Mapa. Ideia – mundo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]téreo e vivo – uma questão mais de geometria. Vive aqui. Aqui onde quem, aquilo a não dizer. Aqui onde. E se fôr dentro ou fora, sólido, substancial ou imaterial. Vive. Aqui. Posso dizer. E disse. Um dia que viria. A brincar. Em cada passo que dou e deu. Dentro do espaço que é e foi habitado e passou a ser. Em cada pegada e impressão talvez escondida por aí em cantos que a vassoura do tempo corre. Mas não sabe e não varre. Contida na possibilidade material. Talvez da memória. Sólida. Visível. Talvez da visão imaterial. Vive. Aqui. Aqui onde, pergunto mas sei que aqui é entre camadas. Quem, o quê. De umas para outras e de novo. Camadas de ser. Como vestes de frio e calor. Coladas ao corpo ou em cima da cama. Espalhadas pelo chão. Camadas derramadas da vida e da pressa. Misturadas e. Por momentos. Talvez carinhosas. Esquecidas ou dispensadas na pressa de um minuto a seguir e a voltar atrás. Às mesmas e outras. Num dia bem noutro menos. Gostar e não gostar. Uns dias das pernas curtas, outros das sombras no rosto. Mas isso sou eu. E as roupas que caminham de curtas para largas e de volta a pesadas ou friorentas. Ou leves e florais ou opacas e aprisionantes. Correntes secretas. Ao negro ou a cores. A reserva… E os saltos. Não, os saltos têm que voar. Mais perto do rosto. Para mais perto do rosto. Dos olhos. E de repente lembrei-me daquela sensação de orelhas de elefante. Sim. Como guia. Como gesto, como rédea. Como ternura simétrica. As ternuras são-no raramente. Mas esta. Como os pés. Ponteiros de um relógio. Dez para as duas. Quatro da manhã. Os meus, meia-noite. Mas dez para as duas é uma hora terrível. Noventa quilos de massa visível sem peso, do dia anterior, ou cento e vinte para a frente e para trás. Um limbo. O que interessa é o peso. O peso e voar.
E depois voar. Em círculos levemente tontos e aleatórios deixando pedras e grãos de poeira para as margens e retornar ao ar. Territórios. E desses o mais real. Onde se vive. Voar em círculos tentando não entontecer. Embriagar. Voar fora do etéreo agarrado às coisas como se fosse. Voar sem registo e sem mapa. Âncora a puxar para cima a vertigem invertida. O puro prazer de voar. Como os pássaros ou então os insectos. Nos seus desígnios estranhos, insondáveis. Sim, sem se saber. Mas ainda assim. Não são metáforas, não existem de outra forma. Como dizer? Espirais e hélices que a mente escreve. E descreve, sem outra maneira de dizer. Densas e cheias de forma, sem acção nem tempo verbal.
A simetria, ser estranhamente incisiva. E a ideia leve. A geometria. Atirada assim à erosão do elemento aéreo. Depuradamente só. Levemente triste ou justa. Levemente leve e exacta. Essencial. De essência. Ou talvez também de necessidade.
O vôo durante. E como a palavra, o que dura. Que o tempo, o tempo não existe em estado puro. Estratégia, alvo, decisão. Golpe. Nada disso é o tempo bom. Só de asa. Numa aragem imprevisível. O que deixa simplesmente viver. Dizia, voar.
Ideia nem sempre sonho. Nem sempre. Talvez porta. Janela-mundo. Talvez palavra. Aquela palavra. A palavra talvez. Aquela.Talvez sonho. Sonho, talvez.
A lembrar Henry James. Aquela novela e há muito tempo… num arrepio de frio súbito. A esquecer de novo.
Voar. Portanto. Voar numa ideia que vive aqui. Imprecisa, indefinida, cuidadosa. Voar na ideia em que vive aqui. Em que vivo aqui. Voar na ideia de quem de quê não dizer. Mas que vive. Vive aqui. Aqui onde quem não vou dizer. E eu. Também. E se sem querer não quereria. Querendo, quero.
Às vezes o que é e a complexidade da vida, resume-se a quinze centímetros de distância, ou mesmo cinco ou dez centímetros de letras enfileiradas, com laços que as enlaçam e tornam para sempre – palavras para sempre. Que existem e formulam destino para sempre. Ou não. Mas que existem em si para sempre. No tempo ou no lugar certo ou errado. E entre a indefinição, a indecisão e o medo, e a generosidade o risco. O erro. A dúvida de dois caminhos. Uma emoção forte. Um receio, uma fragilidade súbita. A diferença entre ser e não ser de um gesto definitivo. Como qualquer gesto que inflecte num sentido qualquer e tudo o que não foi passa a não ter sido nunca nem sabido. O que nunca foi. Aquela fotografia de muitos anos para sempre ali solta no álbum. Desde o dia em que lhe vi o outro lado. Um mistério que o rosto da frente não explica. Nunca mais vai poder explicar. Às vezes aqui, sobre a mesa. O verso, na verdade. Um esboço de dedicatória nunca terminada. E o que falta saber, a quem. E ter sido entregue. E não foi. Ou foi mas inacabada, desnecessária. Ou esquecida. Ou um gesto arrependido de o ser. Uma ideia que ficou suspensa para sempre. Misteriosamente inacabada e inconsequente. Uma carta de nada. Uma ideia quase. Que alguém não viu viver. Perdida no tempo de que já não há a memória, a possibilidade da avalanche de uma memória que volta. Que não tem onde voltar. Ou de onde voltar. Não há aquela caneta de tinta azul, nem a mão. E contudo, a ser acabada aquela frase, muito seria nada e sem vestígios de possibilidade de nada. Perante isso o que me existe é tudo. Ou o que era para ser. No quadro pintado de um destino, como em tinta invisível.
Uma montanha com as suas vertentes, o pulo e o passo, um cristal com os seus ângulos, as fracturas preferenciais, a refracção a dissecar a luz, uma moeda com as suas faces. Jano. Etérea, indefinida. Em descontinuidade. Uma ideia. Há uma imagem temível. Um rio. E um obstáculo que lhe modela uma curva. Um meandro. E a erosão própria na zona de embate do caudal. E a acumulação de detritos do lado oposto. A modelar as margens. E a curva a apertar. Até que dois pontos se toquem. O início e o fim. E um dia, um caudal reforçado em fúria num inverno mais forte, ou distraidamente, esquece a curva e salta em frente. Para sempre. E da curva resta uma lua de água, uma forma de ferradura, um braço morto, isolada do rio para sempre. A vê-lo passar. A pensar que “curva de rio” é sinónimo em gíria do Brasil, de pessoa difícil, obstáculo. Bar mal frequentado. Problema. Ideia difícil, talvez.
Dou passos no centro de outras e aquela, sempre. Também. Como uma cor de luz que embrulha tudo o resto. E há a habituação do olhar. Que a anula por vezes. E as coisas tornam à sua cor própria como se afinal existisse intrínseca à matéria. Por detrás daquela luz que tudo modela a si.
Olho em volta e é a casa. Por todos os lados menos um. E também por aí. E por toda a casa. A casa que habito e é uma segunda pele debaixo da roupa. Do frio, do calor. Do desconsolo de ser assim, só. Olho e há uma luz quente, já. Para além do corpo e para além da casa, da cidade. Andando para trás, também da roupa, do corpo, ou mais aquém ainda. E é aí que vive. Para dentro de todas as casas, as roupas e todas as camadas de sentir de ser, de sentir e de querer. É aí. Que vive. Dorme. Acorda. Rapidamente se instala no dia novo. Às vezes com as roupas da véspera. Mais enxovalhadas de uma noite a pairar mais ou menos densa. Ou inexistente e ponte rápida entre uma e outro. Dia, momento. De acordar. Com tudo à beira da cama ou o rosto na almofada. Distante acordar. Muito perto de ser longe nos meus sapatos à beira da cama. E depois volta de rosto fresco e de ponto em branco. Conheço o que vive comigo. Todos os dias. Que me tira o sono e me faz suar palavras pela noite fora. Que esqueço pela manhã. Aquelas. Mas sei que as conheço e voltam com máscaras diferentes mas as mesmas. Vozes. Conheço as minhas.
Estranha forma de vida – adoro Amália – de sensações feitas e relembradas, desatadas do corpo, memória, inquietação, anseio, desejo. Uma angústia imprecisa, com outro nome. De forma desenhada. E de ideias gente sem matéria a que se prender. Aqui, pela casa. Em mim. O corpo da ideia. Olho de relance sempre. Um rasgo de olhar, só, para ver de novo. Talvez eu tenha visto a fera. Mas a fera não me viu a mim.

10 Jun 2016

Diário (secreto) de Pequim (1977-1983) Parte I

António Graça de Abreu

Pequim, 8 de Setembro de 1977

Alegria, emoção ao chegar à China.
O aeroporto pequeno numa manhã de sol, o grande retrato de Mao Zedong, a garganta presa.
O acolhimento afectuoso, fraterno dos camaradas chineses, futuros companheiros de trabalho.
O primeiro contacto com Pequim. Camponeses, carroças, casas pobres. As árvores bordejando a estrada, a vegetação repousante, as gentes que não conheço.
A primeira decepção, a habitação que me destinaram, um apartamento feio, esquisito, mal mobilado. Vai ser preciso mudar esta casa. Estranha sensação do estranho.
A primeira saída até ao centro da cidade. Pequim plana, avenidas largas, milhares e milhares de bicicletas, poucos automóveis sempre a buzinar. Trânsito desorganizado mas que funciona, reina uma grande ordem nesta desordem. Ainda hortas e terras cultivadas, os campos entram por dentro da cidade. Sempre muita gente. Transparece uma ideia de pobreza, não de miséria.
A Praça Tian’anmen, a da Paz Celestial, enorme, vazia, majestosa. Amanhã faz um ano que morreu Mao Zedong. Cortejos com milhares de pessoas vêm depositar coroas de flores de papel nas tribunas da Praça, junto ao monumento dos Mártires da Revolução porque haverá cerimónias oficiais comemorativas do primeiro aniversário da morte de Mao.
Ao fim da tarde, ainda uma visita e algumas compras na Loja da Amizade. Creio ser um dos grandes armazéns de Pequim, destina-se a estrangeiros e tem montanhas de coisas bonitas e baratas.
Ao jantar, neste hotel que tal como a loja também se chama “da Amizade” e é uma Babilónia de línguas e gentes de todo o mundo, conversa com um velho casal brasileiro, a Raquel Cossoy e o Amarílio Vasconcelos, já com muitos anos de Pequim, e outro casal colombiano, todos refugiados políticos.
Cansaço, um dia pleno.

Pequim, 9 de Setembro de 1977

Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, agora o meu local de trabalho. Um edifício pesado, tipo caixote com seis andares, espartano, uma espécie de convento marxista-leninista-maoísta. Mas funcional. Os companheiros de trabalho que vão fazer as traduções que depois corrigirei e a quem vou ensinar mais português, todos risonhos, simpáticos falando razoavelmente a língua de Camões. A camarada Bai Yuhua e o camarada Fu Ligang, dois dos mais competentes tradutores, estudaram português em Macau.
Na cave das Edições, cerimónia fúnebre muito simples em honra de Mao Zedong. Tudo a preto e branco, as cores do luto, mas com aparência de missa comunista. O retrato do revolucionário, as pessoas a curvarem-se diante da figura do falecido timoneiro, muitas coroas de flores de papel, dois discursos longos de que não entendi uma palavra.
De tarde, visita ao Palácio de Verão. Um estupendo conjunto de construções no estilo tradicional chinês, não muito antigo — parece que é tudo dos séculos XVIII e
sobretudo XIX – junto a um belo lago, com pavilhões, torreões, pagodes e, ao fundo, as montanhas a oeste da cidade.
Hei-de voltar muitas vezes ao Palácio de Verão, não fica longe do Hotel da Amizade, talvez uns cinco quilómetros, e hoje vi apenas de relance, com os olhos. Eu quero conhecer, quero começar a meter a China dentro de mim.

Pequim, 14 de Setembro de 1977

O presidente Mao Zedong repousa no mausoléu que acabou de ser inaugurado, a sul da praça Tiananmen.
Fui ver o corpo do defunto que mais contribuiu para mudar a face da China.
Grupos compactos de pessoas organizadas por entidades de trabalho, filas silenciosas de soldados, os rostos parados, compungidos, aguardavam a vez de entrar na construção de mármore, rectangular, nem bonita, nem feia onde jaz Mao.
Juntei-me à fila ininterrupta que avançava num lento ritmo fúnebre. Lá dentro, na vasta antecâmara, uma grande estátua também de mármore de Mao Zedong, sentado, branco, irradiando a altivez e segurança do melhor período da sua vida. Logo depois o salão com o sarcófago de cristal e Mao coberto pela bandeira comunista, e ele, velho, encarquilhado, uma cara que parece de cera.
À minha frente, o peruano Guillermo Delly que pertence a uns estranhos grupos maoístas lá da sua pátria, agora também acabado de chegar à China e que trabalha comigo nas Edições de Pequim — ele no semanário Beijing Zhoubao北京周报, o que dá Pekin Informe na língua de Cervantes –, pois o Guillermo levantou o braço e, de punho fechado, saudou Mao Zedong.
Em 1970, já no ocaso dos dias mas ainda todo-poderoso, o grande líder confessou numa entrevista a Edgar Snow que entre as multidões imensas que gritavam Mao Zhuqi Wansui! 毛主席万岁ou seja “Viva o Presidente Mao”, um terço das pessoas eram sinceras, outro terço fazia o que via os outros fazer e o último terço era hipócrita. Em qual destes grupos entrará Guillermo Delly? E eu, que não fui capaz de erguer o punho, nem nunca gritei “Viva o Presidente Mao”?

Dazhai, 16 de Setembro de 1977

A primeira viagem pelos atalhos imensos deste antiquíssimo Império do Meio, rumo a Dazhai 大寨 , a aldeia modelo da agricultura chinesa encravada nas montanhas da província de Shanxi, a uns mil e tal quilómetros de Pequim.
Ontem à noite, a estação ferroviária da cidade. Gente por todo o lado, acocorada, dormitando no chão, correndo para os comboios com a filharada às costas, carregando quanta cangalhada pode. Estes chineses vêm a Pequim e aqui compram tudo o que não existe nas suas aldeias, perdidas no mundo. Carregam volumes descomunais, com os objectos mais inesperados e espalhafatosos que enchem tudo quanto é saco ou oscilam na extremidade de varas de bambus num equilíbrio certo sobre ombros calejados.
O comboio pintado de verde-escuro com uma tira amarela, sólido, confortável, pelo menos para mim e para mais uns tantos privilegiados. A viagem foi paga pelas Edições de Pequim a meia dúzia de estrangeiros que lá trabalham. Eu sou um deles e tenho direito a ruanwoche軟臥車, ou seja as couchettes “carruagem cama fofa”. Aprendi hoje que existem mais três tipos de carruagens, a yingwoche硬臥車, ou seja, “carruagem cama dura” com sessenta beliches separados por tabiques, mais o “banco fofo”, almofadado e o “banco duro”, de pau, onde viaja a maioria dos chineses. Com o comboio em andamento, passei de carruagem para carruagem, para comprovar como se viaja de comboio na China.
A minha carruagem tem apenas trinta e seis lugares distribuídos por doze compartimentos. As camas estão limpas, há toalhas, um candeeiro com abat-jour, sempre uma grande garrafa-termos com água quente e chá. E música chinesa.
Por companheiro – somos apenas dois no compartimento – tenho um sudanês enorme, perto de dois metros de altura, de nome Ahmed Kehir, com feições de quase branco e pele negra. Pertence ao Partido Comunista do Sudão, vive exilado na China há doze anos, disseram-me ser um intelectual e poeta, trabalha na Beijing Zhoubao, edição em árabe e deve o bom tratamento ao facto de, há não sei quantos anos atrás, ter aparecido numa fotografia, divulgada por toda a China, ao lado de Mao Zedong, numa pretensa amena conversa com o grande timoneiro.
O comboio partiu rigorosamente à hora marcada, deslizando nos carris com uma suavidade impressionante. A carruagem tem os interiores em madeira, é clara e bonita. Num dos extremos funciona um fogão a carvão de pedra, para aquecer água.
A conversa, em mau inglês, com o sudanês. A situação política em Portugal, África. Pois.
Quase a adormecer, chega um chinês para dormir no nosso quartinho rolante. Mudaram-no de carruagem, é um quadro do Partido Comunista. Terá uns sessenta anos, como cartão de visita diz-nos num inglês de trapos ter lutado na guerra contra a invasão japonesa, nas montanhas das províncias de Hebei e Shanxi.
Depois, o sono confortável. (continua)

10 Jun 2016

Boy: patriota ou traidor? Em memória do 4 de Junho de 1989 祖国的杂种

Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abem quem são os jovens da fotografia? Espero que algum dos meus amigos chineses reconheça nesta foto um dos seus antepassados e que fique orgulhoso de partilhar convosco uma estória há muito esquecida de um destes “boys”.
Tudo começa num jogo de basebol, há 130 anos nos EUA. Este jogo ficou na História por ter sido ganho por uma equipa de jovens tímidos, vindos de um País muito, muito antigo: a China. As crianças da foto tinham, entretanto, crescido e eram, ao tempo, jovens que viviam na América há mais de 10 anos.
A foto foi tirada em frente do edifício da Shanghai Merchants & Steamship Company, pouco antes da viagem que os levaria a atravessar o Oceano Atlântico. Estas crianças tinham em média 12 anos de idade e sobre os seus pequenitos ombros já se fazia sentir o peso da responsabilidade. Nos seus olhos podemos adivinhar o medo e a curiosidade por aquilo que os esperava no Novo Mundo. Quando pisaram pela primeira vez solo estrangeiro, usavam as longas vestes Manchus e saudaram as suas famílias de acolhimento com um tímido dagong (que sejas bem-sucedido). As crianças tinham sido enviadas numa missão que ficou conhecida como: fuguoqiangbing (富国强兵). (Tornem o nosso País próspero e as nossas Forças Armadas eficientes!), quatro caracteres que representam a essência da luta da China moderna, desde essa altura até aos nossos dias.
A seguir foram distribuídos por diversas casas na Nova Inglaterra. Mais de 40 famílias americanas acolheram os jovens chineses, que rapidamente se adaptaram ao exotismo de uma nova vida. Com esforço ultrapassaram a barreira da língua e cada um deles veio a ser o melhor da sua classe. Os adolescentes chineses acompanhavam os seus pares na patinagem, na dança e no basebol e, mais importante do que tudo, passaram a pensar em inglês. Tudo o que era novo passou a ficar inscrito no seu ADN. Quando somos muitos novos todas as experiências têm um impacto tremendo. Os jovens adaptaram-se, não só, à cozinha estrangeira, como e, sobretudo, aos novos valores! Mais tarde foram estudar para as Universidades de Harvard, Yale, Columbia e para o MIT. Passaram a viver lado a lado de algumas celebridades do seu tempo, como por exemplo, Mark Twain. Os valores e os costumes chineses deixaram de estar presentes na sua formação.
Quando finalmente foram obrigados a regressar a casa, prontos para dar o seu contributo e cumprir o dever de cidadãos exemplares, foi com relutância que se envolveram nos meandros da política chinesa. O dilema pessoal destes jovens passou a ser o dilema da Nação: sou patriota ou traidor? As suas histórias pessoais acabaram por sofrer diversas reviravoltas, onde beleza e tragédia andaram de mãos dadas. No fim das suas vidas, cada um dos protagonistas desta foto a preto e branco continuou a preferir que lhe chamassem: boy.
Os episódios históricos na China não costumam ter um final feliz. A vida na China moderna parece-me sofrer uma oscilação febril entre avanços e recuos. É sabido que alguns dos boys ficaram nos EUA e que nunca mais regressaram a casa. Alguns deles não permitiram que os seus descendentes aprendessem chinês.

