Pintura | Anabela Canas expõe novas obras em Almada

“É a primeira vez que trabalho a partir da memória de Macau”

Pintora, ex-residente de Macau e habitual colaboradora do HM, Anabela Canas regressa às exposições, desta vez para participar num programa de eventos que celebra Fernão Mendes Pinto, o Oriente e Macau. “Da viagem que achasse, antes que chegasse a ela” vai estar patente, a partir de amanhã, no Centro Cultural Fernão Mendes Pinto, em Almada, Portugal

 

Como descreve estas obras que apresenta nesta mostra? São novos trabalhos ou faz uma retrospectiva do seu percurso artístico?

O conjunto de pinturas que vou expor é novo e feito especialmente para esta programação de eventos que tem como tema “Almada na Rota do Oriente – Macau”. Nunca faço retrospectivas do meu trabalho, pelo menos por agora. A minha mente não me dá descanso e pede sempre um percurso de passos em frente. Cada nova oportunidade alimenta esse meu desejo e serve-me de estímulo. Estes trabalhos foram feitos a partir de um certo conceito de viagem, com ligação às viagens de Fernão Mendes Pinto, de quem tinha precisamente, um pouco antes, adquirido [a obra] Peregrinação. E, também pelas diferenças que há na interpretação da obra, da veracidade ou fantasia com que as narrativas correspondem a uma vivência directa ou de ouvir contar, por parte de Mendes Pinto, foi-me surgindo a ideia de quanto na nossa memória é refeito e deformado pelo tempo, tornando os lugares por onde passamos ou que sonhámos conhecer, pouco objectivos e sintetizados em paradigmas isolados de um contexto. Esta é a primeira vez que trabalho a partir da memória de Macau e das pequenas viagens sem sair do lugar, e de algumas viagens pela China. Por outro lado, sendo este evento dedicado aos poetas de Macau, evocados num poema de Jorge Arrimar, integrei também a pintura: “Deste interior não sai ninguém”, pela feliz coincidência de ter chegado de Macau e posteriormente de Dakar. [Esta] é também uma outra viagem ao interior, do espaço do corpo, da casa e da poesia, dedicado a Camilo Pessanha, e que fiz para a celebração em Macau, dos 150 anos do poeta, numa iniciativa do Carlos Morais José e do jornal Hoje Macau.

Que grandes mensagens ou ideias pretende transmitir a quem vê os seus trabalhos?

Na verdade, não tenho a pretensão de transmitir grandes mensagens, ou grandes ideias. Centro-me muitas vezes em coisas pequeninas, mas que me parecem ter algum grau de empatia com as pequenas coisas que fazem a mundividência de outras pessoas. Sensações que o mundo visível provoca e que nos deixam, mesmo sem um discurso verbal sobre isso, situados num determinado modo de sentir a existência, por exemplo. Porque de fragmentos de tempo, muito circunscritos, no nosso dia, acontece-nos mergulhar numa ilusão de lucidez, da qual se pode extrapolar para uma dimensão filosófica, por exemplo. Por outro lado, gosto de encontrar nas coisas anódinas a vocação para a metáfora. Portanto todo este universo que me interessa, da luz, da permanência do rio, da impermanência, que é um outro lado das coisas, da finitude e do seu contrário, pode ser muito pequenino, ou muito cósmico, que são duas vertentes igualmente abismais para a contemplação.

Nos últimos meses tem-se debruçado sobre a escrita de crónicas, exercício que faz nas páginas do HM, juntamente com ilustrações da sua autoria. Trata-se de um exercício que complementa a sua prática como pintora?

Escrevo as crónicas semanais desde 2015. Nestes anos mais recentes não tenho conseguido manter essa regularidade dos primeiros anos, porque o tempo é sempre menos do que preciso para tudo o que me inunda. Escrevo desde criança e sem objectivos a mais do que a necessidade de diálogo interior, que as palavras, porque económicas e imediatas, sempre me trouxeram. Essa necessidade que também tenho de produzir imagens, e outras coisas como objectos, são parte de um todo, que eu sou, com uma certa dose de compulsão, em que é necessária a produção, e toda ela produz reflexão e mais palavras, e é uma espécie de válvula que é necessária. Ter sempre uma saída para o que me inunda a cabeça. E que é excessivo para ficar retido dentro dela.

Viveu em Macau. Que memórias guarda do seu percurso artístico no território e do panorama das artes na altura?

Vivi 11 anos em Macau e tenho a memória grata das oportunidades que tive, de ir desenvolvendo os primeiros passos no meu ofício, o que se devia a uma escala que permitia, mesmo a uma pessoa um pouco tímida e insegura, como eu era, uma maior proximidade com instituições e pessoas. Das quais este ofício depende para a normal visibilidade. Por outro lado, sempre tive que conciliar a pintura com o ensino e isso nunca foi fácil. Mas o panorama artístico não tinha o dinamismo que tem hoje.

De que forma é que a sua vivência em Macau lhe moldou, ou mudou, a prática da pintura e da criatividade em termos gerais?

Qualquer detalhe ínfimo, sabemos, pode alterar todo o curso de uma existência e nós não o conseguimos muitas vezes determinar. Por outro lado, também não sabemos quem seríamos se não fossemos este produto de tantas pequenas ou grandes escolhas. Macau foi a grande viagem que fiz, não só pela distância e pela diferença, mas também porque foi um relativo corte ao meio na minha existência de jovem adulta. Mudei-me para Macau, fantasiei muito, antes de ir, tal como me deixei impregnar de um paradigma de “oriente”, pela proximidade com a grande China enigmática e antiga. E esse paradigma, das viagens feitas e daquelas em maior quantidade, sem sair da minha janela em Macau, até hoje alimentam os meus devaneios “poéticos”, ao ponto de a eles ter voltado como temas a trabalhar para esta exposição. Por isso, tal como acredito que Macau me mudou e acrescentou, como a qualquer pessoa que tenha o privilégio de ver a vida por um ângulo diferente, também acredito que algumas das ideias estruturantes que passam no meu trabalho, não têm a ver com nenhum lugar em particular.

Programa preenchido

“Almada na Rota do Oriente” tem levado à cidade portuguesa, desde Outubro do ano passado, um conjunto de eventos e actividades que celebram as viagens de Fernão Mendes Pinto contadas na sua “Peregrinação”, onde Macau surge representado. Esta quinta-feira, além da inauguração da exposição de Anabela Canas, irá decorrer também a sessão de leituras “Tributo aos Poetas de Macau: doze (re)cantos do poema”, baseada num poema de Jorge Arrimar, também ele ex-residente em Macau, escritor e poeta. Nesta sessão participam ainda António Fragoso e Joaquim Ng Pereira, declamador de poesia em patuá, docente deste dialecto e responsável pela Oficina de Patuá Macaísta do Centro Científico e Cultural de Macau.

13 Mar 2024

Exposição | Anabela Canas mostra série de desenhos feitos para Macau

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão dois anos de ilustrações de Anabela Canas que têm a sua exibição marcada para a próxima quarta-feira, na Galeria da Livraria Portuguesa. A acompanhar o evento está o lançamento do álbum que acompanha as imagens com pequenos trechos dos textos que escreveu para a secção do HM,  “De tudo e de nada”

“Iluminação Artificial” é a exposição de Anabela Canas que vai ser inaugurada esta quarta-feira na Galeria da Livraria Portuguesa.

A mostra reúne um conjunto de desenhos que ainda estão a ser seleccionados. “É um conjunto impreciso”, afirma a artista, e sai de uma escolha entre os 78 trabalhos que produziu para a rubrica do HM, “De tudo e de nada”.

“Gostaria de os expor todos porque todos fazem sentido, mas há um limite de visibilidade, de elegância e de clareza na galeria que tem de ser respeitado e vou tentar encontrar um limite razoável, sendo que o critério é sempre a escolha dos trabalhos que, considero, mais conseguidos”, conta.

Porém, não se trata de uma exposição de meros desenhos, são antes, ilustrações “por estarem ligados a um texto e terem um fim específico.” “São feitos de propósito e podem acrescentar mais às palavras ou dar origem a outros sentidos”, diz.

Por outro lado, a exposição só poderia acontecer no território. A explicação é simples: “foram feitos para Macau”.

Imagens legendadas

A mostra acompanha o primeiro livro da artista que é, de acordo com Anabela Canas, “um álbum” e não um catálogo da exposição porque tem fragmentos das crónicas. “São excertos muito curtos mas que tinham de existir pela ligação existente e que podem fugir para diferentes sentidos”.

Anabela Canas queria, nesta estreia, um objecto bonito capaz de guardar as imagens pelas quais, diz, “tem um grande carinho”. “Gosto dos meus desenhos e quando estão feitos olho para eles de um ponto de vista exterior, como se não fosse eu, e quando gosto sinto mesmo muito carinho”, contou. Por isso queria que fossem guardados como merecem. “Não queria que ficassem enterrados”.

A escolha de Macau para a estreia das palavras publicadas em livro  representa “um dilema enorme depois de 15 anos de ausência para arrumar bem as nostalgias”. Macau é agora uma segunda terra que faz com que o que está a acontecer “ainda faça mais sentido”.

Iluminação artificial

Um dia, por um daqueles puros e aleatórios acasos, encontrei-me com um aspecto ligado à antiga arte de iluminar, que me encantou. Monges copistas, na sua tarefa de horas perdidas, horas e horas, dias e anos “num trabalho que não tinha pressa de chegar ao fim”, outros, ou os mesmos, a tecer iluminuras preciosas, a ouro ou prata, a negro e a cores, e que de caminho, talvez os primeiros, anotavam nas margens dos manuscritos os seus desabafos nocturnos e humanos. E por temor ao esquecimento, de seres porque sem nome, em que ficariam caídos pelos caminhos longos e infindáveis da posteridade, o costume melancólico de deixar uma impressão condoída no final. Uma assinatura, um desabafo que enaltece a nobreza do trabalho, do esforço, um anseio de que lhes rezasse pela saúde e pela alma, alguém.

Imaginá-los ao lado, em noites húmidas a entrar nos ossos e a sair de um sono mal entrado, tocadas a aragens arrefecidas pelas pedras. Agrestes. A fazer dançar chamas a iluminar o cansaço. A ensombrar. E sempre, quase a apagar uma vela grossa mas consumida e suada em grossas lágrimas de cera como gotas alongadas da luz produzida com esforço. A rodeá-los a escuridão povoada de sombras enormes e inquietas, nas velhas abadias medievais, quando as tarefas insaráveis lhes curvavam as costas em dor e tolhiam os dedos. O desenho de uma escrita trabalhosa, vingada em lamentos nas margens do texto. Desabafos esquecidos ao apagamento, ou deixados porque sim. A distinguir o fim antes da madrugada, ou o início no fim da noite. Porque as horas se alongam e a tarefa não tem fim. Porque a tinta está demasiado fina. Porque já mereciam um copo de vinho espesso a aquecer a alma e ou pés. Invento.

E assim me podia fantasiar, por vezes, com eles e pela noite fora a tentar laboriosamente vencer o tempo e o sono, e iluminar um texto que só a meio se me começava a desvendar, e só então e não mais, e porque noutros momentos o sentia fechar sobre si, ou a desviar sentidos a meio ou à procura de um reforço a apontar para outros lugares do texto entre linhas. Entre as linhas, como nas margens e como eles, que aí colocavam glosas a desvendar um latim longínquo do falado. Entre as linhas ou nas margens se caminhou para o futuro dicionário de sentidos. A ficar pelos tempos no imaginário da língua, a insinuação sobre as palavras ocultas agora, entre as linhas visíveis e o discurso não dito. A ler nas entrelinhas.

E de uma só vez, me surge uma amálgama de três formas objectivas de ocupar aquelas páginas, em que tudo o que menos se esperava seria a da pequena subjectividade de formiga laboriosa a ganhar um espaço clandestino e que ficou esquecido por entre as páginas. Esquecido de apagar ou, perversamente a imiscuir-se na nobreza suposta do manuscrito, a sua pequena significância tornada existente, real e ancorada no texto.

Texto que não era deles mas sim ditado, copiado, como a ficção literária não é do autor mas de uma existência própria alheia. Imiscuída também ela de desabafos nas linhas, nas margens brancas de silêncio, ou nas entrelinhas. E tal como a iluminura fugia ao texto nas suas figurações icónicas, antropomórficas ou zoomórficas, motivos florais ou entrançados…tudo para trazer a luz da folha de ouro e prata e só assim a verdadeira luz sem outros sentidos, às escuras páginas de letras apertadas e negras, a poupar o espaço e a fugir para o cimo da página para se desviarem do terreno chão oposto. Terreno demasiado terreno. Uma luz real a iluminar o texto numa fuga ao sentido. As dores do humano nas margens do saber… Luz real, se real é o reflexo.

E também eu com a luz ao lado mas de sombras quietas na parede. Vigilantes e meio adormecidas, mesmo as mais ferozes. Roubar tempo ao tempo.

Ilustrar. Tornar nobre e iluminar. De ilustris, em latim, o que é claro iluminado. Ou a raiz indo-europeia lux, de onde vem a luz da lucidez, e a dar lugar ao latim, de novo, em luminis, lucubrare, iluminar, elucubrar. Saborosas palavras de luz. Sempre a luz. E, nas iluminuras medievais, uma luz que se ficava pelo brilho denso da folha de ouro, ou da prata, e das cores fortes dos óxidos. Acompanhar o texto ou produzir significados livres. Sem ambições a aprofundar sentidos. Às vezes só o de humor. De revolta. De monge sem outro lugar para desentorpecer a voz.

Nada mais nobre – para quê ilustrar –– ou subtil e ambíguo – como iluminar – do que as palavras. Não mais, nem menos do que uma imagem. Mas há o acrescentar, o tornar ainda mais divergente aquilo que por palavras e só, já o é. Aquilo que numa imagem o é por inerência também. Há, pois um diálogo de titãs entre umas e outras. Em que a cada uma das subjectividades se acrescenta a das outras, desmultiplicando sentidos ou ilusoriamente clarificando. Iluminando. Mas por vezes de uma luz enganosa. Acrescentar uma leitura/luz diferente, ou simplesmente aumentar as camadas de leitura do texto com a imagem. E vice-versa.

E fez-se uma luz artificial, na fuga irreprimível das linhas insubmissas, ao texto. Estas dos desenhos. Talvez falsas iluminações a fingir a incidência de uma luz polarizada a rir dos sentidos únicos e últimos. Em fuga, sempre. Alumiar noutros sentidos é o desafio do desenho a fugir ao texto, a produzir zonas de sombra, às vezes.

O fabuloso desafio do Jornal Hoje Macau, pela voz do seu director Carlos Morais José. Escrever um texto para um dia da semana – faz dois anos. Setenta e oito dias de hoje, sem carta de marear. E o desafio meu. Iluminar todas as semanas as palavras esquivas e, claro, a negro de fumo. Às vezes, depois, as cores a querem chegar. É o que fica neste livro, e pedaços soltos dessa escrita, aqui, já a ilustrar com as suas sombras e sentidos, o desenho. Agora. O sentido contrário. Sem nunca fugir à luz artificial. Do candeeiro ao lado. Já pelo fim da noite ou na frescura da madrugada. Que lança afinal também ela sombras fluidas. Zonas onde a luz não chega. Falsos brilhos e reflexos enganadores. Talvez. Enormes possibilidades e incomensuráveis impossibilidades que se fundam numa mesma incerteza. De desenhar um sentido. Uma certeza, uma luz, uma escuridão. É isso.

Iluminar. Artificialmente.

Anabela Canas

10 Abr 2017

Objecto de si

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma pessoa viaja. Viaja-se ao fim do mundo e de si dia após dia. Um desfiar de ritmos registados no relógio meticulosamente e sem parar. Sem encontrar fim. Viaja-se. Eu viajo. Dia colado a outro dia sem distinção que não a da luz. Uma alternância, no fundo, artificial a uma continuidade de busca. Um número abstrato no calendário dos dias. Uma página morta da agenda. Viajo. Viaja-se no passado. No futuro. No imediatamente agora, no ainda há pouco, e no já mesmo a seguir. Em tempos, em espaços, nomes e rostos. Em projectos e sonhos. Sem parar. À procura talvez de um sinal. Mas chega-se ao fim do dia, e a resposta, a única resposta possível e válida está ali. No espelho da casa de banho, com azulejos brancos e sem padrão, meio escondida nessa espécie de sorriso forçado pela escova e enevoado pela pasta de dentes.

Hoje está uma lua nítida, recortada e fresca, quase uma espécie de sorriso no céu limpo de nuvens. Deitada de costas. Como se com uma placidez lunar, diria, se não fosse a lua ela própria. E sorridente, como disse. Ontem não vi. Anteontem nem me lembrei. A semana passada, já não sei, e a próxima também não. Há dias de noites assim, em que tudo é recortado no assombro liso do céu como se nada duvidasse. Estranho. Se bem que as coisas não contêm em si a dúvida. A dúvida é da matéria orgânica em agitação mental. Onde se esconde este redesenho que subjaz a todo o viaduto dos dias por sobre os dias, como vidas por sobre outras vidas, ou ideias de uma coisa e outra, e volta com a ironia de dizer estava ali sempre. Mas era o refazer do desenho original. O que é modelo ancorado por detrás de um olhar que afere escolhas e fere de materialidade depois aquilo que não era palpável. E um desenho não é. Também não é. Mas a dizer que estava ali sempre. Como essa lua reclinada, plácida, e de rosto limpo e luminoso. Ou em que luminosa foice cortante se desata o escuro de um torno de outras marés. Em que agonia imprecisa se desprende o respirar solto, afinal, como bicho manso a escoicear de alegria. Infantil, afinal. Como guizos límpidos e sem intenção. Ecos de uma montanha para outra. Em que recesso da memória se transcendeu para sempre o andar. Como se já não houvesse que haver fim. Mas só caminho. Só caminho. E a lenta lentidão das pedras a avançar de lá para cá. Serenas e brancas. Lavadas de chuva.

Fascina-me o desenho curvilíneo e sobreposto de viadutos sobre viadutos. Braços múltiplos de um ser estranho percorrido de uma circulação ruidosa. Como em vias de agitar todos aqueles tentáculos. Sempre como se à beira desse movimento. Mas tudo isso visto de longe, de cima, numa imagem captada do alto, sem realidade próxima. E só. Gosto de pontes. Das outras. Coisas de imagem frágil que se aventuram em voo entre margens. Lançadas calmamente num movimento único sobre águas serenas e imparáveis. Às vezes entranhadas de um movimento quase imperceptível. E os carros. Sobre as pontes. A fluir sobre o que já é eternamente fluido nos dois sentidos. Pontes. Como uma asa delicada e solícita poisada no ar, e congelada em todo esse momento. Qualquer momento. E no entanto, serenamente prestáveis ao poder das metáforas. Na arte da engenharia como na arte da guerra. Lançadas. Explodidas.

Depois.

Entro na vida pela mão que tem que ser – a pensar que me apetecia hoje viver fora de mão, mas pelo meio de um campo qualquer – e abro uma escrita lenta e mal acordada a ver que palavras se desprendem desta preguiça de ter que escolher. Entre tantas ainda em pijama e sem vontade de competir por uma verdade qualquer. Olho pela janela que diz que vai ser de sol. Para lá de uma luz ainda pálida a escorregar na parede em frente. Ainda muito cedo para a agilidade de cair a pique. Tímida, ou também ainda na lentidão do sono deixado sem vontade. A pensar porque será ser uma palavra tão curtinha e trabalho aquela em que se tem que saltar três amplas sílabas. Um destino que nem todos os animais têm. Porque uns, ocupam a vida em tarefas cíclicas e sem fim que não daquela. E outros, não. E em nós que tanto ocupa já de si o pensamento, acresce ainda essa espécie de natureza de empréstimo, que traz ocupações delirantemente enfileiradas, dia após noite e assim sucessivamente, coisas estranhas que se alimentam a si próprias. Balcões de finanças, caixas de correio, papéis. Sacos de lixo em testemunho de uma complexidade de que sobra tanto desperdício. Abro todos os dias oitenta vezes o contentor antiquado onde se empilham os cúmulos dos restos. E dos restos dos restos, e fico a espreitar, de olhar fixo, perplexa. Penso então que tanto se explica aí. E andar de transportes públicos. Aqueles mais impessoais que são comboios. Por sítios abstratos e subterrâneos como passagens num tempo fora de órbita. Como o tempo do xadrez em Duchamp. E pensar que não me apetece tropeçar em palavras mas e no entanto e talvez.

E depois.

O problema do ruído. Por todo o lado pode até tudo estar calado e nunca está. O problema do estrondo, é que fere os tímpanos de uma dor que impede de ouvir o sussurro que sobra. A reverberar como uma membrana num orgasmo subtil.

A mim, que raiva, tudo me enternece. Tudo me embevece. Tudo me causa impressão. Chego a casa impressa de sinais que nem todas as águas diluem numa frescura de bem- estar.

Tudo me enternece no universo, quando olho para fora de mim. Tudo me embevece, tudo me intriga, tudo me aborrece. À vez. O mar. Grande e lindo porque me transcende e me transporta. Me remete para a escala ínfima que sou e tudo de caminho, implodido nesse instante de verdade entre escalas e sofrimentos. Mas, por me transcender parece reportar-se a mim como referência que não sou, excepto para mim. E na essência do transcendente está, o ultrapassar desse centralismo incontornável. Mas, transcendendo ou ultrapassando, ou sendo maior, ou submergindo, não encontro as palavras que de um modo diferente se abstraiam de um ser a partir do qual tudo se mede. Mesmo na transição para o absolutamente maior. O inalcançável. Será que ninguém se deteve por segundos que fosse a inventar nas palavras a ausência de si, do ser como aparente medida de tudo e de nada, mesmo do nada a que o remeta a transcendência de si por outrem… Tudo me causa algo de alguma sensação de algum sentimento de alguma prostração. E às vezes eu queria simplesmente alguma indiferença algum descanso e alguma superficialidade confortável de ser de sentir e de ver.

Mas tudo me faz qualquer coisa de dizível e pior, algumas vezes, alguma coisa de indizível. Mau estar. Ou bem. Tão bem, tantas vezes, que é encantamento sedimentado e enraizado em algo de mim que também é o resto.

