca não abre e os pensamentos não saem. Tudo certo. Então. Por terras de fantasia.

Volto. E, de repente, salta-me Buster Keaton para a página meio cheia, como de um comboio em andamento e. E sim. Tudo aquilo que aquele rosto nunca disse, nunca dizia. Dizia sempre alguém por ele. Simples projecção na plástica receptividade de um rosto neutro, complexa interpenetração de sentidos entre duas realidades que nem tangentes necessitam de ser. Basta agrupá-las. Basta imiscuir uma na outra por proximidade, justaposição. Aleatória. E como um espelho vivo, o que era rosto e inexpressivo passa a reflexo e rico em representações. De quem…Sabe-se, de quem olha. Mais do que do que é contemplado. E depois, saindo do cinema, e como um dia o disse Kafka: “The right understanding of any matter and a misunderstanding of the same matter do not wholly exclude each other”.

Mas, de permeio, o efeito Kuleshov, nessa, até às vezes abusiva atribuição de sentidos diferentes, a um mesmo rosto inexpressivo, consoante as imagens que lhe associamos. Que lhe colamos com a mesma subjectiva intuição ou aleatoriedade, com que o fazemos a um pisa-papéis e nele uma libelinha se encerra no cerne de vidro grosso, e a um livro sobre escravidão infantil contemporânea. Só para empilhar duas realidades soltas e limpar o pó da mesa nos espaços vazios. Produz sentido. Ou o reflexo do contracampo, que enriquece a linguagem cinematográfica. Que entorpece a leitura dos outros numa envolta de significados nossos, que é como uma armadilha. Para quem está no campo e quem se esconde no contracampo. Ou podia dizer o contrário. E quem esconderia o quê de quem. A inexpressividade da máscara, rosto esponja, ou o excesso do outro a submergir o rosto por detrás. O efeito da expectativa. Do desejo. Que age por defeito do objecto a inscrever, talvez. Permeável ou neutro. Inexpressivo ou vazio puro. Como resolver uma equação assim. Nada de grave no reino da fantasia. Esse revelador fotográfico – onírico.

Não é linguagem do cinema, é a expectante natureza humana. A derramar de si. Sobre a paisagem vazia. Ou a terra porosa. O rosto fechado. Em aberto. A natureza de vasos comunicantes a destilar de um lado o que é lapso ou lacuna no outro. Vasos comunicantes, de incomunicabilidade congénita, percorridos de um mesmo líquido. Mas, os sentimentos não oferecem dúvidas. A existência sim. E as pessoas, não têm que ser perfeitas. Os encontros sim. Ou então, dizer de outra maneira. Que os sentimentos não oferecem dúvidas, mas os objectos, sim. E o tempo. De uns com os outros.

16 Dez 2016