8 Jun 2016

Feliz Aniversário

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]olta e meia a Nação faz anos, ora por que lhe são atribuídas burlas Papais, ora porque foi ali que fora fecundada, ora pois porque gritou em galaico-português uma qualquer: EUREKA.
Há ainda o esotérico que remete o nascimento para posições mais drásticas, só para alinhar com os astros de forma a ficarem de feição e nesta intempestiva tendência para o nascimento múltiplo se anda enredado nos dados históricos disponíveis, pois que há dados históricos indisponíveis, tal qual como o entendimento do chamado texto litúrgico, onde se deseja saber o quando e onde e quem, dado que entre o factual e a parábola há subtis distâncias que a mente materialista não processa e datas que nem são mencionadas em repositório de dias.
Ora a Nação parece ter nascido em muitas datas, não se sabendo qual é a mais nascitura. Se fosse no mesmo ano teríamos o chamado parto fraseado, só que por vezes nem os anos coincidem, e com tanta data, legislação, código penal e nascimentos, deveria um Estado ter um desenvolvimento psíquico e social conforme a quantidade destes elementos civilizacionais, mas não! Entre um autóctone da Idade da Pedra e um Cibernético, vai um segundo no acelerador de partículas e, enquanto Deus assim quiser, haverá um hastear de bandeira, dado que estas coisas acontecem concomitantemente à perda de chão, de autonomia e de identidade, não se sabendo a razão para festejar um, por parcelas várias, ao tempo do moribundo.
Há coisas que viramos e reviramos e não sabemos mais para o que servem: é este o caso, quando de alto-abaixo se olha para um país, e das faltas de consideração a que se está sujeito por diversas tentativas da vontade. Educadores do Povo, urgem! O Povo é malcriado e não raro ofende os seus poetas e ao fazê-lo, de seguida, claro está, merece a ruína. Mas para se vingarem dos poetas arranjaram uma manobra delatória: publicarem e dizerem que também o são. E vai disto, aquela verve toda emplastrada de nada e com a inventividade a zeros, para não esbarrar, é assim que a vingança se faz! Todos somos poetas. Todos sabemos escrever. Todos fazemos anos só que não é no mesmo dia. Não há como ocultar o riso sardónico entre estas opulências genuínas, nem como muito bem viu quem não estava cego, fazer disto um grande ensaio, eu só queria silenciar o tempo e entrar pelo sonho adentro dormindo entre beirais de aniversariantes.
«Desiste e sê rei de ti mesmo»sim, por mim, e sabendo já o sucesso dos livros culinários, vou editar «A alimentação do poeta», gastronomia para os que não devem comer ou que comem tanto que parecem outra coisa. A rábula de Afonso Lopes Vieira entrará de soslaio para testemunhar a delícia e a elegância da falta de alimentos: batendo-lhe à porta, vinham então para jantar, pois ele, num arremesso de grande envolvência diz isto: só tenho massa de estrelas! Em vez de dizer com tom prático – então, vão aí comprar uns frangos! Pois não, não, nem só de pão vive o Homem, o homem e a mulher, que é género que habita no mesmo invólucro sem recipientes para os Bloquistas.
Nós sabemos o quanto a fome nasce da concupiscência e de uma certa avidez descontrolável, do ente e do doente capitalista, pois que ao distribuir-se a vontade pelo todo nada mais fica em nós como ideia fixa esperando que o nível de entulho alimentar se transforme um dia em tubos tão gentis como os de oxigénio, com todas as vitaminas e composições para que ninguém mais passe por ela.
Nós sabemos como corre o tempo e sabemos de tal ordem identificá-lo que as datas de nascimento se entrelaçam como a corda manuelina numa janela ou jangada que dá sempre para o mar. Só que nem sempre se nasce de uma só vez, com mais tempo e sempre nascemos tanto, que da morte já não nos lembramos, mesmo que tudo tenha fenecido, tal como Portugal, irá um dia alguém dizer que nascemos em tal e tal data, nunca as mesmas, alternando assim o mote e o modo de uma natureza vária onde permanece uma enigmática vitória. É com estas alucinações que se constrói imortalidade, senão quando mais vontade de estar vivo, pois que ninguém se lembra quando é feliz, os laços que o fizeram desabrochar até aí. A felicidade gera um esquecimento tal, que tudo o mais não existiu.
Num certo espectro visual e documentário passam enfileiradas datas de cuja autenticidade duvidamos pela noção única do nascer mas, se se quer estar vivo, temos de partir necessariamente de algum número do calendário romano. Neste caso, que não sendo ainda Nação à época da sua invasão, passou a contar nos registos da nacionalidade, bem como Cristo que se impôs à Roma Imperial e fundou na terra inimiga mais um marco civilizacional. Por cá, eramos girinos sem forma que só começaram a sair das águas com o ribombar das trombetas que traziam Apocalipses, Direito Penal e outras civilidades. Depois de termos passado a batráquios tínhamos de nos tornar mamíferos e fundar a partir das fundições de outrem ou de alguém, um nascimento rigoroso que é difícil acertar.
Nestas cosmopolitas e maravilhosas demonstrações se anda entretido a procurar o embrião e também o cordão umbilical cortado para absorver o sopro de elemento novo. É quando se dá a primeira respiração fora do útero que se nasce e absorvemos aquele registo que será doravante a anima, a alma, aquilo que anima, e num último instante expiramos a depô-la. É certo que um longo período de decrepitude pode gerar alienação de fronteiras, não se sabendo já da própria morte, mas, por ganância, nem a alma entregámos, ficando ela num Limbo inqualificável que apela ao nascimento.
Mas os bons dos romanos também disseram: os deuses, esses, enlouquecem antes os que desejam perder. Pois bem, são magnânimos! Matar a frio é para cruéis e sanguinários, mas pode haver alguém que não enlouqueça e veja o mundo passar como um filme a várias dimensões e até exclame como Pessoa: sou lúcido, merda, sou lúcido; pois era, e depois? A data dele era 8 de Março e esta sim, festejo-a sempre, porque foi um poeta que a decretou. Quanto às” burlas” e bulas Papais está para ser inventada outra data mais a preceito. Vinte e cinco de Outubro também tem a envolvência do homem adâmico , diz-se que foi nesse dia que fomos expulsos do Paraíso e por aí fora até ontem.
Espaço e tempo são matérias cientificas de monta que só Einstein conseguiu desvendar, e… levantam-se véus e não os vestidos das belas deidades.
Por isso quero desejar a todos felizes aniversários em qualquer calendário litúrgico e soberanas independências, não vá a Terra mudar o eixo dos seus vastos equilíbrios e andarmos para trás à velocidade do som. Quando chegarmos à pedra façamos como os palestinianos, e se houver pedras, construamos muros, e também apedrejamentos vários por causa do adultério. E posto isto, só as pedras e as baratas, creio, sobreviverão ao caos que se adivinha, e por isso não é de bom tom comer insetos. Alguém tem de cá ficar! Que não testemunhe jamais a realidade de um tempo de pólvora, e secas as fontes, nos retiremos daqui como o último dos Mistérios.

8 Jun 2016

Exposição | Macau e a Lusofonia Afro-Asiática em Postais Fotográficos

É uma mostra de 260 postais fotográficos , na grande maioria datados de 1900 a 1930, período aúreo da circulação dos cartões ilustrados , que os impuseram como o mais marcante ícone da era da massificação das imagens ou da era do clichê. Documentando aspectos vários de Angola, Cabo Verde, Ex-Estado Português da Índia, Moçambique, S. Tomé e Príncipe,Timor e Macau, a sequência expositiva permite, entre outras, uma leitura de como a revolução tecnológica da 1ª Era Industrial se implantou na lusofonia afro-asiática.
Luís Sá Cunha

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] 1a Era Industrial tem origem na invenção da máquina a vapor pelo engenheiro escocês James Watt, que a patenteou em 1769. A compreensão e aplicação dos processos da termodinâmica da força do vapor de água resultaram rapidamente na multiplicação da força do trabalho humano, operando a passagem da civilização agrária à civilização industrial, com uso das máquinas a vapor em produções massivas das fábricas de tecidos, ferramentas, papéis e… de outras máquinas mais poderosas.
Se as repercussões no mundo económico foram imediatas, outras fundas aspirações iriam também rapidamente ter respostas: as ânsias humanas de comunicação, para vencer o espaço e o tempo. O mesmo Watt inventa logo de seguida processo de fazer cópias de documentos, comercializado com êxito em 1779. O processo litográfico era inventado em 1797 pelo actor Aloy Senefelder, alemão nascido em Praga, que aplicou uma tinta resistente ao ácido sobre uma placa calcária de fino grão, a que chamou planografia .
Paralelamente, evoluíam avanços na Física e na Química, na óptica e nas lentes, tentando reproduzir imagens reais fixadas numa base. A técnica da fotografia surgiu em França em 1833, através de uma placa de cobre coberta com nitrato de prata, o daguerreótipo, do nome do sei inventor, Daguerre, logo seguida pela colotipia do científico inglês Henry Fox Talbot precursor das cópias sobre papel.
Correm ao lado as técnicas de imprimissão e composição de fontes ou matrizes, com a linotipia e de seguida a monotipia, para textos, e com a litogravura e a fotogravura, para impressão de imagens. Surgem as revistas com ilustrações, sobretrudo a partir da última década do século.
As técnicas fotográficas evoluem em rapidez e fidelidade à reprodução do real: dos pesados caixotes que requeriam 15 minutos de pose, passa-se à câmara portátil posta no mercado em 1888 pela Kodac com o genial slogan de promoção – “clique, que nós fazemos o resto”.
As aplicações da máquina a vapor geram os grandes transatlânticos , as locomotivas e vias férreas transcontinentais, os cabos submarinos intercontinentais, e assim a agilização dos serviços de correios.

O cartão postal

Neste enquadramento exigente de novas formas de comunicação entende-se a aparição do cartão postal na Áustria em 1865, mais tarde promovido nas grandes mostras das novidades mundiais que foram as Feiras e Exposições Universais de Paris. O êxito do cartão postal compreende-se por ser meio de comunicação rápido, fácil, de baixo custo, substituindo as longas cartas fechadas, mais morosas e caras, da epistolografia romântica.
O cabo-submarino e os cartões postais inauguram as mensagens “telegráficas”, no sentido de limitadas a curtas palavras, que os tempos exigiam. Na década de 90 começam a surgir os postais fotográficos ou ilustrados, que conjugam o discurso da saudade (reverso) com a visão do exótico (anverso): as famílias podem agora ver onde está o seu parente querido, as formas e cores das longínquas paragens, e sentem a sensação de uma proximidade que atenua a separação. O postal faz circular o discurso dos afectos e da nova visão do mundo , expostos ao mundo, porque viajam à vista de toda a gente.
O postal é agora um documento bifronte, tem duas faces e dois discursos, é o primeiro produto post-industrial em que o conteúdo artístico se conjuga com um meio de informação ou em que o veículo da informação se vai acolher crescentemente ao elemento artístico .
Os postais passam a ser o primeiro grande álbum de massas da ilustração do mundo, alargam a globalização tornando-a familiar, divulgando cidades, portos, monumentos, ícones mundiais, etno-grafias, povos e trajes, tipos humanos nunca vistos, cenários e publicidade. Na apreciação do filósofo alemão Walter Benjamin ele significa a passagem do regime da ocorrência única ao regime da ocorrência de massa, conjugando uma mensagem privada com outra reprodutível e assim massiva. É a primeira grande manifestação das indústrias culturais e indício da massificação social a deflagrar em crescendo.
Mas o cartão postal fotográfico não se limita a duas faces inteiras, é geometria quadripartida, porque não há apenas frente e verso, mas neste esquerda e direita, remetentes e destinatários, e mais ainda as transgressões do reverso sobre as imagens, para as legendar, comentar, sublinhar etc., e há o texto manuscrito e o texto tipográfico: “O que eu prefiro no postal ilustrado é que não sabemos o que é o verso e o reverso, aqui ou ali, perto ou longe (…) nem o que é mais importante, imagem ou texto, e no texto a mensagem, a legenda ou o endereço”. Eis um belo resumo formal do postal na visão de Jacques Derrida .
De facto, tudo num cartão postal é significante, mesmo apenas um endereço. Na vária opinião de filósofos, o postal fotográfico é “um dos mais exaustivos quanto fragmentários inventários visuais” da figuração do mundo, e “inventor da prosa do mundo por uma humanidade sem nome”. As suas imagens proliferando, viajando, prestáveis a serem coleccionadas, constituem matérias do arquivo visual de uma época, expressam um tempo como discurso e como memória, “como história e reinvenção da história”, sendo o mais relevante ícone da “febre de imagens” da “Era do clichê” (Deleuze ), ou da “violência das imagens” ( Jean Luc Nancy) , dando também matéria à “febre de arquivo” (Jacques Derrida) dos nossos dias.

Invenção do turismo — uma estratégia de sedução

Expostos ao olhar do mundo, “imagens distribuídas ao domícílio” na expressão de Paul Valéry, os postais vão ser o instrumento das indústrias culturais na deflagração do fenómeno do turismo, distribuindo impressões belas do mundo pelo mundo.
Operando a maquilhagem do real num caixilho recortado do espaço, seleccionando o mais belo no mais favorável enquadramento, eliminando o que perturbe as sensibilidades dominantes, os cartões fotográficos impuseram-se como máscaras da sedução (Derrida) e constituindo uma estereotipia da sedução (Pierre Klossovski) incitantes do turismo.
A exibição de um postal fotográfico passou a ser mostra pública de prestígio social da nova burguesia crescente, prova de frequência dos mais famosos e admiráveis sítios mundiais. A sofreguidão das imagens vem satisfazer a sofreguidão do exótico, a eliminação de distâncias e de fronteiras antes só acessíveis a poucos. Os centros urbanos, sobretudo os litorâneos, lugares de escala dos grandes transatlânticos, pressentem os novos tempos e aprestam-se a maquilhar-se, a colorir-se, ajardinar-se, a seguir a nova estratégia da sedução, para imprimirem o seu nome nos mapas das grandes rotas do mundo.

A fotografia/ cartão fotográfico – fonte da História

No final dos anos XX do século passado deu-se uma revolução nos critérios da análise histórica que deu origem a uma nova historiografia, por alguns chamada nova história, por superação da fundamentação exclusiva em documentos escritos e nas áreas política, diplomática, militar e económica, e com consideração de uma concepção holística da História. A história total passou a ter em conta os factos sociais no seu conjunto e inter-relação, como os sistemas culturais dominantes, a história das mentalidades, as sensibilidades sociais, as representações colectivas, a linguagem do traje e das modas etc.. Assim, a discursividade informativa da fotografia e do postal fotográfico passou a ser chamada a lugar importante de reconstituição da memória social.
Este nova concepção aconteceu em França, com início das novas propostas defendidas pela École des Annales e expostas na revista “Annales d’Histoire Économique et Sociale” (1929), onde sobressaíam dois nomes de renome mundial, Lucien Fèvre e Marc Bloch. Esta escola prolongou-se por três gerações de grandes historiadores, onde podem distinguir-se Fernand Braudel, Pierre Chaunu, George Duby, Jacques Le Goff, Philipe Ariès, Pierre Nora etc., numa continuidade que se vai arrimando à antroplogia estruturalista de Lévi-Strauss e à epistemologia de Michel Foucault.
Jacques Le Goff fez um dos enunciados básicos da metodologia avaliativa dos registos, com a distinção entre documento (1) e monumento (2):

documento — marca de uma materialidade concreta do passado, como pessoas, lugares, equipamentos urbanos e rurais, estruturas urbanas etc. , (o que é uma escolha do historiador);

monumento — como símbolo de uma época, herança do passado, o que ela estabelece como (única) imagem a ser transmitida ao futuro.
Mas é Le Goff quem logo desconstrói o que disse ser uma ilusória dicotomia analítica, porque o material informativo/documental resulta da selecção, sensibilidade, critério subjectivo de quem o elabora e selecciona, e assim todo o documento é monumento, e como tal e no limite, todo o documento é mentiroso.

Uma sócio-semiótica do processo histórico

É dentro e a par deste movimento analítico que se gera a necessidade de mais profunda leitura dos signos, para uma interpretação sócio-semiótica da documentação histórica, onde expressões verbais, simbólicas, plásticas, de gestos, atitudes, olhares, comportamentos, trajes, linguagens, são vistos na intertextualidade dos vários códigos de compreensão do ser em trânsito no mundo.
As categorias universais do signo , propostas pelo considerado grande iniciador da semiótica, Charles Sanders Peirce( 1839/1914) , primeiridade, secundidade, terceiridade, imediatismo consciente do fenómeno, entendimento do fenómeno pela consciência e interpretação e categorização dos fenómenos, constituiu quadro triádico também enquadrante da leitura dos signos visuais para posterior socio-semiótica dos fenómenos histórico-sociais.
A fotografia começou a ser analizada em si própria como encenação de intertextualidade de todos os seus adereços componentes, não como simples analogon de uma realidade na sua fisicalidade concreta, mas na organização e interpretação dos seus conteúdos internos ( Umberto Eco, Ernest Gombrich). Não como um pedaço recortado e isolado do fluxo do tempo, mas como um continuum que projecta signos de interpretação para o futuro e tem no futuro uma outra e mais completa interpretação.
De outra perspectiva, a fotografia por si só é histórica e, no dizer de Roland Barthes, não deve ser vista como ilustração do texto escrito, como este não deve ser o seu comentário (“la photo n’ illustre le texte, ceci ne commente la photo”)
“A imagem (diz Barthes) transforma-se numa escrita, a partir do momento em que é significativa (…) uma fotografia será, para nós, considerada fala exctamente como um artigo de jornal (…) fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio, a fotografia é subversiva quando pensativa”.
Em figuras de gente, deve-se olhar para o traje e os adereços da vestuária, e, mais do que para o olhar, para os olhos, como recomenda Barthes. A leitura da fotografia do jovem Franz Kafka por Walter Benjamin é a mais icónica ilustração disto.

Espelho e reinvenção dos impérios europeus

Os discursos visuais publicitados pela circulação dos postais fotográficos podem ser vistos como espelho e reinvenção da história da expansão dos impérios europeus, sobretudo no continente africano. É que os postais não se limitavam a satisfazer o gosto pelo exótico da pupila superficial das massas citadinas europeias. Divulgando a vida dos interiores africanos, os seus usos e costumes, sistemas sociais, tecnologias ancestrais, construindo uma imagem do Outro civilizacionalmente atrasado e inferior, as imagens dos postais foram instrumento (nolens volens) da fundamentação moral às operações de uma Europa tecnicamente evoluída, belicamente poderosa, sobre núcleos tribais “primitivos”. Eis o discurso da fotografia monumento, selectiva do que uma geração intenta passar ao futuro.
Limitada no seu fixismo bidimensional, a fotografia que exibe o orgulho das grandes inovações da Era Industrial — transtlânticos, portos, caminhos de ferro, estações de cabo submarino e de meteorologia, maquinarias etc. — deixa fora do caixilho ou empenumbra aquilo que se mobilizou de energia braçal para os construir, como o que em plantações de sisal, café, amendoim etc., se produzia à custa de exploração do trabalho ou da semi-escravatura.
Álbum da cultura dominante, o postal também provoca, questiona, incita o olhar a aprofundar-se em dimensões meta-icónicas. Ao lado do discurso hegemónico europeu, regista também outros de incentivo à preservação das hierarquias tradicionais útil à administração europeia, e à assimilação e à integração de classes locais, que se europeizam para alcançar superior estatuto social. Tudo é cenário: na Europa a África é cenarizada, mas também aproveita os adereços desse teatro para revestir a imagem do Outro, fotografando-se com o guarda – roupa do homem da city, de cartola ou canotier, ou com chapéus emplumados à la mode de Paris. E isto, da gradação dos tons da pele ao guarda-roupa, só a fotografia pode falar à História.