E depois o dizer. Os dilemas do dizer. Desperto em todos os segundos nessa tremenda batalha de luzes e confetis. Todas as coisas se baralham na ânsia de encontrar caminhos de estrelas, mas se arrastam por vezes bem rente ao solo e bem amesquinhadas da dúvida. De que matéria se faz o estigma da liberdade. De que crueldade respirada e oferecida com formas de flores, às vezes, inadvertidas flores nas formas, dores de golpe seco por detrás de uma pétala, só como se fosse. E não é. Não era, ou é como se não fosse. De que rendas se tece esse paradigma de liberdade de que nunca encontramos o ponto final, nunca um parágrafo deixa por estender mais umas linhas de perplexidade – dúvida com método. Cadeias a inibir um sistema linfático de tentativa e erro na delimitação alheia da liberdade própria. Querida e sonhada. Como uma pintura em projecto. Nítida e pertinente. Cores definidas e composição. E depois, a desmultiplicação das vertentes de um caminho montanhoso de que às vezes sobra uma luz, uma intenção imprecisa e nada mais do que a decisão do passo seguinte. Em memória, um fantasma que se dilui na coragem do olhar. Um pouco isso.

Mas tudo me ajoelha a alma, de uma constatação de ser outro e que não parte, e em nenhum outro momento que não de ser assim. Objecto de uma natureza que se rebela à concepção de objecto de si, se não for a mera circunstância de ser olhar. Alvo. De. Passiva pessoa numa definição, por proximidade com outro, olhar de outro. Ou mesmo outro olhar. Simples olhar roubo de alteridade pura. Mesmo essa, remetente ao ser aquém. Farta de mim como ser. Farta de ser sujeito. Compreendo-me na contemplação do objecto. Fora de mim.

E depois.

A falar comigo, assim, diz-me em que matéria se rende a minha solidão quando há. Diz-me em que presas se prende o pequeno golpe de asa quando há. Em que vastidão afogar o olhar mentiroso. Em que grãos subjugar a pele. Castigar tudo o que a não ser. Diz-me, digo. Vamos beber mais vinho. O que ontem não foi nada em depois.

9 Dez 2016

Objecto discreto

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias que são o diabo. Esse cão. Um fim de tarde quase quente a disfarçar a perspectiva de declínio desse Outono de um ano qualquer esquecido de si. As folhas no chão, que, mesmo se não houve uma ventania forte e desarrumada a vencê-las, se deixaram calmamente cair da idade própria. Talvez num voluteio dançante sem pressa. Ou talvez a pique e com um ruído seco quase inaudível. Que não deixa dúvidas de estação. De cor, de dia seguinte. Mas a temperatura da tarde, sim. Não que estivesse calor, não me expliquei bem. Era só que não estava um milímetro de uma sensação de frescura, que fosse, nem um segundo de arrepio ou a vontade de compor melhor o bolero de lã fina. Tão fina como seda. Tarde a querer esquecer o tempo e a poder esquecer a temperatura, lá bem no meio da conversa, só um constatar ligeiro de como estava bom. Ali. Num final de semana de uma liberdade desusual. Horas de conversa mansa e fácil. Numa mesa no coração do jardim, da cidade. Uma estação que como quase todas tem dias que anunciam o seu fim e dias que são como uma quinta estação. Dias sem estação. Aqueles, em que a vida não dá, não tira, nem pesa. É. Simplesmente e com alívio. Mas circulares, estes.

Depois o voltar a casa lento e um pouco triste de voltar. De um esquecimento de toda uma camada do tudo. Que volta a mim, na volta a casa. Por entre as árvores no perímetro máximo do jardim, enquanto possível. O dia baixo. A luz, a já pouca réstia do dia, a esvair-se rápida. Sem frescura de maior. A mesma mansidão de toda a tarde. Foi talvez ao fim dessa linha traçada pelo caminho mais longo e antes de deixar as árvores pelas pestanas dos outdoors publicitários, que comecei a ouvir um som inquietante como uma respiração fantasmagórica a acompanhar-me os passos como um cão. O cão. Porque há dias assim. Como sempre não acredito facilmente em sensações insólitas. Há uma desconfiança atemorizada de entrar nessa porta como a não haver retrocesso possível. Uma hesitação. Uma atenção redobrada e olhar em torno. De mim, dos pés que pararam e com eles a respiração. Uma coisa de outro mundo. Mas eu não acredito. Nem no mal e nem em outro mundo. Em nada, mais. Nem em significados nem em sentidos. Mas nos órgãos dos sentidos, no momento puro de uma sensação. Nítida. Olfativa. Mesmo até presa de matérias da memória. Às vezes o cheiro nítido. Como aquele meio adocicado do alcatrão pastoso em verões de outro tempo. Porque acredito em outro tempo quando regressa em forma de sensações nítidas. Quase tão real ou mais do que o de hoje. Em que não troquei palavra com ninguém, nenhum cheiro me mobilizou a atenção e nenhuma dor a mais me prendeu a uma cadeira. Mas ali, como sempre a ensaiar o andar leve, porque quando os passos são leves, a vida flui. Pensar o contrário é um perigo. Como  nas palavras.

Parei relutante comigo própria por o fazer a partir de uma sensação tão insólita e estranha. Nada. Recomecei os passos com a mesma desenvoltura de sempre. Há que tornar os passos leves e com eles o corpo. E tudo parece perto do voo. E comigo recomeçou à altura dos passos aquela respiração desdenhosa e pesada. Inconfundível. Era. Uma respiração. Bem, uma espécie de respiração, entendi. Sentei-me no banco do final do jardim a fazer contas ao acontecido e mais ainda a toda uma história em potência que imperceptivelmente se insinuara na minha mente receosa de se ter alienado. Era mais isso que me ocupava naquele momento. Rever as sensações, as extensões a partir da perplexidade num primeiro instante, distraída. E que talvez eu tivesse, apesar de tudo a capacidade de acreditar em quase tudo, mas a sorte de pouco me acontecer, na escala do muito estranho.

Fico ali mais um pouco na preguiça de voltar a tudo. Quase noite, entretanto. As luzes a tomar lugar. As sombras no jardim. Olho finalmente com atenção, feitas contas ao sobrenatural,  os sapatos suspeitos. Eles. Afinal. A origem do mal, aquele. E recuei uma vida a partir daí. Os meus sapatos azuis de verão. Com bem mais de quinze anos e rosto sonso de novinhos em folha. De camurça escura e sola compensada. Completamente fora de moda esse ano e outros. Como costumo gostar. Mas como é meu costume, poupados anos a fio no temor de os gastar e na perspectiva de nunca voltar a encontrar uns iguais para sempre. Acontece-me isso com as coisas de que gosto muito. Ficam num museu imaginário de porvir perfeito. Bandidos. Por detrás da sua face impecável, de quem dormiu anos numa caixa, envoltos em papel de seda, escovados e com bolas do mesmo papel a resguardar-lhes os interiores não fossem esmorecer, ganhar dores incómodas, torcicolos. Ali, depois de horas de pouco esforço a ouvir-me a conversa à mesa de uma esplanada no meio de um jardim, no meio da cidade, e sem outros sinais de depressão que aqueles suspiros. Porque eram eles. Mal me levantei a voltar à vida, abateram-se-lhes os interiores da sola espessa e compensada de uma matéria invisível e desconhecida forrada a camurça escura em azul. Qualquer coisa neles, no interior daquelas solas altas, abateu discretamente um centímetro ou dois. E ao sabor dos passos aquele suspiro duplo, emitido por cada um dos sapatos de verão em camurça azul, de que tanto gostava e que ao olhar nada diziam do desastre que lhes comia as entranhas de cada vez que poisavam no chão. Ora um, ora outro. Aquela respiração pesada e desesperada como um suspiro. Alto, audível e sem dúvidas de realidade. Guardo-os, anos, pelas formas anacrónicas. Pelo puro prazer das formas, pelas épocas que evocam, pelos momentos colados a eles como um nome, um dia de um ano. Personagens. Luzes especiais. Como colecionadora que não sou. Odeio colecções mas gosto de formas e de sapatos como registo de vida. Poupo-os demais. E mesmo assim, aparentemente na sua vida própria e resguardada, envelhecem e adoecem. Deprimem. Talvez de falta de luz e existência.

Mais tarde levantei-me com pouca vontade do banco do jardim da cidade, e segui o meu curto caminho para casa, acompanhada agora de dois seres deprimidos, envergonhada daqueles suspiros a acompanhar-me como se torturasse alguém por debaixo dos meus pés. Mas antes, num olhar desprevenido para o lado, ainda a apreciar essa temperatura como ausente, ali mesmo ao meu lado no banco de jardim, como se sempre ali tivesse estado, o objecto. Pequeno, o cano curto e luzidio. A menos de um palmo da minha saia. Jurava pela minha saúde que não estivera ali desde o início. O início da minha pausa para pensar na respiração estoica ou sofrida dos sapatos velhos com ar sonso de novinhos em folha. Como disse.

Reconheci-o sem nunca o ter retirado da bolsa de seda preta, comprada num mercado de rua num outro lugar do mundo, em outro ano. Mas na realidade nunca o tinha visto para além de uma forma imprecisa a avolumar discretamente, por entre o drapeado da seda preta com flores brancas, bordadas. Da bolsa de seda, comprada num mercado de rua. Uma coisa de um contrabando tão implícito que nem o preço negociado o insinuou por instantes que fosse. Mas a bolsa jaz também ela envolta em papel de seda numa gaveta de coisas preciosas e secretas. Algumas. É uma coisa insólita. Esta. Até porque é uma estética de outros tempos também mas que em nada condiz com a dos sapatos. Nessas coisas sou rigorosa. Por isso não a levei comigo. Nem o revólver. Que nunca retirei da bolsa de seda do papel de seda e da gaveta secreta. Olho o revólver pequenino e perigoso e em volta a ver se outros olhos o reconhecem com é. Ou o veem, no mínimo. O que seria, no mínimo, tão embaraçoso como os suspiros a acompanhar-me a casa, pesados e persistentes. A hipótese do invisível, não é melhor. Colho-o nas pontas dos dedos, e no olhar de suspeita, a medo e aninho-o no interior do bolero de lã fininha, como a um pequeno bicho friorento. Sem saber o que lhe fazer. Nem ter nada a ver com ele. Nunca uma palavra o levou ao interior daquela bolsa de seda. À gaveta do roupeiro. Ao caminho. Ao banco de jardim. Caminho pela rua e sem querer algo em mim suspira inadvertidamente como se alguma coisa algures acima dos sapatos num ponto indeterminado, se tivesse abatido aí também Em mim. Para além de um centímetro ou dois de cada vez que poisava um pé no chão. E depois o outro. E sempre o mesmo centímetro ou dois. Talvez a pequena mancha distraída, de um vermelho escuro mesmo por baixo do revólver, no banco de jardim. Inocente. Silenciosa.

No caminho, algo em mim vai esquecendo tudo senão aqueles persistentes suspiros que não param. Afrouxo uma das mãos do peito e do bolero de lã fininha a esconder o insólito e vejo-a colorida de um calor vivo escuro e viscoso. Escondo-a junto ao bicho clandestino e sei de onde, dentro, se verte a cor. De que ponto preciso do meu desconhecimento anatómico desculpado pela pele. Previdência natural mas não infalível. Algo se rompeu dela ali. Não ouvi o som. Não senti a dor. Talvez distraída pela temperatura confortável e ausente. Chego a casa e a chave escapa-me da mão de cansaço. Com o ruído estridente do prédio silencioso por fundo. Percebo que não morri. Pelo ruído. Talvez. Há o som das chaves. De casa. E a casa. Lambo dois dedos para não sujar a chave e o sabor doce, o aroma inconfundível do chocolate. Desconfiava que me corria nas veias. Antes assim, qualquer coisa comestível a partir de um coração de bolacha – ou de suspiro – do que imaginar-me sempre a carregar uma quantidade repugnante de vísceras semi-desconhecidas. Antes um corpo abstrato. A verter chocolate quente. E não houve crime. Mas qualquer coisa.

Se fosse, era passional. O estrondo do estampido do impacto do tiro e o calor de um abraço. Mas a temperatura era ausente. Como disse. Portanto não houve crime. Nem história para contar. Mas houve qualquer coisa. E num dia qualquer começou a doer.

E depois, ela, ali, baixinho, a outra, ela ali baixinho, de frente, em confidência, em desespero, que a morte não pode nunca ser metáfora de nenhum abandono, abandono de si, de nenhuma indiferença, de si, de nenhum outro, de nenhum outro em si ou vice-versa. Que a vida tem um preço maior. Em abismos e seres da natureza deles, em mergulhos e tempos que os relógios param para observar, em perdas e ausências mútuas, ou em trocas de territórios como roupas emprestadas. Existir mental fora de si e existência sentida como habitada em si. E tudo dali, excepto a morte, tem um preço de vida sensível, visível ou invisível de aceitação tácita. Não há morte. Senão a que tem que ser. A única e não amada mas familiar a achegar-se mansa de falas porque o seu dia, ninguém lho tira.

Sentada à mesa da cozinha com aquele caderninho anacrónico das receitas, repensa quantidades e proporções. Um pouco mais de chocolate, mas experimentar com pimenta. Que quantidade arriscar, coisa a pensar muito bem. Talvez por tentativa e erro. Como chegara à receita daquele bolo cremoso, de comer morno, saído do forno. A verter chocolate ao primeiro toque.

2 Dez 2016

Variável dominante

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que se é e não o que se faz, se diz. Essa realidade equívoca. Da obra e da representação. De si. Da imitação, de uma camada de sentido, sentida, eventualmente, mas uma segunda instância. De ser, parecer ser. Uma tangência pontual por definição geométrica. O que se é no que se faz, como um mal feito mesmo na perfeição alheia e distanciada do que é feito. Elaboração da mente mas a voar para longe. Do que é afinal anterior, subjacente, íntegro e absoluto. O que se é. Intangível nesse absoluto. Atingível por camadas. Fragmentos de se ser. O que está ao alcance do olhar. E nunca, quase nunca a totalidade no que nos deixamos fazer, ser visível. Revelados por partes.

Como no papel da escrita. Branco, possível. A escurecer depois nuns pontos, pequenos nós, como grãos de terra, presos de letras avulsas de entre as infinitas possibilidades. Aquelas, por uma vez. Não outras. Todas as outras que não caem, presas numa outra página inalcançável. Como caminhos etéreos uns, visíveis outros, na disposição meticulosa das pedras e das ervas naturais. Das confinações físicas a fazer imperceptivelmente modular os passos até sem intensão, e a desembocar num sentido eventualmente imprevisto. Um caminho como texto escrito. Como este, menos óbvio do que se poderia querer ver. Mesmo depois. De onde se parte e onde se chega. Tudo variável. Como um caminho entre as árvores. Numa disposição indisciplinada de arbustos, ramos caóticos ou a viver a alturas imprevistas, a surgir de direcções que contrariam a ordem natural do crescer. Pequenos galhos e grandes braços caídos. Redes de folhagem que escondem depressões inesperadas do terreno, do lugar dos passos que afinal não são nunca a direito. O estalar das folhas secas, essa memória da infância a procurar distinguir ao olhar as que no chão produziam esse ruído, sabe-se lá porquê, apetecível. E aquelas que, menos secas, ou já húmidas frustravam esse ziguezaguear dos passos pela rua outonal, à procura de tão pequenino prazer. Como comer batatas fritas. Coisas talvez improdutivas do ser mas não do prazer. E um, como o outro, de tudo se faz. E no final a imagem. Uma de muitas. Uma pele de várias. E nela existimos? Na prova concreta do fazer, do caminhar, na forma passageira de tudo, o existir. Prévio mas já não palpável. Prova de ser ou de existir, não sei, de momento. Mas ser, é em geral uma existência impalpável embora inequívoca. Não sei onde. Mas ser encerrados nesse território irredutível de que só se manifesta um reflexo. O gesto temporal. Residual. Ser do corpo para dentro. Tem que chegar.

Tudo me perturba às vezes. O olhar límpido e intencional, o olhar turvo e sem lugar. As pessoas que desviam o olhar. As que não ouvem. Os medos dos outros. As suas frágeis matérias desconhecidas e quebráveis. Não saber.

Mais do que momentos. Pequenos, ínfimos mesmo, como rasgos de luz numa cortina-tempo. Por detrás da qual parece ser a realidade a ser. De passagem. Toldado momento-mundo. E passaram as palavras. E porque eram palavras-instante e não duraram, pensava-se que eram pouco verdadeiras mas é a alma que é plástica e o tempo que corre. E dos mesmos sentires se abeira de outros ângulos da mesma visão. Da mesma visão-palavra. De outro olhar-tempo. Prismático mas não oposto. Ou como organismo vivo, o olhar, as sensações, os sentimentos, agarrados a uma essência de núcleo escondido, mas em renovação epidérmica.

Mesmo numa respiração descompassada, numa batida latejante nas têmporas a demonstrar que um órgão a ressentir-se, muito do metabolismo continua a sua rotina microscópica e arrumada. Gosto de arrumação. Gosto mesmo demais, de ordem e rigor. Objectos paralelos entre si. Linhas rectas de verticalidade e horizontalidade. Perturba-me a obliquidade da queda. Da composição. Tento adaptar-me à desarrumação do mundo, das ideias que não têm tempo para se organizar. De palavras e linhas demais para o tempo. Tento. E a tudo o que é maior e não tem arrumação possível. E às brumas que ocultam e desocultam. E a realidade como uma terra de montanha, na secura e humidade específicas. Ou em vasos, e os minerais a alimentar plantas, mesmo nesse pequeno mundo de brincar. Essa terra onde ponho as mãos em dias demasiado etéreos, a compor o que é possível. Percebo porque me dói. São os grãos mais ásperos. Torrões ressequidos. Q uando me viro para esse lado na cama. Dores finas. Dispersas.

Ando a tomar palavras sem prescrição médica. É o que é. Algumas, amargas e amareladas, ou rosadas ou em branco, redondas ou alongadas. Algumas, a cair como pedras no estômago e que não há água que desfaça. Palavras e vitaminas, para fortalecer a insegurança. Mas tiram-me o sono. E associadas ao álcool, então, é melancolia a entornar o vazio instalado. Derramam-se-me na noite e acordam-me sem razão. Crescem, dão-me trabalho e tiram-me o sono preguiçoso. Fica ali a olhá-las exibindo-se nuas e perfeitas, em arabescos de coreografia invejável. Mas antes chamar-lhes pensamentos. Igualmente impróprios e intrometidos mas dentro do seu lugar como ocupantes de visita. Elas, mais convictas e arrogantes dançam exigentes e definitivas. Demais e a mais. Palavras-comprimido. Palavras que me colhem em jejum sem estômago para elas. Ando indisposta de palavras, pessoas e vidas.

Ah…Às vezes eu penso mesmo que vamos todos enlouquecendo. Com aquela crueza com que viro os olhos sempre para tudo, mas para começar e acabar sempre e com a maior veemência para mim própria. Não me poupo e seguramente menos do que a qualquer outro –  que não poupo, eu sei, dentro de mim, eu sei e não poupo – há um canal sempre desimpedido aí. Sempre limpo de máscaras e panos aquecidos. Um estreito que se atravessa a nado sem maior esforço do que o de uma respiração ofegante. E mesmo esta, sabe-se, pode advir de tantas emoções e tantas pequenas inseguranças, que não é de pregar susto de maior. Enlouquecendo de teatralidade, de experimentalismo sensitivo, de verdade no palco, de amoralidade. De imoralidade, de fantasia. De dispersão. De verdade. De cobardia. Enlouquecendo de coragem. De tudo. De desilusão e de ilusão feroz. De palavras demais e de palavras de menos. De não valer a pena. Nada. De tudo valer a pena, se a alma o suportar imaginar. De pensar os pensamentos e de pensar os sentimentos. Dos dilemas. Porque a certa altura tudo parece conduzir aí mesmo na mais escondida parte de cada um dos nossos olhares. Os antagonismos aparentes entre critérios e convicções, entre sintomas e verdadeiras causas profundas. E sempre um outro olhar a esculpir possibilidades de formas em nós. Penso. Penso mesmo. Mesmo naquela pontual euforia instalada no meio da maior perplexidade e impotência existencial. Coisa estranha. Em divergendo. Lírico, talvez. Descobridor. E um dia, abro a porta da rua, saio, e está ali o Batmobile. De certeza. E nos outros dias, alongo os passos para espaço mais amplo. Saio da minha rua–concha, da minha rua casulo e casa e da minha casa-pele, e caminho por lugares indistintamente só para depurar a respiração sem pensamentos de maior, naquela ocupação ligeira e ténue dos passos sobre passos que não dão muito espaço a espaços mentais. E caminho depressa, como sempre gostei de não caminhar devagar. Na rua. A lei das compensações. Deixar que o corpo adquira uma inércia firme e que seja o espaço a percorrer-me ligeiro como a vista numa janela de comboio. Em velocidade. A vertigem de caminhar em frente no tempo para não voltar atrás na memória.

Por isso é vital a urgência do caminhar. Ou construir paisagens vazias. Caminhos de vazio. Daí a serem mortas, mortos, vai todo um apocalipse. Gosto dos vazios e da serenidade do que está vago. Vago para preencher pausadamente de todo o possível. De livros brancos e de páginas em branco. Como todas as horas vagas. Para caminhar.

