Como um mantra

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap] contudo. Gosto de começar no pressuposto de todas as outras vertentes, encostas e desfiladeiros por onde resvalo ao longo dos dias sem forma de me suster na queda. De todas as borrascas. As pessoas. De todos os sustos em cada trovão inesperado, de todas as aragens bruscas e entrópicas que desnorteiam. Outras vezes tão mais subtis. Uma estranha sensação. Olho em volta e tudo igual a umas horas atrás. A mesma luz, quase. O mesmo abatimento de domingo. Ou de outro dia qualquer. Os mesmos ruídos esparsos, de dia de descanso para muitos. Ou das rotinas do bairro. E, no entanto, é como se a terra se tivesse movido num eixo diferente. Uma paragem brusca. Uma alteração nítida no polo magnético. E tudo diferente, a seguir. Talvez por isso a meteorologia diz nestes dias coisas estranhas. Para estes dias. Algo se deslocou no universo. As cores mudam de saturação e violência, a alegria e vivacidade ou vice-versa. Palavras. Sem transição.

Dizer, e no entanto. O que significa que também, por outro lado e convivendo com outros estados de alma, às vezes, aquela sensação de euforia. Não que invoque um estado histriónico. Não é esse terreno de desconforto. É um frémito de bem- estar que vem de repente ou em virtude de um olhar particular. Sem plurais retóricos, ou majestáticos ou de modéstia, a induzir cumplicidades ou universalidades e a aliviar convicções pessoais. Privadas. No limite do que pode ser privado. Sinto. Uma branda, nítida e secreta sensação de estar bem. Como um oásis.
As diferentes formas do tédio como as definiu Heidegger, nomeadamente o tédio profundo sem causa determinada e que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa de ausência de sentido, uma indeterminação ou indiferença, sim, o tédio. Muitas vezes senti algumas formas desse sem sentido, sem energia e sem alma. Esse estado presente em si, ilustrativo dos “caminhos que não levam a parte alguma”. De que basta percorrer o caminho inverso ao tempo para chegar a um início e só por si ser sentido. Ou, de volta a qualquer estação da vida, o estar, o simples estar ou ser, tão bem sintetizados num mesmo verbo na língua inglesa.

Mas agora raro, o tédio. Mais raro. Naquele momento lá atrás, nasci. Em todos os outros momentos, também. Usa-se de facto inúmeras vezes essa metáfora e muitas outras de vida e morte. Nomeadamente no amor. Tantas mortes anunciadas e ninguém deixa de estar cá para as anunciar e repetir. Como cartas de suicídio falhado. Ou arrependido. Ou pior ainda, de homicídio. Literário. Menos vezes, passional. Mata-se e morre-se, aparentemente com a facilidade de um jogo infantil. Em que alguns meninos “eram mortos” mas não morriam… insurgindo-se face às regras do jogo. Não se morre facilmente por amor. O que é pena. Morre-se por acaso, como num dos paradigmas das grandes histórias de amor, “Romeu e Julieta”. Quanto muito vem a vontade como uma camada que tudo parece encobrir, ou aquela enorme indiferença pela morte. Às vezes.

O tamanho que me falta não é o muito que não tenho. Não é o muito que não sei. É o que não sinto. Como senti-lo se não o sei, ou sabê-lo se não o tacteio em mim. Melhor dizendo, o que não sei, posso por vezes imaginar e o que não sinto, também. Por empatia ou projecção. Mas sentir mesmo é outra coisa. O tamanho que me falta, vislumbro-o às vezes na possibilidade. O tamanho que não sinto, sei-o, de outras vezes no relance de um olhar. Mas de novo se evola como um fumo discreto de que duvido a fugacidade da existência. Duvido do olhar porque muito o turva. Duvido do saber porque se recobre de velaturas parciais, de que só o todo da sobreposição revela a imagem. Quase opaca por vezes. E no entanto feita de cobertura de muitas tintas finas, delicadas e frágeis de incompletude. É esse saber-me nos outros de que duvido sempre quando não sinto. Um tamanho que me falta.

Ainda a propósito de pequenos pensamentos. Aqueles ínfimos, à escala das preocupações globais que muitas vezes são também o mar de preocupações em que não se consegue nem quer deixar de nadar, aquelas ditadas pelas inúmeras empatias que se sentem pelos outros pelo bem-estar dos outros, pelo futuro dos que queremos bem de perto ou de longe, e dos outros que queremos bem só porque são pessoas em sofrimento, e o futuro das coisas que prezamos e admiramos e da história que é a memória que nos estrutura também. Para além da pequenez desses pequenos pensamentos, que não se comparam em importância a tantos outros, é o amor que dá, na sua omnipresença, uma enorme forma de motivação e sofrimento. Não fosse a alma ser de uma plasticidade enorme que a tantas coisas dá espaço e ainda mais que fossem, e o coração, onde cabe tanto sem tirar o lugar a nada, e a razão, que sobre tanta coisa se debruça, e diria que é o amor que nos toma de súbito ou lentamente e de mansinho, nos ataca à traição quando menos se espera por vezes, e domina. E domina sempre. E é também, ou talvez por essa obsessão, fonte de um enorme pudor. De falar de admitir a relevância na vida, a importância abismal. Como se não fosse um dos grandes temas da humanidade e aquele em que se revela um todo. Mesmo se virado só para o interior. As pessoas amam por razões tão diferentes. De maneiras diferentes, também. Talvez.