7 Jun 2016

A propósito de Magris e da Hungria

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]uma entrevista a Claudio Magris publicada recentemente num jornal português perdeu-se uma boa oportunidade para perceber como o autor de Danubio julga os transportes que se operaram nos últimos anos em algumas das regiões sobre que o seu livro paradigmático se debruça.
Se a importância que atribui aos espaços públicos onde se pratica a preguiça e a reflexão não deixa de ter lugar na conversa que se reproduz, uma preguiça e um exercício de reflexão que se terá transformado nas cidades contemporâneas em que se instalaram hábitos mais utilitários, menos presente está a reflexão sobre o que aconteceu às cidades ou vilas onde se passou de um regime de ditadura a um de democracia.
Lembre-se que Danubio foi publicado em Milão, pela primeira vez, em 1986, poucos anos antes das transformações que libertaram vários países do que se chamava a Europa de Leste da forte influência soviética que se impôs após a Segunda Grande Guerra. Ler Danubio hoje, no que respeita às páginas que se debruçam sobre a Eslováquia, a Hungria, a Roménia e a Bulgária (que correspondem a cerca de metade do livro, seguintes às que falam da Alemanha e da Áustria) levam-nos a um universo ao mesmo tempo muito longínquo e muito próximo.
Também se fala, e bem, da periferia como o lugar da “separação, mas também do encontro. Na periferia, há um conhecimento do centro maior do que o que existe no centro sobre a periferia” – afirma Magris durante a entrevista, reflexão que se pode aplicar também a países, como Portugal ou a Finlândia, onde existe um interesse pelo centro que não é necessariamente recíproco. Ou mesmo – acrescenta – “um conhecimento e um sentimento dos valores comuns mais fortes do que no centro. Por outro lado, o grande perigo da periferia é o de se considerar o mais autêntico da nação, por serem zonas onde se pensa que esse sentimento nacional está ameaçado. É nesse contexto que nascem os nacionalismos das zonas periféricas”.
Esta resposta poderia ter sido tomada como plataforma de partida para perceber melhor e aprofundar o que se passa hoje em países como a Hungria ou a Polónia (que por razões geográficas não entra na discussão danubiana) onde o nacionalismo e a opção pelo isolamento são cada vez mais fortes. Começa por se fazer – mas não se explora suficientemente esta linha – ao referir a obsessão de alguns destes países em escolher o isolamento e a protecção insegura da sua identidade em detrimento da abertura e da tolerância, um processo com raiz na tentativa de preservar a identidade própria em face da hegemonização imposta durante o período de influência soviética. Magris refere o fosso existente entre a Constituição húngara e a dos países da U.E.
É precisamente a Hungria que me interessa, como exemplo de fechamento e, mais interessante ainda, como exemplo de um país onde a um período de abertura que se seguiu a um de extremo enclausuramento que durou várias décadas, entrou numa fase de apetência por uma nova face de autoritarismo (como na Polónia) – algo que se não deu nos países do sul, Portugal, Grécia e Espanha, que nos anos 70 (74 e 75) rejeitaram regimes autoritários para nunca mais voltar a desejá-los. Não existem sequer em Portugal ou Espanha significativos grupos de direita que mostrem uma propensão nostálgica pelo autoritarismo.
O primeiro texto do capítulo que Magris dedica, em Danubio, à Hungria, chama-se At the Gates of Asia?, o que demonstra a condição periférica que o autor lhe confere, uma que se acentua num país onde a língua tem poucos pontos de contacto (ou nenhuns) com as dos países do centro ou as dos países circundantes. Esta é uma terra em que nos inícios do século XX existe um sentimento de despertença do Ocidente Europeu: “The West has rejected us, so we turn to the East”, uma terra cuja história demonstra um fervoroso nacionalismo que se funda, ironicamente, a partir da sobreposição de inúmeras camadas de invasão e mistura, matrizes formativas do particularismo magiar em que se inclui o elemento asiático – tatar, turco (mais de 150 anos de ocupação), cumano ou pechenegue.
O estado comunista impõs-se de modo paternal, reservando-se o direito de controlar todos os níveis da sociedade e suprimindo liberdades políticas, mesmo que a Hungria tenha sido (eu ainda me lembro) um dos regimes mais distantes de Moscovo de entre os que a U.R.S.S. controlava, constantemente alternando entre períodos de maior e menor autoritarismo.
Ao ler Danubio sentimos como este mundo (que forneceu ilimitado material ficcional), que parece distante, está, afinal, tão próximo de nós.
Na prática o período comunista sucedeu-se a um regime igualmente autoritário (que se inicia, como em Portugal, nos anos 20), o do período de Horthy, Almirante dum país sem mar, aliado de Hitler mas de um nacionalismo rigoroso que não poupou dissabores também à comunidade alemã húngara (que depois de 1945 foi violentamente perseguida).
De fins da Primeira Grande Guerra até 1989 são mais de 60 anos de regime musculado, primeira como ligado à União Soviética, depois como regime de direita e de novo sob domínio soviético após o Segundo Conflito Mundial, uma sucessão de Terror Vermelho-Terror Branco-Terror Vermelho.
A Hungria hoje, a Hungria de Orbán, é um país onde se tenta re-escrever a história de acordo com uma agenda nacionalista (um sinal de extremo perigo), um país membro da O.T.A.N. (assim como a Turquia e a Polónia) e da U.E. onde a xenofobia e a concentração de poderes se exibem sem vergonha, onde o primeiro-ministro, mais uma vez sem pruridos, proclama o desejo de construção de uma democracia iliberal non-Western e admira abertamente Vladimir Putin, onde a imprensa não é livre, onde a lei eleitoral foi alterada de modo a favorecer o seu partido, onde os tribunais têm cada vez menos independência e onde o primeiro ministro faz o que lhe apetece.
Se Viktor Orbán não tem mostrado hostilidade directa contra os judeus e os ciganos, a necessária condenação dos grupos que o têm feito não tem sido devidamente convincente. Paralelamente, o Primeiro-Ministro parece mostrar simpatia por alturas da história da Hungria em que se esta dominava território hoje pertencente a países vizinhos. Tudo isto num país que se revelou como um dos mais abertamente adversos ao domínio soviético durante a época da Cortina de Ferro.
Se Orbán, Erdogan, Netanyahu ou Kaczynski estão no poder é porque há uma vasta base conservadora popular que se identifica com as suas propostas. Tem sido difícil ao eleitor urbano supostamente mais sofisticado e educado entender esta gigantesca força silenciosa que não faz barulho na rua mas apoia em massa (basta votar) propostas políticas musculadas e rejeita liberalismos modernaços.
É aqui que se coloca a questão de saber se existe neste poderoso grupo uma força conservadora nostálgica ou uma força fraca que necessita de um poder forte que não questiona, que olhe por eles e que garanta um modelo de ordem que parece – a este complexo mental – não existir nas sociedades ocidentais liberais. Assim, como li algures num artigo cuja proveniência não recordo, o novo autoritarismo nasce também daquilo que no Ocidente parece ser uma falta de autoridade e um excesso de liberdades. O que em Portugal se chama: ela-havia-de-ser-minha-filha-a-ver-se andava-assim-na-rua.
Pensar na falta de tradições democráticas não ajuda a explicar as histórias de sucesso de Portugal, Espanha e da Grécia onde estas não sofrem (ou sofreram nestas últimas 4 décadas) qualquer ameaça significativa.
Acrescenta-se a esta parcela a da exportação de modelos autoritários bem planeados. Os países poderosos que hoje se auto-propagandeiam sem receio como crescentemente autoritários, a China ou a Rússia, têm vindo a criar um modelo que legitima, aos olhos de outros, como a Turquia, muitos países africanos ou os países da Ásia Central antigamente sob o domínio soviético, uma opção que limita as liberdades e a independência do sistema judiciário e se afirma paternalisticamente como dura mas necessária.
A esta necessidade cola-se um poderoso aparelho de propaganda nacionalista que ao liberalismo ocidental pode parecer bacoco e provinciano. Orbán tem elogiado a China, a Rússia, Singapura e a Turquia como modelos.
Falar do modo sistemático e obviamente muito bem planeado como a China tem tentado exportar o seu modelo (sedutor porque inclui crescimento económico e afirmação internacional) seria matéria para outras linhas.

7 Jun 2016

A jóia da coroa

Por Michel Reis

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] violoncelo Stradivarius Chevillard-Rei de Portugal, datado de 1725 e classificado como Tesouro Nacional, é uma das jóias da coroa do espólio do Museu Nacional da Música, em Portugal, tendo pertencido a S. M. o Rei Dom Luís I (1838-1889) e sendo o único instrumento de arco em Portugal com a assinatura do famoso construtor italiano de instrumentos musicais Antonio Stradivari (1644-1737).
Construído em 1725, quando Stradivari tinha 81 anos, foi primeiramente conhecido por Violoncelo Chevillard, por ter pertencido ao famoso violoncelista belga Pierre Chevillard (1811-1877) e foi posteriormente propriedade de um dos irmãos da família de luthiers franceses Vuillaume, que o vendeu ao Rei Dom Luís em 1878 por 20,000 francos. O Chevillard – Rei de Portugal tem a famosa forma “B”, a mais célebre entre as diferentes formas utilizadas por Antonio Stradivari na construção de instrumentos de arco, sendo o último construído segundo esta forma. Esta forma foi utilizada de 1707 a 1726, o período de ouro do construtor. Contudo, não estando o instrumento certificado, atribuem-no alguns a Jean-Baptiste Vuillaume (1798-1875), que imitava Stradivari com perfeição extrema. Restam hoje apenas 25 violoncelos deste tipo em todo o mundo, entre os quais o “Davidoff” (1712) , actualmente emprestado a Yo-Yo Ma, o “Duport” (1711), que pertenceu a Mstislav Rostropovich e é hoje propriedade dos seus herdeiros, o “Piatti” (1720), que pertence ao violoncelista mexicano Carlos Prieto, o “Mara” (1711), que pertence ao violoncelista austríaco Heinrich Schiff e o “Batta” (1714), que pertenceu ao violoncelista russo-americano Grigor Piatigorsky.

É conhecido o interesse que o Rei Dom Luís tinha pela música. Como compositor, deixou-nos algumas obras musicais: uma Barcarola, uma Missa (a parte de violoncelo), cinco valsas e uma Avé Maria, que o próprio Rossini elogia, pelo que não raras vezes comporá obras dedicadas a Dom Luís. Parte do seu acervo instrumental encontra-se hoje, no Museu Nacional da Música. São de realçar o violoncelo Stradivarius e um piano que pertenceu a Franz Liszt.

O valioso instrumento saiu há pouco tempo do Museu Nacional da Música para ser tocado pelo violoncelista russo Pavel Gomziakov num concerto de solidariedade para com a Plataforma de Apoio aos Refugiados, intitulado Música por uma Causa, realizado no passado dia 18 de Outubro, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, no qual o violoncelista, juntamente com a Orquestra Gulbenkian, tocou a Suite Nº 2 em Ré menor de Johann Sebastian Bach e o Concerto para Violoncelo e Orquestra em Dó Maior de Joseph Haydn, sob a direcção de Michel Corboz. O concerto, que esgotou a lotação do auditório, obteve uma receita de 24 mil euros.

A saída do instrumento, avaliado em vários milhões de euros, do Museu Nacional da Música, esteve relacionada com a sua descoberta por Gomziakov, que esteve em Lisboa anteriormente para tocá-lo num concerto realizado no Museu da Música. Ficou tão emocionado com o som do instrumento, que pediu ao Museu para usá-lo numa gravação na Fundação Calouste Gulbenkian, com a orquestra da Fundação, do referido Concerto para Violoncelo de Haydn, que integra a sua próxima gravação discográfica dedicada a Haydn, da editora Onyx, a ser lançada no início de 2016.
Depois da primeira saída, Pavel Gomziakov pediu também ao Museu da Música para usar o violoncelo Stradivarius no concerto solidário da Gulbenkian, o que só foi possível com o apoio de mecenas do Museu Nacional da Música como a Lusitânia Seguros, visto que o valor do seguro é bastante elevado e a peça precisa de medidas de segurança muito especiais. Tratou-se da segunda saída, em poucos meses, de um instrumento que não foi tocado fora do museu desde que ingressou nas colecções que o viriam a constituir, em 1937, e que é um dos 11 tesouros nacionais que o museu tem à sua guarda.
Crê-se existirem ainda hoje em dia entre 630 a 650 violinos, violas e violoncelos construídos por Antonio Stradivarius, 512 dos quais são violinos.
Tivemos muito recentemente oportunidade de ter em Macau o agrupamento de origem suíça Stradivari Quartett, que realizou dois concertos integrados no XXIX Festival Internacional de Música de Macau, nos quais o público pôde ouvir os fabulosos Stradivarius “Aurea” (violino, 1715), “King George” (violino, 1710), que pertenceu ao Rei Jorge III de Inglaterra, “Gibson” (viola, 1734) e o “Bonamy Dobree – Suggia”, que pertenceu à famosa violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia (1885-1950).

6 Jun 2016

Uma profecia serial

Faria, Almeida, Rumor Branco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2012.
Descritores: Romance, solidão, iniciação, Poesia, ISBN: 9789723716481, 160 páginas

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lmeida Faria nasceu em 1943 a 6 de Maio em Montemor-o-Novo no Alto Alentejo. Estudou Direito e Letras e veio a formar-se em Filosofia, mas antes disso com apenas 19 anos publicou o seu primeiro texto de ficção, O Rumor Branco, obra à qual foi atribuído o Prémio Revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores. Entre 1965 e 1983 elaborou os romances da “Trilogia Lusitana” (A Paixão, Cortes, Lusitânia) e com o Cavaleiro Andante, encerrou de algum modo este ciclo. Pela mesma época estagiou como bolseiro nos Estados Unidos e na Alemanha Federal e leccionou Estética e Filosofia da Arte na Universidade Nova de Lisboa. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e peças de teatro. Recentemente publicou, a partir de um conto seu, o libreto para a cantata de Luís Tinoco Os Passeios do Sonhador Solitário. Publicou ainda O Murmúrio do Mundo, relato ensaístico de uma viagem à Índia. Ao conjunto da sua obra foi atribuído o Prémio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o Prémio Universidade de Coimbra.

Começo por citar Pedro Mexia, pois parece-me que ele encontrou o registo certo: “Mais «romance novo» do que nouveau roman, Rumor Branco é uma representação do mundo português de 1962 enquanto náusea”. 
Mas Almeida Faria consegue provar que pode haver náusea e poesia ao mesmo tempo, portanto é de uma poética da náusea que se trata. Contudo a náusea é apenas a atmosfera em que acontece aquilo que de mais importante acontece; pois para além disso Almeida Faria tinha já percebido aos dezanove anos que um homem é sempre “o primeiro homem. Porque o seu mundo é a reinvenção do mundo, a sua voz uma voz original”. Isto é o que dele disse Vergílio Ferreira, no prefácio da 1ª edição, mas isso é o que o romance diz de múltiplas formas embora fragmentadas.
O recurso ao fragmento edifica a história a dois tempos. Há um tempo que é o dos materiais concretos que se sobrepõem assim como a sobreposição de tijolos edifica uma parede e há um outro tempo que é o tempo dos interstícios, dos espaços em branco que eram antes da narrativa povoados pelo silêncio e dos quais agora no tempo da execução da voz fazem ouvir o seu rumor.
No processo complexo de dar voz a um mundo, o autor assiste com espanto ao nascimento da sua própria voz. Para mim o que é genial nesta obra inaugural de Almeida Faria é o facto de ela simular exemplarmente o nascimento do mundo e do demiurgo dentro dele. Para Almeida Faria o mundo nasce quando nasce o demiurgo, são ambos demiurgos recíprocos. Não existe uma separação entre criador e obra e nenhum pré-existe ao outro, criação e criador são a mesma coisa embora desdobrada ontologicamente. Não nos interessa se é assim que as coisas se passam ou se como pretendia Bocanegra o homem não é mais do que um copista e jamais um demiurgo.

É assim que a oração começa: “uma voz existe intersticial. Há trevas à tua volta e tu não és.” E continua, mas os primeiros versos serão ainda durante algum tempo proféticos mas hesitantes, por vezes a visão parece claudicar e todo o trajecto até ao fim do primeiro fragmento é o caminho de um homem que começa dobrado e se vai levantando até que já completamente levantado vai dizendo, como um desafio “vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar vamo-nos-deitar”. Exactamente dez vezes.
A publicação de Rumor Branco fez correr muita tinta, em larga medida por causa do prefácio de Vergílio Ferreira, atendendo ao facto de este autor ter desertado pela mesma época, enfim uns anos antes, das fileiras do neorrealismo, inaugurando de algum modo a ficção de matriz existencialista em Portugal, com o romance Aparição. A polémica desencadeou-se a partir da publicação do romance de Almeida Faria, através de Alexandre Pinheiro Torres e do próprio Vergílio Ferreira, tendo-se depois alargado a outros vultos intelectuais contemporâneos. Lida hoje, a polémica dá conta de muitos equívocos, mas do ponto de vista documental e histórico mostra a realidade intelectual do tempo. Em boa verdade a maior parte das grandes discussões intelectuais e literárias em Portugal durante o período de vigência do Estado Novo tiveram o neorrealismo como pano de fundo, o que se compreende porque o neorrealismo foi a ideologia literária oficial do marxismo em Portugal e em particular do Partido Comunista Português e portanto ele era um reflexo da relevância deste partido na resistência ao regime. O neorrealismo nunca se pôde libertar da sua circunstância histórica, sobretudo em Portugal.

O romance de Almeida Faria é que não tem culpa nenhuma, até porque relido hoje em dia à luz de outras ferramentas teóricas e de outras utensilagens mentais, verifica-se que não se adequava nada às reivindicações ideológicas da época e por isso muito mais certeiro se afigura o que dele diz Pedro Mexia quando enfatiza a sua vocação serial: “a fragmentação, a pontuação escassa, a sintaxe ousada, uma partitura dissonante e ofegante de provérbios, palavras de ordem, neologismos, clichés. Uma música pós-musical, como a de Stockhausen a que o título alude”. Estou inteiramente de acordo quanto à atonalidade constitutiva do romance e ao seu carácter pós musical, ao seu ritmo assimétrico e claudicante, mas sempre luminoso e poético.
Li pela primeira vez este texto de Almeida Faria quando tinha vinte anos e se há uma obra de um autor português que me assombrou foi esta. Mais tarde voltei a ter o mesmo sentimento apenas uma vez, foi com o Silêncio de Teolinda Gersão. Estou a referir-me a obras de ficção portuguesas e de autores ainda não consagrados à época em que os li. Existem entre elas algumas similitudes. São ambas narrativas intensamente poéticas e soturnas, verdadeiras litanias espectrais da solidão. Rumor Branco é da ordem do “Nocturno” e o Silêncio é apesar de tudo mais solar, mas ambas esburacam o ser até ao lugar em que já não se ouve a sua voz, apenas silêncio e rumor.