18 Nov 2016

Piano forte. Piano piano

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje é o ir pela escrita adentro, o único lugar. Como mergulhar lentamente, escolher a temperatura e sentir o rumorejar manso e eterno enquanto é. O imergir simplesmente sem violência num silêncio de sentidos múltiplos e distantes. O corpo. Somente o corpo. Palavras como águas sem mais. A única mão a estender para fora do regaço em que um par inerte e serenamente nunca só, pousa sem outra vida própria. Ir por dentro das palavras-pedras ao fundo, e ir por aí fora sobre as palavras-asas, e perder-me o possível nas palavras-gesto, nas palavras-beijo e nas palavras tacto. Varridas do chão de corredores sem fundo e de soalhos sem flor. E sem fim e sem dor. Ir. Ir para o dia que é o outro qualquer que não este que não me quer. Bem. Ir colhendo nas sílabas boas como numa seara de espigas e fenos e ir colhendo em molhos que não importa em que buquê se formam, mas formam. E formam quase a forma de um caminho que é sem fim e sem forma. E de resto mais nada que estas palavras a recobrir a calçada que nem sei se é e está. Como pétalas a disfarçar o que é terreno quando passa o andor. Sobram as ditas. Claro. A secar. A acastanhar. Nelas vou vogando. Nelas como nos dias. E o de hoje como todos na cor e na tonalidade própria, de luz-sombra. De cheio-vazio, de claro-escuro e de saturação pontual. Na indiferenciação da última sílaba da última palavra. E da pontuação. Onde acrescentar um ponto a uma vírgula e obter umas reticências. Onde apagar uma vírgula a um ponto, evidenciar um parágrafo, e observar o precipício abrupto à beira da palavra. A palavra tudo. Que está ali. E a palavra nada que se segue. Era uma história, possível. Mas eu gosto de vírgulas discretas e parágrafos sem exclamação. Escrevo a lápis mas nunca apago. Como um pássaro não seria pássaro se apagasse o vôo. E o lugar não pode deixar de o ser como se o não fosse. Ir pela escrita fora, sim, porque tenho que ir a algum lugar. Lugar marcado e encontro com o que é depois de agora. Sem outro transporte que não uma ânsia que não cessa. Não gosto do fim porque se vai finalizando. O fim que o é tem a hora marcada, registada e sublinhada a nítido fervor. Logo à noite, ver as estrelas. Os meus fins são assim de abrupta definição. Quanto muito esqueço. Quanto muito estrago. Quanto muito reciclo e refaço noutra matéria forma. Mas gosto mais de esquecer. Parar de ouvir vozes de outrora e de agora. Demasiadas vozes. Fazer a apócope de sons como do piano forte. A sobrar o piano, piano. Sem mais perturbação. Esperar a noite. Desligar o telefone dos dias.

Percorro descalça o labirinto dos corredores. Disfórica e cuidadosa comigo que tenho. O que a vida traz e ninguém mandou. Tiro os sapatos e entro na casa. Que mesmo os saltos podem magoar. Ferir de pequenos pontos irrevogáveis a madeira sensível. E que ficam para sempre. A casa é forte. Quanto mais forte, mais frágil. Mas eu tiro. Penso que posso fazê-lo sem querer. Sem saber porquê. Tiro os sapatos para sentir-lhe a realidade. A chuva gelou-me a nuca e não houve carícia posterior. Talvez o sol no outro dia. E dizer bons dias a pessoas para quê…o tempo moído de esperas e desesperos, para quê…e depois aquela euforia avulsa. Um piano forte, de facto vindo dos confins dos séculos e reencontrado em ecos e vozes de natureza digital. Como dedos. A digitar recônditos recantos e bem. A fazer bem. Essa química pura e sem máscara. A música.

Contornar pensamentos tóxicos e os não ditos. Adivinhados no cadinho das possibilidades em menú exponencial. Corrosivos e pela calada do desperdício. Fuga ao circunstancial. Pela escrita adentro como pela noite de todas as noites. A intemporal de sempre e de nunca. De que não sobra nos dias a liberdade. Mas que sempre vem e vai às vezes de exaustão. A noite de já não ser nada do esperado, desesperado ou ressentido. A ponte entre tudo e coisa nenhuma ou talvez. Pela escrita sentidamente e pela frágil e dissonante palavra que é tudo o que tenho. E da máscara digo nada porque é. Digo, só menos a que não quero e  ganha vida para além dos fios e da teia que não quero tecer.

Histeria metabólica em que oscila o amor e o desamor, a vida e a morte em trinta segundos e a rodar sempre a rodar o carrocel à música do tilintar de uma moeda. Ninguém pode invejar sentidos e sentimentos, aparentemente cada um gosta daqueles de que é capaz, vítima, ou roda de moinho. Como os de D. Quixote. Que só ele podia ver, como gigantes. Para quê alucinar as alucinações alheias. Há cogumelos mágicos de sobra para todos. E o mar chão de praias para abrir os braços e maravilhamento de costas ao poente. O lado contrário do mergulho.

O amor é um bicho mamífero. Come mais ou menos de acordo com a indisposição. Entristece e adormece nas noites mais frias. Vigia o dono, espera. Desespera e dorme triste, acorda e dá saltos para desentorpecer as patas dormentes de tanto esperar. Passeia a farejar a vida. Mas não morre e renasce em cada sono. Está por ali nas arritmias e solavancos da vida. Até chegar a sua hora. Não é de modas sentimentais. De teorias estéticas. De uns dias se ser céptico de amor, e dos outros, vítima de fúria e de ardor. Os dias do nunca e nunca mais e os outros do para sempre e demais. Como se é fútil se as coisas não são construção sólida nos alicerces das veias. Sem circunstâncias. As pessoas fazem-se e desfazem-se nas palavras ditas. Nas outras, não se sabe. Sim, talvez mais como o sangue, a circular sem parança, a oxigenar-se quanto pode, sem parar. No seu sistema de vasos e ramificações por todos sem se enganar ou voltar para trás. Mas sempre nesse circuito fechado. De um nome. Um rosto, um corpo. Inconfundível. Esse. Que se vê no escuro. Porque é aí que vive escondido. De modas. Fruto da desnecessidade e mais ainda, sobretudo, infraestruturado na desmesura…e no espanto, de fora, a ver o carrocel com olhos de criança, no susto do ruído atroador. Da velocidade. Da voz que diz vai rodar. Fazem-se e desfazem-se, mas sobram. Umas e outras sem relação nenhuma. Como os dias. Novos ou reaquecidos da véspera. As mãos são a metáfora impossível sem o tacto. Impossível mas não improvável. Talvez pudesse dizer o contrário dependendo dos dias. Mas sobretudo o ar. Ser livre. Ter um espaço amplo. Nada ouvir e nada olhar. Um dia sem circunstâncias sem vozes e sem nada. Para escrever. E escrever ou não. Pela cor. Abstractas e macias como piano piano.

E à noite ali na mesa da cozinha entre sombras, atentas amigas, a mão a um palmo. O olhar desarrumado e sem lugar, e pode ser uma companhia limite. Um ou dois copos. Tanto faz. Encosto a cabeça ao braço porque estou cansada e digo lê. Como quem diz, toca…a luz, baixa. O pano cai. E faz-se silêncio por fim. O de repente, o de sempre e o de nunca. Uma coisa de suave esquecimento. Vem daí.

11 Nov 2016

Pequeno mundo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]os bons e dos maus. Passe o maniqueísmo. E os maus somos nós, mas podiam ser as libelinhas. Lindas, pequeninas e esvoaçantes. As abelhinhas, nunca. Pequeninas peludas e a desferir ferroadas defensivas. Obcecados pela expressão. Obcecados pelo amor. Mesmo na ausência deste. Ou na ausência só. Uma coisa que está sempre e a outra por isso mesmo. E também. Sim tudo isso e o erro. Ando tão preocupada lá atrás nos corredores onde circulo, com as abelhas. Ando. Depois de toda a ironia assentar. E que não era mas podia até vestir uma roupa equívoca como muitas máscaras. Mas é a verdade. Aquelas ínfimas e pensadas talvez insignificantes peças da mecânica universal de dependências mútuas. De ajuste e afinação delicada. De cor peluda e listras como nos desenhos animados. Quase só o que se conhece delas e o mel. E a agressão. Mesmo na natureza, auto defensiva há erro. De previsão. Precipitação inesperada por antecipação do que não era para ser por vezes.

Escreveu abelhinhas, Rosalva? Rosalina…diz. Os olhos turvos de incompreensão porque estou a pensar noutra coisa. Sempre a pensar numa outra coisa. Desculpe, estava a pensar na alvorada de sempre. Uma coisa certa. Escreveu…Mas porquê inhas…Não se preocupe com o kitsch. É ternura mesmo.

Mas elas não sabem e ferram uma dor violenta. E morrem dela. Curiosamente. A natureza munindo de uma arma a ser usada uma única vez. E nós. Obcecados pela expressão e em silêncio, obcecados pelo amor e sós. Cobertos de camadas e poalha de cadeias sem devir. E a percorrer os minutos como se a desviar confusamente teias e névoas e tules de cortinados e reposteiros uns sobre os outros, a proteger uma entrada que em si se sabe camuflada, mesmo depois de tudo desviado do olhar. Uma entrada, às vezes e de outras a vida em corredores laterais, coxias sem lugar sentado e acocorados na escuridão a ver mesmo assim. A vida. O espectáculo da vida. Que espectáculo. Pode até chegar a ser maravilhoso. Há que desnudá-la como se submersa em véus. Em camadas sempre. Desvendá-la como a uma amante secreta que se esquiva. E esquiva sempre. Ou amá-la por detrás e para além dos véus para não lhe ofender o pudor. Sei lá eu. E nem sei se mesmo a vida se sabe. Eivada de incompreensão e temerosa de golpes de uma sorte esquiva ela também.

Escreveu camadas, Rosângela? Dou-me de imediato conta do olhar confuso e ligeiramente irritado da criatura. Ros…, qualquer coisa, digo. (Vide texto de 12 de Outubro deste jornal, em que Rosalina se viu Francelina com desprimor para a segunda, embora a ofensa magoada fosse da primeira.). Que importa?..Se as camadas são em parte também das asas dos anjos. Vôo por aí. Não leve a mal. Não é que eu seja difícil com os nomes. Ou com os rostos. Há pessoas assim. É só que as palavras se prendem umas nas outras e as sílabas trocam de lugar como num jogo de cadeiras. Mas são sílabas boas. As que misturam os anjos com as rosas. Sei lá. Coisas do céu sem nuvens e coisas das nuvens leves com camadas sobrepostas de branco a dar para o cinza e a chegar ao chumbo, às vezes, mesmo. E cai depois o que sobra da água condensada como caem lágrimas mas aí do céu. Outros dias limpo como os olhos secos e é tudo natural. Como derramar o que sobra. E desfazer nós. Trovejar.

Há um desenho que sempre pergunto quantas camadas de sentido. Tem. Um livro de página amarelada pelo tempo. Uma. Uma folha colada aí. Duas. Folha pautada de linhas azuis. Impressas para a escrita se equilibrar. E nelas, três. Uma colagem, uma linha a negro a contorná-la, pelo lado de dentro como uma protecção íntima. Dentro de fronteiras. Como convém a ser discreta. A folha destacada de outra realidade física. Quatro. Um desenho a tinta negra da china, figura e fundo. Cinco e seis. Uma página de uns minutos de uma vida. A vida assim. Em camadas.

Mas e as abelhinhas, que têm a ver como todas estas camadas. Aqui, sobre a mesa e indefesas. Que mal fazem ao longo do mundo e da eternidade. Nada. Nenhum. Que camada senão as de interesses privados, megalomanias empresariais, desconhecimentos e indiferenças governamentais. Políticas. Falta de visão global. Falta de sentido de eternidade para o humano, o universal. Por enquanto. De um olhar sobre a pequenina coisa em si e o efeito de libelinha – borboleta, digo – transversal ao tempo que vem. Pequeninas abelhinhas na engrenagem de um tudo a desmoronar em eventualidade. Em extinção visível. E nós, ainda com um frasco de mel na mesa do pequeno almoço. De rosmaninho perfumado e secreto labor imperceptível na viscosa matéria da doçura. Vindo de uma feira, sem assinatura das pequenas, minúsculas criaturas. As que morrem progressivamente mais e em quantida monstruosa, sem darmos por elas nem lhes fazer o luto. Nem sentir a falta nem entender que não há mais um mundo sem elas ali. Pergunto que fazer e não sei. Ou as libélulas, lindas e pequeninas que já tiveram um metro no passado pré-histórico e que calculam coisas estranhíssimas como o lugar onde a presa vai estar no futuro para com ela cruzarem o seu destino predador. Suspiro de alívio ao imaginá-las afinal desviadas de um futuro que nos excluiria talvez. Elas e os seus olhos multifacetados capazes de produzir trinta mil imagens, e os seus cérebros pequeninos mas com neurónios capazes de compilar tudo isso numa figura e mais proteínas capazes de sentir a luz. As facetas da luz. E A menina Rosalina suspira comigo mas por razões diferentes e não vê onde quero chegar nas palavras.

Escreva neurotoxinas e outros venenos, Rosário Rosarium. E ecossistema e extinção em massa. Não seria a primeira vez no mundo, seria talvez a última para a humanidade. Já Einstein dizia mas não parece ser aproveitável. Rosário…suspira revirando os olhos. Significa “coroa de rosas”, não se melindre. Quer dizer que cada vez que alguém reza de modo conveniente o seu rosário, deposita na cabeça de Jesus e de Maria uma coroa formada por 153 rosas brancas e 16 vermelhas do Paraíso, as quais nunca perdem a sua beleza e o seu brilho. O Rosário é o primeiro dos actos de piedade. Ela olha estarrecida e eu sorrio para dentro na dúvida da extensão da ironia. Se era…porque há que rezar de um modo qualquer.

E daí a minha alma divaga para o efeito borboleta, aquela expressão um pouco lírica que expressa os efeitos gigantescos, provocados pelo ínfimo adejar das pequenas asas coloridas e inconsequentes, no seu movimento mecânico em torno das suas pequenas intencionalidades de vida e sobrevivência. E daí para os sistemas abertos, na ciência, dinâmicos, adaptativos a todas as variáveis, em que cada pequena causa, pode despoletar uma granada de explosões imprevistas e consequências imensas. E o mundo fica assustador nesse olhar possível. Estaco paralisada na impressão de que um tão pouco tudo faz depender tanto outro nada qualquer. E apanho o resto do cigarro que por preguiça deixei desleixadamente cair no chão. E de caminho reconduzo a menina Rosalina à máquina de escrever de cor amarela muito pálida. Despende-se mais energia nas teclas duras, mas poupa-se energia eléctrica. E se parto as unhas. Diz com aquele arzinho de catástrofe. Crescem de novo. Mas não pintadas. E reciclo tudo, separo os pequenos e grandes lixos que nem sei como, tanto produzo. E reutilizo o possível. Já não posso deixar de o fazer. Tudo. Pequenas palavras, sentimentos e esboços de ideias para qualquer coisa, que não chega a ser mas está ali. Papéis e mais papéis que iriam para o contentor próprio naquela angústia de fazer perdidas pequenas coisas válidas. Matérias e ideias. Registos da vida pontual. Numa linearidade difícil. Mas reutilizar. Renovar.

Volto a pensar nas abelhas. Que picam para se proteger e mais ainda proteger o seu pequeno mundo e, algumas espécies morrem ao perder o ferrão, libertando feromonas de alerta para as companheiras de colónia. Morrem por uma causa importante. Mas por vezes erram o juízo sobre a eminência do perigo e morrem mesmo assim. E nós, esperamos delas a agressão e antecipamo-nos esmagando o pequeno ser antes que desfira o golpe que não sabemos. Para proteger o seu pequeno mundo. De dependências mútuas. O nosso.

4 Nov 2016

Uma demão de rosa, um toque de perfume

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje choveu, finalmente. Seria chuva ácida? Como ácidos pensamentos que nos assaltam por vezes, mesmo ante as coisas belas.
Ponha rosas, e ponha flores. Mas não é a mesma coisa? Os olhos em alvo, as unhas em riste. As mãos simétricas suspensas sobre a máquina de escrever pintada de amarelo muito pálido. Não é relevante, penso, digo. Depois eu escrevo outra coisa qualquer. Das rosas. Da rosa de Hiroxima. O mesmo desabrochar irreprimível e inconsciente. A mesma beleza insuportável. O mesmo perfume entranhado para sempre na pele dos sentidos. Na pele de diferentes sentidos, claro. Os sentidos em leque a partir de qualquer botão. Premido quase sem pensar, acredito. Pela ordem das coisas da natureza, intocado. Ou pela ordem fria e cega. Cegamente seguida. E o momento depois. Alguém por detrás do botão sentiu talvez nada. Ainda com o indicador no ar. E a rosa já no ar em crescendo. A desabrochar. E depois, pelos anos fora em erupções cutâneas e sub-cutâneas. Rosas. Depois da rosa. Anti-rosa atómica. Como o disse Vinícios. Sem perfume, sem rosa, sem nada.
A menina Rosalina. Das unhas pontiagudas e trabalhosas em riste. Reciclei-a de um centro de imagiologia onde transcrevia laboriosa e distraidamente relatórios gravados de exames. Em que escrevia indiscriminadamente Não existem sinais de malignidade, em massas opacas ao exame, ou Existem sinais de malignidade. Em massas. Opacas na imagem. Enfim. Mais não, menos não. Era o que pensava. Se pensasse. Pensei, convém-me. Afinal, de sentidos incontornavelmente divergentes já se faz a escrita por si só. Querendo ou não fazendo questão, mais ainda. Convém-me. E ali está. De unhas eventualmente naturais, compridas e pontiagudas em riste, a escrever com as quatro polpas dos dedos muito separados e a dar estalinhos nas teclas por engano do gesto. Ou da palavra esquecida, esse desprezável não, que me deixou durante muitos dias a fazer disposições mentais testamentárias para uma eventualidade. Depois não era nada a mais do que a palavra desprezada, e acrescentada depois ao relatório. O que estava dito e o que não estava escrito na ausência do não. Desculpas, e tal. Enfim. Escreveu rosas, Francelina? Rosalina. Diz de olhos em alvo. Mas não é a mesma coisa? Eu. Prefiro o meu nome. Ela. Ficava-me a ganhar pontos na memória das coisas boas com o outro. Penso, derivando para o prédio.
A empregada de uma vida inteira do senhor e da senhora do lado, ambos do partido, três filhos. Um casal. Antes de se desfazer a coligação, muito cedo. E ficou para sempre o mesmo silêncio insólito, ou talvez por isso, numa casa de três crianças. A senhora a chegar sempre tarde do trabalho do partido. E aquele silêncio insólito. E a Francelina, nortenha de bigodinho leve, muito gordinha, de alcofa de legumes, a subir infalivelmente as escadas do terceiro andar, todas as manhãs, expelindo violentamente o ar, ruidosa e esforçada como uma máquina a vapor. Todos os dias. E aquela casa de três crianças silenciosas, que sempre permaneceu como prestes a habitar, meio vazia de tudo, como se tivessem acabado de se mudar de uma outra vida. Mas não. Ou como se houvesse algo indefinidamente adiado. Convidavam-me a andar de triciclo na casa vazia. E a cozinha, como a nossa, sempre invisível lá muito para o fundo do corredor, teria sempre um cheiro bom e quente de sopa acabada de fazer. E temperada com azeite ao arredar. Era o que me consolava de uma certa tristeza e silêncio que se destilava daqueles meninos. Que pessoas serão, hoje…Margarida, João, Madalena. Ainda me lembro. E a Francelina. Que, podia dizer-se, não desenvolvia muito, mas não falhava uma manhã às pequenas coisas, nem os ingredientes da sopa e era uma locomotiva naqueles dias. Deles.
Está bem. Rosalina. Sempre escreveu rosas, ou onde ficámos? E ela, de olhos em alvo, sempre, olhe faz lembrar o meu nome. Tudo, penso, faz lembrar tudo. Ou tantas coisas. Rosas é sempre bonito, diz. Maravilhosas, penso, mas a tentação de lhe lembrar Hiroxima e Vinícios de Moraes. Mas ia provocar-lhe um brilho pluvioso no olhar inocente de tudo. Porque a canção é linda e fala de rosas em que ela não pensou. Como uma espécie de combate entre cicatrizes. A rosa simbólica de “O Principezinho”, inteligente, sedutora, alma, coração e vida, e a outra.
Esqueço a menina Rosalina, que nunca soube como se chamava, e a máquina de escrever amarelo muito pálido que ficou lá atrás. E penso, como em tantos momentos me apeteceria andar de olhos fechados pela rua do meu dia, dos dias todos da minha rua de andar pelos dias. Para evitar o visível e mais, muito mais do que o invisível. E que quando entendi que não se pode ser feliz deixei de ser infeliz por isso e passei a somente ser infeliz pelas outras coisas. Sobretudo as pequenas coisas que são a célula de outras maiores, e que são teoricamente fáceis. Mais fáceis. De fazer. De não fazer. As que são domináveis, e que são construtivas. Pequenas como anti-corpos. No fundo, as pequenas coisas objectivas e definidas. Visíveis por detrás do invisível. O invisível manto de sentidos, de nuances de um real em mutação. Ou continuar a pensar que o fundamental é invisível aos olhos. O invisível. E de novo, pensar nesse precário equilíbrio sempre a reajustar-se a um novo centro de gravidade. Arredado em cada lufada de vento. Com Partículas. Microrganismos nefastos ou irrelevantes. Tudo o que traz de visível e invisível. E aí como em tudo sobra a certeza de que há que saber abstrair do invisível possível. Como da impermanência existencial. Como a da família, da amizade. Das estruturas sociais. Teorias em que nos afundamos a precisar de oxigénio contínuo. A finitude. Aquilo que não se vê em nós. Como se não existisse para que tudo o resto valha a pena. Estações a suceder-se para sempre. Por exemplo. Alternadas e sucessivas. Como o olhar. Sobre tudo. Excepto um prisma de cristal. Em que ângulo após ângulo, sempre se obtém o mesmo arco-íris. Porque é da natureza da luz, ser branca. E divisível na refracção, numa miríade de cores. Todas. Menos aquelas que estão lá, invisíveis aos olhos humanos. Mas estão lá. Afinal. Infra e ultra coloridas de invisibilidade. Úteis. E nesse olhar múltiplo que não se pode deixar de ter, apesar de tudo, por vezes dar uma demão de rosa e outra de perfume. Girar os olhos sem esquecer. Mas pensar também que, de vez em quando, sempre, algumas vezes mais do que outras, ou bem lá no fundo, afinal, “ l’important c’est la rose, c’est la rose, l’important”. E de repente sinto-me ridícula de tanto que isto soa hippie. Mas eu nasci nos anos deles. É natural. Era a contracultura necessária. E mesmo hoje e de uma forma ainda muito mais complexa. Ban the bomb. A adivinhar qual. E a caminhar de memória de música em música. Passando por Edith Piaf. E depois:

“Uma rosa de vocabulário escolhido
Rosa, onde o preto devia estar
Uma rosa mais ou menos muda…
…de plástico japonês
De Noel, parece mas não é
Denúncia e do medo de me amar
Língua rosa em boca amarela
Desbotada não…fere a vista”
Ivan Lins em “Rose Music” no álbum “Beauty” de Sakamoto. Tantas rosas quantos olhares. Mesmo num dia de chuva como hoje. De outono instalado para ficar. Só até ao inverno.