Que sei eu sobre o amor que não é o que sinto? Não amar por carência, não amar por necessidade de salvação, não amar por solidão e desamparo. Por dependência. Por vazio existencial. Mesmo que tudo isso possa coexistir. Mas depois penso que, a necessidade do amor, o gosto específico de amar ocupa um lugar único que não é preenchível por qualquer outra paixão. Não é em mim. Por isso preciso de amar. Quando amo. Sinto que quero e me faria falta havendo o não amar. É uma expectativa que se cumpre em si. Em mim. Sobretudo. Não me parece pouco. Uma sorte estranha e solitária quando o é e mesmo assim, querida. Reservada dos desapontamentos de outras expectativas. Não. A memória não é o lugar melhor do amor.

Mas começa aí a história. Pequeninos, íamos sozinhos de comboio até Lisboa, a uma loja de filatelia na rua 1º de Dezembro. Aos sábados de manhã. Ver os selos. Às vezes comprar, mas mais ver. Coleccionávamos selos, mas com carimbo. Que tinham um encanto maior por terem percorrido a distância entre uma terra por vezes distante e outra, e nós. O fascínio da lonjura ali centrada num rectângulo picotado e tão pequeno. Que depois trocávamos entre nós em casa. Numa dessas viagens, a minha primeira paixão. Um homem jovem sentado na minha frente com a roupa da marinha. Não de oficial. A roupa comum de marinheiro. Branca. Nunca gostei de fardas, não lhes entendo o encanto. Uniformes, palavra e conceito horrível. Mas as roupas da marinha são outra coisa. Brancas. Ou azuis. O mar e a viagem no meio do nada. Sempre me suscitaram alguma nostalgia. Mas só se fosse de vidas passadas. Não era bonito. Nem feio. Ele. Nem agradável e nem tão pouco desagradável. Tinha uma postura firme. Uma atitude dos ombros, do queixo. Mas tinha nos olhos um brilho de lágrimas que não rolavam. Um brilho subtil de lágrimas. Os olhos que cruzaram os meus, miúda. Talvez na lembrança de uma criança longe. De um amor desfeito. De uma partida inevitável. Acho que me apaixonei. Por aquele olhar húmido de melancolia. Talvez reencontrado bem mais tarde em Corto Maltese, sem o marejado das lágrimas e com um cépticismo já tocado de um romantismo vago. Da inevitabilidade da viagem. Apaixonei-me. Talvez para sempre por homens que chorem por amor. Que consigam chorar por amor. Ou a quem, mesmo só, os olhos se marejem de um brilho que não seca facilmente quando assaltados por um desgosto ou uma recordação. Foi a minha primeira paixão e durou o tempo de uma viagem curta no comboio de Lisboa-Sintra. Mas ficou-me na memória até hoje. Antes, ou depois, já não sei, o meu primeiro amor. Éramos seis. O meu irmão, o meu amigo de infância, os três primos dele. Um mais pequeno, o outro antipático e o terceiro, o do meio, o meu amor. Rosado de apelido e tez. Pupilos do exército na ausência dos pais, no ultramar. Vicissitudes da guerra. Mas aqueles uniformes eram registo de uma certa prisão. E a memória daquela mão que se me estendia nos caminhos mais rudes e a pique, naqueles fins- de- semana a perder de vista e tão desejados. Talvez por isso até hoje e mesmo metaforicamente pensando, o estender de uma mão, a sensação boa de uma mão, me é tão querida. Sem idade. Construções.

E antes de tudo o meu pai. Paradigma de algum modo edificado para sempre, que Freud explicaria e nem quero saber. Antes de tudo o meu pai, aquela longa e difícil aprendizagem do amor, àquele testemunho de imperfeição, mesclada de alegria infantil e negrume. De paixão pelas coisas pequeninas e das grandes fúrias secretas e irracionais. Sempre presente e distante. Pequeno mas poderoso. Ao ponto de ter deixado quando partiu, um enorme buraco, recortado com o seu contorno, no sofá do costume, em frente à televisão. Que levou tanto tempo a reabsorver a ausência e voltar à forma inicial. Há uma memória impressa nas coisas. Plástica, mutante. Dois palmos à frente, no chão de madeira corrida, gravado o som do baque seco da queda. Que o levou do coração. Ele tinha que ir por aí.

Tantas coisas. Que senti e sinto. Nem o corpo nem a alma – a razão – me são solitários. Só o coração. Mas não do lado do sentir. O lado de cá. Para além da inultrapassável solidão do corpo, da alma e do coração nas suas reservas mais irredutíveis. E difíceis de habitar. Pelo outro. Aqui, como antes, o imensurável abismo entre o real do dizer, na sua realidade, o real do sentir, na sua reconhecível e palpável realidade, e a enorme ambivalência e imperfeição de ambos. Tenho sorte no acaso daqueles que a vida me trouxe aos dias de hoje. Um vidro tripartido em que me encontro reflectida. Mas também aí não vejo a arrogância do mérito. Talvez alguma da inevitável identidade. Há um território, o que sinto. Como uma espécie de enorme privilégio. Diria uma bênção se houvesse um pouco mais de religiosidade ao meu alcance. E por isso aquela sensação que me chega de vez em quando. Quando sei que é melhor não esperar nada. O que tenho.

Tenho sorte, tenho sorte, tenho sorte. Repito. Às vezes surpreendida. Principalmente nos dias de sol e em algumas noites de lua, como a de há três dias, estrelada, inesperadamente cálida e de estrelas cadentes. Tenho sorte. Repito. Como um mantra.

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