2 Jun 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 15 – O estripador

*por José Drummond

[dropcap styçe’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Escrevo-te aqui de uma cidade perdida nas montanhas do Japão. Espero que esta minha primeira carta desde que nos separámos te acalme e que te possa dar alguma esperança. É importante que saibas que eu não te esqueci. Vives dentro do meu coração. Sempre. Desculpa não ter conseguido contactar-te antes da minha partida. Tenho a certeza que ele desconfia de alguma coisa. Estou a ficar assustada. Ontem a voz dele alterou-se e frequentemente fica em suspenso e não acaba as frases. Como se estivesse realmente a pensar noutra coisa. Não sei porque não tive coragem de acabar isto aí. Deixei arrastar tudo e depois pensei que seria mais fácil de lidar com este palerma durante a viagem. Na verdade gostava que estivesses aqui ao meu lado. Agora. Neste preciso momento, para não ter que te escrever e poder sussurrar tudo ao teu ouvido. E deixar-me abraçar. E deixar-me beijar. Só estou bem ao pé de ti. Quero dar-me toda. Para que me conheças ainda melhor do que eu própria me conheço. Espero que não estejas triste. Não tolero o pensamento de que possas estar triste. Como sabes não sou o tipo de mulher que se enrola em infidelidades. Tudo isto é tão complicado. Tudo isto é tão novo para mim. Não sei como tens paciência para mim. Não sei o que vês em mim. Posso garantir-te que não estou nesta relação contigo para perder tempo ou para brincar com os teus sentimentos. Por favor acredita na minha sinceridade. Tu és o homem que eu amo. Que mais me iluminou. Que mais me faz feliz. O único que realmente me faz feliz. Aqui, ao lado dele, sinto-me rodeada por esta miséria. Untitled1

Espero com todo o meu ser que acredites que sou honesta quando te digo que tu és aquele que o meu íntimo deseja. Aquele que trago sempre no peito. Como gostaria de poder planear o tempo exclusivamente em tua função. Desculpa-me, sabes que nunca tive jeito para escrever, mas todas as palavras são puras e saem do meu coração. Contigo sou tão diferente. Estou sempre com vontade de fazer coisas. Como gostava de voltar a cantar ópera cantonense. Aquelas escapadas à sala privada de karaoke, onde acabamos uma vez por fazer amor, acordaram em mim o meu gosto em cantar. Sabes que quando era pequenina sempre quis ser como a minha mãe. Ela cantava frequentemente na associação de bairro. Ouve um período, no qual, fui a muitos concertos tradicionais com ela. Lembro-me que ela chegou a ganhar prémios. Dava gosto ouvi-la. ‘Uma mulher que sabe cantar bem pode hipnotizar o homem certo’, dizia-me ela com frequência. Ela podia cantar em todos os lugares. Era uma mulher muito corajosa e confiante de si própria e das suas decisões. Como gostava de ser um bocadinho mais como ela. Depois aquela horrível pneumonia acabou com as forças dela. Foi nessa altura que os meus tios me levaram para Macau. Nunca mais a vi e eles esconderam-me a sua morte até eu fazer 16 anos. Mentiram-me durante anos e anos. Nessa altura a minha vida começou a deixar de fazer sentido. Acreditei que o mundo estava contra mim e que Deus não existe. Acabei por seguir o trabalho mais estúpido do mundo. Como sempre odiei estar por ali a deitar fichas para jogadores porcos, almas penadas, pessoas sem interesse nenhum. Por causa do meu trabalho eu tinha que usar aquele uniforme completamente amorfo e sem estilo. Sempre que saia dirigia-me às casas de banho, na parte de trás do hotel, e carregava um pouco nos cosméticos até alterar o rosto. Trazia sempre um vestido leve num saco que me ajudava a voltar a fazer sentir-me pessoa de novo. Era mais forte que eu. Era o desejo de conseguir ter uma existência.

Sabes que a verdade é que eu sonhava um dia ainda conseguir fugir para Paris e estudar moda. Foi numa dessa noites depois do trabalho no Casino Lisboa que acabei por conhecer este palerma. Levou-me a comer ostras e lagosta e confesso-te que me deixei seduzir pelo seu dinheiro. A cada encontro comprava-me a alma com mais uma jóia. Não demorou muito até nos casarmos. Proibiu-me logo de trabalhar. Muitas vezes pensei que a minha vida acabou ali. Mal sabia eu que ainda te viria a conhecer. Uma vez resolvi pintar o cabelo com tons vermelhos. Nessa noite não me falou e na manhã seguinte deixou-me um bilhete, antes de sair para o trabalho, que dizia: ‘é favor mudar a cor do seu cabelo. Não é uma cor decente para a mulher de um político. Se alguém a vê com esse aspecto o meu lugar na assembleia fica em risco.’ E foi assim que nunca mais mudei o meu corte de cabelo nem o pintei de outra cor que não preto. Lembro-me que quando era miúda cuidava imenso do meu cabelo longo. Sonhava encontrar o meu príncipe e sonhava que ele me ajudava a lavar o cabelo. E que depois, com imenso carinho ajudava-me a secá-lo. E que brincava com ele quando encostava a minha cabeça no seu peito. A minha felicidade quando nos conhecemos. Meu amor. Finalmente alguém brinca com o meu cabelo. Finalmente alguém despertou em mim o romance. Esta paixão que me revelou que afinal a vida não tinha acabado.
Agora, aqui perdida de saudades tuas, sei que estou pronta para te dar todo o meu amor. Tu és tão especial. Espero que nunca te arrependas de estar comigo.
Sonha comigo meu amor. Dá-me tempo para acabar isto que estarei de volta muito, muito em breve.

Sempre tua.
Daphne.”

2 Jun 2016

Estética urbana pós-socialista ou o Tibete invisível 你知道多少?

* por Julie O’yang

[dropcap sryle=’circle’]N[/dropcap]ão é frequente vermos um filme que nos revele um universo intimista e que, simultaneamente, nos proporcione emoções fortes num contexto de transformação social. Kekexili (可可西里, Patrulha da Montanha) é a excepção.
A partir dos anos 90, a geração de lideres chineses que sucedeu a Mao Tsé-Tung iniciou uma série de reformas com vista a desenvolver a economia e que conduziram a uma explosão dos mercados. Este crescimento acelerado da economia trouxe profundas alterações sociais; o consumismo, o individualismo, e o planeamento urbano modificaram as funções e as faces das metrópoles. Estes factores promoveram uma migração massiva de jovens criativos, de todas as áreas, para as grandes cidades. Procuravam inserir-se nos circuitos intelectuais e de oportunidades profissionais. Ao contrário de Mao, que promovia o conceito de “o campo rodeado de cidades”, e que conduziu o Partido comunista à vitória, a China de hoje vive nas “cidades rodeadas pelo campo”. O sentimento crescente de urgência, intimo e pessoal, é um elemento determinante para compreender a China enquanto zona pivot do mundo actual.
Kekexili, realizado por Lu Chuan, é um exercício sobre a estética urbana (no artigo da semana passada falei sobre “Nanjing! Nanjing!”, um filme épico passado na II Guerra, do mesmo realizador). E é por isso que uma história poderosa, onde ressalta a extravagância da natureza humana, é ao mesmo tempo uma história intima. Curiosamente, esta narrativa profundamente pessoal acaba por nos revelar o espírito do Tibete com maior clareza do que – atrevo-me a dizer – o Budismo. Illu(3)
Kekexili é um filme inspirado numa história verdadeira em torno da caça ilegal de antílopes tibetanos na região de Kekexili, a maior reserva natural da China. O início do filme é desde logo chocante. Vemos um membro das patrulhas da montanha a ser executado pelos caçadores ilegais. Mas o protagonista da história é Ga Yu, um jornalista de Pequim que se desloca à região para fazer uma reportagem sobre os voluntários que lá trabalham. Nesta pesquisa é acompanhado por Ritai, o chefe da patrulha. Certo dia, Ritai convida-o a acompanhar a equipa numa emboscada aos caçadores de antílopes, após terem sido informados que eles se encontravam nas proximidades. À medida que se embrenham na natureza, perseguindo as suas presas, assistimos às tremendas dificuldades que os esperam, já que têm de enfrentar, não só, inimigos bem armados, como também as inclementes forças da natureza. Com o deslumbrante cenário do Planalto Tibetano como pano de fundo, Kekexili conta a história dos tibetanos que enfrentam a morte e a fome para salvar as hordas de antílopes das armas de caçadores impiedosos. Filmado in loco, Kekexili, é uma mistura do fatalismo dos Westerns com a realidade fulgurante de um documentário. Se imagina o Tibete como um local pacífico, repleto de monges piedosos em oração, este filme vai fazê-lo mudar de ideias. O filme é uma junção de detalhes poéticos, tensão de cortar à faca e heroísmo muy macho, à la Hemingway.
Veja o trailer de Kekexili em: bit.ly/1U4NYOB
Antes de terminar, queremos, contudo, pôr o dedo na ferida. Porque é que o Tibete é tão importante para o Regime chinês? Ocorrem-nos três motivos óbvios:
1: Já o detém.  Abrir mão do Tibete seria dar o dito por não dito e representaria um enorme embaraço.  A China quer manter o status quo. 
2: O Tibete é rico em recursos naturais.  Para além da riqueza em minérios, a maior parte da água potável que abastece esta zona da Ásia brota do Planalto Tibetano. O controlo da água dos rios é essencial para a agricultura chinesa.  
3: O Tibete é uma zona rica em espiritualidade. Muitos chineses (jovens) anseiam por uma âncora espiritual e encontram-na no Budismo tibetano e nas suas crenças exóticas.  O espiritualismo tibetano é um contraponto ao Cristianismo e ao Islamismo que alastram na China, numa onda de popularidade crescente.
Em 1279, Kublai Khan destronou a Dinastia Sulista Song. O Tibete tornou-se parte integrante do Império Mongol, também conhecido como, Dinastia Yuan, seguindo a histórica “linhagem” chinesa. A Dinastia Yuan conquistou a China e tornou-se orgulhosamente parte da história oficial chinesa.
Penso que, para além do cenário do poder político, esta questão mexe com os sentimentos humanos mais primitivos e involuntários, como respirar.

1 Jun 2016

As Mil e Uma Noites, Miguel Gomes, 2015

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início do primeiro dos três filmes constituintes de As Mil e Uma Noites o autor, augusto, quase austero mas também com um sorriso sacana fininho no canto dos lábios, levanta-se da cadeira onde se encontra, num café, dá uns passos tímidos e, de repente, foge. Pois não. Qualquer um faria o mesmo que Miguel Gomes se se visse confrontado com semelhante desafio. Tentar fazer um bonito filme (as palavras são do próprio, não há aqui nada de inventado) e ao mesmo tempo acompanhar a situação de Portugal durante um ano de obrigação de um regime de extrema austeridade em que quase todos os portugueses empobreceram, não é tarefa que se inveje. Como poderá o maravilhoso e o belo fazer justiça às injustiças e às imposições que os filmes relatam ?
Contar umas histórias e não outras, tratá-las com afecto mas sem esquecer a solidez metálica necessária à crítica e à melancolia, juntar muitas figuras lembrando que a realidade é mais estranha que a ficção e que esta é indispensável ao cinema para que este possa continuar a surpreender, a irritar e a maravilhar como se fosse um conto oriental não é tarefa para qualquer um.
O que é certo é que se o Miguel se tivesse deixado seduzir mais pelas sagas nórdicas ou pelo Beowulf, pelo Decameron ou pelos Contos de Cantuária, mesmo com a carga de problemas que se propôs mostrar, o seu filme seria muito menos solar. O filme será mais inquieto, desolado ou encantado? É os três. A responsabilidade de juntar tudo isto dá, realmente, vontade de fugir.

Não sei se pensou nisso mas ele que fique a saber que os seus contos são encantadores, pela sua sinceridade e por não se saber muito bem onde é que ele nos levará a seguir (como acontece com Tabu) e pela sua recusa em ser apenas amargo durante 6 horas. Provavelmente Miguel Gomes não sabia muito bem em que direcção seguia, mas isso nunca foi impedimento para que se alcance o encanto.
Não esqueçamos que o primeiro dos filmes, O Inquieto, começa com uma demonstração de maravilhamento perante a dimensão de um estaleiro. Começa-se pelo espanto. A figura que o demonstra afirma, com humildade, que nunca pensara que tivesse tanto para aprender. Todos aprendemos aqui, o realizador, os seus colaboradores e nós.
Não esqueçamos igualmente que seguinte à história dos comerciantes e dos governantes cheios de tesão, onde a Senhora Ministra das Finanças pouco mais pode fazer que exibir um rubor pouco convincente, se apresenta uma outra verdadeira em que se julga o comportamento de um galo que canta a desoras – o primeiro episódio num setting de luxo meridional understated, na zona de Cascais, e o segundo num rural interior com bombeiros, fogos postos e GNR’s – Resende, Distrito de Viseu.
Tudo isto já se passa no enquadramento das histórias que Xerazade conta ao Rei para que este não a mande matar e a diversidade dos lugares onde as histórias se passam (onde elas se passam e o que elas evocam segundo a nossa experiência) será uma constante ao longo dos contos das noites.
Ia-se rir . . . porque não há ninguém que creia numa coisa destas – afirma uma das personagens do episódio do galo. . . . foi ali a vizinha do lado que mandou o galo para tribunal. Felizmente que há um juiz (o primeiro de dois) que ainda percebe a fala dos animais, o que permite que o galo se defenda. Não é apenas o português e o galês (língua dos galos) que é falada nestes filmes, e a diversidade dos lugares e da luz é acompanhada pela diversidade das línguas onde apenas uma vez – no episódio dos tesudos em que os portugueses confrontam os responsáveis europeus pela imposição do regime de austeridade – existe necessidade de tradução. Neles encontramos também o francês, linguagem gestual, o inglês, o alemão, o mandarim por 3 vezes, uma estranha língua escrita das mensagens de telefone móvel e até, no segundo filme, o silêncio de um refinado filho da puta em fuga da GNR (outra vez) em cujo episódio não falta uma cena paradisíaca bastante desarabizada mas ainda assim muito pasoliniana, com belas mulheres jovens nuas e um assado acompanhado de vinho.
Este episódio não culpa directamente ninguém mas no seguinte, o da Juíza, todos parecem ter sido destinados pela necessidade a serem culpados de alguma coisa – um dos episódios mais humorísticos (e não posso deixar de pensar que este é um registo que dificilmente se traduzirá com sucesso para outras línguas) e que não nos prepara para o que encerra o segundo filme, o chamado Os Donos de Dixie, muito suburbano, em total contraste com o lugar do julgamento e os montes agrestes onde se esconde o já referido sacana, de seu nome Simão “Sem Tripas”.
Não sei porque razão mas, como acontece em Tabu, tudo isto me parece imensamente moderno e inventivo mas, ironicamente, não estava à espera de outra coisa.
Sai-se de As Mil e Uma Noites e de Tabu a pensar que nunca se viu nada assim. Junta-se o mais hippie de todos os quadros, o do início de O Encantado, o terceiro filme, em que Xerazade quer viver verdadeiramente, fora dos limites do palácio, com o dos passarinheiros habitantes do antigo bairro da Musgueira em Lisboa num registo comum aos dois e que parece natural. Neste quadro, assim como em Os Donos de Dixie, Miguel Gomes mostra uma capacidade que distingue igualmente Pedro Costa e que me parece perder-se na estilização do seu último filme, Cavalo Dinheiro – a de transformar a banalidade numa cerimónia quase operática, uma coisa que Manoel de Oliveira sabia fazer e que César Monteiro não fez porque não quis.

31 Mai 2016

A armada inglesa no Mar da China

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Londres, um dos mais antigos pioneiros do comércio livre britânico em Cantão, o escocês William Jardine, fundador da firma Jardine, Matheson & Co. e que desde 1820 continuamente residiu em Cantão até 31 de Janeiro de 1839, conseguiu do governo britânico o auxílio económico e militar aos grupos de comerciantes ligados ao lucrativo negócio do ópio. Segundo Fernando Correia de Oliveira, “O parlamento inglês, sem declarar a guerra à China, aprovou o envio de uma esquadra de 16 navios para a zona de Guangzhou”. Assim, em Abril de 1840 partiu para o mar da China o Almirante George Elliot comandando os navios de guerra e quatro mil tropas, tendo essa armada chegado a 21 de Junho às costas da província de Guangdong. De referir ser um dos protagonistas desta história, Charles Elliot primo de George Elliot, que de Julho a Novembro de 1840 esteve na China como representante da Coroa Britânica e superintendeu no lugar de Charles, voltando depois este ao cargo de plenipotenciário.
Lin Zexu preparara-se para a chegada da armada britânica, mas sem grande frota e moderna como era a inglesa, suportava-se em fortalezas que mandara fazer ou reconstruir pela costa de Guangdong.
Os chineses a 9 de Junho de 1840 tentam por meio de jangadas incendiadas, destruir a “esquadra inglesa, surta no rio de Cantão”, como refere Marques Pereira, e a 21 de Junho, “achando-se em número de quinze navios de guerra a esquadra inglesa nas águas da China, Sir Gordon Bremer, chegado na véspera no Wellesley, anuncia o bloqueio de Cantão”.
Navegando pelo Zhujiang (Rio da Pérola) estalou a guerra, combatendo os ingleses pelo direito de vender o ópio na China. Segundo Alfredo Gomes Dias, em Junho ocorreu a “Publicação das exigências que a Grã-Bretanha faz à China onde se destaca a abertura de portos e liberalização do comércio internacional, estabelecimento de relações directas com o governo de Pequim e a possibilidade de os ingleses se fixarem nos portos”. Refere ainda este historiador que também de Junho é o “Édito do delegado imperial Lin exortando o povo chinês a aniquilar os demónios estrangeiros”.

A esquadra inglesa ruma a Norte

Lin Zexu, que tinha tomado medidas de preparação contra a chegada da armada britânica, dispondo de um exército conjugado com a população de Guangzhou e de toda a província, repeliu os ingleses. Estes, a 30 de Junho de 1840 navegaram com a sua esquadra de Cantão para o Norte da China.
A 2 de Julho, “Tendo entrado em Amoy (hoje Xiamen, a Sul da província de Fujian) o navio de guerra inglês Blonde, portador de uma carta do comandante da esquadra britânica para o almirante chinês que então ali estacionava, os chineses impedem que chegue a terra o escaler do mesmo navio, e fazem-lhe fogo, não obstante levar bandeira branca. O comandante inglês destrói alguns juncos de guerra e o forte que dera os tiros, e sai do porto”, segundo M. Pereira.
Seguiu a esquadra inglesa ao longo da costa marítima que banha as províncias de Fujian e Zhejiang onde, em frente a Ningbo, ocupou Dinghai. Alfredo Dias refere ter sido a 15 de Julho que “as forças navais britânicas atacam certos pontos de Zhoushan ocupando-a em seguida”. Já segundo Marques Pereira, tal aconteceu a 5 de Julho de 1840, sendo Elliot quem pela primeira vez tomou a cidade de Tinghai (Dinghai), na ilha de Chu-san (Zhoushan). Dinghai, a Norte de Ningbo província de Zhejiang, já em 1793 fora pedida à corte do Imperador Qianlong pelo Lorde Macartney, durante a primeira embaixada inglesa à China. Quarenta e sete anos depois, os ingleses tomaram a cidade de Dinghai, onde poderão residir e fazer o seu porto, armazenar mercadorias e reparar os barcos.
Após cinco dias de terem tomado Dinghai, os ingleses a 10 de Julho bloqueiam o Rio Yangtzé, chamado de Changjiang, Rio Longo a dividir nas suas direcções a meio a China, e onde Nanjing (a antiga capital do Sul) se encontrava.
Para Norte, um mês depois, a 11 de Agosto, seguiam a bordo do vapor Madagascar “os dois plenipotenciários ingleses, Elliot, cujo intento de exigirem comunicação directa com o gabinete de Pequim foi artificiosamente logrado por Ki-chen, então governador da província de Peh-tchi-ly (Zhi Li), com a promessa de que lhes viria dar satisfações a Cantão”, como refere Marques Pereira.

Guerra na vizinhança de Macau

Pela necessidade do Procurador José Vicente Jorge reclamar providências junto às autoridades chinesas, logo a 29 de Fevereiro, por “cinco ou seis desordeiros chineses terem agredido pessoas que passavam na Rua do Tronco e apedrejado a cadeia”, apontamento de Alfredo Dias, de onde se poderá induzir os distúrbios velados que também dentro da cidade iam ocorrendo, devido à indignação popular chinesa ao ver cair (desmoronar) o Céu.
A 19 de Agosto de 1840, Marques Pereira refere que, “as corvetas inglesas Hyacinth e Lane atacam as forças chinesas estacionadas junto da Porta do Cerco, matando-lhes aproximadamente sessenta homens”, apesar de Alfredo Dias dizer que estas duas corvetas inglesas atacaram, nas proximidades de Macau, navios chineses. Gonzaga Gomes conta, “Ao meio dia, uma força britânica, composta dos navios de guerra Lane e Hyacinth, o cutter Louisa, e o vapor Enterprise, rompeu vivo fogo contra uma bateria chinesa, postada na praia, junta do lado norte da barreira ou muro do limite de Macau, e que dispunha de 17 canhões que foram reduzidos ao silêncio bem como outros que havia para aquele lado, num total de 27. Uma hora depois, desembarcaram 380 marinheiros e soldados, comandados pelo capitão Mee, com uma peça, os quais puseram em completa fuga os chineses, continuando o fogo dos navios, que dispararam não menos de 600 tiros. Diziam alguns que as forças chinesas, em diferentes posições, deveriam ser constituídas por cinco a seis mil homens. Os ingleses, tendo encravado a artilharia chinesa e queimado as barracas dos soldados juntas à barreira, voltaram pelas 19 horas, para as suas embarcações”.
A 30 de Agosto de 1840 realiza-se a Conferência, perto de Tien-tsin (Tianjin), entre o plenipotenciário inglês Elliot e Ki-chen (Qi Shan), governador da província de Peh-tchi-ly, como refere Marques Pereira, mas, só a 16 de Setembro foi o oficial manchu Qi Shan (1786-1854), até então Governador de Zhi Li (Shandong e Henan), ocupar o lugar de Comissário Imperial, substituindo Lin Zexu, que a 3 de Outubro de 1840 deixou de ser Vice-Rei de Liangguang.