14 Out 2016

E porque os dias

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] porque uns dias, isto. E porque outros dias, aquilo. E de aquilo, na imprecisão rústica do que se traça como se fosse caminho a fazer. E porque das roupas sobra o desconhecimento provisório, como o de pessoas estranhas a querer envolver de adjectivos decorativos um corpo que não se fez daquilo. Que não se encontrou ali, e que não se veste de roupa estreia, larga, comprida e curta. Não se veste para a estação. Não se apeia num vestido justo. Não cai de um sapato raso. Não desmaquilha os olhos. Não espreita debaixo da cama. Não lava a loiça da semana. Nem caixas para meias, quanto mais. E molduras e conveniências. E rosas de plástico com vinhos caros à mistura. Há um recreio vago. Menos mal. E um carrocel, um jardim, um cabaret, uma passerelle, uma roda- viva. E a leveza insustentável e o peso imponderável. E tudo muito mexido, muito batido. Como claras. Em castelo. De nuvens, castelos de nuvens. Cúmulos. Ah, Iago.
Porque as nuvens não têm vértices. Vértice é ponto agudo e pico. Não é ângulo nem aresta. Não há poética que valha a falha da geometria. Mesmo existencial. Quando querer fazer de um ponto uma linha, uma junta de planos fracturados é extrapolar. Elaborar é arquitectar. O vértice é o elemento centrado e precário. Acutilante e que fere. O não lugar da geometria. A parte ínfima e desprezável no encontro de planos. Superfícies. Há pessoas feitas de vértices. Os vértices dos dias. E há pessoas feitas de planos. Ou meras superfícies. E outras, feitas de outras coisas.
Eu desço e desço nos dias – ou muitos deles – a hipotenusa. Esperando que o triângulo não esteja invertido para a queda não ser para dentro e para trás. E depois outras definições.
E um dia destes, desprevenidas chegam as primeiras chuvas para ficar. Tem que ser. Mas esta luz já mais baixa, um pouco mais pálida, também é bela. E não há nada tão melódico como alguns daqueles momentos depois da chuva, no meio das árvores, em que indefinidamente se vai continuando a ouvir o gotejar imparável e incerto, Pequenos sons mais harmoniosos do que qualquer sinfonia. É o tempo a desfiar-se sem regra, sem ritmo e sem previsão. É o que fica a ecoar para além do desgoverno desolador do céu a abater-se sobre nós. A sinfonia das gotas que sobram nas fibras resistentes de cada tronco de cada árvore. Como o que sobra de um pensamento de amor. Em lágrimas de despedida ou de não ter sido. O que sobra e escorre para além de qualquer fórmula. Sem emoção. Como do discurso, como dos sentimentos como da vida vivida sem consistência. Uma realidade a ecoar como tempo e como deriva. E os regueiros formados na força da queda. E a melodiosa encaminhada de águas por caminhos recém-abertos. Moldados no acaso da terra, das fragilidades da física da terra. Da disputa de forças, entre o poder de escavar e o de resistir. O de gravar e o de consumir. E como num pensamento de amor, há o que cai, o que molha, o que agride, o que resiste e o que fica. O que fica. Dos sentimentos ficam os sentimentos na sua evolução própria. Aos discursos, reflecte-se-hes a deriva imponderável. Mas os sentimentos são elaborações para além do discurso. Aquém de tudo. Da vontade, da vaidade, da ética. Se falamos de amor, não falamos de gostar ou de critérios de gostar, ou para gostar. Não falamos de gostar, ou de construções, ou de relações. Não se passa entre pessoas. Passa-se em pessoas. Secreto e íntimo, contraditório, inconsequente e vasto como todas as planícies conceptuais deste planeta a expandir-se para dentro e para fora de si, cefaleias à parte, e dos outros. Também.
Não há maneiras melhores ou piores de amar. Não há amores melhores. Só inevitabilidades. O que se ama define um critério para sempre. Específico em si. Único, sem paradigmas, sem necessidade, sem qualidades. Só a necessidade e o paradigma definido em si. E a partir daí as qualidades. Sem comparação a outro. Nem livro de instruções. E as de amar diferentes sempre das de estar com. As qualidades. As instruções. As medidas. As caixas e as arrumações. Há um amar em estado puro. Perfeito ou primordial. As relações do estar, essas imperfeitas. Que dizer do amar. Há um lado de querer bem que é como o reverso da dor. Uma espécie de lado cristão, do lado contrário ao da dor. Em que é quando nos sentimos mais miseráveis que reconhecemos ainda ali a possibilidade de querer bem. Ás vezes acontece assim. Outras vezes querer. Mal. Não saber querer. Não saber sem dor.
E amar é uma catadupa de palavras inscritas no gesto. O gesto de amar que devia ser o único território. Acariciar com todas as palavras dentro. Ou para dentro, talvez. Fazer bem sem deixar rasto de cheiro como no território marcado dos animais. Um gesto de pluma. Ou um peso-pesado invisível. Um fazer bem no momento certo e sair de mansinho para não pesar. Mais do que o suficiente de saber uma vez.
Eu não tenho regras. Tenho inevitabilidades. Não posso ter umas, e não posso deixar de ter as outras. Como ou não como e durmo ou não indiferentemente. Trabalho e cumpro porque faz parte de mim sobreviver. Um pouco cheia de poucas regras, para ser rigorosa. Cheia dos espaços vazios entre definições. E quando me sinto mais miserável em tudo sei que está ali a possibilidade de me apurar na carícia mais doce no desvelo de amar e derramar palavras e gestos de bem, se o meu bem- querer estiver ali. E só não o faço por que não está ali como se estivesse. E não há que invadir. Vou divagando.
Ama-se na circunstância ou ama-se por que não pode deixar de ser. Encontros e desencontros. Então. Os dados são lançados pela ocasionalidade do acaso. O acaso a favor ou o acaso contra. Nada a fazer. Ama-se na facilidade ou então na miséria. É isso. A diferença está aí. Tirar medidas ou não. Uns dias e os outros
Não há uns dias e os outros. Talvez dantes. Vestidos de um colorido nítido de cores puras ou cores difusas, ou, aquelas não-cores do espectro dos neutros mas de impressão decisiva, desalentadora. Uma intermitência conhecida e que oferecia a espectativa de mudança sempre que o abismo ameaçava ser de vez. Mas agora é tudo de uma imprecisão mais dialética, não ao longo dos dias mas de um dia só, no desconhecido dos outros. Instantes de paragem em qualquer das premissas. Clara enquanto lugar de um tempo. Dependente de pequenos farrapos da espuma das coisas. Decisivos. No preciso instante em que se instalam. Precários, contudo. Uma translacção imparável pelas faces das coisas e a permanente escuta às possibilidades do desequilíbrio do corpo. Uma dança, quase. Um solo nos limites das possibilidades de contrariar a gravidade, a apetência do cérebro pelo equilíbrio. Mas esvoaçar nos limites. Expandir os membros nesse limiar e compensar de imediato o centro de gravidade abalado. Um reajuste renovado em ciclos sem descanso. O que sinto. Por isso ter que parar, simbolicamente sentar-me. Reter esta entrada de sinais à porta. Por uma vez. As pessoas morrem e renascem. Partem para sempre e regressam do mesmo modo. Eu sou de uma enorme monotonia. Tenho uma órbita. As coisas é que giram nos seus eixos, apresentando as faces. Equidistante de mim e dos outros. E da qual caio, umas vezes para dentro e outras para fora. E depois volto. A um ponto qualquer que consiga tocar e me devolva à elipse confortável.
Eu acho muitas vezes que temos a alma moldada para encontrar umas coisas e não outras. Não sei se é bom ou mau. Picasso dizia: eu não procuro, acho. Mas é redutor.
Hoje fui ver o mar que vi tão pouco neste verão. O cair da noite no início do outono. The fall. Anyway. E aqueles vultos como fantasmas ali. A transmutar-se um em outro. Ela mais dramática. Ali está, a minha alma moldada para encontros entre mar e terra. Um no outro. Impressos na fronteira. Como pintura. Mas já feita. Só para encontrar. Ver, na matéria plástica e fluida da areia e na matéria mutante e líquida da água. Que ficaram lá. Sem ficar. Figuras. Eu vejo sempre figuras. Acompanham-me, talvez. E também ali, a harmonia e o segredo que equilibra, resume-se ao balanço certos entre brancos e negros. E as paletas de cinza, que encobrem discretamente as cores que lhe deram origem.
De repente pergunto-me o que me deu para estar aqui a falar do amor. Do amar, na realidade. É talvez porque o verão se foi. Como se abruptamente no dia marcado mas só por acaso é assim. Na verdade flui para longe. Lentamente. Visivelmente.
E é agora talvez, que chega o fim do verão. Ou ontem. Ou lá mais para o meio da tarde e da noite. No calendário já foi mas isso não importa. E, talvez porque, quando chega o fim do verão, é quando mais apetece falar do amor. O amor. Chegaria dizê-lo assim. Ou é talvez a vocação nostálgica entre tempos. Entrementes. Ou é talvez o amor que é da família fonética do calor. Ou. Acrescentar ardor e humor e odor. Feromonas distantes. Entre si. Amores efémeros de verão. Mas eu tenho aquela vocação para os amores mortais do acaso e do por engano. Ou mortíferos… Romeu e Julieta na era da tecnologia e de outros venenos, ter-se-iam encontrado e desencontrado de outras formas. Desencontrados no desespero do seu amor proscrito, distraídos por um post, uma mensagem curiosa, um “like” inesperado. Distraídos da vocação dramática do seu amor pelo qual valia a pena morrer, mas não era para ser. Foi simplesmente o erro. E dizer que valia a pena morrer, só depois e porque aconteceu. Hoje seria tudo mais divergente do momento. Do veneno. Do punhal. E teríamos ficado sem ele. Esse amor referencial.
Tudo se arredonda no bom tempo. Do verão. Essa ausência que se avizinha que se adivinha sem se querer como a noite dos sentidos. Hibernação. A norte do imaginário. O polo magnético que aponta para o verão seguinte. Ou o outro. Ou o outro. E apetecer fecharmo-nos numa biblioteca aquecida de memórias e livros mortos. Dizia Borges que a haver paraíso, seria esse no lugar onírico de uma. A demonstrar a incapacidade de tudo ver e viver. O transcendente ramificado em estantes temáticas, geográficas, ou em autorias incontáveis e inapropriáveis. Como o mundo. E dentro do mundo. Ou como um cérebro. Com todas as alturas inacessíveis e todas as escadas a poder subir. Mas esses lugares, tantos feitos maravilhosos de conteúdo e potencialidade. Tantos formulados numa estética luxuosa de acordo com o valor e uma época. Palácios arrumados e herméticos vistos de fora. Dos vidros das estantes. O saber fechado ali. Tanto saber e tanto mistério. Tantas coisas e não coisas. Tantas e tão maravilhosas de maravilhosamente mortas. Caladas. Em bibliotecas. Ou então sussurrantes de apelos e tentações. Lembro aquela, banal, de “As asas do desejo”, de W. Wenders. Repleta de murmúrios e da respiração secreta dos anjos. Mas eu não gostaria de ascender ao paraíso de uma. Viver. Cada vez me rodeio de menos livros. Mortos. Vou-os deixando por aí, porque muitos se calaram. Muitos nunca disseram. Mas os livros são um amor específico com todos. Não se pode obrigar. Acontece porque tem que acontecer. No dia certo.

7 Out 2016

Grande muralha, pequeno papel

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os confins do meio. Este meu costume de revirar as pequenas coisas que me ficaram impressas a bold na memória. Sempre à procura da razão de ser assim. Mas sei. Mesmo quando não o sei, que fazem sentido. E que ficam porque cimentam. E como as fibras da memória, umas revivem ciclicamente, umas crescem, outras secam, pulverizam-se ou voam inteiras. Ou sintetizam-se, resumem-se, decrescem em complexidade de detalhes, simplificam-se a um ponto de minimalismo em que ficam para sempre.
Um dia vi-me em Pequim. Sozinha numa aventura como outras de desafio dos limites, como de outras vezes. Aos vinte e poucos. Cumpridora como era em muitas coisas, precisava de equilibrar com intervalos possíveis de liberdade. Sobretudo aquela que se vê de dentro. Quando pode ser a única possível e total. Viajar sempre me foi penoso se não imbuindo o ir, de contornos absolutamente vagos, indefinidos e fora de todos os planos, horários e mapas. Planear, decidir. Diariamente. A pressão de tornar uma viajem, um tempo de eficácia. A produtividade, a ocupação minuciosa do tempo delimitado e finito a absorver o máximo de uma terra estranha. O crime de não chegar a ver um ícone fundamental. De perder tempo com coisas pequenas. De não ter ido. De não ter estado. De não ter visto. O que queria de uma viajem era muito outra coisa que me fazia sentir culpada de tão pouco que era. Lembro-me bem. Ainda sou assim. A história fica para depois, em casa. Uma outra viagem. Ali, só quero ir. E estar. E ir indo. E percorrer espaços que às vezes nem identifico. Perder-me. Não saber necessariamente onde estive. Parar ou não ao sabor de impressões mais veementes. E que ficam. E que chegam. Flanar. E ir por ali sem medir tempo e obrigações. Muitas vezes sem um rumo preciso. Só o do olhar. Ver. Ser atraída pelo desconhecido do ver. Só isso me parece diferente, livremente diferente de tudo o resto. A que me obrigo. Todos os dias. Menos esses.
Aquela minha eterna condição de não querer acordar, de falhar muitas vezes os horários de tudo, de um nascer do sol maravilhoso nas montanhas de Taiwan, a um encontro em Nova Iorque, uma reunião na escola ou um avião. Quando eu viajava. Perdi coisas por atraso, de tanto nervosismo na impaciência da espera. Ou recusa de acordar. Já não sou assim. O desinteresse em acordar parece ter enraizado mesmo dentro do próprio sono, fazendo indiferente a mudança de um estado a outro. Hoje é mais o frio. O do inverno, também. Que me faz encolher no conforto uterino da cama veementemente avessa a deixá-lo. Por isso, quando viajava só, tudo me era permitido sem remorso. Estar em Pequim, por poucos dias que fossem era em si a minha viagem. Estar, era o modelo perfeito. E percorrer a cidade naqueles autocarros a ranger de lataria, pejados de gente que parecia vinda de aldeias remotas ou das estepes frias e secas como a cidade, caras morenas e largas, de sorrisos imensos pejados de dentes metálicos a reluzir no colorido de tudo, e malares proeminentes, roupas de outros tempos e que pareciam de uma vida inteira, e eu ali com aqueles molhinhos de notas do mercado negro, pequeninas e muitas, adquiridas sei lá eu hoje como, que me diziam como usar a rir largamente do meu espanto, autocarros de que saía algures para ver uma coisa qualquer que no momento me prendia, sem saber muito bem onde estava, sem querer preocupar-me em saber.
Um dia lá tentei madrugar. E mesmo assim a fazer-me atrasada numa manhã, sem querer, para vir dos confins do noroeste da cidade, para os confins do meio, a tempo de uma pequena viagem matinal à Grande Muralha. Isso desejava imenso. Atraso irremediável. Calcorreei a homérica avenida transversal à cidade. Uma parte, claro. Quarenta quilómetros de extensão, e muito espaço a distanciar cada hotel e as suas carrinhas de tour de cada outro hotel e as suas carrinhas de tour. E cada um a que chegava já dando por partida e perdida a carrinha. E isso, eu queria muito. Ir. Por fim Tiananmen, alguém explicou. Antes de Tiananmen. Meses. Quando para mim era ainda só a grande praça e não acontecimento. Por ali. É longe, pergunto e um encolher de ombros a pensar na escala da cidade acompanhou um hesitar nos talvez dez quilómetros. Não sei já se dez quilómetros à frente. Se não foram, pareceram. Quilómetros corridos a pé, e, no último minuto uma carrinha com meia dúzia, nem tanto, de turistas de outra China daquela imensa, e eu. Um par de rapazes de confins de outro interior daquela terra vasta, ou de uma outra China do norte e com a mesma curiosidade que eu. Um, calado e ausente. O outro, numa discreta e só depois entendida ânsia de comunicar. Espaçada, tanto, que só muito depois se constituiu em ritmo e padrão. Horas depois.
A solidão espacial imensa das montanhas naquele ponto da grande muralha. Um frio negativo. Uma foto, a única, tirada pelo rapaz chinês alto. Eu ali. Nunca lá voltarei talvez, e a emoção sobra até hoje. Um posto qualquer de apoio a turistas, recordações poucas e de que não precisava, e aqueles chapéus de pele, aquele vocabulário das montanhas, das estepes e do frio. Pele de coelho, talvez, e o muito frio. Pus e voltei a pôr. Não sei a dúvida que foi. E abalámos. Um bilhetinho, laboriosamente escrito ao longo de longos momentos e quilómetros. “Do you whant to buy that hat?”. Assim. Já tentara falar com ele, prestável e atento. Curioso e sóbrio. Mas não falava. Percebi antes que sabia, mas só muito depois, que ele só sabia inglês escrito. Tudo levava horas e a entender também isso. Não sei o que lhe respondi. Aí, já por escrito. Talvez que não tinha dinheiro. Talvez que voltava para um lugar de menos frio. Talvez que não queria nunca viver num sítio de tanto frio. Ou que não era importante. Ou então: como… já que havíamos partido do lugar. Talvez quisesse dizer-lhe simplesmente e para simplificar: Não, obrigada. Ou, de tão grata e surpreendida pelo empenho alongado no tempo por tão pouca coisa, não, obrigada, mesmo. E deixar para sempre a clarificação naquele acrescento, de como me senti desvanecida e grata, pelo seu enorme esforço em mobilizar aquelas poucas palavras mágicas, sinónimo de vontade de ajudar, de vontade de comunicar, de vontade de fazer o seu melhor, mesmo tendo passado o momento. Até hoje. Tão forte como a emoção do lugar em que estive, este pequeno detalhe. Que me vem sempre à memória com aquela fotografia. E um dia escrevi, no espanto da pequenez disto. De voltar a casa com tão poucas memórias. Tão pequenas. Tão grandes. A cidade enorme. O lago gelado. As montanhas. A Grande muralha. O pequeno papel.
A pensar que, onde havia um verbo no presente, talvez um erro tivesse substituído o passado. O tempo passado. Do verbo certo. Talvez. Certo porque o tempo havia passado. O sentido, no momento inverosímil era no fundo indiferente. Se tivesse respondido sim talvez ele soubesse um outro local ou exprimisse a pena de um pequeno desígnio frustrado, o meu. Palavras difíceis. Sofridas mas esmeradas. Pequeninas. Poucas. Demais. Porque sobram até hoje. Desnecessárias, e assim mais valiosas. Por o serem. E o chapéu, esquecido na cor, para sempre aquele chapéu. Como se ainda lá estivesse. Como mágico. Aquele.

23 Set 2016

Caverna de Kafka. Castelo de Platão

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á sempre aquela vista do castelo. De baixo para cima. O meu olhar esperançoso de que desta vez seja por uns tempos e que depois tudo. O tudo de sempre. Volte ao normal, por uns tempos, o normal de sempre. Avanço na direcção da porta. Do castelo. A porta ali ao lado, o castelo em frente, em cima.
Ai, ai ai, ai ai. Rola despedida curva abaixo. O castelo pelas costas. Casario acima. O calor a insuportar. A bandeira pendente.
Ai. Responde a caverna ao vento. Cidade acima, bandeira a adejar. Adejou e parou. Ai. Com um guincho de travões.
Take I – Travo a cadeira de rodas com um joelho e um canto da barriga, só um canto, para poder agarrar-lhe, para além da cadeira, os cotovelos. Inclinar-me para ela. Erguê-la. A cadeira escorada contra o carro de ladeira acima. Ou abaixo para ser optimista, ou, já não sei. Os cotovelos e deslindar-lhe os pés dos apoios para os pés. Que se levantam mas caem. Não encontro o travão da cadeira. Se calhar já não tem. Há um momento crucial em que, para dar o impulso de a entornar, quase assim, coitadinha da minha paciente sempre e sempre paciente em tudo isto, para o banco dianteiro do carro, me distraio do canto da barriga, do joelho na cadeira, e avanço o outro joelho em que quase sentada, há-de deslizar um pouco abruptamente para o banco. Enquanto a cadeira se solta e desenfreada descreve um curva vertiginosa em rota de colisão com a ambulância que avança entretanto numa correria desatada e uivante. Ao lado uns metros entre mim e o castelo, o segurança e um paramédico conversam da vida encostados a uma outra ambulância em repouso. Olham eles. Olho eu. Olho estarrecida, muda e estática a curva da cadeira. A ambulância que corre. A minha paciente que pesa e quase cai. A cadeira, que no seu desvario curvo, vence as leis normais da gravidade e sobe desvairada numa rota já escondida do olhar por detrás do carro. Os cotovelos da minha paciente, paciente, e o joelho a amparar-lhe as pernas vagas. Aterra no assento meio de lado. A ambulância pára mais à frente. A cadeira louca também. O segurança e o paramédico olham, eu olho. E disparato um pouco, alivio os fígados: pediu ajuda? Não, não pedi…
Sento-me no carro, aperto-lhe o cinto e digo-lhe qualquer coisa carinhosa. Respiro fundo, furiosamente. Eu respiro sempre fundo quando há tempo. Olho-a no seu alheamento paciente com desvelo. Porque é para além de tudo o mais. Mas um outro lado de mim, tem uma enorme vontade de rir com todo aquele potencial fílmico. A cadeira desvairada e a ambulância, em rota de colisão como nos desenhos animados. Mas o riso, fica um pouco lá atrás da melancolia de tudo.
Take II – Mais tarde na semana, o carro de ladeira acima, ou abaixo consoante a perspectiva. Os cotovelos, um joelho discreto a amparar a paciente, paciente, e outro a cadeira destravada, devia ter um travão mas se calhar já não tem, e o canto da barriga a ajudar. A paciente entornada com a delicadeza possível no banco dianteiro do carro. O joelho a prender a cadeira que gira um pouco sobre si própria, teimosa e impaciente, a querer libertar-se. Fechar a porta. Suspirar fundo e olhar em volta a querer exibir um ar triunfante. Talvez mesmo um sorriso. Ninguém. A observar, a ajudar. Isto correu bem. Devolver a cadeira.
Take III – A mesma cena, só que sem paramédicos, ambulância, segurança, cadeira de rodas, paciente. Na verdade a única coisa em comum é o carro de ladeira acima, com a patinha quase a descambar na valeta com sarjeta abismal, porque o segurança diz sempre encoste o mais à esquerda possível, e o nariz bem encostado ao sinal de sentido proibido, porque o segurança diz sempre encoste o mais possível ao sinal. Fecho a porta do carro de ladeira acima e de monco caído. Eu. O carro também por empatia. Não há cadeira tonta, não há paciente, paciente. Nada. Ficou lá. Para ir logo se vê para onde. De resto só aquela figura que diz, monstruosa, o preto, o macaco que está ali, o segurança. Um outro, neste caso. Mais nada. Devia disparatar de dentro para fora, mas estarreci e engoli em seco, como antes, a olhar para a cadeira, e um pouco reduzida a metade de mim, no dia longo. Desculpem-me todos os que leram aquela frase. Sim, não é que me choque mais a cru, é que me sinto morrer mais um pouco. Este humano demasiado humano. O excesso de realidade nos momentos limite. Hospitais devolvem qualquer um ao seu interior nem sempre belo. Mas há momentos feios de morrer. Lá fui de monco caído, como disse. No sentido contrário ao do castelo. Aliviada. Descansada. Ou não. Quase a antever a saga do cobertor azul. O pico anedótico dos episódios seguintes.
Grande plano final – E depois, aquela arrumação provisória de um trecho de vida a recobrir de qualquer outra coisa que distraia, que faça esquecer até amanhã. Fechar uma gaveta e abrir uma outra de onde se evole uma possibilidade de conforto. Voltar a casa. De caminho uma passagem rápida no supermercado. Uma daquelas latas do costume porque tenho a impressão de que ontem ainda não jantei. E num gesto compulsivo agarro com o mesmo desespero que a uma boia de salvação, um pé de orquídea. Minto, dois, na realidade três, pés de orquídeas. Phalaenopsis floridas, delicadas naqueles tons de branco a esverdear e olhos amarelos. E uma, branca mesmo, de olhos purpura, e a imperfeição de um sinal da mesma cor numa única pétala de cada flor. Como um pequenino borrão de tinta. Um sinal curioso e assimétrico de imperfeição. Como aquele sinal do meu pai. Negro e saliente sobre o canto do lábio superior. Não me lembro de que lado. E que os fotógrafos retocavam sempre, a fazê-lo desaparecer como marca de imperfeição. Havia um único retrato dele em que isso não aconteceu. Não lembro qual. Por aí no baú, tenho que o encontrar, mas não agora. E ela rebelava-se tanto. Gostava daquele sinal. Adorava vê-lo inteiro em cada retrato.
Flashback – Durante mais de dez anos nunca lhe falhámos um domingo. A meio da tarde, fizesse o tempo que fizesse. Até quando a ela já lhe custava muito percorrer aqueles passos. Limpar o mármore. Arranjar as flores frescas na jarra. Conversar sucintamente sobre a composição do ramo. Retirar um pé aqui e pôr ali. Ramos de folhagem recém colhida. Sempre variadas e naquela mistura aleatória de que ele gostava. E da quinta, para lhe serem mais próximas. Algumas plantadas por ele. Ainda. Depois ficávamos um pouco em silêncio. Cada uma no seu. Ou a falar com ele, talvez. E íamos. Mais adiante virávamo-nos sempre, mas sempre, para trás a ver como estava. A jarra. Só dizíamos coisas como hoje ficaram bonitas. Estão bem presas, não vão voar com o vento. Está bem. Hoje ficou bem. Quando deixei de poder ir com ela, deixei de ir. É uma dupla mágoa. Ela a limpar com o lencinho o rosto de esmalte da fotografia. Naquele gesto eterno das viúvas. A minha avó fazia o mesmo. Eterna saudade. Escrevemos-lhe. Sim.
E eu levo-as para casa, as orquídeas. Que mesmo em sombras delicadas na parede, me confortam. Junto-as num único vaso branco, na necessidade urgente de afogar os olhos nelas. O desvio. E deixá-las inundar-me com o animismo daqueles olhares benévolos. Encontrar a doçura possível do dia. Como elas, as flores, com uma marca de imperfeição. Mas é assim a vida. Zoom out.
E, pensando em filmes, só me lembro da cena final de “E tudo o vento levou”, com Scarlett O’Hara, personagem talvez por vezes um pouco tonta, mas corajosa, a dizer esse monumental estereotipo: “amanhã é outro dia…” E é… Acordar. Zoom in sobre um copo bonito de sumo de laranja e começar o dia com uma cor veemente…escrever cartas de amor, talvez, sei lá…e o que fôr. E depois.

9 Set 2016

Do real absoluto. Do absoluto ideal

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stas coisas dizem-se depois, se houver. A realidade daquela escarpa abissal à beira da cama. À beira do rio de mansidão à beira do travão do carro. Não se dizem. Mas é indiferente ao remorso.
Hoje, no supermercado, comprei uvas com sulfitos. Não sei o que é mas deve ser uma coisa boa. Dizia ali. Provei-as mesmo sem lavar. Eu provo sempre a fruta no supermercado. Enfim, a de menor calibre. Lembro-me sempre de que ela, que aqui dorme ao meu lado no carro, dizia dantes que nos mercados de Tomar, de Tomar dantes, se dava sempre a fruta a provar. A fruta de antigamente. De tamanho variável e sem a alcunha pobre do calibre. De rugosidade variável e de brilho variável. De assimetrias a tornar cada peça uma coisa única da criação. Ela está aqui. Está e não está. Cada vez mais lhe vejo só o prateado do cabelo e menos o rosto. À medida que se vai curvando sobre si própria. Numa curva para dentro de um nada que começou há muito a invadir-lhe o interior. E à mesa, na minha frente, ainda. A minha recusa de a ver doente. Empurra a comida para o garfo com um dedinho infantil, inábil e um pouco trémulo, indeciso do efeito e da intenção. Começámos a comer muito lá atrás. Eu que como devagar, já fumo um cigarro na sua frente e observo-a dando-lhe espaço para alternar os seus estados de consciência. Dando-lhe todo o tempo. Parece uma criança. Cada vez mais. Cada vez mais pequena e próxima do prato por vezes irreconhecível. Às vezes só uma criança muito pequena. Outras vezes, como se com uma síndrome. E criança. De olhos toldados de incompreensão. Ponho-lhe uma taça na frente com um cachinho de uvas que ela adorava. Adorava, quando sabia que adorava. Lavadas agora e frescas. Pega nele, sabe-se lá se com a vaga memória de gostar, e pergunta se pode comer. Sempre. Pergunta sempre, agora. Quando se lembra do que se trata ali. E eu na frente já fumei dois cigarros e agora escrevo. A dar-lhe todo o tempo. A observar e a absorver o que ainda há. A tentar entender. Não há tempo. O tempo do relógio não existe. Nada disto me é estranho porque ela não é uma estranha. É ela. Não sei onde, talvez no corpo, ou em mim. Ainda. É real?
E o gato, há um gato de uma vizinhança de daqui a dois prédios, e que afinal é uma gata, e que passa como se fosse um spot rápido na televisão. Na minha janela. Uma janela no terceiro andar. Ou quinto. Como no outro sítio, o meu vizinho chinês, jovem de idade indefinida, passava de varanda para varanda quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. E ele sem vertigens. A passar de varanda para varanda. Como o gato. Que afinal é uma gata. Como eu num outro terceiro andar, miúda. Sem a noção de preço e de morte. A passar de varanda para varanda. Quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. É isso. Fragmentos abruptos e efémeros de irrealidade.
Todo aquele céu, todo aquele rio, todo aquele silêncio parado. E nada. Falsamente nada. Porque as águas não param de correr, mansas, inexoráveis a querer dizer. Nada. Mais do que nós ali. Eu, a minha enorme indiferença, ela, a sua enorme anulação. E minha, nela, em mim, sem mim. Passamos no corredor. Ontem. Ao lado do móvel onde estão todas aquelas fotografias já quase impertinentes. Em que não reparo, no temor de cair por ali adentro. Ou ela. Naquela espécie de passo de dança indecisa, esquecida, lenta em que a ajudo. Diz as minhas filhas estão todas ali. Um acesso inusitado e estranho de uma lucidez rara, confusa e quase assustadora. De palavras. De profundidade. Do rio. Todas as idades delas, minhas, dela. Há muito tempo que não lhes vê diferença. De pessoa ou de tempo.
E ela abandonada. Ali abandonada de todas nós, no banco dianteiro do carro, na cadeira, na cama. Abandono-a à única indiferença possível à sua desaparição imparável, por detrás do corpo sólido. Também a diminuir. Abandono-a comigo. Nela. E procuro na imensidão do espaço, a indiferença à indiferença. Na diluição, no espaço, na dor. No vocabulário dentro. Do qual, tudo é possível. Começar, imaginar, cometer. De dentro para fora. Da desconstrução.
Deve haver outra maneira de não olhar para a frente para todos os significados possíveis e aquela sensação delimitada. Do pé.
Como uma louca a andar e janela em janela. Às vezes. Outras vezes. Na casa. A tentar sentir. O sabor do rio e ele ali. Pequenino, seguro, longínquo na janela pequenina. O rio. O mesmo de antes. Que estava ali à beira do carro. Na frente do carro. Não há silêncio maior do que o silêncio denso e insólito do verão. Do rio à beira do que quer que seja, no verão. Naquele local de silêncio que escolho longe de tudo. Menos de algumas pessoas que fazem coisas de tempo e de silêncio. Como pescar. Às vezes à noite. Famílias ou algo no género. Vizinhos, talvez. Várias idades, sem smartphone, vozes esparsas, ali, à beira rio. À pesca. Como noites de há muito, antes da televisão e de tudo. Não há silêncio maior do que o do calor do Verão, mais evocativo da planície se esquecer as cigarras. Mas é o tecido da planície. Do ar. Há um vazio especial no ar parado, na temperatura do calor tórrido, do ar. Na temperatura entorpecente do corpo à beira do abismo do rio como do carro à beira do rio sem barreiras, do carro para o rio, para mim. Onde quer que esteja naquele preciso momento. E a questão é sempre a do lugar. Estar ali, mais longe do que em qualquer país estrangeiro. Como um intervalo de sono.
Ela ali sentada sumida ao meu lado no banco dianteiro. Cada vez menor. Dormita e de repente palra um pouco. Como antes de aprender a falar. E peço-lhe que me deixe calada. Que se deixe calada de novo e dormitar. Que me deixe esquecida. Concentrada na indiferença. O que sobra da dor. Do amor, digo.
E ela passa-me na varanda todos os dias, para lá e depois para cá. Pára sempre e olha. Às vezes eu vejo. Já aconteceu estar dentro de casa e eu não reparar, não saber e ela vem dali. Mas muitas vezes eu vejo. Num repente em que desvio os olhos do que penso ou para o que penso. E vejo. E quando vejo, é porque passou. Ali. Na varanda. E se vejo, suponho que existe. Há outras provas determinantes de realidade. E quando vejo, e porque é mansa, e nunca deixa de me olhar naquele fragmento de tempo em que me passa na janela aberta, fico contente com a vida que me faz caminho. E este gato vizinho, é real. Como aquele momento. A concentrar-me na pressão potencial no pedal, possível, a não fazer. Ainda. O pedal do lado da foz. Uma pequena pressão, só, o travão desengatado, e uma pequena pressão como num gatilho para um tiro surdo. Rápido. Com todo o percurso de eternidade de querer e de não querer e não fazer sentido uma coisa ou a outra. E ser só um momento aleatório de possibilidades. E a diferença entre fazer e não fazer é tanta ou tão pouca como a realidade deste gato. Gata. Eu sei. Cinzenta. Tigrada. Gordinha.
Passou por ali um anjo. Dependendo do exacto momento, se determinável, se definido algures naquela paragem, de morte ou salvação. Mas não houve registo nítido desse fragmento na ordem das coisas. Não saber. Era preciso determinar com absoluto rigor. O imperceptível rumor. Que nem ouvi. E quando. Talvez uma ronda de rotina, afinal. Sem mais intencionalidade.
E não sei porquê. Porque voltei, voltámos. Talvez porque restam os anjos. E se restam os anjos, é com eles que eu posso ser feliz. Há maneiras mais pobres de morrer. Mas restam os anjos. E se restam os anjos eu posso ser feliz. À maneira deles. Se restam os anjos. E, quando abro a janela e olho, e ela passa, sei que ainda me parece um resquício surreal e insólito. Mas é tão real como qualquer outra coisa. E fico contente, não sei porquê. E ali na beira do rio, também não sei porquê. Talvez porque restam os anjos. E, se restam os anjos, é com eles que eu ainda posso ser feliz. Se restam os anjos, eu posso ser feliz. Se restam os anjos.

2 Set 2016

De Saturno a Marte

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m instante-luz, ínfimo. O logo ali, na curva imensa do espaço. Do tempo até nós é a guerra. Todas as guerras em que o tempo é voragem e nós nele, consumidos. Interrogação de um diário. E ver. Onde e se ali aparece a ferida aberta. A entrada da desarrumação que tomou parte-lugar e não se decide a ficar nem partir. Um indício que remonte ao dantes e faça luz incidir no depois estranho destes dias. A luz medida. A palpar a escrita cuidadosa e cuidada em segredo. Como se não fosse. É assim a preocupação de um escrito, com a surpresa eventual, inoportuna, do olhar. Não é para haver, mas todo o cuidado e espuma perfumada como se fosse. Em vida. Ou depois. Onde vai o tempo. Na ordem certa das páginas e dos dias. Dos gestos e das palavras indeléveis. Fixadas pela matéria prosaica do papel e da tinta, dita permanente. Em caneta grossa e macia, de aparo. A revolver delicadamente ou penosamente os restos de memória nas palavras, e de limar todas as asperezas, irregularidades, imprecisões, ou acarinhar em movimentos redondos os pensamentos mais nítidos como um seixo rolado nas marés infindas dos confins do tempo. Como uma peça de Raku, onde se reúne a essência dos quatro elementos, terra, ar, fogo e água – como as palavras, como as palavras em bruto, a ecoar, a incendiar mais nas emoções e lavadas, depois, dos excessos – a rolar de uma ladeira, a arrefecer como lava, a ver se resiste e como, à abrasão suave da erva. E quebra ou resiste. Ou como uma escultura de H. Moore, que, dizia, devia resumir-se às formas redondas e suavemente niveladas, que resistiriam a todos os percalços da física, do mar, dos elementos todos. Rolar pensamentos até ao estado puro e então escrever. A caneta. Na ordem natural das folhas. Mas antes essa guerra surda e etérea fechada nos pensamentos antes da escrita visível. E depois o tempo a mudar.
E depois, deixa de haver o tempo, a ordem, o fio condutor de um percurso linear. Todas as emendas possíveis na folha digital, todas as emendas ao tempo. Tudo ramifica em árvore e planta labiríntica. Tenho esta obsessão da ordem, da cronologia da linha. Marcar o tempo, pontuar em nós nevrálgicos, as irregularidades. Datar. Entender a consequência e encadear. Como se fosse desenhável. O tempo. Ou a vida, uma sucessão líquida e fluida. Regular como um rio, da nascente à foz.
Precisei de tempo para ver crescer como fungos ou plantas parasitas, irreprimivelmente, a desordem dos papéis. E o tempo desenhou aí um padrão visível. Só o tempo. A decorrer. E um dia entendi a perversidade desses registos tirânicos em que se avolumava a impossibilidade. Eram para ser provisórios, a suportar a memória e nela. Mas ao longo de dias, sempre a desarrumar-se na orientação da folha, no intercalar de diferentes ideias ou simples palavras soltas nos espaços vazios. Quaisquer espaços mesmo entre frases. Como invasão de casa alheia. A misturar tempos, memórias de ideias a percorrer depois, a acusar o declínio do cuidado. Um copo que se entorna, uma queimadura, um rasgão impetuoso numa pressa, um número de telefone sem nome. E as folhas a sair da ordem provisória. E tudo o mais a ficar distante, confuso. Distinguir frases pelo tamanho da letra, nas suas pequenas variações de humor. Uma perturbação que se tornou ânsia de ordem permanente. Ordem naqueles pequenos e variáveis fragmentos de pensar fragmentado em partir de um certo momento passaram a ser múltiplos. Uns para uns humores e outros para outros amores. A dispersão e o abandono. Por anos. Fruto do tempo. Tudo me dispersa, saudosa do tempo em que tinha uma caixa de correio, um diário e um tempo de trás para a frente e daí para trás. Arrumado e penteado. Como a simplicidade dos sapatos. Um par velho e um par novo. Nos anos bons.
E um dia ofereceram-me estes grossos catálogos cartonados. De revestimentos. Também isso fez sentido. As capas e matérias de que se revestem os nossos eus. E deles fazer os meus livros. Destruindo e refazendo no suporte grosso e confortável daquelas capas e folhas de cartão. Fui andando com eles no pensamento e elaborando um caminho. E depois comecei. A destruir, primeiro. Comecei este diário.
Na realidade ando há muito a começá-lo de vários ângulos. A tentar resolvê-lo. Como se um diário não fosse simplesmente para começar num dia qualquer e ir por ali. Na ordem das páginas. Mas há muito, também que não consigo ter qualquer obediência à ordem, ao espaço, à forma à cronologia do tempo ou das folhas. Esta obsessão da cronologia, do encadeamento, da lógica da ordem e do sentido produzido pela ordem, pela análise da ordem. Digo de novo. Mas algo em mim se desarrumou e rebelou. Se fragmentou e desmultiplicou em suportes. Se abespinhou em desarrumar cada vez mais a desarrumação. E aí estou de novo a pegar numa folha de papel, só uma, digo, e depois arrumo, penso, por exemplo. Mas, rapidamente lhe vou acumulando desvios. E de novo escrevo de lado e nos intervalos de parágrafos e de pernas para o ar e rasgo bocadinhos para apontar um número. Mais um número que vou esquecer de quê. Todos os dias esta compulsão em desarrumar o que era à partida para ser registo precário, e me invade os olhos angustiados ao longo dos dias. E a crescer. Uma pilha imunda de palavras provisórias. E nunca mais deixam de ser e é o inferno em forma discurso. Papéis perversamente desiguais e confusos, como a criar voluntariamente dificuldades ao sentido. Que, desmultiplicado nas associações quase livres, cresce. E cresce em angústia o meu olhar ali para a direita. Sempre daquele lado. E limpo neles os pincéis e entorno coisas. E cresce a dificuldade em os olhar e tornar úteis e a impossibilidade de os deitar para um lixo onde já está cada palavra que não digo. Nem é que nada faça falta. É só uma curiosa disposição que se impôs. Como se tivesse deixado de ter ordem na cronologia das coisas e das frases. Ou como algo a querer dizer-me que tivesse deixado de lhe encontrar sentido. Continuando obcecada por ela. No entanto.
E quando entendi que a construção daqueles objectos, com as mãos e com as matérias e com o tempo, podia reproduzir essa desordem, absorvê-la sem critérios word e ilustrar essa aleatória incidência de fatos, pensamentos e questões, resolvi em parte uma ansiedade. E comecei. Com pedaços fragmentados de vida a cair sobre as folhas desdobráveis e tão labirínticas quanto podem ser as folhas em leque de um livro. A abrir em quatro sentidos. Como dias soltos e momentos perdidos da ordem, colados às páginas, em qualquer lugar da história do gesto de abrir. Vida solta. Pedaços torturados de dias, colados, recombinados, livres para outras leituras. Rasgados, fragmentados e sujos. Misturados. Perdidos. Da ordem. Se ela existiu. Mas existiu. E é intangível. E não unicamente a urgência de um pensamento mais rápido do que o momento da vida em que se rebelou e quis ser algo.
Livro, labirinto. Como labirínticos são outros percursos. E assim está bem. O livro. Como retrato sintético de uma fuga à cronologia. E em busca da cronologia perdida. Ou do tempo. Um outro tempo.