Qi Shan substitui Lin Zexu

No entanto, ainda em 5 de Setembro de 1840, o Edital do superintendente geral das alfândegas de Cantão, por apelido Iú, ordenou a apreensão de quaisquer mercadorias destinadas aos europeus e prometeu prémio aos apreensores, visto achar-se suspenso o comércio, como refere Marques Pereira.
A 16 de Setembro é nomeado comissário imperial Qi Shan (Ki-chen) para tratar, em Cantão, com os europeus. Local onde a 27 de Setembro era recebido um decreto imperial, desautorando o Vice-Rei e Comissário Lin Zexu, nos termos seguintes:
Oito dias depois, a 4 de Outubro “Alguns navios da esquadra inglesa, que fora ao norte em Agosto, sobem ao golfo de Liau-tung, e fundeiam neste dia junto à extremidade oriental da Grande Muralha da China. Foi a primeira vez que, dessa parte, se viu o célebre monumento devassado por europeus”, segundo M. Pereira. Liaoning (Liau-tung), província situada no Nordeste da China de onde eram provenientes os manchus, então a reinar na China como dinastia Qing, é banhada pelos golfos da Coreia e de Liaodong. Apesar disso, os manchus não sentem ligações ao mar, sendo na altura deles que os ingleses descobriram as anteparas aos barcos chineses e ao passar a usá-las nos seus, chegavam agora com um enorme avanço no poderio tecnológico, aliado à psicologia do fogo.
Se os primeiros imperadores da dinastia Qing mostraram interesse pelas novas invenções europeias do século XVI e trazidas à Corte pelos Jesuítas, os seguintes governantes manchus, alheados do mundo científico que então na Europa se reorganizava, artisticamente descoraram estar a par desses conhecimentos, sem os brados dos eruditos da Corte se fazerem ouvir. Pelo lado britânico, e numa curiosidade investida em interesses mercantis, conseguiam-se os segredos dos produtos, esses que os tinha levado ao Extremo Oriente.
De salientar ser Lin Zexu conhecido como o primeiro chinês na História Moderna da China “a abrir os seus olhos para ver o mundo”, sendo um dos primeiros a opor-se à política de fechar a China em si mesmo. Procurando conhecer o pensamento e as tecnologias Ocidentais, mandou traduzir os tratados estrangeiros sobre a produção de armas e barcos e para melhor resistir às incursões britânicas, saber o que escreviam nos jornais tanto de Londres, como da Austrália, de Singapura, da Índia, assim como os de Macau.
É de 23 de Outubro de 1840 o “Memorial de Lin ao imperador justificando as suas acções e o pouco êxito alcançado na repressão ao tráfico do ópio e onde solicita a rejeição às exigências britânicas”, como refere Alfredo Dias.
Marques Pereira dá para 1 de Novembro de 1840 a “Proclamação do comissário imperial chinês, I, aos habitantes da cidade de Ting-hai, sobre a ocupação da ilha de Chu-san pelas tropas inglesas. Dinghai, na ilha de Zhoushan, ficava assim oficialmente reconhecida como na dependência inglesa.

Armistício de dois meses

A 5 de Novembro de 1840 os chineses pedem um armistício ao Almirante Elliot, que foi concedido no dia seguinte e prolongou-se até 6 de Janeiro de 1841. Alfredo Dias escreve para a data de 6 de Novembro de 1840, “Memorando do contra-almirante e comandante em chefe George Elliot noticiando, pela primeira vez desde o início da guerra, uma trégua entre os dois países, enquanto ele e o delegado imperial se mantêm em negociações” e com ele continuando, a 20 de Novembro “os britânicos regressam a Macau”. No dia seguinte, “Os fortes chineses de Tchuen-pi fazem fogo sobre o vapor inglês Queen e o almirante Elliot exigiu e obteve imediata satisfação por essa ofensa”, segundo Marques Pereira, que diz ter a 28 de Novembro, o comissário Qi Shan chegado a Cantão, mas no dia seguinte, “o Almirante Elliot resigna o comando da esquadra inglesa na China”.
A 6 de Dezembro, segundo Alfredo Dias, “Ofício do comissário imperial Ke Shen (Qi Shan) ao Tao-tai onde se adverte que a vinda dos ingleses para a província onde Macau se encontra situada não deve ser hostilizada pelas guarnições chinesas sem que para isso haja motivo”. Uma semana depois, datada de 13 de Dezembro de 1840 a “Carta do comissário Ki-chen ao imperador, declarando o procedimento que entendia dever ter com os ingleses. – Diz assim: “, como refere Marques Pereira. Mas percebe-se que tal não trouxe frutos pois as autoridades de Cantão pelo Édito de 6 de Janeiro de 1841, ordenam “que todos os ingleses fossem mortos e os seus navios destruídos em toda a parte onde se vissem. Esta medida, decretada em meio do armistício que o almirante Elliot concedera desde 6 de Novembro anterior, deu lugar à imediata continuação da guerra e à tomada, logo no dia seguinte, dos fortes de Tchuen-pi e Tai-cok-tau”.

27 Mai 2016

Signo-sinal

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] casa onde ninguém vive. Uma imagem de solidão habitada por fantasmas. Sons, cheiros e vozes. Sobretudo vozes. Entro, e em frente o solitário com a eterna camélia vermelha. Eterna e artificial.
Solitário. Essa jarra alta e esguia como uma escultura de Giacometti. Sempre gostei delas, antiquadas, elegantes e para uma flor só. Em casa, toda a vida um. Da avó, e mesmo depois de ela já não estar sempre, ficou. Até um dia. E quando se partiu esse antigo, levei um outro, pelo muito que gostei destas jarras. Ainda ali está. Na casa onde ninguém vive. Casa triste. Se dela se pode dizer ainda, ser uma casa. Mas é de algum modo um ser. E como os outros, habitado ou não. Já não. E encerra na sua escuridão, dantes acolhedora e agora só escura, restos de uma alma que ali ficou impressa. Cada vez mais desmaiada, fugidia. Que absorveu de vidas e vozes, de entradas e saídas de beijos e despedidas. Vidas cruzadas ali por momentos, horas e dias, meses e anos, vidas vividas e livres, ou aprisionadas, contrafeitas. Paragem entre viagens, estação temporária de dias ou meros momentos, futuro impreciso e para sempre. O para sempre de viver enquanto dura. O para sempre de haver crianças a abrir os olhos e com um futuro de imensidão possível. O da ilusão de eternidade. O da ilusão de imortalidade. Esquecida realidade no cadinho de tantas outras emoções. Estruturas, zangas. Tantas vozes alteradas e tantas vozes alteradas depois para outros tons. Gritos, emoções. E as primeiras rosas. E a ninhada da estação. E os trovões de que o cão grande, enorme tinha medo de morte. O único já, que depois ainda prendia ali a dona de uma casa a entristecer. Arranhava a porta ali em baixo com as unhas enormes e a sua alma infantil a sair por uns olhos aterrorizados, até à exaustão. E de uma nesga para o acalmar ele irrompia para dentro com toda a força brutal do medo, subia escadas íngremes e atirava-se como a força telúrica alojada na sua alma animal, de encontro ao sofá grande que ocupava em todo o comprimento no chão que lhe chegava. Debaixo de tecto. E fechava os olhos com um enorme suspiro humano e a força inabalável de quem só sairia à força e essa força não havia. E os eclipses. Acontecimentos a céu aberto rodeados da fantasmagoria silenciosa das rosas nocturnas. E os campeonatos de futebol a lembrar ausência depois. Ir e vir. E ser casa a que se chega. E de que se parte sempre para voltar. Casa. A casa dos pais.
Uma sensação falhada de para sempre deve ser o destino onde desemboca cada solidão de casa no final. Abandonada sem querer. Até há um tempo, mesmo sem já saber para quê, cuidava-lhe do pó como quem cuida de uma criança ou de um idoso. Não deixava acabar os fósforos. O café. O frio do frigorífico de ronronar esperançoso. Regar as mesmas plantas de antes. Cuidar do passado como nas últimas décadas, e ver depois que algo na vida me foi esquecendo. E a esquece em parte quem se demora no passado. E nesse cuidar se fazia presente e ilusório na sua completude, aquela urgência de acudir. Algo me prendeu ali. E inflectiu. O meu caminho. São as contas da vida. Precisava de ter tido a força de um super-herói e duas vidas para viver. Bem.
Tanta poética sem uma cronologia fixa. Topografia estável. Ir em frente sem saber se para trás. Entender tarde e temer cedo demais. Contraria a razão. Passe de magia sem deslumbre possível. A poesia é para comer. Diz Betânia. Mas a vida, para viver.

Hoje visito-a para consolar a minha tristeza e a dela. Mente animista a minha. Levo-lhe duas cervejas fresquinhas para bebermos juntas. As minhas visitas curtas, agora. Em que me demoro simplesmente a revolver a própria forma da despedida. E a matéria, cada segundo. Perscrutar-lhe a viabilidade com cuidado. Homenagem a uma solidão de que não tem culpa. E à minha nostalgia incurável de outros tempos ali. Sento-me com ela num sítio diferente. Escolhi um outro lugar preferido para este tempo de solidão a duas. A dela desabitada de todos. A minha do impossível retorno. Por isso já não me sento com ela no sítio do costume. Com vista para todas as ausências. Com vista para o silêncio que vem da cozinha e da televisão vintage, silenciada pela modernidade que não consegue acompanhar, viva mas inerte. Para a porta por onde ninguém entra, e para a poeira densa que tudo recobre a proteger da vivacidade dos tons que feririam na sua paragem, mais do que o constatar de que tudo mudou. Um bicho sem dono, este ser de casa. Que ninguém cuida. Escolhi um lugar novo de estar ali na minha melancolia, de costas para tudo. Pela casa. Este lugar, a olhar para fora. Ao contrário do meu de muitos anos, no canto direito do sofá grande. Sento-me com ela, e silenciosamente ela entende. Estar ali naquele lado do redondo da outra mesa e a olhar a janela, a desviar os olhos das orquídeas que ainda resistem. Antigas mas a ceder ao abandono. A janela é tudo. Fora e dentro para amenizar a tristeza. Bebo a minha cerveja e vou fumando a dar contas à vida e a contar-lhe segredos de agora. Bebo a minha cerveja lentamente por mim e por ela. Bebo a outra por ela e pela minha tristeza dela. E sinto que lhe fiz companhia e ela a mim. No possível de cada uma de nós hoje. Um dia diferente no tempo e já muito fora da realidade que é habitar e ser habitada. Isso já não é.
Mas há a memória. Por isso atraso ou dou tempo, até desgastar qualquer sensação de desarrumar, destruir, desmanchar uma casa. Que já começou, mas estendo no tempo um pouco mais. Mesmo quando a casa que ninguém habita, nem as minhas saudades têm o poder de trazer de novo à vida. A perder-se no desvanecimento próprio à memória das coisas a sair do lugar da sua organização própria, que tinha cheiros e imperfeições. Ruídos e sujidades novas. Não esta poeira que se sobrepõe, indiferente, camada sobre camada de esquecimento, vazio e silêncio. Da inutilidade.
Aconteceu algo aqui. Oiço as vozes por trás de mim. Quando oiço. Mas as vozes tendem a calar-se discretamente à medida da minha despedida. É isso. Viro-lhes as costas e tento ouvir de novo. Ou que se calem apaziguadas na espuma do tempo que passou para sempre, sem ressentimentos nem amarras. Tento que se desliguem deste suporte que vai ter que se desatar. E se depurem em outras formas de habitar, e que pairem por ali nas sonoridades mais coloridas. Risos. Chamamentos. Perfumes de cozinha sempre viva. Jogos. Novidades das flores e das árvores inábeis e generosas. Venho beber um copo com ela mas na realidade poiso um só em cima da mesa. E bebemos eu e ela alternadamente como amantes que partilham segredos. Dizem. Do mesmo copo. Tantas coisas. Aconteceu algo aqui durante anos. E foi. E agora é preciso libertar e libertar-me desta teia quase física onde estão presas memórias. Bebo para celebrar o que foi e para me juntar ainda uns momentos a este bicho estranho que é a memória boa-má. Eu sei o que isto foi. Mas a casa está exausta de abandono e a deixar fugir entre os dedos aquilo que o tempo levou para sempre. Esses dedos que vejo estendidos lá fora. Como um signo – sinal. Dizem que também tenho que sair do novelo de memórias, fechadas um dia destes finalmente na arca de madeira lavrada. Tantas coisas que, conhecendo de sempre, me apetece levar comigo, como animais abandonados. E que preciso de revolver nas mãos vezes sem fim antes de lhes dar destino. Relembrando tudo o que trazem em si e de mim. Avaliando as possibilidades de nunca mais ver. De esquecer. A força que tenho ou não. E sempre a vontade de guardar tudo. Mesmo noutro lugar e já sem a cartografia exacta do uso ou do cenário. E depois? Algumas coisas quase mágicas davam uma grande história se o despudor chegasse a tanto. Outras só desenhando uma cronologia de tempos passados e arrumados. E as vozes. Ecos. Já só. Que tento continuar a ouvir, por um lado, e esquecer por outro. Porque tudo era imperfeito como a vida.
Estas são visitas de despedida. Despedida lenta como o tem que ser para mim. E a sós como o devem ser as grandes despedidas. Dizia Gerardo Castelo Lopes de um fotógrafo, que devia abordar o alvo da fotografia como num acto de sedução, delicada e lentamente. A sedução que se concretiza no fotografar de um ser, que o prende no fascínio do olhar por detrás da câmara. E se esgota ali. Mas esse acto de predação, dizia, devia ser amenizado por uma retirada também lenta e suave. Com o mesmo charme cuidadoso da abordagem, sem cortes abruptos. Sem dor. São assim estas despedidas. Mas não sem dor. Só com todo o tempo. A desgastar e a aplainar cada nó de mágoa, mais não seja pela repetição. Pela diluição.
Mesmo os espelhos já não parecem reconhecer o momento. Antes tristes e ressentidos. Na realidade já não devolvem uma imagem com rigor e plenitude. A deixar de nos reconhecer como se o momento único e desgarrado de toda a memória para eles não fosse o suficiente para reconhecer-nos e assim nos devolver em imagem. Como se faltasse a espessura de todo o entretanto para dar consistência à imagem- reflexo que emitem. Amuados, magoados de tanta ausência de movimento na sua frente. De tanto desconhecimento de tudo o que hoje se passa longe dali. Porque a vida, uma vida debandou dali. Em alguns num bater de asas leve e inconsciente e noutros como eu, presa à minha propensão para a nostalgia. Mesmo eu, que já não tenho espaço de vida para aquela casa e aquela memória. A necessidade das despedidas também desse lado de mim. Não só porque a casa, a alma da casa, se foi. E foi para nunca mais. E é preciso que o nunca mais se torne eterno. Saia do limbo da saudade presa ainda por fios aos passos possíveis, aos objectos no seu lugar de ainda. Aos ângulos ainda vagamente semelhantes a sempre. Mas sem as pessoas. E sem as pessoas, uma casa deixa de ser uma casa. E há que retirar- lhe delicadamente os fragmentos da alma agarrada aos objectos e trazê-los para uma nova vida. Ou sepultar.
Sento-me nesse lugar novo, de costas para toda a casa por onde já circulam as ausências de coisas, a desarrumação lenta e inadiável a ganhar a forma da desconstrução. E por isso também. Mas pela janela, vejo quase só a janela. E sei porque o faço. E ali, também a árvore de sempre, de copa altiva durante anos, decepada progressivamente por temporais repetidos ao longo de invernos. Com pernadas presas por um fio de fibras temporariamente perigosas e que iam depois caindo. Dessa árvore sobra um tronco a ressequir de formas dramáticas. E um dia aquelas mãos. Outra referência a Giacometti. Como uma escultura orgânica, esta. Abertas num gesto expressivo. E com o dramatismo contraído até à ínfima expressão sob a pressão do mundo, e ferozmente lançado em frente dos “Walking man”. Sei. Este sinal. Por isso me sento agora nesta janela a olhar para fora e de costas para a casa onde ninguém vive. Já. Não sei já se aquela era o castanheiro temerário muito podado e crescido em altura para lá do razoável, que a cada inverno e temporal ameaçava estragar algo na queda. Como as pessoas. Mas este inverno foi definitivo para ela. E aquelas mãos, negras e magras a espreitar de fora, um dia disseram de forma diferente. E foi bom.
Fecho a porta à chave e prometo voltar. A ela ou a mim. Mentalmente. Ainda para uma última despedida, antes da última. E vou. É tarde.