26 Ago 2016

Nome interior

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntranhado no cerne do texto como sob camadas e camadas. Ilegível. Podia ser crónica da cidade de K. Mas não uma referência à Trilogia da cidade de K. De A. Kristof. Simplesmente um paralelismo de título. Na Verdade a cidade de B – K, a cidade de B. Há um título. No interior do texto. No interior da cidade. Dessa cidade. No interior da casa, dessa casa. No interior. Um título difícil de dizer porque submerso. Ficou assim. Finalmente e bem, porque se trata do interior. Um título surge às vezes no início, vai mudando ao longo do texto e apresenta-se muitas vezes com a nitidez irremediável, no final. E com a naturalidade de núcleo em que quase podia resumir-se ali uma crónica. Não esta. Tanta dificuldade em definir um, não pela falta mas pelo excesso. Podia ser crónica da cidade de B. A cidade de K. Poderia ser uma trilogia das cidades de B., mas era uma outra crónica que não esta. Do muito antes, e esse seria um título possível, do muito depois, e seria outro. E de aí. E aqui vai. Do ver…
Lembro muitas vezes aquela imagem. Agora que me interrogo, tantas vezes perplexa, sobre as múltiplas camadas do ser. O ser ínfimo, pequenino bem lá no âmago da parte mais recôndida de nós. Disse-ma, desenhada no discurso, com aquela nitidez preciosa de uma pequena fotografia antiga a sépia, uma mulher que vi uma única vez há muitos anos, de quem não lembro o nome, amiga de B. na cidade de K. “That little inner self” ou “that little inner me”. O inglês, meu e dela, não eram de grande sofisticação e nenhuma de nós falava a língua da outra. Casa nova. Uma festa com tango. Inaugural também dessa paixão para sempre. O tecto longínquo, uma lareira enorme e os quadros cheios de seres, minúsculos também eles, nas paredes. Enormes os quadros, povoados de enormes pinceladas cheias de inquietação a negro, ínfimos, quase invisíveis, os seres. Numa contradição de escalas absurda. Veemente. Que só mais tarde vim a entender. E a imagem ficou para sempre. Uma e outra. Ela, essa mulher doce, séria, intensa. De voz baixa quase inaudível. E a imagem que me fez ver. É esse ser pequenino que colhe e que fere. De uma ternura que, maior que tudo, dói mais que tudo.
Naquele dia, acordei na sala grande, rodeada daqueles quadros enormes e incríveis e com Milena – o nome não foi um acaso – miúda, sete, oito anos talvez, já não sei, com aquele ar feliz, aquela voz, já então curiosamente rouca e grossa, aquelas covinhas no rosto liso e branco, de um brilho quase de porcelana. E uns sapatos indizíveis de camurça preta, enormes e de salto alto, calçados e acabados de apanhar do lixo. Para me mostrar. Pareceu-me. Talvez em troca das ervilhas e arroz que lhe cozinhei aqui, e a única coisa que comia num país estranho. Quando queria ficar a dormir na minha cama e achou tanta graça, no seu modo aparentemente distante, quando lhe apresentei as minhas bonecas, e ao facto de terem nome. Claro que as minhas bonecas têm nome. Mesmo Sissi, mais recentemente. A minha primeira boneca menina, oferecida por uma prima imigrante em França. De cabelos crespos aloirados e olhos azuis. E crioula – a boneca – realidade que só se impôs com toda a sua estrondosa evidência, como uma epifania há meia dúzia de anos. Como aquele meu tio-avô adorável e com nome de flor, alto, moreno, de olhos salientes e lábios enormes, cabelo frisadinho e músico de trompete…Tocava aos toiros nas horas vagas. E de resto contabilista como Pessoa. Mas como pessoa, um amor de energia, ternura e humor. Daquele se diz que a contabilidade traz o poeta à realidade. Deste, meu tio, talvez a música. O fizesse voar dali.
Aquele rés-do-chão alto em K., a lembrar uma imagem onírica, remota, bela. Montparnasse, uma janela, um quadro vivo, uma sala grande, um piano, livros, uma mesa enorme para dois, calmos, sós de aparência silenciosa, com todos os segredos e raivas possíveis para além daquele momento mudo entrevisto de baixo, de longe. À distância da utopia. Com B. ali também, os nossos seres pequeninos e grandes, de mão dada a olhar. Mas em K. agora, muito tempo depois, já não de mãos dadas, mas visíveis como sempre, uma cidade realmente triste e com um número contadinho sovinamente de horas de sol. Não semanais ou mensais. Anuais. Onde, mesmo assim aas pessoas conseguem ser felizes. Ou por um outro lado, talvez o contrário, talvez o oposto, a Islândia. Como se pode viver sem o lado escuro dos dias, sem o lado noctuno da alma, ou sem lhe encontrar o lugar de apaziguamento, de fechar as portas a recolher-se depois de toda a violência, de todo o conteúdo a extravasar dos dias. Altos e baixos como as vagas e mudar a folha do calendário. Como se consegue viver sem esse lado nocturno de nós e sem a empatia da noite, o ocultar progressivo do ruído, o sinal de que é bom apagar e reacender para outro dia mesmo se igual. Apagar em sintonia com o astro. Como cílio enorme que se fecha connosco no seu seio.
Mais tarde no dia, os miúdos todos do prédio sentados na cozinha a comer batatas. Cozidas e com azeite. Só. A maravilha das coisas pequenas. Mas não como aqueles comedores de batatas de Van Gogh, o chilreio era de alegria, e porque não havia tempo para mais nos preparativos da festa.
Ela, essa mulher nesse dia e de quem não lembro o nome, sensível, secreta e densa. Esqueci-lhe o nome e perdi-a de vista porque tem que ser assim com muitas pessoas que vão passando. Havia um papelinho fino, arrancado ao canto de uma página de qualquer coisa, um envelope, talvez, com uma morada ou talvez um endereço de email, já não sei. Mas a propósito de deixar de fumar, naquela sua voz baixa de uma enorme suavidade, seriedade e ponderação no peso com que dizia. Dizia ela, que isso acontece no dia em que conseguirmos ver com clareza esse ser pequenino, verdadeiro elementar e íntimo que transportamos em nós, e o virmos como um ser que se carateriza ou não por fumar. Penso muito nisso e agora, que vejo melhor esse ser pequeno, insignificante e escondido a boiar na imensidão de tudo o resto que sou no coração, vejo-o, a esse ser pequenino como uma criança que fuma. Sempre. É isso. Pequena, carente, indefesa, desesperada e dependente. Uma criança de três anos, que fuma. Nada é possível fazer. Dizendo o que ficou dito, ficou tudo o mais por dizer. Porque isso sou eu a dizê-lo. Eu que sou outra. E se eu fosse mais eu, dizia de maneira diferente. Noutro tempo noutras palavras. A forma, o recorte exacto, a cor, o aroma do medo, tudo. Tudo o que não sou porque não quero ser. Não posso e não quero ser. Mas sou lá no fundo. Bem lá no fundo. Um fundo longínquo mas como a crista da onda, sempre ciclicamente a alternar com a calmaria lisa suavemente curva e mansa chã. O chão da onda. Aquele movimento curvilíneo e largo de vai – vem. E dizendo, sou eu que o digo e não esse outro ser pequenino de mim. Essa é a voz que não se ouve. Talvez eu nunca me tenha afastado dessa figura pequenina mas vejo-a melhor agora. A propósito de uma outra imagem recorrente. Um núcleo central e centrado, ínfimo e irredutível, por detrás de todas as pessoas e personas que somos em camadas sucessivas, envolvendo de forma centrada ou dispersa esse centro essencial e original. De que partimos. Que abandonamos, esquecemos, odiamos, tememos, escondemos de tudo e todos e de nós. Também. Às vezes. Às vezes como uma pedra. Um seixo minúsculo e redondo por igual. Pesado como chumbo e ínfimo. E irredutível. E para dentro do qual não há mais nada do que a mesma matéria visível à superfície.
Não me afastei nunca demasiado. Os terrores nocturnos que me acompanham até hoje podem dizê-lo. Que me perseguem. Uma destas noites, um estrondo enorme e de seguida um outro estrondo enorme. Nunca é preciso tanto para aquela paralisia de que sempre me custo a libertar, até conseguir mover o braço e acender a luz do candeeiro amigo. Percorrer a casa como um cão a farejar todas as possibilidades fantasmagóricas e a garantir que nada se passou. Ninguém. Nenhum monstro indizível. Nenhuma presença intangível. Só a casa. Acordada pelas luzes que vou acendendo precipitadamente ao longo dos corredores. Espreitando atrás de cada porta e olhando para cima do ombro para prever todas as possibilidades. E desta vez os estrondos impuseram-se no momento exacto do acordar e retrospectivamente com uma enorme carga de realidade. Realidade de som mas não de causa. A causa, como sempre, apresentava-se atemorizante, desconhecida, com uma qualidade etérea de fantasmagoria, acentuada pavorosamente pela aparente e veemente realidade do som.
E os terrores nocturnos, sempre nocturnos. Mas não sempre, afinal. Com espaços, intervalos de não sei o quê. Basta um ruído desconhecido que me acorde, naquele pequeno desfasamento entre o acontecer, o acordar, e o perscrutar retrospectivo, e a angústia instala-se paralisante. Esta noite um estrondo forte. Ali por detrás da porta, irreconhecível, dramático fazedor de imagens. Possibilidades. E lá estava o terror. E, pela primeira vez, deixei-o ir passando quase com indiferença. Uma indiferença estranha. Como se houvesse algo maior a temer. Como se não fizesse mal o que quer que fosse. Nada importasse, nada valesse a pena.
E ao contrário de sempre fiquei ali, meio distraída, ao contrário das outras vezes, por pensamentos sobre a estranha indiferença que me assaltou e pensei, estou a crescer. Depois pensei, estou talvez a morrer. Isto não me pareceu um bom sinal. Não ter quase mais medo. Não me importar o medo. Essa analogia quase como um presságio nunca se daria não fossem os pensamentos que avançaram na noite depois dos estrondos. A estranha indiferença pelas causas e pelos efeitos imperscrutáveis. A possibilidade de dormir depois. E dormir, depois. De manhã constatar serenamente que não foram pedaços de tecto que caíram como de outras vezes, mas um quadro que caiu, como de outras vezes e arrastando uma pesada moldura de latão. O quadro, um sorriso gigante de adolescência. Impresso em tela. Para uma exposição. O retrato, de mim com metade da idade. Significados, significantes. Ligados aos pensamentos da noite. Tenho vários retratos meus espalhados por aí. Mais para me lembrar que existi do que por narcisismo. Acho. Que existo. Como espelhos.
Ela deixava-se ficar para trás. Lembra-se de si a olhar para o chão que ia percorrendo, a orla do vestido clarinho e os passos calçados de verniz preto. Mais abaixo no final das pernas pequeninas. E a pensar, que ela, a pessoa grande não se virava para esperar por si. Um pequeno pensamento velhaco de criança a precisar de um mimo. Um pequeno pensamento desonesto a explorar a diferença entre o caminhar de pernas grandes e pequeninas. De um teste à possibilidade da prova do amor. E hoje sabe que quando se deixa ficar para trás as pessoas não se voltam. E por isso fica simplesmente. Sabe que não se vão voltar, não é por isso. Como ela, a pessoa grande, embrenhada nos assuntos sérios, e na pressa da vida. Mas de noite aconchegava-lhe a roupa e chamava-lhe carocha. Com beijinhos no pescoço. Ou carochinha. Nome que ainda hoje está dissociado do bicho em si. E que fica para reler e de todas as vezes que tem dúvidas. Porque não o diz mais. E sabe-lhe bem. Nunca perguntou porquê nem adiantaria. Ela não se preocupava em pensar os porquês das coisas. Tinha mais que fazer e não era assim que era. Tomaram-lhe de assalto o quarto, quando a outra pessoa grande estava em África. No exacto dia em que partiu. Ela directamente para a sua cama e a outra pessoa pequena arrastando um divã para a nesga entalada entre a parede e a cama grande. E ali ficavam sozinhos uns com os outros. Não sei, não sabiam, se tinham medo das mesmas coisas. Ela, a pessoa grande, adormecia exausta e morta de um cansaço de nela e nos dias caberem coisas para cinquenta horas. E ela ficava ali sossegadinha a olhar de lado o monstro negro atrás da porta, desenhado pela pouquíssima luz da rua, coada pelos buraquinhos da persiana. E sempre sem se lembrar que de dia eram os roupões pendurados. Sabe-se lá se também de noite. Eram e não eram.
O ser ínfimo e pequeno, sem realidade e sem peso, denso como uma bolinha de chumbo. Daquelas, das espingardas de pressão de ar. Que um dia dispara sobre nós e atinge o coração. Em cheio e sem sangrar. E se aloja ali. Pequena, ínfima. Dor. E um dia acontece. Vê-se sem querer aquele ser pequenino de outra pessoa. No centro de tudo. Para além do gostar e do não gostar. Muito para lá atrás, por debaixo, detrás de todas as camadas contraditórias e dolorosas. Todas as feridas e todas as contradições. Um olhar mais que próximo por algo que querendo ou não, e por vezes abusivamente temos dentro de nós. Ver. Com toda a nitidez que se procurou intrincada no meio de todas as camadas. Debaixo de todas as sedimentações aleatórias. Sem esoterismo, só uma intuição com um desenho próprio. Ver. Então. Um ser pequenino e essencial. Nuclear. Ou porque conhecemos de criança, como Milena, ou porque nos aparece num primeiro olhar para além de uma estatura enorme como B. Outras vezes pode levar anos, décadas. A ver. E a partir daí, habita-nos, sem ruído e sem ferir como em roupas de flanela macia. Que queremos acarinhar e cujas dores doem nas nossas mesmo que nada tenham a ver com a possibilidade de as amenizarmos. É o amor. O encontro com o ser pequenino de alguém. Outras vezes é o encontro mas não o amor. E outras, ainda, é o amor mas não esse encontro. Que, quando é, habita, mesmo sem saber. Que fica ali escondido quando está e escondido quando não está. Que vem de mansinho por entre todos os retratos. Dolorosamente acarinhado pelos dedos da alma. Se existem. Uns e a outra. Não saber como se insinuou assim, aquele, quando. Quem o vê, ama ou detém o poder imenso de manipular. Ou ambas as coisas. Algumas pessoas são estranhas mesmo na natureza do seu modo de amar. O resto é por vezes ilusão de óptica. Aconteceu-me. Uma e outra das coisas. E outras coisas de outras coisas.
Ver. Mesmo que poucas pessoas, nessa qualidade-ser ínfima, despida e essencial, é privilégio e é imenso. Quem vi e vejo, caminha mesmo se à distância da saudade, “descalço e em pijama no meu coração”.

1 Jul 2016

Traços de eternidade

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s coisas chegam de assalto. Névoas de encantamento ou de perturbação, sempre e sempre, a recobrir as coisas que já de si são completas e inapropriáveis. Que já em si abrem universos de inquietação mesmo sem passar além da mais simples intuição. Aqueles pequenos, quase imperceptíveis sinais, que somados na mais remota cave do subconsciente, esculpem uma progressiva impressão de entendimento. Às vezes eu tenho pressa. As coisas que não são boas deviam chegar de uma vez. Não ir-se anunciando como maus presságios. Preparando terreno dúbio. Para o desconhecido das coisas boas tenho tempo de esperar. Paciência. Toda a do mundo. E todo o mundo num fragmento da cidade.
Pensar em sair e percorrer aquele curto, tão curto caminho até ao Jardim Botânico. Na verdade não é um caminho, quando me domina essa ideia fixa. Tão adiada como subitamente emerge de uma urgência, que já não é de ser mais do que ir. E este ir, sem caminho apreendido exepto pelo olhar, mas naquele plano em que, de imediato, se esquece. Uma consciência e uma memória provisórias e inúteis face ao importante que é chegar ali. Ou mais precisamente, estar aí. Um percurso inconsciente entre o início e o termo. E chegar é esquecer que houve a necessidade de ir, saltar sobre a ansiosa urgência de estar. E estar. E assim eu não fui ao Jardim Botânico porque o que queria era estar lá. Quando caminho, só quero que haja caminho e não destino. Mas não era assim hoje. Levei-me para lá. E fui estar no Jardim Botânico. Viver no Jardim Botânico. Como uma planta. Como amar. Ou como uma daquelas árvores que admiro.
Há o tempo para um amar animal e há o tempo para um amar vegetal. No esplêndido e específico modo de cada natureza. No discreto e instintivo fado de cada uma. E, se de ambas as acepções existem empregos menos nobres e mais pejorativos, diria que lhes aponto a luz mais confortável e nenhuma subtractiva metáfora. Das plantas, com as raízes na terra, e os rebentos mais leves no céu. Pés na terra, no negro da terra, e cabeça no céu, no branco da luz do céu, como os humanos e é aí que reside a razão e o lugar do sonho – a meio caminho, o coração, o corpo, territórios de todas as cores e de outras dores. Pelo caminho outras folhas. Muitas folhas de uma escrita agitada, em nervos que conduzem a seiva. E já ali, a surpreender-me e a ilustrar o que me tomava os pensamentos, no topo de um caminho, aqueles corpos. Aqueles corpos vegetais. Ambíguos, veementes, dramáticos de pose e insinuação. Depostos, sobrepostos. Aqueles corpos com referências visíveis a marcas de corpo, de pele e vísceras. Ocultas. Expostos. Incríveis corpos. Sensuais, mistos, matéria vegetal a insinuar uma vida sensível. Parciais, imiscuídos entre as raízes retorcidas do drama de se verem arrancadas à terra, e topos cortados rente às primeiras folhas. Como uma ilha. Como estigmas, que marcaram nas árvores mortas, sinais de uma transmutação possível. Uma antropomorfia póstuma. Como corpos caídos da cruz. De uma existência.
Levei os meus pensamentos tóxicos como crianças agitadas, fechadas, presas num apartamento ínfimo, ou animais, de trela, e soltei-os ali para que gastassem energias longe de mim. Deitada num banco e de olhos fechados já só para ouvir das árvores aquele rumor intenso e progressivo, à passagem de uma aragem mais forte. Quase um rumor marítimo. Intrigante a disposição dos bancos. Muitos virados para encruzilhadas. Mas eu sentei-me em vários, na minha procura. Elas, majestosas. Perfumadas. Imensas. Ouvi-as acalmarem-me, escutei as variações nos rumores, escolhi cuidadosamente um caminho de bambu, coisa de feiticismo. Grandes maciços a debruar um caminho, e pela primeira vez ouvi aqueles sons muito particulares que lembram cascos de navios antigos. O ranger e estalar das madeiras, guinchos de tensão, e o estralejar seco de uns contra os outros, aleatório e sem musicalidade, e sempre aquele rumor de todas as copas de todas as árvores em redor a lembrar ondas de mar. E navios pirata. Assim. E de novo Emilio Salgari, da infância. E foi grande a viagem. A Floresta Negra, Sintra ou o Camboja. E eu sei lá como são as florestas no Camboja. Mas este lugar com traços de irreconhecimento podia ser em todo o lado. Em todos os lugares menos ali. Incrustado no coração da cidade. Recoberto de muros como camadas de ser, as fibras de um coração. Escondido, a pulsar. Noutros lugares. Tudo e em tudo diferentes e dali. Mas ali era, foi, absolutamente um lugar distante. Qualquer. Qualquer coisa como a dizer entre um aqui e um aí, e o caminho será sempre curto. Entre uma sensação leve e límpida, e tudo o resto, um passo.
A pensar se será desta vez que mudo os meus pensamentos desta roda viciada e presa por um eixo fixo. Soldada a ele. Para lá. Eu não me farto das coisas de que gosto. Farto-me de mim nelas. E por isso mudo de cadeira e de candeeiro. De luz. E o mundo agradecido da casa, grato pela solução dessa quase injustiça, muda como para um bom dia.
Mas ainda sobre o lugar das coisas, dos percursos perto ou longe do lugar material. A casa. Cada lugar onde me encontro, encontro-me não como se fosse outra, mas uma mesma num lugar diferente de si. É esse o efeito de uma casa cheia de lugares. Penso que até mesmo uma casa pequenina. Basta o ângulo de uma cadeira, virada sobre a mesma parede, de uma mesma casa, qualquer casa que façamos habitar de tudo o que somos. Uma parede de frente ou oblíqua não se sente do mesmo ponto de vista. Uma, de uma equidistância elementar, estanca o olhar, a menos que tenha uma imagem de fuga, uma janela, ou uma imagem-janela. Outra é como um caminho mesmo que curto por onde o mesmo olhar, da mesma pessoa, no mesmo momento-tipo, flui até mais adiante e como rampa para prosseguir até longe, em caso de obstáculo. Tem o perto e o longe em si. Sento-me em lugares diferentes, diferentes mais ainda daquele que é o de sempre. Onde se concentra todo o peso de uma vida. Os nós. Os acontecimentos subliminares. Mudar de lugar dentro deste enorme potencial de universo é o efeito mágico que procuro. E resulta tantas vezes. Mesmo no interior. Da casa, também. Há um arrepanhar súbito de sobras e ponderações inúteis e uma limpeza momentânea que reenvia a um lugar, esse, interior. De essências. As que não podem deixar-se ferir do circunstancial. Ou que são o início. Como aquele grão de areia que fere a ostra e em torno do qual se constrói a pérola. Defensiva. E quando chega o anoitecer, perceber que nunca se saiu do mesmo lugar. Como a pérola nunca sairia da concha. Mas será o mesmo lugar? E nunca é. As correntes, as marés encarregam-se de que não o seja.
E de novo aqui, a ensaiar coragem de começar um destes diários, num dos grossos volumes que alguém me ofereceu. E a pensar, e se depois de tudo dito se esgotar o que sou. Sempre assaltada por palavras. As justas inteiras e perfeitas no que me dizem, as que me esqueço de imediato, as que me reviram a mente e sei que vou esquecer, as que não me deixam dormir. As que me levantam de um lugar em busca de um lápis. As que me desdobram e desembaraçam fibras enleadas em si próprias. Sempre digo, mas é tão verdade. Isso, o medo de enlouquecer nelas. Delas. Nesse absurdo. Penso se irei enlouquecer de palavras a inundar e a não dizer. Se isto é sintoma de silêncio. Ou de um excesso de absorção, que tem que ser conduzido por palavras até ao exterior. Como uma válvula de pressão. Como uma tentativa de conversa. Como uma limpeza que produz alívio. Como escolher tralha que tolhe e deitar no lixo. Como lastro. De dia viajo. Com Salgari. Na verdade, já não com Salgari como dantes, mas como Salgari. Sem sair do mesmo lugar. Que é dizer uma coisa de uma enorme imprecisão. Nunca se parte de um momento e chega a outro sem ter saído de um lugar, um lugar de nós, que pode até ser vizinho do outro mas não o mesmo exactamente. À noite afogo-me na insónia em palavras. E penso de novo se vou enlouquecer, de tantas…e dos rostos.
Sim, depois os rostos. Vejo-os por todo o lado sem entender se acompanham ou vigiam. Nos copos, por exemplo. Andam sempre copos em cima da mesa. Enormes, com água e sempre aqueles rostos a surpreender-me num olhar mais distraído, por detrás da superfície lapidada e por efeito dos objectos atrás. Rostos com olhares estranhos e definidos. Estão ali e depois não voltam mais, os mesmos. É uma potencialidade preferencial. Como aparecem, podiam ser outras coisas milímetros mais ao lado. Mas não. São sempre os rostos com que a minha alma prefere deixar-se surpreender. Assaltar. E tenho medo. De ver sempre umas coisas nas outras. Ou querer ver.
E a pensar que estarei de volta ao mesmo lugar e à mesma pele mas sempre num outro momento. O que será sempre um ser diferente. Em tudo o que fôr igual. E um ser igual em tudo o que fôr diferente, como sempre as coisas são. E que ambas são verdades entrecruzadas e nem sequer paradoxais. Porque subentendida nelas está a concreta existência de núcleos essenciais e, se bem que vivos nas suas metamorfoses necessárias, de algum modo imutáveis e estruturantes de todos os detalhes circunstanciais que numa roda-viva podem parecer mudar como com um vento, uma aragem mais forte, um esvoaçar fútil, uma onda de través, um apagamento súbito, ou um golpe mais cru.
E a pensar porque será que nestes anos todos nunca lá voltei. Nem acho que tenha lá ido alguma vez, e se fui, nem o facto na sua elementaridade ficou em memória. Portanto não fui. Não sei porquê. Mesmo se fui. Décadas de distância e mais de uma de vizinhança cúmplice. Penso nele. Muitas vezes. Talvez não tenha voltado por temor à desilusão. Mas desta vez fui. Para nada. Se esquecer o quanto gosto das árvores. E das plantas todas e de estar simplesmente. Na realidade fui para estar lá. Fui lá para estar. Mudei-me para lá. Por um tempo curto demais para ser apelidado de mudança. Mas não foi tanto ir como foi ficar, ali. Sentada. Gosto de estar sentada porque o corpo deixa de existir, de ser sentido. De ser acção. Utilidade. Pode-se deixar de o pensar. Como uma planta. É uma espécie de anseio, este. E sem ouvidos. Atemoriza-me pensar que haja gente. Muita gente, ruidosa, perto, sentada perto, ruidosa e nítida. Mas não havia. Não é tanto a possibilidade de haver gente, é mais a certeza de que a gente fala. Demais, demasiado alto. E eu não quero saber o que dizem. Não quero ser obrigada a ouvir o que dizem. Mesmo sós, as pessoas falam muito, hoje. Uma loucura vê-las a falar tanto. E os automóveis. Mas estes produzem ruído sem palavras. E palavras já me sobram as minhas. E a todos os que as gravaram nos troncos estoicos de bambu. Querendo ficar.
Como foi hoje. Quando estar é maior do que ir. Mas há estar e há caminhar e são coisas diferentes. Como diferentes, os modos de percorrer ou deixar escorrer o tempo. De um modo ou de outro foi uma bela viagem. Depois voltei porque não podia ficar para sempre. Naqueles traços de eternidade.