27 Mai 2016

Lusifenix

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abemos muito bem como a História é por vezes uma narrativa transversal aos acontecimentos mais vastos e aos conhecimentos mais rigorosos. Ela entra no nosso imaginário como uma narrativa heróica, dado que é narrada sucessivamente pelos vencedores numa transcrição proporcional a um estado, diríamos, que infantil, de quem a ouve e apreende enfaticamente. A forma pedagógica, que ao longo de décadas foi imposta, configura-se em muitas vertentes, também, um embuste ou impostura.
Penso mesmo que a nível da índole nacional tivesse existido um desânimo durante gerações ao serem confrontadas sistematicamente com heroicidades e grandezas que o quotidiano e a contemporaneidade não dão. Este extravasar épico pode anular a combatividade do momento, desmotivar as gentes, causar-lhes complexos de menoridade e daí o ontem, o antigamente, o de fora, o do lado. Tudo menos nós, que em histórias sabemos uns dos outros e da triste figura de alguns.
E vamos aos longínquos bancos de escola buscar a origem do Mundo: a romanização. Para trás, quem aqui vivia eram povos pré-históricos, indómitos, incapazes de lidar com tão extraordinária civilização que, como bem sabem, os Impérios fazem o favor de educarem. Dito isto, o que ficava da franja explicativa das populações autóctones era pouca ou nenhuma. Sabemos vagamente dessa gente, que ao contrário do que se disse ou diz, foi gente que lutou contra a invasão do corpo estranho com as armas e os arremessos que tinha enquanto povos locais e sabe-se como o etnocentrismo dos historiadores greco-romanos se recusou a reconhecer a língua destes povos. E entra o celta a propósito de tudo e de nada, hordas da Europa central, mas que nada têm de facto a ver com o que se passa abaixo dos Pirenéus e que não passa de uma variante local de pangermanismo com subjacente carga antissemita. lusitano
E aqui entra o legado fenício, a lembrar que os lusitanos integravam o império púnico contra Roma. Este povo que teve o monopólio das viagens mediterrânicas durante séculos e que fizeram mil anos antes das Descobertas a circum-navegação de África, que atracaram na costa portuguesa, sobretudo na costa Oeste, e aqui deixaram todas as marcas, heranças, língua , usos costumes e misticidade. É deste lado navegável e navegador, deste lado semita até Cartago, que somos herdeiros sem interrupção, com as alianças contra o invasor, que fizemos acordos, e foi sempre com aqueles que traem que se perdeu autonomia, como fizerem com os assassinos de Viriato, a quem, imaginem, no imaginário distante o remetemos para um caçador-recolector atirando pedregulhos às hostes inimigas, tão civilizadas!
Para acentuar o nevoeiro adensa-se o estranho sentimento de passagem, em que povos vários passaram por aqui, povos passantes, para que haja nele um Messias unificador. E não deixa de ser curioso que na época imperial romana a língua na Andaluzia era ainda a fenícia e toda a costa Oeste portuguesa e zonas do Alentejo guardem firmes, quais emblemas de resistência este passado longínquo. Nazaré alberga um povo que é semita e toda a costa parece o legado cananita onde não faltam os escondidos irmãos hebreus. De celtas, nem vê-los, mas tudo vai lá ter como “bolha” romântica tão ao gosto do fim do século XIX.
Se os atributos dos olhos azuis e do cabelo louro fosse tão reducionista, entraríamos nas tribos de ciganos com olhos de esmeralda e de muitos sírios e povos até do Norte de África, a celtibizálos. A celticidade é uma menorização do europeísmo transversal; por outro lado, não há de facto nenhum legado escrito desse povo, ao contrário dos Hispanos e dos Fenícios, de onde partiu a invenção da escrita alfabética, bem como o suporte de escrita que precedeu o pergaminho começado a ser usado em Biblos.
Fenecemos a nossa Fenícia ancestral no mar enredemoinhado da História de tal ordem alterada, dada sem noção antropológica quase nenhuma, que pensamos estar a ler narrativas de Alexandre Herculano. Penso que a noção de estratégia é muito importante para os homens que são guerreiros, só que o facto de ocuparem anteriormente as terras não fazia deles exterminadores dos que lá estavam, e temos de saber que os que fugiam para os baldios tinham espaço suficiente para as fugas.
Acontece que sempre nos foi dada a História da perspectiva do senhor, da supremacia do invasor, e o costumeiro hábito de com ele alinhar ao ponto de se achar que os Frades franceses de Cister ajudaram as populações rurais a plantar legumes. Nada mais errado, pois que era gente que não trabalhava braçalmente. Só a partir do Calvinismo é que o trabalho deixa de ser uma exclusão e um anátema divino, e todos passam a ter o dever e o direito de o concretizar.
Deixar que o estrangeiro se instale e retenha o dom daquilo que em nós faz cultura é uma doença da própria nacionalidade, obedecendo um pouco aos mitos fundadores do senhor e do pai. O desconhecimento total das fontes bíblicas da segunda invasão romana pelo Catolicismo fez ainda mais estragos. Era um fenómeno estranho, ainda hoje é arrepiante a incapacidade de compreensão desta realidade. Estivemos sempre próximos dos povos semitas, é certo, e nós entrelaçamos heranças. A cultura hebraica era íntima, dado que a primeira terra de “leite e mel” tinha sido a Fenícia conquistada por eles. Por isso nos nossos sonhos profundos dormita a história de Sem e o porquê de se ser servo. Muitos atribuem esta parte do mundo aos herdeiros de Noé mas, chegados ao estudo exegético do texto bíblico, este legado produziu duras trevas de desconhecimento amargo.
Mais uma vez e em face das situações nos amargou a boca para a denúncia, e também os cleros que, ao contrário do que se afirma, eram de um obscurantismo ofensivo, sem grande cultura e conhecimento dos factos. Muito trabalho há para fazer na busca daquilo que nos instrui, não academicamente, mas celularmente. Falámos uma língua que mandaram calar, fazemos acordos ortográficos para quem não fala connosco, obedecemos a dogmas de mercado vindas de fora. Nós fazemos de tudo, excessivamente, para ficarmos sempre mais pobres.

26 Mai 2016

Não há repouso para o amor

Ferreira, Virgílio, Em Nome da Terra, Quetzal, Lisboa, 2009.
Descritores: Romance, Memória, Morte, Corpo, Envelhecimento, Amor, ISBN: 9789725647912.

[dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.
Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

O romance Em Nome da Terra é uma longa carta de João para Mónica. Mónica já morreu e João é um juiz reformado e enclausurado, por vontade dos filhos, numa casa de repouso. A casa lar é assim uma preparação para o repouso eterno, um treino, uma transição suave para o irremediável. Será talvez um purgatório, mas sem um significado religioso, de que não estou certo. 26516P15T1
A carta é uma declaração de amor, esse sim eterno e sobretudo sem repouso. Para o amor ou para a memória dele não haverá nunca repouso. Provavelmente repousar do amor será desistir de tudo. Nem mesmo no purgatório, João desiste. A carta é também um pretexto para que João se encontre através do que perdeu, mas também através do que sobrevive. Não se pense que ele perdeu apenas Mónica. Não, ele perdeu a juventude, ele perdeu a fé, a ilusão, a esperança. Ele perdeu-se no meio de tantas perdas que foram acontecendo que talvez tenha perdido a própria identidade. Então como recuperá-la, partindo do princípio que é possível recuperar o que se perdeu. São muitas perdas, é verdade, mas há também o que persiste, mesmo se persiste apenas na memória. É o que persiste que permite o exercício de reflexão. O que permite recuperar ou salvar para que se possa levar a cabo o exercício de preservação da identidade e a auto consciência de uma vida, é a memória, contudo não uma memória enciclopédica e avulsa de tudo e de nada, mas sim a memória do amor. A carta é, portanto, também pragmaticamente uma terapia. Através da carta, João resiste e de facto o que dentro da carta constitui o tema em torno do qual se organiza a resistência contra a alienação, contra o esquecimento, contra a morte é o amor. O amor é tão poderoso que a sua simples memória pode, se não salvar, pelo menos adiar o que se augura inevitável e fatídico, ou seja o fim.
A consciência do fim é contudo mais poderosa que a esperança e as forças de resistência, e daí que não se possa evitar o sarcasmo, a ironia e até um certo desespero. O desespero seria porém avassalador, à margem deste exercício amoroso da memória. Assim, é um desespero mitigado por uma ironia, paredes meias com a mágoa.

“Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjunção de astros no infinito, deve vir nos livros. Ou mais provavelmente esse tempo nunca pôde existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir. Vou pensar melhor a ver se eu próprio entendo. Ponho-me a lembrar o que passou e o que me lembra é só a tua presença forte ao pé de mim. E depois acabou. Deves ter achado que era de mais e então acabou. Foste para não sei onde e estás lá fixa quando te lembro. Na realidade foi tudo muito mais devagar. Mas tudo quanto foi acontecendo foi o modo circunstancial de haver agora eternidade acima dessa circunstância — expliquei-me? Querida. Na realidade houve o nosso encontro terrestre e houve …”

O texto organiza-se assim em torno de três ideias fortes, a memória, o corpo, e a morte e acima delas e de algum modo à margem, como se não fosse dali, o amor. A memória é o instrumento, aquilo de que o autor se serve para alimentar o ludíbrio, uma vez mais; o autor, o narrador, o personagem, aqui como paradigma de qualquer pessoa, como acontece sempre aliás. O corpo é a outra face da morte, o corpo representa a vida. É natural que exista entre eles uma enorme tensão. Irreconciliável diria eu. Sempre que a beleza do corpo está a morte não consta e vice versa, em cada atentado ao corpo, ao seu poder e à sua beleza, ouve-se imediatamente o riso escaninho da morte.
Finalmente há o amor. A memória se não trouxesse consigo o amor, seria redundante. A memória de uma vida sem o amor lá dentro, é coisa de arquivistas, amanuenses, exercício de deve e haver, fait divers sem substância, nada. Só o amor traz de volta a transcendência, o sonho, a utopia, a ideia de uma escatologia salvífica tornada imanente e humana.

26 Mai 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 14 – O homem sem rosto

*por José Drummond

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que descobriste no resto da casa? A viúva tem estado aqui perdida em memórias de coisas e parece querer nos propor uma saída. Ela ainda não percebeu que estás aqui. Esse é o nosso trunfo. Recordas-te de como para todos os movimentos que fizeste esboçavas  uma versão preliminar para me mostrar? Uma  pintura que tinha por base todos os desenhos, todos os movimentos. O que ela não sabe é que não foi apenas dor. Foi também prazer. Nas ondas ondulantes de luz e verde escuro. Naquele dia que tanto querias pintar a plantação de chá. Depois da separação. Recordas-te de como quando ainda eras  estudante de liceu, e não tinhas ideia nenhuma do que querias ser quando fosses grande? Não tinhas ideia de como a pintura te iria envolver. 
A viúva fala-me do filho. De como ele terá  fugido para Kyoto, e que, em seguida, se terá perdido.  Ele perdeu-se à tua procura. Mas o que permanece na minha mente são os campos de chá. Lembras-te de como as folhas se aveludavam, às vezes, ao final da tarde, às vezes, ao meio-dia, às vezes, à noite. Por isso a visão daquela plantação de chá, aquela tristeza da despedida, nos teus olhos muito abertos. Duas consonantes, de repente pressionadas  por encostas verdes. Os teus olhos uma vez discretos tocaram o meu coração. Naquela tarde, ao longo da linha ferroviária, havia montanhas, lagos, o mar, e, por vezes, até mesmo nuvens tingidas com cores sentimentais. 
Mas talvez esta melancolia não seja verde. Talvez nem seja melancolia. Talvez sejam apenas as sombras que são melancólicas. Sombras tardias e através delas a dor. Sombras como pequenas encostas, bem cuidadas, com sulcos profundamente desenhados. Sombras que não a natureza em estado selvagem. E as linhas de arbustos de chá. Arredondados os arbustos. E ao fundo, rebanhos de ovelhas. Mas sabes, afinal talvez esta melancolia seja mesmo verde. De um verde suave. 

A única coisa que eu preciso agora é uma vida de contemplação. Lembras-te de quando apareceste à porta daquela cabana? Era inverno, e eu não fazia a barba ou cortava o cabelo desde que te tinhas ido. Lembras-te que quando chegou a primavera eu cortei o cabelo e fiz a barba e nesse mesmo dia comecei a construir uma varanda. E por essa varanda podia-se ver apenas um jardim. O nosso jardim. Uma varanda completamente coberta pelo nosso jardim. Aquele que tratámos como se dele dependesse a nossa existência. Como se tudo dele dependesse. O dia e a noite. Eu e tu. E, consequentemente, o facto de eu conseguir ou não ver-te. Um jardim, cortado por um corredor principal, oblongo, com cerca de metade sempre banhada pelo luar. Um jardim, onde até mesmo os degraus que davam até à porta traseira da cabana, tinham cores diferentes de tudo o resto à volta. Nesse jardim uma azália branca com bordo escarlate floresceu na sombra, e parecia estar sempre a flutuar. O seu bordo escarlate ficava perto da varanda e ainda tinha pequenas pétalas frescas. Embora que escurecidas pela noite essas pétalas brilhantes soltavam um perfume próprio. A metade do jardim que não era banhada pelo luar tinha uma cobertura de musgo. Uma cobertura que servia um longo banco de pedra onde nos sentávamos. Como esse jardim se tornou tão familiar. Estávamos acostumados a vê-lo a todas as horas. Tu sempre sentada, com a cabeça levemente abaixada, com os olhos fixos na metade enluarada do jardim. E, eu? Eu, como tu, simplesmente viciado a tudo isto, como miséria e dor.

A viúva deu-me uma droga qualquer e começo a sentir-me tonto. Estou aqui preso. Preso agora num lugar diferente e de modo diferente. Estou preso e ainda não percebi porque raio está ela contar esta história do seu passado. O que poderá ter tudo isso a ver com a nossa situação. Não consigo manter-me acordado se não continuar a falar contigo. Lembras-te quando de repente uma pintura diferente apareceu nas tuas telas? O tom abstracto que não deixava perceber se eram peixes na água ou nuvens no céu. Eu nunca havia visto aquela combinação de cores. Certamente que aquela pintura era um passo bem diferente da pintura tradicional de flores que nos havias habituado. Uma pintura sem formas reconhecíveis e com cores ainda mais fortes e mais variadas do que as que usavas nas pinturas de flores. Provavelmente porque era composta por muitas linhas horizontais. À primeira vista não parecia haver muita harmonia nas cores. É claro que não havia nada aleatório ou casual sobre isso. Talvez por isso deixava em aberto a possibilidades de uma qualquer outra interpretação. Por um lado eu sempre quis pensar que existiam talvez sentimentos subjectivos aparentemente escondidos. Muito tempo olhei à procura do coração da imagem. Não o encontrei. Um dia fiquei assustado quando aquilo que li foi ciúme. Gradualmente comecei a ler naquela pintura não o crepúsculo da vida mas a realidade da tua existência. Não eram peixes na água nem nuvens no céu. Era um auto-retrato teu nesta tua nova forma.

26 Mai 2016

Coração revelado 一堂歷史課

* por Julie O’yang
[dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo descobri um álbum de 2004, da autoria da dupla de fotógrafos RongRong(da China) e Inri (do Japão), 榮榮&映里. Este duo de artistas marcou a fotografia contemporânea não só na China, como em todo o mundo. OK, mas voltem lá atrás e leiam outra vez a frase de cima. Não notam nada de invulgar? Pois é, isso mesmo. Ele é chinês e ela é japonesa.
De repente a minha memória dispara. Não foi há muito tempo, estava uma noite numa cidade do sul da China e deu-se um acontecimento que até hoje me continua a intrigar.
Na altura estava de visita à família. Um dia, ao fim da tarde, um amigo da escola ligou-me para me convidar para um jantar com outros amigos comuns de longa data. Depois do jantar, desafiaram-me para ir a um bar, pese embora uma série de restrições impostas pelo local onde estava alojada. Acabei por acompanhá-los. No bar descobri que comigo só tinham ficado homens. O que aconteceu a seguir, foi, no mínimo, bizarro. Os meus amigos da escola perguntaram-me se me podiam violar em grupo. Bom, ainda bem que perguntam. Não, não estavam bêbados. A ideia deste extraordinário pedido surgiu por terem lido uma das minhas novelas, na qual eu tratava as Violações de Nanjing de uma forma “moralmente ambígua”. Não defendi a perspectiva chinesa, e isso foi um erro. Nessa noite estive cara a cara com o passado do meu País e, pela primeira vez, senti o regresso da História, na carne. A Justiça é a Vingança. Depois de quase 80 anos, para os homens chineses a única possibilidade de conservar o orgulho masculino é fazer com que todos e cada um dos guizi*, incluindo eu, a anti-patriota, paguem por terem violado as suas mulheres.
Como é que eu saí desta estranhíssima situação, ao mesmo tempo fascinante e ameaçadora, não é para ser contado hoje. Em vez disso, vou convidar-vos a ver um filme que vos vai fazer ficar com pele de galinha.

Nanking! Nanking!, ou A Cidade da Vida e da Morte, é a terceira produção de Lu Chuan. Lu é independente e corajoso. Ele nunca pisca o olho a Zhang Yimou-ism (Lanternas Vermelhas). É brutal e brilhante e a sua narrativa cinematográfica é provocadora.
O cenário da história de Lu Chuan é a II Guerra Mundial, que começou na Ásia. Abalado por um colapso económico de longa data, o regime militar japonês sonhou com uma solução e arranjou um problema. O passe de magia passava por subjugar a China para catapultar o Japão para o futuro expansionista. Em 1931, o Imperador Hiroshito, passando por cima dos procedimentos parlamentares, deu uma ordem directa para que o exército japonês invadisse a Manchúria. No entanto, o Japão esperou até Julho de 1937, quando perto de Pequim se deu o incidente da Ponte Marco Polo, cuidadosamente encenado. O Japão declarou oficialmente guerra à China e ao resto do mundo. Em Novembro o Exército Imperial tomou Xanghai. Um mês depois, o Governo Nacionalista abandonou Nanking, a capital chinesa ao tempo.
Nanking! Nanking! conta, no período que se seguiu, a vida e morte de várias pessoas, misturando personagens ficcionadas e o histórico “Bom Nazi de Xanghai”, John Rabe. Mas este filme não quer ser a Lista de Schindler chinesa. Lu Chuan escolheu uma perspectiva corajosa para contar uma história nunca antes contada. Através do olhar de um jovem soldado japonês, Kadogawa, um “rapaz como todos os outros”, somos levados até ao campo de carnificina onde ocorreu o Massacre de Nanking, também conhecido como, Violações de Nanking. O trabalho da câmara é intencionalmente sóbrio e embalador, não perdendo de vista um objectivo maior. Transporta de forma impressionante os espectadores horrorizados para outro tempo e outro lugar, onde tudo era tão INSUPORTAVELMENTE “real”. Assassínios, roubos, incêndios, mutilações, violações em grupo, apunhalamentos com baionetas e crianças espetadas com um longo pau de bambu… Mas então, de repente, a câmara muda para o acampamento militar nas margens do Rio Yangtze. Jovens, pouco mais que crianças, cantam, dançam e falam sobre as suas terras. “O o-mochi da minha mãe é delicioso,” diz um soldado que toma banho no rio. “E Tóquio é tão incrivelmente bela!” respondem os amigos, enquanto lhe lavam as costas com rebentos de cerejeira e com ternura na voz. Estes homens são assassinos, exterminadores, que há um minuto atrás tínhamos visto em acção. A que será que lhes sabe o o-mochi!?
Quando estreou em 2009 Nanking! Nanking! revelou-se um imenso sucesso – para grande surpresa do realizador. Pouco depois Lu recebia ameaças de morte por email, que o visavam a si e à sua família. O seu pecado foi ousar mostrar um soldado japonês parecido com um ser humano.

A história foi clara? Sem dúvida. A história foi útil? Aí está uma coisa que dá que pensar.

Veja o fragmento em: bit.ly/1U7jsq3

南京! 南京! (Cidade da Vida e da Morte)
Lu Chuan, 132 min / Drama, História, Guerra

* Guizi (termo insultuoso que pode designar estrangeiros e tem também uma conotação racista)

25 Mai 2016

O Limite, Mário Peixoto

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e eu vir o António Mega Ferreira na rua, o que é muito improvável, vou direito a ele e agradeço-lhe ter-me despertado a curiosidade para ler dois autores: Clarice Lispector e Sebald, autores acerca de quem li duas crónicas suas. O caso do Sebald é sério, muito sério, porque provocou em mim reacções transformadoras e um gosto pela deambulação (e pela discussão que em torno dela se gera) que ganhara através de Chatwin mas que apenas com Sebald se aperfeiçoou. O caso de Clarice é pessoal porque ler a sua prosa implica aceitar que ela nos julgue. Ou até zangarmo-nos um pouco com ela devido ao seu atrevimento.
Não vale a pena estar a inventar mistérios. Se Limite, de Mário Peixoto, me faz lembrar a prosa de Clarice Lispector é porque em ambos há algo que está ali mesmo ao pé mas depois nos escapa. Quando parece que estamos a descobrir o que é há um movimento lateral que o impede. Lê-se num dos seus romances: (…) Mas se com a aproximação a casa ganhara em nitidez, perdera a síntese anterior da distância. É esta distorção de perspectivas que me atrai aos lugares (especialmente aos lugares e daí o gosto por um romance como A Maçã no Escuro) e a algumas das figuras dos seus livros. Em Limite esta distorção também se dá porque esperamos algo diferente do cinema.
Ou então porque há uma irritação escaldante por baixo de tudo, por baixo dos pés e por baixo das mesas, que depois não se manifesta. Aprende-se a lidar com esta gente mas uma pessoa como Lispector, que percebe as galinhas (é ela própria que o diz) não se pode dar a perceber muito bem.
É a ignorância que obriga a fazer este tipo de associação entre estes livros e este filme. A fuga de Martim, em A Maçã no Escuro, será sempre pelas mesmas estradas do filme de Mário Peixoto em que uma mulher fugiu da prisão e um homem caminha para um destino que, felizmente, não é revelado (Limite, que tem uma duração de quase duas horas, tem apenas três intertítulos).
É difícil livrarmo-nos desta opressão, a do estabelecimento indelével de um tipo de imagem, semelhante à que me obriga a imaginar a casa de Clarisse e Walter (na Áustria) em O Homem sem Qualidades, como sendo a de Marie Krøyer do filme de Bille August com o mesmo nome. Esta mecânica é ditactorial e pensar nela leva a lembrar que cada um construirá uma imagem diferente a partir daquilo que lê, ao contrário do que se vê no cinema ou no teatro, que é mais comum a todos. É um pouco como sentirmo-nos cúmplices de uma fraude. A minha Lispector é muito diferente da tua mas o meu Limite tem obrigatoriamente muitas semelhanças com o teu. Toma.
E já agora acrescento que o livro de Lispector que se refere em cima, que começa com uma longa caminhada de um homem que cometeu ou pensa que cometeu um crime tem semelhanças muito estranhas com um dos poucos filmes transformacionais que vi ultimamente – Japón, de Carlos Reygadas.
Para quem nunca esteve no centro do Brasil e não é ornitólogo (de profissão ou por amor) um pequeno pássaro do centro do Brasil poderá muito bem ser um que lá não existe, um blue tit ou um rouxinol. Mas será sempre uma forte impressão visual. Como explica Colm Tóibín num artigo sobre Lispector (NYRB, Volume LXII n. 20), esta, por vezes, na sua abstracção, parece ter mais pontos de contacto com artistas plásticos da sua época, como Lígia Clark ou Hélio Oiticica, do que com outros autores de prosa.
Limite, de Mário Peixoto, tem uma imagética semelhante à construção que eu faço dos livros de Lispector. É um filme mudo de inícios dos anos 30 que tem um lugar especial na história do cinema brasileiro. É particular pela combinação de planos ousados – uma espécie de pequena colecção do que se fizera nos anos 20 na Europa – com uma atmosfera onírica que encontramos em muitos outros filmes mudos, e que se perdeu à medida que a ditadura do cinema narrativo de decifração fácil passou a ter cada vez mais importância.
A recusa de uma linha narrativa clara, comum a muito do cinema mudo (e não apenas do cinema avant-garde) origina, hoje, uma re-avaliação do cinema antigo como particularmente moderno, mais próximo da música e das artes plásticas. Já aqui se tinha feito referência a este encontro de estéticas a propósito da imensa possibilidade que se abriu com o uso do digital e com a facilidade de filmar e montar. É finalmente chegado (ou recuperado) o tempo de experimentar ao lado do cinema narrativo que, com 100 anos de insistência, se revela tantas vezes repetitivo e falho de imaginação – ao mesmo tempo que indisponibiliza o espectador para uma experiência livre dos constrangimentos da simplicidade da narrativa linear.
Limite parte de um grupo de três pessoas, duas mulheres e um homem mostrados à deriva num pequeno barco, e constrói vários quadros em analepse em género de lamento sobre a futilidade e a fugacidade da vida. Filmado em 1930, exibido em Maio de 1931, mostra um conhecimento do cinema europeu da década de 20 (Man Ray, Vertov, Dozhvenko, Murnau) por parte de Peixoto e provavelmente com um contributo importante do seu cameraman, de origem alemã, Edgar Brazil.
Esta informação não desvaloriza de modo nenhum o filme de Mário Peixoto, que mostra um atrevimento singular ao mostrar histórias aparentemente banais e desinteressantes, passadas num lugarejo obscuro, longe do gosto contemporâneo pelo elogio futurista da cidade (*) numa estética vanguardista extremamente melancólica e misteriosa. O maior elogio que lhe faço é o modo como material banal é tratado filmicamente de modo a criar um interesse constante. Não há praticamente plano nenhum de Limite que não seja belo e envolvente.

*Outro filme significativo da vanguarda brasileira da altura é São Paulo, Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, um decalque local do filme de Ruttmann sobre Berlim.

24 Mai 2016

Acontecimentos de 4 de Fevereiro

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]m Londres encontrava-se o escocês William Jardine, para conseguiu do governo britânico o auxílio militar aos grupos de comerciantes ligados ao negócio do ópio na China.
Já no Celestial Império, a 23 de Janeiro de 1840, os súbditos britânicos obrigaram os portugueses a ter de os aceitar em Macau para aí residirem e armazenarem as mercadorias e como convidados, aí deixaram as suas famílias, enquanto continuavam nos seus actos de pirataria na embocadura do Zhijiang. Nessa constante provocação ao poder chinês, segundo Alfredo Gomes Dias refere, “Os acontecimentos de 4 de Fevereiro, provocados pela entrada no porto de Macau da corveta Hyacinth, sob as ordens do capitão inglês Smith, constituem um exemplo da prática política britânica dominante naquela região e naquele tempo e permitem fazer uma primeira aproximação às posições da diplomacia do Estabelecimento ao longo do conflito sino-britânico”.
“À falta de expressas e adequadas instruções do Governo de Lisboa, o Governo de Macau viu-se obrigado a manter contactos com as autoridades locais de Cantão, num esforço de ganhar tempo junto dos ingleses. A Inglaterra, nada satisfeita com esta atitude do Governo de Macau, chegou a acusar os portugueses de hostilidade para com o seu aliado. A recusa de autorização de ancoragem do navio inglês Hyacinth, que já entrara no Rio em 4 de Fevereiro de 1840, levou Londres a protestar energicamente junto de Lisboa, o que colocou o Governo Português em maus lençóis.” E continuando com Wu Zhiliang, “As autoridades de Macau, pobres em recursos, não tinham a coragem de exceder muito na sua atitude para com os ingleses para evitar qualquer possível vingança britânica, o que os levou a não pensar na possibilidade de expulsar os ingleses que ainda se encontravam em Macau. Face a esta situação, o Comissário Imperial Lin Zexu mandou suspender o comércio com Macau deixando a população macaense numa enorme perturbação”. Comércio que só foi restabelecido a 9 de Março, após as autoridades portuguesas, em observância da ordem do Comissário Imperial, terem ordenado aos ingleses que saíssem de Macau e logo no mês seguinte chegaram duzentos efectivos chineses, que aqui ficaram aquartelados. Ideias e citações retiradas do livro Segredos da Sobrevivência – História Política de Macau escrito por Wu Zhiliang e onde se refere: “Durante este tempo, Charles Elliot amadurecia a sua ideia de ocupar Macau, e cada vez com mais pormenores. Acabou mesmo por apresentar, em 9 de Abril, o referido projecto de ocupação militar. Devido às drásticas mudanças da situação, as forças inglesas avançaram para Norte e sitiaram-se na Cidade de Cantão. Deste modo, o foco do conflito sino-britânico deslocou-se de Macau, mas nem por isso os portugueses podiam estar mais tranquilos. Em 23 de Junho, Charles Elliot escreveu uma carta ao Governador de Macau”, onde expõe as condições em que Macau fica posicionada, amparada pelos ingleses e sobre o seu domínio.
Sendo Macau uma Cidade de Guarnição, sem consentimento do Governador e do Leal Senado não era possível aos ingleses desembarcar aí tropas, pois tal procedimento era contrário a todos os tratados e estipulações entre Inglaterra e Portugal e violava os direitos de uma nação independente. Mas como remata Wu Zhiliang, os ingleses estavam em vias de perder o interesse por Macau.

Correspondência trocada no dia

A 4 de Fevereiro de 1840, os ingleses forçaram a entrada do porto de Macau, sem dar conhecimento ao Governador Acácio da Silveira Pinto (1837-1843), após Elliot receber uma resposta negativa à pretensão de ter uma guarda para proteger a sua pessoa e bens britânicos. E aqui seguiremos com o que refere Alfredo Gomes ao citar, as cartas trocadas no dia 4 de Fevereiro, assim como passagens do Ofício n. 123 de 3 de Abril de 1840, do Governador Adrião Acácio da Silveira Pinto para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. É deste documento, retalhando-o e entrosando com as cartas inglesas, que temos o relato dos acontecimentos desse dia 4 pela visão do Governador de Macau. ; (…) (…)
Segundo escreve Alfredo Dias, “No primeiro ofício que o comandante dos navios britânicos na China, capitão H. Smith, enviou a Silveira Pinto são adiantados os motivos que levaram as forças inglesas a tal acção. Centravam-se na defesa de pessoas e bens britânicos presentes na Cidade ameaçados todos os dias pelos editais chineses. Tudo isto em nome da neutralidade que Macau desejava salvaguardar: “.
Nesse dia o Governador de Macau encontrava-se adoentado,

Assegurar a neutralidade de Macau

Assim o Protesto, “feito e expedido em Sessão do Leal Senado do Santo Nome de Deus de Macau, sob selo do mesmo, aos 4 de Fevereiro de 1840” diz, ; (…) .
“Perante esta reacção violenta do governador de Macau, o comandante H. Smith muda de tom e, no seu segundo ofício, começou logo por chamar a atenção de Silveira Pinto para os incómodos que os ingleses têm sofrido: <... e peço licença para perguntar a V. Exa. se estais inclinado para dar protecção aos Súbditos de S. Majestade Britânica, agora residentes sob a Bandeira de Portugal, ou se vos permitireis que eles sejam incomodados de modo como o têm sido nestes últimos meses>“. E continuando com Alfredo Dias, que refere “a agressividade de uma pergunta que tinha por fim chamar a atenção da autoridade máxima da Cidade para com os seus deveres” e a resposta, num discurso mais firme e incisivo, enviada pelo governador A. A. da Silveira Pinto a este segundo ofício do capitão inglês. “Salientou os dissabores que a Cidade tem sofrido devido à presença inglesa, acabando por concluir que os súbditos britânicos eram livres de partir caso não se sentissem seguros sob a protecção portuguesa”.

Lin Zexu nomeado Vice-Rei

“Mas a correspondência trocada entre as autoridades administrativas de Macau e o comandante naval britânico naquele dia 4 de Fevereiro não ficou por aqui. Um terceiro ofício, agora mais calmo e conciliador foi enviado a Silveira Pinto, onde se questionava o vigor das autoridades de Macau perante o poder imperial chinês e, simultaneamente, anunciava a retirada da corveta do porto, colocando-se às ordens do governador caso este julgasse o seu auxílio necessário”, como refere Alfredo Dias.
Assim o Governador de Macau, trabalhando em colaboração com o Leal Senado, a 4 de Fevereiro de 1840 conseguiu manter a neutralidade da Cidade no conflito sino-britânico. “Finalmente, o governador responde ao capitão H. Smith anunciando a retirada das forças chinesas que se encontravam junto ao Pagode da Barra, prova de que o governo de Macau soube levar à prática a sua política de neutralidade” e no dia seguinte (passado vinte e quatro horas) “verificou-se a retirada da corveta Hyacinth tal como o comandante inglês tinha prometido”, Alfredo Dias. E com ele continuando, a 20 de Março abre o porto de Macau, por Edital chinês.
Ainda no Ofício de 3 de Abril de 1840, do Governador Silveira Pinto para o Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, encontram-se outras informações relevantes como,

20 Mai 2016

Como um mantra

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap] contudo. Gosto de começar no pressuposto de todas as outras vertentes, encostas e desfiladeiros por onde resvalo ao longo dos dias sem forma de me suster na queda. De todas as borrascas. As pessoas. De todos os sustos em cada trovão inesperado, de todas as aragens bruscas e entrópicas que desnorteiam. Outras vezes tão mais subtis. Uma estranha sensação. Olho em volta e tudo igual a umas horas atrás. A mesma luz, quase. O mesmo abatimento de domingo. Ou de outro dia qualquer. Os mesmos ruídos esparsos, de dia de descanso para muitos. Ou das rotinas do bairro. E, no entanto, é como se a terra se tivesse movido num eixo diferente. Uma paragem brusca. Uma alteração nítida no polo magnético. E tudo diferente, a seguir. Talvez por isso a meteorologia diz nestes dias coisas estranhas. Para estes dias. Algo se deslocou no universo. As cores mudam de saturação e violência, a alegria e vivacidade ou vice-versa. Palavras. Sem transição.

Dizer, e no entanto. O que significa que também, por outro lado e convivendo com outros estados de alma, às vezes, aquela sensação de euforia. Não que invoque um estado histriónico. Não é esse terreno de desconforto. É um frémito de bem- estar que vem de repente ou em virtude de um olhar particular. Sem plurais retóricos, ou majestáticos ou de modéstia, a induzir cumplicidades ou universalidades e a aliviar convicções pessoais. Privadas. No limite do que pode ser privado. Sinto. Uma branda, nítida e secreta sensação de estar bem. Como um oásis.
As diferentes formas do tédio como as definiu Heidegger, nomeadamente o tédio profundo sem causa determinada e que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa de ausência de sentido, uma indeterminação ou indiferença, sim, o tédio. Muitas vezes senti algumas formas desse sem sentido, sem energia e sem alma. Esse estado presente em si, ilustrativo dos “caminhos que não levam a parte alguma”. De que basta percorrer o caminho inverso ao tempo para chegar a um início e só por si ser sentido. Ou, de volta a qualquer estação da vida, o estar, o simples estar ou ser, tão bem sintetizados num mesmo verbo na língua inglesa.

Mas agora raro, o tédio. Mais raro. Naquele momento lá atrás, nasci. Em todos os outros momentos, também. Usa-se de facto inúmeras vezes essa metáfora e muitas outras de vida e morte. Nomeadamente no amor. Tantas mortes anunciadas e ninguém deixa de estar cá para as anunciar e repetir. Como cartas de suicídio falhado. Ou arrependido. Ou pior ainda, de homicídio. Literário. Menos vezes, passional. Mata-se e morre-se, aparentemente com a facilidade de um jogo infantil. Em que alguns meninos “eram mortos” mas não morriam… insurgindo-se face às regras do jogo. Não se morre facilmente por amor. O que é pena. Morre-se por acaso, como num dos paradigmas das grandes histórias de amor, “Romeu e Julieta”. Quanto muito vem a vontade como uma camada que tudo parece encobrir, ou aquela enorme indiferença pela morte. Às vezes.

O tamanho que me falta não é o muito que não tenho. Não é o muito que não sei. É o que não sinto. Como senti-lo se não o sei, ou sabê-lo se não o tacteio em mim. Melhor dizendo, o que não sei, posso por vezes imaginar e o que não sinto, também. Por empatia ou projecção. Mas sentir mesmo é outra coisa. O tamanho que me falta, vislumbro-o às vezes na possibilidade. O tamanho que não sinto, sei-o, de outras vezes no relance de um olhar. Mas de novo se evola como um fumo discreto de que duvido a fugacidade da existência. Duvido do olhar porque muito o turva. Duvido do saber porque se recobre de velaturas parciais, de que só o todo da sobreposição revela a imagem. Quase opaca por vezes. E no entanto feita de cobertura de muitas tintas finas, delicadas e frágeis de incompletude. É esse saber-me nos outros de que duvido sempre quando não sinto. Um tamanho que me falta.

Ainda a propósito de pequenos pensamentos. Aqueles ínfimos, à escala das preocupações globais que muitas vezes são também o mar de preocupações em que não se consegue nem quer deixar de nadar, aquelas ditadas pelas inúmeras empatias que se sentem pelos outros pelo bem-estar dos outros, pelo futuro dos que queremos bem de perto ou de longe, e dos outros que queremos bem só porque são pessoas em sofrimento, e o futuro das coisas que prezamos e admiramos e da história que é a memória que nos estrutura também. Para além da pequenez desses pequenos pensamentos, que não se comparam em importância a tantos outros, é o amor que dá, na sua omnipresença, uma enorme forma de motivação e sofrimento. Não fosse a alma ser de uma plasticidade enorme que a tantas coisas dá espaço e ainda mais que fossem, e o coração, onde cabe tanto sem tirar o lugar a nada, e a razão, que sobre tanta coisa se debruça, e diria que é o amor que nos toma de súbito ou lentamente e de mansinho, nos ataca à traição quando menos se espera por vezes, e domina. E domina sempre. E é também, ou talvez por essa obsessão, fonte de um enorme pudor. De falar de admitir a relevância na vida, a importância abismal. Como se não fosse um dos grandes temas da humanidade e aquele em que se revela um todo. Mesmo se virado só para o interior. As pessoas amam por razões tão diferentes. De maneiras diferentes, também. Talvez.

Que sei eu sobre o amor que não é o que sinto? Não amar por carência, não amar por necessidade de salvação, não amar por solidão e desamparo. Por dependência. Por vazio existencial. Mesmo que tudo isso possa coexistir. Mas depois penso que, a necessidade do amor, o gosto específico de amar ocupa um lugar único que não é preenchível por qualquer outra paixão. Não é em mim. Por isso preciso de amar. Quando amo. Sinto que quero e me faria falta havendo o não amar. É uma expectativa que se cumpre em si. Em mim. Sobretudo. Não me parece pouco. Uma sorte estranha e solitária quando o é e mesmo assim, querida. Reservada dos desapontamentos de outras expectativas. Não. A memória não é o lugar melhor do amor.

Mas começa aí a história. Pequeninos, íamos sozinhos de comboio até Lisboa, a uma loja de filatelia na rua 1º de Dezembro. Aos sábados de manhã. Ver os selos. Às vezes comprar, mas mais ver. Coleccionávamos selos, mas com carimbo. Que tinham um encanto maior por terem percorrido a distância entre uma terra por vezes distante e outra, e nós. O fascínio da lonjura ali centrada num rectângulo picotado e tão pequeno. Que depois trocávamos entre nós em casa. Numa dessas viagens, a minha primeira paixão. Um homem jovem sentado na minha frente com a roupa da marinha. Não de oficial. A roupa comum de marinheiro. Branca. Nunca gostei de fardas, não lhes entendo o encanto. Uniformes, palavra e conceito horrível. Mas as roupas da marinha são outra coisa. Brancas. Ou azuis. O mar e a viagem no meio do nada. Sempre me suscitaram alguma nostalgia. Mas só se fosse de vidas passadas. Não era bonito. Nem feio. Ele. Nem agradável e nem tão pouco desagradável. Tinha uma postura firme. Uma atitude dos ombros, do queixo. Mas tinha nos olhos um brilho de lágrimas que não rolavam. Um brilho subtil de lágrimas. Os olhos que cruzaram os meus, miúda. Talvez na lembrança de uma criança longe. De um amor desfeito. De uma partida inevitável. Acho que me apaixonei. Por aquele olhar húmido de melancolia. Talvez reencontrado bem mais tarde em Corto Maltese, sem o marejado das lágrimas e com um cépticismo já tocado de um romantismo vago. Da inevitabilidade da viagem. Apaixonei-me. Talvez para sempre por homens que chorem por amor. Que consigam chorar por amor. Ou a quem, mesmo só, os olhos se marejem de um brilho que não seca facilmente quando assaltados por um desgosto ou uma recordação. Foi a minha primeira paixão e durou o tempo de uma viagem curta no comboio de Lisboa-Sintra. Mas ficou-me na memória até hoje. Antes, ou depois, já não sei, o meu primeiro amor. Éramos seis. O meu irmão, o meu amigo de infância, os três primos dele. Um mais pequeno, o outro antipático e o terceiro, o do meio, o meu amor. Rosado de apelido e tez. Pupilos do exército na ausência dos pais, no ultramar. Vicissitudes da guerra. Mas aqueles uniformes eram registo de uma certa prisão. E a memória daquela mão que se me estendia nos caminhos mais rudes e a pique, naqueles fins- de- semana a perder de vista e tão desejados. Talvez por isso até hoje e mesmo metaforicamente pensando, o estender de uma mão, a sensação boa de uma mão, me é tão querida. Sem idade. Construções.

E antes de tudo o meu pai. Paradigma de algum modo edificado para sempre, que Freud explicaria e nem quero saber. Antes de tudo o meu pai, aquela longa e difícil aprendizagem do amor, àquele testemunho de imperfeição, mesclada de alegria infantil e negrume. De paixão pelas coisas pequeninas e das grandes fúrias secretas e irracionais. Sempre presente e distante. Pequeno mas poderoso. Ao ponto de ter deixado quando partiu, um enorme buraco, recortado com o seu contorno, no sofá do costume, em frente à televisão. Que levou tanto tempo a reabsorver a ausência e voltar à forma inicial. Há uma memória impressa nas coisas. Plástica, mutante. Dois palmos à frente, no chão de madeira corrida, gravado o som do baque seco da queda. Que o levou do coração. Ele tinha que ir por aí.