24 Jun 2016

Mapa. Ideia – mundo

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]téreo e vivo – uma questão mais de geometria. Vive aqui. Aqui onde quem, aquilo a não dizer. Aqui onde. E se fôr dentro ou fora, sólido, substancial ou imaterial. Vive. Aqui. Posso dizer. E disse. Um dia que viria. A brincar. Em cada passo que dou e deu. Dentro do espaço que é e foi habitado e passou a ser. Em cada pegada e impressão talvez escondida por aí em cantos que a vassoura do tempo corre. Mas não sabe e não varre. Contida na possibilidade material. Talvez da memória. Sólida. Visível. Talvez da visão imaterial. Vive. Aqui. Aqui onde, pergunto mas sei que aqui é entre camadas. Quem, o quê. De umas para outras e de novo. Camadas de ser. Como vestes de frio e calor. Coladas ao corpo ou em cima da cama. Espalhadas pelo chão. Camadas derramadas da vida e da pressa. Misturadas e. Por momentos. Talvez carinhosas. Esquecidas ou dispensadas na pressa de um minuto a seguir e a voltar atrás. Às mesmas e outras. Num dia bem noutro menos. Gostar e não gostar. Uns dias das pernas curtas, outros das sombras no rosto. Mas isso sou eu. E as roupas que caminham de curtas para largas e de volta a pesadas ou friorentas. Ou leves e florais ou opacas e aprisionantes. Correntes secretas. Ao negro ou a cores. A reserva… E os saltos. Não, os saltos têm que voar. Mais perto do rosto. Para mais perto do rosto. Dos olhos. E de repente lembrei-me daquela sensação de orelhas de elefante. Sim. Como guia. Como gesto, como rédea. Como ternura simétrica. As ternuras são-no raramente. Mas esta. Como os pés. Ponteiros de um relógio. Dez para as duas. Quatro da manhã. Os meus, meia-noite. Mas dez para as duas é uma hora terrível. Noventa quilos de massa visível sem peso, do dia anterior, ou cento e vinte para a frente e para trás. Um limbo. O que interessa é o peso. O peso e voar.
E depois voar. Em círculos levemente tontos e aleatórios deixando pedras e grãos de poeira para as margens e retornar ao ar. Territórios. E desses o mais real. Onde se vive. Voar em círculos tentando não entontecer. Embriagar. Voar fora do etéreo agarrado às coisas como se fosse. Voar sem registo e sem mapa. Âncora a puxar para cima a vertigem invertida. O puro prazer de voar. Como os pássaros ou então os insectos. Nos seus desígnios estranhos, insondáveis. Sim, sem se saber. Mas ainda assim. Não são metáforas, não existem de outra forma. Como dizer? Espirais e hélices que a mente escreve. E descreve, sem outra maneira de dizer. Densas e cheias de forma, sem acção nem tempo verbal.
A simetria, ser estranhamente incisiva. E a ideia leve. A geometria. Atirada assim à erosão do elemento aéreo. Depuradamente só. Levemente triste ou justa. Levemente leve e exacta. Essencial. De essência. Ou talvez também de necessidade.
O vôo durante. E como a palavra, o que dura. Que o tempo, o tempo não existe em estado puro. Estratégia, alvo, decisão. Golpe. Nada disso é o tempo bom. Só de asa. Numa aragem imprevisível. O que deixa simplesmente viver. Dizia, voar.
Ideia nem sempre sonho. Nem sempre. Talvez porta. Janela-mundo. Talvez palavra. Aquela palavra. A palavra talvez. Aquela.Talvez sonho. Sonho, talvez.
A lembrar Henry James. Aquela novela e há muito tempo… num arrepio de frio súbito. A esquecer de novo.
Voar. Portanto. Voar numa ideia que vive aqui. Imprecisa, indefinida, cuidadosa. Voar na ideia em que vive aqui. Em que vivo aqui. Voar na ideia de quem de quê não dizer. Mas que vive. Vive aqui. Aqui onde quem não vou dizer. E eu. Também. E se sem querer não quereria. Querendo, quero.
Às vezes o que é e a complexidade da vida, resume-se a quinze centímetros de distância, ou mesmo cinco ou dez centímetros de letras enfileiradas, com laços que as enlaçam e tornam para sempre – palavras para sempre. Que existem e formulam destino para sempre. Ou não. Mas que existem em si para sempre. No tempo ou no lugar certo ou errado. E entre a indefinição, a indecisão e o medo, e a generosidade o risco. O erro. A dúvida de dois caminhos. Uma emoção forte. Um receio, uma fragilidade súbita. A diferença entre ser e não ser de um gesto definitivo. Como qualquer gesto que inflecte num sentido qualquer e tudo o que não foi passa a não ter sido nunca nem sabido. O que nunca foi. Aquela fotografia de muitos anos para sempre ali solta no álbum. Desde o dia em que lhe vi o outro lado. Um mistério que o rosto da frente não explica. Nunca mais vai poder explicar. Às vezes aqui, sobre a mesa. O verso, na verdade. Um esboço de dedicatória nunca terminada. E o que falta saber, a quem. E ter sido entregue. E não foi. Ou foi mas inacabada, desnecessária. Ou esquecida. Ou um gesto arrependido de o ser. Uma ideia que ficou suspensa para sempre. Misteriosamente inacabada e inconsequente. Uma carta de nada. Uma ideia quase. Que alguém não viu viver. Perdida no tempo de que já não há a memória, a possibilidade da avalanche de uma memória que volta. Que não tem onde voltar. Ou de onde voltar. Não há aquela caneta de tinta azul, nem a mão. E contudo, a ser acabada aquela frase, muito seria nada e sem vestígios de possibilidade de nada. Perante isso o que me existe é tudo. Ou o que era para ser. No quadro pintado de um destino, como em tinta invisível.
Uma montanha com as suas vertentes, o pulo e o passo, um cristal com os seus ângulos, as fracturas preferenciais, a refracção a dissecar a luz, uma moeda com as suas faces. Jano. Etérea, indefinida. Em descontinuidade. Uma ideia. Há uma imagem temível. Um rio. E um obstáculo que lhe modela uma curva. Um meandro. E a erosão própria na zona de embate do caudal. E a acumulação de detritos do lado oposto. A modelar as margens. E a curva a apertar. Até que dois pontos se toquem. O início e o fim. E um dia, um caudal reforçado em fúria num inverno mais forte, ou distraidamente, esquece a curva e salta em frente. Para sempre. E da curva resta uma lua de água, uma forma de ferradura, um braço morto, isolada do rio para sempre. A vê-lo passar. A pensar que “curva de rio” é sinónimo em gíria do Brasil, de pessoa difícil, obstáculo. Bar mal frequentado. Problema. Ideia difícil, talvez.
Dou passos no centro de outras e aquela, sempre. Também. Como uma cor de luz que embrulha tudo o resto. E há a habituação do olhar. Que a anula por vezes. E as coisas tornam à sua cor própria como se afinal existisse intrínseca à matéria. Por detrás daquela luz que tudo modela a si.
Olho em volta e é a casa. Por todos os lados menos um. E também por aí. E por toda a casa. A casa que habito e é uma segunda pele debaixo da roupa. Do frio, do calor. Do desconsolo de ser assim, só. Olho e há uma luz quente, já. Para além do corpo e para além da casa, da cidade. Andando para trás, também da roupa, do corpo, ou mais aquém ainda. E é aí que vive. Para dentro de todas as casas, as roupas e todas as camadas de sentir de ser, de sentir e de querer. É aí. Que vive. Dorme. Acorda. Rapidamente se instala no dia novo. Às vezes com as roupas da véspera. Mais enxovalhadas de uma noite a pairar mais ou menos densa. Ou inexistente e ponte rápida entre uma e outro. Dia, momento. De acordar. Com tudo à beira da cama ou o rosto na almofada. Distante acordar. Muito perto de ser longe nos meus sapatos à beira da cama. E depois volta de rosto fresco e de ponto em branco. Conheço o que vive comigo. Todos os dias. Que me tira o sono e me faz suar palavras pela noite fora. Que esqueço pela manhã. Aquelas. Mas sei que as conheço e voltam com máscaras diferentes mas as mesmas. Vozes. Conheço as minhas.
Estranha forma de vida – adoro Amália – de sensações feitas e relembradas, desatadas do corpo, memória, inquietação, anseio, desejo. Uma angústia imprecisa, com outro nome. De forma desenhada. E de ideias gente sem matéria a que se prender. Aqui, pela casa. Em mim. O corpo da ideia. Olho de relance sempre. Um rasgo de olhar, só, para ver de novo. Talvez eu tenha visto a fera. Mas a fera não me viu a mim.

10 Jun 2016

Signo-sinal

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap] casa onde ninguém vive. Uma imagem de solidão habitada por fantasmas. Sons, cheiros e vozes. Sobretudo vozes. Entro, e em frente o solitário com a eterna camélia vermelha. Eterna e artificial.
Solitário. Essa jarra alta e esguia como uma escultura de Giacometti. Sempre gostei delas, antiquadas, elegantes e para uma flor só. Em casa, toda a vida um. Da avó, e mesmo depois de ela já não estar sempre, ficou. Até um dia. E quando se partiu esse antigo, levei um outro, pelo muito que gostei destas jarras. Ainda ali está. Na casa onde ninguém vive. Casa triste. Se dela se pode dizer ainda, ser uma casa. Mas é de algum modo um ser. E como os outros, habitado ou não. Já não. E encerra na sua escuridão, dantes acolhedora e agora só escura, restos de uma alma que ali ficou impressa. Cada vez mais desmaiada, fugidia. Que absorveu de vidas e vozes, de entradas e saídas de beijos e despedidas. Vidas cruzadas ali por momentos, horas e dias, meses e anos, vidas vividas e livres, ou aprisionadas, contrafeitas. Paragem entre viagens, estação temporária de dias ou meros momentos, futuro impreciso e para sempre. O para sempre de viver enquanto dura. O para sempre de haver crianças a abrir os olhos e com um futuro de imensidão possível. O da ilusão de eternidade. O da ilusão de imortalidade. Esquecida realidade no cadinho de tantas outras emoções. Estruturas, zangas. Tantas vozes alteradas e tantas vozes alteradas depois para outros tons. Gritos, emoções. E as primeiras rosas. E a ninhada da estação. E os trovões de que o cão grande, enorme tinha medo de morte. O único já, que depois ainda prendia ali a dona de uma casa a entristecer. Arranhava a porta ali em baixo com as unhas enormes e a sua alma infantil a sair por uns olhos aterrorizados, até à exaustão. E de uma nesga para o acalmar ele irrompia para dentro com toda a força brutal do medo, subia escadas íngremes e atirava-se como a força telúrica alojada na sua alma animal, de encontro ao sofá grande que ocupava em todo o comprimento no chão que lhe chegava. Debaixo de tecto. E fechava os olhos com um enorme suspiro humano e a força inabalável de quem só sairia à força e essa força não havia. E os eclipses. Acontecimentos a céu aberto rodeados da fantasmagoria silenciosa das rosas nocturnas. E os campeonatos de futebol a lembrar ausência depois. Ir e vir. E ser casa a que se chega. E de que se parte sempre para voltar. Casa. A casa dos pais.
Uma sensação falhada de para sempre deve ser o destino onde desemboca cada solidão de casa no final. Abandonada sem querer. Até há um tempo, mesmo sem já saber para quê, cuidava-lhe do pó como quem cuida de uma criança ou de um idoso. Não deixava acabar os fósforos. O café. O frio do frigorífico de ronronar esperançoso. Regar as mesmas plantas de antes. Cuidar do passado como nas últimas décadas, e ver depois que algo na vida me foi esquecendo. E a esquece em parte quem se demora no passado. E nesse cuidar se fazia presente e ilusório na sua completude, aquela urgência de acudir. Algo me prendeu ali. E inflectiu. O meu caminho. São as contas da vida. Precisava de ter tido a força de um super-herói e duas vidas para viver. Bem.
Tanta poética sem uma cronologia fixa. Topografia estável. Ir em frente sem saber se para trás. Entender tarde e temer cedo demais. Contraria a razão. Passe de magia sem deslumbre possível. A poesia é para comer. Diz Betânia. Mas a vida, para viver.

Hoje visito-a para consolar a minha tristeza e a dela. Mente animista a minha. Levo-lhe duas cervejas fresquinhas para bebermos juntas. As minhas visitas curtas, agora. Em que me demoro simplesmente a revolver a própria forma da despedida. E a matéria, cada segundo. Perscrutar-lhe a viabilidade com cuidado. Homenagem a uma solidão de que não tem culpa. E à minha nostalgia incurável de outros tempos ali. Sento-me com ela num sítio diferente. Escolhi um outro lugar preferido para este tempo de solidão a duas. A dela desabitada de todos. A minha do impossível retorno. Por isso já não me sento com ela no sítio do costume. Com vista para todas as ausências. Com vista para o silêncio que vem da cozinha e da televisão vintage, silenciada pela modernidade que não consegue acompanhar, viva mas inerte. Para a porta por onde ninguém entra, e para a poeira densa que tudo recobre a proteger da vivacidade dos tons que feririam na sua paragem, mais do que o constatar de que tudo mudou. Um bicho sem dono, este ser de casa. Que ninguém cuida. Escolhi um lugar novo de estar ali na minha melancolia, de costas para tudo. Pela casa. Este lugar, a olhar para fora. Ao contrário do meu de muitos anos, no canto direito do sofá grande. Sento-me com ela, e silenciosamente ela entende. Estar ali naquele lado do redondo da outra mesa e a olhar a janela, a desviar os olhos das orquídeas que ainda resistem. Antigas mas a ceder ao abandono. A janela é tudo. Fora e dentro para amenizar a tristeza. Bebo a minha cerveja e vou fumando a dar contas à vida e a contar-lhe segredos de agora. Bebo a minha cerveja lentamente por mim e por ela. Bebo a outra por ela e pela minha tristeza dela. E sinto que lhe fiz companhia e ela a mim. No possível de cada uma de nós hoje. Um dia diferente no tempo e já muito fora da realidade que é habitar e ser habitada. Isso já não é.
Mas há a memória. Por isso atraso ou dou tempo, até desgastar qualquer sensação de desarrumar, destruir, desmanchar uma casa. Que já começou, mas estendo no tempo um pouco mais. Mesmo quando a casa que ninguém habita, nem as minhas saudades têm o poder de trazer de novo à vida. A perder-se no desvanecimento próprio à memória das coisas a sair do lugar da sua organização própria, que tinha cheiros e imperfeições. Ruídos e sujidades novas. Não esta poeira que se sobrepõe, indiferente, camada sobre camada de esquecimento, vazio e silêncio. Da inutilidade.
Aconteceu algo aqui. Oiço as vozes por trás de mim. Quando oiço. Mas as vozes tendem a calar-se discretamente à medida da minha despedida. É isso. Viro-lhes as costas e tento ouvir de novo. Ou que se calem apaziguadas na espuma do tempo que passou para sempre, sem ressentimentos nem amarras. Tento que se desliguem deste suporte que vai ter que se desatar. E se depurem em outras formas de habitar, e que pairem por ali nas sonoridades mais coloridas. Risos. Chamamentos. Perfumes de cozinha sempre viva. Jogos. Novidades das flores e das árvores inábeis e generosas. Venho beber um copo com ela mas na realidade poiso um só em cima da mesa. E bebemos eu e ela alternadamente como amantes que partilham segredos. Dizem. Do mesmo copo. Tantas coisas. Aconteceu algo aqui durante anos. E foi. E agora é preciso libertar e libertar-me desta teia quase física onde estão presas memórias. Bebo para celebrar o que foi e para me juntar ainda uns momentos a este bicho estranho que é a memória boa-má. Eu sei o que isto foi. Mas a casa está exausta de abandono e a deixar fugir entre os dedos aquilo que o tempo levou para sempre. Esses dedos que vejo estendidos lá fora. Como um signo – sinal. Dizem que também tenho que sair do novelo de memórias, fechadas um dia destes finalmente na arca de madeira lavrada. Tantas coisas que, conhecendo de sempre, me apetece levar comigo, como animais abandonados. E que preciso de revolver nas mãos vezes sem fim antes de lhes dar destino. Relembrando tudo o que trazem em si e de mim. Avaliando as possibilidades de nunca mais ver. De esquecer. A força que tenho ou não. E sempre a vontade de guardar tudo. Mesmo noutro lugar e já sem a cartografia exacta do uso ou do cenário. E depois? Algumas coisas quase mágicas davam uma grande história se o despudor chegasse a tanto. Outras só desenhando uma cronologia de tempos passados e arrumados. E as vozes. Ecos. Já só. Que tento continuar a ouvir, por um lado, e esquecer por outro. Porque tudo era imperfeito como a vida.
Estas são visitas de despedida. Despedida lenta como o tem que ser para mim. E a sós como o devem ser as grandes despedidas. Dizia Gerardo Castelo Lopes de um fotógrafo, que devia abordar o alvo da fotografia como num acto de sedução, delicada e lentamente. A sedução que se concretiza no fotografar de um ser, que o prende no fascínio do olhar por detrás da câmara. E se esgota ali. Mas esse acto de predação, dizia, devia ser amenizado por uma retirada também lenta e suave. Com o mesmo charme cuidadoso da abordagem, sem cortes abruptos. Sem dor. São assim estas despedidas. Mas não sem dor. Só com todo o tempo. A desgastar e a aplainar cada nó de mágoa, mais não seja pela repetição. Pela diluição.
Mesmo os espelhos já não parecem reconhecer o momento. Antes tristes e ressentidos. Na realidade já não devolvem uma imagem com rigor e plenitude. A deixar de nos reconhecer como se o momento único e desgarrado de toda a memória para eles não fosse o suficiente para reconhecer-nos e assim nos devolver em imagem. Como se faltasse a espessura de todo o entretanto para dar consistência à imagem- reflexo que emitem. Amuados, magoados de tanta ausência de movimento na sua frente. De tanto desconhecimento de tudo o que hoje se passa longe dali. Porque a vida, uma vida debandou dali. Em alguns num bater de asas leve e inconsciente e noutros como eu, presa à minha propensão para a nostalgia. Mesmo eu, que já não tenho espaço de vida para aquela casa e aquela memória. A necessidade das despedidas também desse lado de mim. Não só porque a casa, a alma da casa, se foi. E foi para nunca mais. E é preciso que o nunca mais se torne eterno. Saia do limbo da saudade presa ainda por fios aos passos possíveis, aos objectos no seu lugar de ainda. Aos ângulos ainda vagamente semelhantes a sempre. Mas sem as pessoas. E sem as pessoas, uma casa deixa de ser uma casa. E há que retirar- lhe delicadamente os fragmentos da alma agarrada aos objectos e trazê-los para uma nova vida. Ou sepultar.
Sento-me nesse lugar novo, de costas para toda a casa por onde já circulam as ausências de coisas, a desarrumação lenta e inadiável a ganhar a forma da desconstrução. E por isso também. Mas pela janela, vejo quase só a janela. E sei porque o faço. E ali, também a árvore de sempre, de copa altiva durante anos, decepada progressivamente por temporais repetidos ao longo de invernos. Com pernadas presas por um fio de fibras temporariamente perigosas e que iam depois caindo. Dessa árvore sobra um tronco a ressequir de formas dramáticas. E um dia aquelas mãos. Outra referência a Giacometti. Como uma escultura orgânica, esta. Abertas num gesto expressivo. E com o dramatismo contraído até à ínfima expressão sob a pressão do mundo, e ferozmente lançado em frente dos “Walking man”. Sei. Este sinal. Por isso me sento agora nesta janela a olhar para fora e de costas para a casa onde ninguém vive. Já. Não sei já se aquela era o castanheiro temerário muito podado e crescido em altura para lá do razoável, que a cada inverno e temporal ameaçava estragar algo na queda. Como as pessoas. Mas este inverno foi definitivo para ela. E aquelas mãos, negras e magras a espreitar de fora, um dia disseram de forma diferente. E foi bom.
Fecho a porta à chave e prometo voltar. A ela ou a mim. Mentalmente. Ainda para uma última despedida, antes da última. E vou. É tarde.

27 Mai 2016

Como um mantra

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap] contudo. Gosto de começar no pressuposto de todas as outras vertentes, encostas e desfiladeiros por onde resvalo ao longo dos dias sem forma de me suster na queda. De todas as borrascas. As pessoas. De todos os sustos em cada trovão inesperado, de todas as aragens bruscas e entrópicas que desnorteiam. Outras vezes tão mais subtis. Uma estranha sensação. Olho em volta e tudo igual a umas horas atrás. A mesma luz, quase. O mesmo abatimento de domingo. Ou de outro dia qualquer. Os mesmos ruídos esparsos, de dia de descanso para muitos. Ou das rotinas do bairro. E, no entanto, é como se a terra se tivesse movido num eixo diferente. Uma paragem brusca. Uma alteração nítida no polo magnético. E tudo diferente, a seguir. Talvez por isso a meteorologia diz nestes dias coisas estranhas. Para estes dias. Algo se deslocou no universo. As cores mudam de saturação e violência, a alegria e vivacidade ou vice-versa. Palavras. Sem transição.