Tantas coisas. Que senti e sinto. Nem o corpo nem a alma – a razão – me são solitários. Só o coração. Mas não do lado do sentir. O lado de cá. Para além da inultrapassável solidão do corpo, da alma e do coração nas suas reservas mais irredutíveis. E difíceis de habitar. Pelo outro. Aqui, como antes, o imensurável abismo entre o real do dizer, na sua realidade, o real do sentir, na sua reconhecível e palpável realidade, e a enorme ambivalência e imperfeição de ambos. Tenho sorte no acaso daqueles que a vida me trouxe aos dias de hoje. Um vidro tripartido em que me encontro reflectida. Mas também aí não vejo a arrogância do mérito. Talvez alguma da inevitável identidade. Há um território, o que sinto. Como uma espécie de enorme privilégio. Diria uma bênção se houvesse um pouco mais de religiosidade ao meu alcance. E por isso aquela sensação que me chega de vez em quando. Quando sei que é melhor não esperar nada. O que tenho.

Tenho sorte, tenho sorte, tenho sorte. Repito. Às vezes surpreendida. Principalmente nos dias de sol e em algumas noites de lua, como a de há três dias, estrelada, inesperadamente cálida e de estrelas cadentes. Tenho sorte. Repito. Como um mantra.

20 Mai 2016

Encontro em Samarra

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]onhecemos sem dúvida a velha fábula que é portadora deste título, bem como o aforismo de Balzac: ” A morte é certa. Esqueçamo-la.” A fábula é simples: um criado que tem um encontro com a morte num mercado e vendo-a fazer um gesto, aterrado, foge no cavalo de seu amo para Samarra, ao que o amo pergunta porque tinha feito ao seu criado um gesto ameaçador, ao que ela responde: “Não foi de ameaça, foi de surpresa por ele ainda estar em Bagdad, visto que temos um encontro esta noite em Samarra”. Ficamos a saber da rigorosa precisão desse encontro e de que não vale a pena fugir-lhe dado que parece estar inscrito mesmo quando não suspeitamos de nada. É um local com portas já que existe a ideia de passar o mural, uma condição seguida de triunfo; «O Triunfo da Morte», Petrarca.
Pessoalmente gosto de a designar de «Grande Implosão» por oposição directa à explosão da Vida, que é de uma extrema plasticidade, suprema faculdade de arranque, pioneira em todas as associações de preenchimento automático numa ânsia de nada deixar vazio. Pensamos, sim, pensamos na morte, na morte mistério, na morte sem mistério, em desligar, no assombro… na causa… e no tecido desconhecido da grande implosão, dado que não temos uma só lembrança de nós mortos. Mas estamos talhados para ela como um íman gigante e bem-dizemos a existência de tal encontro, pois que faríamos no preenchimento de uma expansão sem fim?!
Deixando de existir não entramos mais nessa condição e a diluição, seguida da transformação dos elementos, é um retorno à memória sagrada da Terra. Conseguimos ver para dentro quando o tempo de crescer parou, quando e depois de nada em nós mais expandir… esse caminho que começa estranhamente quieto e prossegue uma doce viagem de reconhecimento do todo e nos obriga a colher os melhores frutos… a não deixar fugir a “coisa exacta” e a permanecer tranquilos. Somos agora a melhor ficção científica de nós mesmos, um teletransporte em movimento saídos daqui para lugares descarnados, ser em outro lugar transfigurado, ter este lastro horizontal do outro em comprimento, uma mescla heteronímica daqueles vários que depois de mortos nos sucedem… do lado de lá do Vitral… aparecendo em outro lugar, se não em forma, na ideia transfigurada do que já anunciáramos ser… um registo que nem nos ocorrera, pois que na voragem de todas as combustões nós fomos permanecendo não se sabe onde e em que modos vários.
Sentimos agora por nós um carinho nunca dantes experienciado, um olhar apaziguador, indulgente, pois que sabemos que ardemos – ardemos, sim – em tanta batalha, tanta paixão, tanto limite, tanta vontade, e nesse desgaste riscámos o vento e reconhecemos todas as cicatrizes. O limite da voragem até ao grande encontro! Resistimos a tudo, fomos duros a testar.
Agora que o grande retorno nos resgata olhamos de fora para dentro este motor sadio que a fúria ainda não desfez e nos monitoriza, este corpo em transformação… há uma grave luz intensa que está correndo. O corpo! Ele sabe de tudo, pois é ele que nos informa dos factos muito antes da consciência, ele é tão fantástico que mesmo abandonado a favor da mente é ele afinal, que em nós nunca nos mente. Mediúnico, informa-nos, resistente, ele sofre, desamado, ele entristece; esquartejamos algumas partes, utilizamos outras( outros em excesso) temos altares de “vísceras” mas ele só sossega se aquela “mão” tiver a força do amor.
O amor cura, o amor é um tratamento celular do mais fino processo. Já andámos tanto, este caminho é tão longo, devíamos quando comemos carne, fazer uma oração, uma bênção de saber consubstanciar. Não reparar nisso torna-nos obscuros, medonhos de morte comida. A nossa psique não se dá conta tão irrigada anda em diques de absurdo, a nossa razão também não, pois que está assente na soberba, e as coisas que não experienciámos podem vir nesta fase como a mão de Deus, ajudando a ver o que não está desvendado.
São processos simples, tão simples que arrepiam, reparamos nos ilustres desconhecidos que ora somos, perdoamo-nos tal qual já conseguimos perdoar a quem nos tem ofendido, e com todas estas benesses ainda somos visitados de conhecimento puro. Faz-se tarde para repetir e cedo para desistir, pois que no tempo curto dos maduros vinhos estamos vivendo para além das órbitas dos nossos olhos, que já cegaram, imponderados, magoados, fronteiriços… nós, que vamos para Casa, um lar que ainda não lembramos . Também aqui, e por que o corpo é outra fonte e a voz que tem nos faz cantar, lembro o belo poema de Kávafis:

Lembra, corpo, não só o quanto foste amado,
Não só os leitos onde repousaste.
Mas também os desejos que brilharam
Por ti em outros olhos, claramente.
E que tornaram a voz trémula.
Agora que isso se perdeu no passado
É quase como a tais desejos te entregaras -e como brilhavam.
Lembra, nos olhos que te olhavam.
E como por ti na voz tremiam, lembra, corpo.

O corpo encerra um sopro, sim, uma pura matéria alvíssima e animada, e quando implode os seus farrapos não se esquecem dele, pois que são parte em outros processos, e a Terra é um vale de fundas memórias quando outra coisa formos na matéria do tempo.
Nas sociedades primitivas todos os anos o velho rei era simbolicamente morto para assegurar a fertilidade das novas colheitas, daí a frase: O rei está morto, viva o rei. Compete pois ao homem celebrar as folhas que caem antes do desvanecimento transitório.

19 Mai 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 13. O estripador

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u não sou nada. Nada. Sinto-me como alguém lançado ao mar. À noite. Flutuando sozinho. Estendo a mão, mas não existe ninguém. Ninguém. Grito. Mas ninguém responde. Não encontro qualquer nexo em mim. Não me sinto em mim. Lembro-me que houve um momento em que tive uma família. Um momento, no qual, existia uma esperança, existia um carinho, existia um porto. Segredos. Como segurar um segredo? Não tenho forças. Como segurar um segredo? Enquanto isso, nesta cidade à beira-rio, a minha memória passa por altos e baixos. Sinto um arrepio. Hoje tudo parece repetido. Constantemente. Tudo se deteriora a cada dia. A memória. A verdade. Tudo se perde. O conhecimento. Tudo é monótono. Tudo é um pouco mais silencioso do que antes. Não sei quando tudo começou. Tudo é um névoa. Sei apenas que só me sinto bem nesta caça. À procura dela. Eu sei que ela está em algum lugar. Eu sei que devo ser obstinado e continuar a procurá-la. Esta foto dela que me serve de amuleto. Um qualquer encantamento. Estou cansado de viver em ódio e ressentimento. Estou cansado de viver incapaz de amar alguém. Não tenho um único amigo. Nem um. E, pior de tudo, não me posso amar. Porque é que não me posso amar? Porque é que não posso amar ninguém? Uma pessoa aprende a amar-se a si própria quando se ama e se é amado por alguém. Uma pessoa que é incapaz de amar outro não se pode amar a si mesmo. Não. Não. Não. Todas estas mulheres que me fazem lembrar-me dela. Estas vítimas servem apenas para me acalmar. Fechado em silêncio. Os lábios fechados. Já não há modo de voltar atrás. Uma brisa sopra pela janela. Agita as cortinas desbotadas pelo sol e as pétalas delicadas das flores. O cheiro que vem da colina é hoje mais forte do que nunca. O som suave das minhas agulhas. O som suave das minhas facas. O som do vento nas árvores. O som que se escoa e que se mistura. Os sons todos misturados uns com os outros e com os gritos das cigarras. O sons todos profundamente encharcados em tristeza.

A luz da tarde começou a enfraquecer e mistura-se com toques de noite. A brisa da colina continua a agitar as árvores. Por vezes tudo parece um vácuo. Cruzo-lhe as mãos e olho-lhe para o rosto uma vez mais. Esta mulher não é uma concha vazia. É um ser humano de carne e sangue. O sangue a escorrer que tanto me acalma. E este estar com alma teimosa. Este estar estreito. Estas memórias sombrias. Este sobreviver por entre trancos e barrancos sobre este pedaço de terra à beira-rio. Não tenho escolha senão conviver com este vácuo que lentamente se espalha dentro de mim. Este vácuo e estas memórias em desacordo. O vácuo que tudo engole. Todas as memória engolidas. Ficam apenas os olhos assustados destas mulheres. Fica apenas o sangue destas mulheres que espirra quando aplico as minhas lâminas nos seus corpos. Quando lhes aplico as minhas agulhas. E apenas depois algo se acalma. Fica apenas esta eterna procura. Fica apenas o estrondo distante do rio misturado com a brisa do início da noite a escorregar por entre os ramos das árvores. Fica apenas a consciência do vácuo. E não preciso de médicos especialistas. Porque nada do que me possam dizer ou fazer altera quem me tornei. Os sintomas foram progredindo lentamente. E estas mulheres? Não te preocupes comigo. Tudo o que tens a fazer é morrer. No fundo só quero beber um pouco de amor. Uma última vez. Mas não a encontro. E assim não posso. Não existe mais. Porque não a encontro. 19516P15T1-A

Olho novamente para o telhado desta escondida cabana. A lua brilha. Uma luz que ocupa metade do céu. São agora três e meia da manhã e gostaria de poder ver cores. Mas já não vejo nenhuma cor. Depois de se chegar a uma certa idade, a vida torna-se apenas num processo contínuo de perda. Um constante perder uma coisa atrás da outra. Uma após o outra. As coisas que valorizamos a escaparem-se das nossas mãos da mesma maneira como um pente perde dentes. As pessoas que amamos a desaparecerem uma após a outra. E, uma dor é aliviada ou cancelada por outra dor. Mas a verdade é que ela estrava grávida e eu nunca mais a vi de novo. Mas eu sei que ela está aqui. Tenho que a encontrar. Porque existe um lado trágico no amor? Quando deixei a casa da minha mãe, para não mais voltar, passei o dia seguinte sozinho num quarto de hotel, de manhã até a noite. No dia seguinte voei para Kyoto. E tentei procurá-la. Em vão. E o tempo? Que fez o tempo? Que fez o tempo? Nada. Nada havia a fazer. Desaparecer. Nada mais. E o dia depois? E o dia depois do dia depois? E todos os dias depois do dia depois do dia depois? E o tempo? Que fez o tempo? Que fez o tempo? O último dia cheio de memórias e todos os outros dias sem nada. Nada mais que as mesmas memórias recorrentes. Nada mais. Quando nada mais havia a procurar em Kyoto voltei a esta cidade à beira-rio. Esta cidade tão pequena. Esta cidade que foi íntima um dia. Mas agora, que fez o tempo? Aquelas memórias de uma nuvem de ouro pálido, translúcida, por cima das colinas. Aquelas memórias em cor ténue, fria, e foi à noite, e foi à noite. E o tempo? Que fez tempo?

19 Mai 2016

A utilidade da morte

Saramago, José, As Intermitências da Morte, Caminho, Lisboa, 2005.
Descritores: Morte, Sentido da Vida, Igreja, Estado, Ordem, 214 páginas, ISBN: 972-21-1738-6.

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]osé Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Esta obra evolui através de três tempos bem demarcados.
— Num primeiro instante a surpreendente constatação de que ninguém morre.
Este fenómeno, a todos os títulos incrível e inesperado provoca uma série de elocubrações intelectuais bastante interessantes e bem logradas por parte do autor. Trata-se enfim de explorar as consequências imprevisíveis de um acontecimento provocatório. Qualquer pessoa pode pensar, eu pelo menos já pensei, nos termos de como seria a existência se a morte não existisse. Todos podemos compreender que é a temporalidade e a finitude que conferem à vida o seu carácter de urgência e a sua importância radical. Tudo, as carreiras, as preocupações com a saúde, tão em voga hoje em dia, as ambições, o amor, tudo mesmo, se relativiza e perde a sua dimensão de necessidade, transformando-se em desejo muito vago se a morte não existisse e se portanto a vida fosse eterna. A vertigem existencial só existe porque a vida é breve, porque o tempo passa, porque o fim espreita. Em boa verdade a grandeza dos projectos, a própria ideia de projecto, a beleza, o sublime esvair-se-iam e tudo se tornaria redundante. 19516P14T1
O autor não deixa de explorar o tema, desta forma: Sendo a vida eterna, um dos desejos mais constantes e antigos da humanidade, o da vida eterna, porque é que afinal o seu desaparecimento pode ser tão conflituoso e provocar tanto desassossego. Porque como já salientei o grande sentido da vida reside na sua brevidade e a condição ontológica mais estável esteja afinal na finitude.
Contudo, ainda que José Saramago, aflore também, este tipo de explorações do tema, centra mais o seu texto, nas questões ideológicas de vária ordem, relacionadas com outro tipo de assuntos, estou a pensar nas preocupações dos políticos e dos dignitários da Igreja, por exemplo. E centra também a narrativa nas questões práticas e processuais inerentes ao tema, ou seja nas instituições que seriam afectadas com o fim da morte: As companhias de seguros, os agentes funerários, os asilos, os hospitais, por motivos, mais ou menos óbvios. Mas sobretudo, convenhamos, as religiões. O que seria das igrejas, seja de que credo forem, sem a presença benigna da morte. Como salienta Saramago:

“(…) a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido”.
— Depois, numa segunda parte, mais à frente, a morte anuncia o seu regresso, mas agora com novas regras:
“a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (…) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (…) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
Durante 50 páginas o autor diverte-se a explorar este novo sistema e as suas implicações controversas. Mas em boa verdade escapa-lhe de novo a ideia nuclear e que consiste no facto de que a morte só vale pelo seu carácter inesperado. O sentido existencial, na sua precariedade constitutiva não aceita nenhum tipo de previsões empíricas. A componente trágica da vida exige que ela conviva (paredes meias) com uma ideia difusa de eternidade. Todos somos apanhados de surpresa, independentemente de todas as variáveis prudenciais e de lucidez relativa. A vida é uma aventura carregada de perigos, mas que é vivida como se cada momento fosse eterno, apesar da consciência lúcida da finitude. É de um paradoxo que se trata e não adianta exacerbar as certezas ontológicas. Sabe-se da certeza da morte, mas a vida possui esse poder avassalador de a adiar sempre até ao derradeiro instante.

— Depois finalmente a terceira parte:
Para muitos leitores e críticos a terceira parte do romance, a partir do capítulo 10, chamemos-lhe assim, constitui o momento mais alto do texto, o momento da personificação da morte, que é aliás a personagem maior desta ficção. Compreende-se que o autor a queira personificar, isto é, humanizar. Ela é no fim de contas a heroína, até porque diante dela não haverá heróis dignos desse nome.

Uma nota pessoal:
Os livros de José Saramago, nesta fase mais recente, muitos deles posteriores à atribuição do Prémio Nobel, resolveram o que para mim era um dos problemas maiores na obra de José Saramago, o da economia de processos narrativos. Os livros da sua primeira fase, eram invariavelmente livros muitos volumosos, estou a pensar no Memorial do Convento, no Levantados do Chão, na Jangada de Pedra, na História do Cerco de Lisboa, no Ano da Morte de Ricardo Reis, etc. Nesse livros, a par de páginas de génio José Saramago dava por vezes a sensação de obedecer a um formato. Ora, curiosamente a partir de uma certa época, os seus livros tornaram-se mais ágeis e em larga medida mais objectivos, não perdendo porém a sua capacidade de efabulação.

19 Mai 2016

China: Um olhar desassombrado | 1972年

* por Julie O’yang

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hung Kuo, Cina é um filme realizado por Michelangelo Antonioni. Em 1972, o primeiro-ministro Chu En-lai convidou o realizador italiano, conotado com a esquerda, a deslocar-se a Pequim para produzir um documentário que viria a ter uma duração de 217 minutos.
Em declarações posteriores Antonioni afirmou: “Pretendi focar-me nas relações humanas e nos comportamentos, no povo, nas famílias e na vida comunitária. Este objectivo foi a minha linha condutora durante a realização do documentário. É uma observação material e cultural a partir do olhar de um estrangeiro vindo de muito, muito longe.”
Antonioni e a sua equipa filmaram em cinco locais diferentes, Pequim, Lin County, Suzhou, Nanjing e Xangai. Encarados com desconfiança, durante as deslocações foram constantemente vigiados e controlados e foram necessários três dias para discutir o guião com as autoridades chinesas. Por fim, o realizador desistiu do plano inicial de filmar durante seis meses e terminou o projecto em apenas 22 dias.
Contudo, o documentário oferece-nos uma visão clara e detalhada das escolas, das fábricas, dos jardins de infância e dos parques. O rigor dos exercícios matinais, pessoas a correr, mulheres a trabalhar, rostos jovens iluminados por sorrisos confiantes e crianças entregues aos seus cânticos. Descobrimos ainda, no pátio de uma fábrica, um grupo de operários têxteis que após um dia de trabalho árduo em vez de irem para casa ficam para aprender citações de Mao e para discutir a situação política. Antonioni também nos leva a visitar uma sala de cesarianas onde as parturientes são sujeitas a anestesia por acupunctura, com detalhes visuais extraordinários. A câmara dá-nos imagens tão verdadeiras como se dum filme científico se tratasse, pormenorizadas e respeitadoras. O documentário termina com uma exibição de acrobatas ao longo de 20 minutos.
O filme de Antonioni, um diário da vida chinesa, foi posteriormente proibido pelas autoridades por ser considerado uma apresentação injusta do “atraso” nacional. Antonioni contrapôs nunca ter sido sua intenção ser ofensivo. Afinal de contas o realizador italiano não sabia nada sobre a China nem sobre a sua História. Este projecto tinha uma perspectiva puramente etnográfica. Podemos por isso concluir que, para Antonioni, Chung Kuo foi uma forma de compreender a China, de aprender sobre o País e o povo através da sua câmara.
Antonioni: “Fiquei muito desapontado por as autoridades chinesas terem avaliado o meu filme de forma tão ríspida e me terem sujeitado a críticas tão intensas, compararam-me mesmo aos “maus da fita”, como Confúcio e Beethoven!”
Em baixo transcrevo um poema chinês dos anos 70 que ilustra a desilusão chinesa com o simpatizante de esquerda Antonioni:
红小兵,志气高,
要把社会主义祖国建设好。
学马列,批林彪,
从小革命劲头高。
红领巾,胸前飘,
听党指示跟党跑。
气死安东尼奥尼,
五洲四海红旗飘。

Somos jovens Pioneiros Vermelhos com enormes ambições,
Iremos construir a nossa Pátria socialista.
Aprendemos Marxismo e Leninismo e condenamos Lin Biao,
Somos jovens, mas o nosso espírito revolucionário é indomável.
Com os lenços vermelhos ondulando ao peito,
Escutamos as instruções do nosso Partido e seguimos o seu caminho.
Faremos com que Antonioni fique verde de raiva,
Até ao dia em que ele veja bandeiras vermelhas desfraldadas,
por esse mundo fora.

Penso que para nós, que vivemos num mundo assombrado por “glamorosas” selfies, assistir ao realismo fotográfico de Antonioni é de certo modo outra forma de “violência”. O REAL torna-se um mito que fere como uma mentira.
Esse mundo, essa raça, há muito que morreram.
Veja fragmentos em:
bit.ly/1Ou55rr
bit.ly/1TeuIyr

18 Mai 2016