Dizer, e no entanto. O que significa que também, por outro lado e convivendo com outros estados de alma, às vezes, aquela sensação de euforia. Não que invoque um estado histriónico. Não é esse terreno de desconforto. É um frémito de bem- estar que vem de repente ou em virtude de um olhar particular. Sem plurais retóricos, ou majestáticos ou de modéstia, a induzir cumplicidades ou universalidades e a aliviar convicções pessoais. Privadas. No limite do que pode ser privado. Sinto. Uma branda, nítida e secreta sensação de estar bem. Como um oásis.
As diferentes formas do tédio como as definiu Heidegger, nomeadamente o tédio profundo sem causa determinada e que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa de ausência de sentido, uma indeterminação ou indiferença, sim, o tédio. Muitas vezes senti algumas formas desse sem sentido, sem energia e sem alma. Esse estado presente em si, ilustrativo dos “caminhos que não levam a parte alguma”. De que basta percorrer o caminho inverso ao tempo para chegar a um início e só por si ser sentido. Ou, de volta a qualquer estação da vida, o estar, o simples estar ou ser, tão bem sintetizados num mesmo verbo na língua inglesa.

Mas agora raro, o tédio. Mais raro. Naquele momento lá atrás, nasci. Em todos os outros momentos, também. Usa-se de facto inúmeras vezes essa metáfora e muitas outras de vida e morte. Nomeadamente no amor. Tantas mortes anunciadas e ninguém deixa de estar cá para as anunciar e repetir. Como cartas de suicídio falhado. Ou arrependido. Ou pior ainda, de homicídio. Literário. Menos vezes, passional. Mata-se e morre-se, aparentemente com a facilidade de um jogo infantil. Em que alguns meninos “eram mortos” mas não morriam… insurgindo-se face às regras do jogo. Não se morre facilmente por amor. O que é pena. Morre-se por acaso, como num dos paradigmas das grandes histórias de amor, “Romeu e Julieta”. Quanto muito vem a vontade como uma camada que tudo parece encobrir, ou aquela enorme indiferença pela morte. Às vezes.

O tamanho que me falta não é o muito que não tenho. Não é o muito que não sei. É o que não sinto. Como senti-lo se não o sei, ou sabê-lo se não o tacteio em mim. Melhor dizendo, o que não sei, posso por vezes imaginar e o que não sinto, também. Por empatia ou projecção. Mas sentir mesmo é outra coisa. O tamanho que me falta, vislumbro-o às vezes na possibilidade. O tamanho que não sinto, sei-o, de outras vezes no relance de um olhar. Mas de novo se evola como um fumo discreto de que duvido a fugacidade da existência. Duvido do olhar porque muito o turva. Duvido do saber porque se recobre de velaturas parciais, de que só o todo da sobreposição revela a imagem. Quase opaca por vezes. E no entanto feita de cobertura de muitas tintas finas, delicadas e frágeis de incompletude. É esse saber-me nos outros de que duvido sempre quando não sinto. Um tamanho que me falta.

Ainda a propósito de pequenos pensamentos. Aqueles ínfimos, à escala das preocupações globais que muitas vezes são também o mar de preocupações em que não se consegue nem quer deixar de nadar, aquelas ditadas pelas inúmeras empatias que se sentem pelos outros pelo bem-estar dos outros, pelo futuro dos que queremos bem de perto ou de longe, e dos outros que queremos bem só porque são pessoas em sofrimento, e o futuro das coisas que prezamos e admiramos e da história que é a memória que nos estrutura também. Para além da pequenez desses pequenos pensamentos, que não se comparam em importância a tantos outros, é o amor que dá, na sua omnipresença, uma enorme forma de motivação e sofrimento. Não fosse a alma ser de uma plasticidade enorme que a tantas coisas dá espaço e ainda mais que fossem, e o coração, onde cabe tanto sem tirar o lugar a nada, e a razão, que sobre tanta coisa se debruça, e diria que é o amor que nos toma de súbito ou lentamente e de mansinho, nos ataca à traição quando menos se espera por vezes, e domina. E domina sempre. E é também, ou talvez por essa obsessão, fonte de um enorme pudor. De falar de admitir a relevância na vida, a importância abismal. Como se não fosse um dos grandes temas da humanidade e aquele em que se revela um todo. Mesmo se virado só para o interior. As pessoas amam por razões tão diferentes. De maneiras diferentes, também. Talvez.

Que sei eu sobre o amor que não é o que sinto? Não amar por carência, não amar por necessidade de salvação, não amar por solidão e desamparo. Por dependência. Por vazio existencial. Mesmo que tudo isso possa coexistir. Mas depois penso que, a necessidade do amor, o gosto específico de amar ocupa um lugar único que não é preenchível por qualquer outra paixão. Não é em mim. Por isso preciso de amar. Quando amo. Sinto que quero e me faria falta havendo o não amar. É uma expectativa que se cumpre em si. Em mim. Sobretudo. Não me parece pouco. Uma sorte estranha e solitária quando o é e mesmo assim, querida. Reservada dos desapontamentos de outras expectativas. Não. A memória não é o lugar melhor do amor.

Mas começa aí a história. Pequeninos, íamos sozinhos de comboio até Lisboa, a uma loja de filatelia na rua 1º de Dezembro. Aos sábados de manhã. Ver os selos. Às vezes comprar, mas mais ver. Coleccionávamos selos, mas com carimbo. Que tinham um encanto maior por terem percorrido a distância entre uma terra por vezes distante e outra, e nós. O fascínio da lonjura ali centrada num rectângulo picotado e tão pequeno. Que depois trocávamos entre nós em casa. Numa dessas viagens, a minha primeira paixão. Um homem jovem sentado na minha frente com a roupa da marinha. Não de oficial. A roupa comum de marinheiro. Branca. Nunca gostei de fardas, não lhes entendo o encanto. Uniformes, palavra e conceito horrível. Mas as roupas da marinha são outra coisa. Brancas. Ou azuis. O mar e a viagem no meio do nada. Sempre me suscitaram alguma nostalgia. Mas só se fosse de vidas passadas. Não era bonito. Nem feio. Ele. Nem agradável e nem tão pouco desagradável. Tinha uma postura firme. Uma atitude dos ombros, do queixo. Mas tinha nos olhos um brilho de lágrimas que não rolavam. Um brilho subtil de lágrimas. Os olhos que cruzaram os meus, miúda. Talvez na lembrança de uma criança longe. De um amor desfeito. De uma partida inevitável. Acho que me apaixonei. Por aquele olhar húmido de melancolia. Talvez reencontrado bem mais tarde em Corto Maltese, sem o marejado das lágrimas e com um cépticismo já tocado de um romantismo vago. Da inevitabilidade da viagem. Apaixonei-me. Talvez para sempre por homens que chorem por amor. Que consigam chorar por amor. Ou a quem, mesmo só, os olhos se marejem de um brilho que não seca facilmente quando assaltados por um desgosto ou uma recordação. Foi a minha primeira paixão e durou o tempo de uma viagem curta no comboio de Lisboa-Sintra. Mas ficou-me na memória até hoje. Antes, ou depois, já não sei, o meu primeiro amor. Éramos seis. O meu irmão, o meu amigo de infância, os três primos dele. Um mais pequeno, o outro antipático e o terceiro, o do meio, o meu amor. Rosado de apelido e tez. Pupilos do exército na ausência dos pais, no ultramar. Vicissitudes da guerra. Mas aqueles uniformes eram registo de uma certa prisão. E a memória daquela mão que se me estendia nos caminhos mais rudes e a pique, naqueles fins- de- semana a perder de vista e tão desejados. Talvez por isso até hoje e mesmo metaforicamente pensando, o estender de uma mão, a sensação boa de uma mão, me é tão querida. Sem idade. Construções.

E antes de tudo o meu pai. Paradigma de algum modo edificado para sempre, que Freud explicaria e nem quero saber. Antes de tudo o meu pai, aquela longa e difícil aprendizagem do amor, àquele testemunho de imperfeição, mesclada de alegria infantil e negrume. De paixão pelas coisas pequeninas e das grandes fúrias secretas e irracionais. Sempre presente e distante. Pequeno mas poderoso. Ao ponto de ter deixado quando partiu, um enorme buraco, recortado com o seu contorno, no sofá do costume, em frente à televisão. Que levou tanto tempo a reabsorver a ausência e voltar à forma inicial. Há uma memória impressa nas coisas. Plástica, mutante. Dois palmos à frente, no chão de madeira corrida, gravado o som do baque seco da queda. Que o levou do coração. Ele tinha que ir por aí.

Tantas coisas. Que senti e sinto. Nem o corpo nem a alma – a razão – me são solitários. Só o coração. Mas não do lado do sentir. O lado de cá. Para além da inultrapassável solidão do corpo, da alma e do coração nas suas reservas mais irredutíveis. E difíceis de habitar. Pelo outro. Aqui, como antes, o imensurável abismo entre o real do dizer, na sua realidade, o real do sentir, na sua reconhecível e palpável realidade, e a enorme ambivalência e imperfeição de ambos. Tenho sorte no acaso daqueles que a vida me trouxe aos dias de hoje. Um vidro tripartido em que me encontro reflectida. Mas também aí não vejo a arrogância do mérito. Talvez alguma da inevitável identidade. Há um território, o que sinto. Como uma espécie de enorme privilégio. Diria uma bênção se houvesse um pouco mais de religiosidade ao meu alcance. E por isso aquela sensação que me chega de vez em quando. Quando sei que é melhor não esperar nada. O que tenho.

Tenho sorte, tenho sorte, tenho sorte. Repito. Às vezes surpreendida. Principalmente nos dias de sol e em algumas noites de lua, como a de há três dias, estrelada, inesperadamente cálida e de estrelas cadentes. Tenho sorte. Repito. Como um mantra.

20 Mai 2016

Pela calada da noite

Gosto desta expressão. Tão ao jeito das noites no Alentejo, pejadas de cigarras ruidosas mas feitos ruídos estes, da matéria daqueles campos e quase parte do silêncio. Uma estridência ininterrupta a que o ouvido de vez em quando se acostumava. Aquela terra grande, sem vestígios de grandes sobressaltos geológicos, topográficos.
O Alentejo que é a minha terra, embora não a terra em que nasci. Que foi a minha terra, uma, naquele sentido em que, na cidade, muitos têm uma terra remota donde vieram e onde voltam sempre na melancolia de ser divididos. Da família. E de um tempo perdido lá atrás à medida que uma geração mais próxima foi desaparecendo no destino incontornável em que desemboca cada vida. E que é já quase só memória, inalcançável senão como tal. Perdida. Amada mas perdida. O sol inteiro possível em 360 graus de horizonte. Tórrido naqueles meses de agosto. Lá muito atrás as tardes em que se atravessavam ruas brancas da cidade, de uma luz quase insuportável. Um vazio de gente e o silêncio inconfundível do calor abrasador. Ou, nos fins de tarde, as terras amareladas e secas do campo direito. Onde as sombras se projectavam para a frente ou para trás a partir dos pés e até tão longe, que pareciam querer destacar-se desta amarra. O Alentejo sempre me deu aquela impressão benfazeja de que o mundo é grande e nele as dores, ínfimos pormenores.
A cidade de pais e avós e de uma família enorme com uma margem imensa de ramificações, já só conhecida dos relatos e histórias retiradas dos álbuns da memória e daquelas fotografias muito pequeninas, focadíssimas como uma filigrana. Memória enraizada ali, entre a cidade e o campo. Em redor de Évora. E porque as raízes não se podem arrancar da terra, éramos nós que sempre voltávamos para as visitar. Eu decidi que era de lá que eu era, há muitos anos. Quando entendi que mesmo essas coisas se podem escolher. Só não se pode escolher, às vezes, reter para sempre uma memória que já se liga à vida por laços demasiado ténues. E aí é o momento de deixá-la partir. Com a partida dos pais. Um para os espaços etéreos do céu, outra para os confins longínquos, alheios à memória. Já não há a quem perguntar.
Mas deixá-la partir para o seu canto, e habitar para sempre o álbum, custa. Revira-se de todos os ângulos a estranheza de ser assim. Que tem que ser. Sem naturalidade. Ou entendendo a inacreditável naturalidade inerente. Afinal. Como se todos os actos de simples respiração, em determinados momentos, fossem difíceis de vencer sem deixar de pensar no movimento que a produz, como se assim o corpo se esquecesse de respirar pela inércia de sempre. Como se todos os passos não dados fossem o amor às margens mais do que ao rio. Diferentes olhares. O do lado da margem, um estar mais pessoano, em Reis, por exemplo. A desistência prévia e a contemplação estoica do não ser, não querer, não fazer, não sentir. Ou a ausência de tudo numa síntese de plenitude muito mais perto do cerne do ser. Um pouco cósmico e alheado das amarras circunstanciais de uma existência enredada em mecanismos. Porque diremos margens de sonho, se é o rio que é mais livre e na sua fluidez imparável, eternamente renovado e o mesmo em si apesar de tudo. Como entidade. Independentemente de as águas serem indistintamente outras. Que tem este rio que contemplo em comum com o de anteontem ou de há um ano. Tudo e nada. E no entanto também os rios envelhecem. E os sonhos. Porquê nas margens, excepto naqueles momentos de violenta rebelião dos elementos, em que extravasa por elas adiante tumultuoso e sem percurso ou caminho que não caos e acaso.
Os meus tios José e Maria. De nomes simples e bíblicos, e pele de rugas marcadas como à faca, castigada pelo sol imenso. Ele de olhos pequenos e fundos de um azul inesperado e ela muito pequenina, muito gordinha, e que nos dava uns beijos rijos, repenicados e húmidos, como ninguém. Maria Rosa. E, encostada à empena cega do monte, a maior roseira, de rosas salmão, que me lembre de ver. Carregada de cima abaixo daquelas rosas, perfumadas de uma doçura ligeiramente ácida, e que o meu tio José, talvez a disfarçar o secreto orgulho, dizia ter de podar para fortalecer. Coisa estranha para mim, imaginá-lo a cortar aquele fenómeno lindo e pujante…
A vida destes meus tios, dava um romance. Mesmo depois da morte daquele sonho de cooperativismo e da reforma agrária em que embarcaram, quando desembarcaram vindos de África. Para onde fugiram da pobreza e de onde o 25 de abril os fez regressar. Dava um romance, sobretudo a dele. Até ao fim, recentemente. Ele que teve durante anos um enorme Mercedes em segunda mão, dos anos setenta, encostado à horta no meio do nada. Que conduziu muito tempo sem carta porque não sabia ler. E que, quando a minha tia se foi para o céu – porque foi – guiava por aqueles montes e bairros limítrofes, imagino eu, para seduzir com intensões sérias, viúvas de negro. Todas elas idosas, estranhas e deprimidas, uma de cada vez, e com quem vivia até ao limite do suportável daquelas depressões alentejanas. Que não eram para ele.
Os meus tios em cujo monte, muito mais lá atrás, em pequena, dormia sob enormes cachos de uvas e réstias de cebolas, pendurados nas traves dos tectos de telha vã dos quartos. E que tinham com eles aquele enorme cão preto que era nosso mas vivia ali, o Nilo, que lembro como um pequeno oásis, como desértico era aquele pedaço de Alentejo. Aqueles meus tios, que viviam sempre num estranho limiar a rondar a pobreza, porque o Alentejo era duro. Uma terra ampla, mansa e parada. E que um dia, bem mais tarde, num outro monte, mandaram abrir um poço na ânsia de vencer aquela aridez. Explodiram a terra quase arenosa deixando uma enorme cratera, larga e funda como a cicatriz de um meteorito gigante, e lá bem no meio e no fundo um pequeno espelho de água. Como um olho um pouco encovado numa órbita enorme de recorte incerto e tosco. Pequeno para a sede incurável da terra e para aquele céu imenso.
E um dia desistiram dessa luta para saciar um enorme pomar de frutos pequeninos que custavam a vingar, e investiram, do que tinham e do que não tinham, as poucas economias, em vacas que davam um leite espumoso como nunca bebi igual. E uma vacaria segundo as normas, bem na extremidade oposta à casa. Sabe-se lá porquê com tanta terra. Talvez uma espécie de ampliação das margens do sonho que logo de madrugada os levava a subir, embalados nele mas também no frio cortante dos invernos interiores, o enorme atalho de terra entre a casa deles e a das vaquinhas. E numa noite, seguramente de cães a ladrar como sempre – ou não – dispersos na amplidão da noite, como num quase passe de magia, desapareceram todas de uma vez para sempre e para nunca mais. Noites curtas de sono, para eles, que se levantavam ainda com estrelas. Como desaparecem dezoito vaquinhas enormes e doces, com aqueles guizos de uma sonoridade linda, no curtíssimo intervalo da noite…
Pela calada da noite. E calada foi a noite em que aquele sonho emudeceu para sempre. Calada a noite, as vaquinhas, os cães, os ladrões, as pereiras esquálidas, as estrelas do céu, os pneus da camioneta. Que levaram em cumplicidade única, e no segredo daquela noite, não sei já se de verão remoto, dezoito vaquinhas de olhos agigantados e doces. Assustadas ou ingenuamente confiantes. Como se rapidamente escondidas num enorme saco de gigante. Numa noite em que não ladraram cães. Ou, mesmo que ladrassem, diz o ditado que às más horas não ladram cães. Ou ninguém lhes ligou mais do que nas outras. Ninguém ouviu, só a terra, que tudo presencia, e aquele olho de água, que, resguardado e virado para o céu sem desfitar, seguramente as viu voar e esfumar-se. Histórias de um Alentejo solitário. Pela calada da noite. Como tantas outras noites. Caladas, lisas e sem sobressaltos.
Foi um golpe duro e que nos entristeceu a todos. E no entanto, nesse tempo como agora, um lado de mim sempre viu ali um certo ângulo profundamente cómico. Não sei porquê. Porque sei que a pena enorme pelo que lhes aconteceu era verdadeira. Mas é talvez o insólito das vaquinhas – dezoito – enormes, lentas e bojudas, cheias de chocalhos, a desaparecer assim. No ar. Evolando-se como um sonho que eram. Como os sonhos. E tornando-se realmente da matéria dos sonhos.
A propósito da enormidade do fosso que separa o ter do não ter. O saber acreditar e o esvaziar de um sonho. Que num curtíssimo intervalo de tempo desapareceu sem aviso. Sem ninguém o saber, já não estava ali. Mas as noites no campo são curtas de sono. E a madrugada chegou já com a nova paisagem instalada para sempre. Mas não os lembro desalentados por muito tempo. Antes com um estoicismo feroz de continuar em frente. Sem ilusões de que haveria outras horas como aquelas. Más horas. Em que não ladram cães.

2 Mai 2016

Uma volta pela vida

Às vezes estou aqui, irresoluta diante desta página, deambulando em torno de múltiplas ideias sobre as quais divagar um pouco, ou a pretexto da escrita, nelas fazer uma incursão um pouco mais ao fundo. A correr muitas outras em que já me debrucei só para o meu olhar, coisas que me vão escorrendo da alma para as teclas ou para folhas dispersas, pela emergência de dar um destino ao silêncio que me apetece, mas que nunca se esvazia de palavras. Como eu gostaria tanto, às vezes. Não que tenham necessariamente um sentido importante. Mas sobram-me. Não as quero. Não a estagnar e a reboarem-me na alma, cada uma a produzir dúvidas e afirmações. Demasiada actividade. Como se a cada momento fosse necessário entender e decidir. Mas não é. Não devia ser. E só nesses momentos em que me decido a enfrentar a futura página a ser ida, sinto a dúvida enorme e a angústia da página, mas não da página em branco. Antes de todas as que, cobertas de letrinhas, desfio indecisa até conseguir estacionar numa. E sempre, aquela dúvida sobre até que ponto os sentidos são importantes para os outros que não eu. Até que grau de excesso se afirma um eu privado. E como sempre, sobra-me a ligeira desconfiança de que do que posso ter a dizer, que não será muito, provavelmente já disse. No essencial. O que me remete para a questão de ser ou não relevante alimentar uma inércia de escrita em que muito se volta sobre um mesmo olhar e os mesmos objectos de afecto, de consternação ou de simples contexto dos dias. Tão iguais e diferentes em si como gotas de água. E a mesma dúvida sobre a transformação de tudo em discurso. Sobre a validade da representação. Sobre essa necessidade que se sobrepõe às coisas em si e à sua vivência. A minha angústia não é então nunca a da página em branco, mas a das inúmeras páginas que talvez devessem permanecer em branco.
Numa agonia de excesso de sentidos a descodificar todos os dias em todos os lugares. Neste congestionamento de conhecidos e desconhecidos que hoje fazem, muito mais do que nunca, o dia. Que esbaram contra o nosso olhar ou o atraem. Numa enorme exaustão de expressão e significação em que todos parecem necessitar apresentar-se. E nesses dias o que me apetece mais, é deambular pela escrita como deambular pelas ruas, sem intencionalidade. Um molho de linhas e um molho de ruas a desfiar. Só pelo fluir de um discurso ameno e fluido. Só pelo embalo sem destino. Sem querer dizer mais do que as coisas em si. Passando por mim. Apresentá-las e dizer simplesmente: estas árvores. Bonitas. Este céu, do costume. Tão diferente, nas ínfimas hipóteses de variação. Como as palavras em infinitas combinações de tão poucas letras. Esta textura da parede. Diferente em todas as outras paredes e este tom de hoje. Que não deixassem mais do que um gosto a sensações leves. Como um dia primaveril já a anunciar o verão. Coisas assim. E ideias. Não faltam elas, mas a validade, a necessidade de as percorrer como de alimentar um Tamagotchi.
Os mesmos dias em que apetece simplesmente dar uma voltinha pela vida, pela rua, sem procurar sentidos. Num tempo em que todos os dias somos voluntariamente acorrentados a uma exposição, a um encenar de centenas de vidas, ao encetar a performance do dia de cada um. Dar só uma grande volta por coisas que, de tão mudas, sejam repletas de uma plenitude que não ofereça questões. Dias em que não tenhamos passado por tanta gente nem sido levados pela possibilidade de ouvir preces alheias, diálogos com deus e com o diabo, encontros adiados. Em que não se oiça os vizinhos no seu amor nem nos seus amuos. Em que não se jante com quem não se senta do outro lado da mesa. Em que não vejamos cartas alheias e jogadas cruzadas sob o nosso olhar. Em que não escutamos às portas nem espreitamos às janelas. Em que não somos tomados pelo ruído de telefonemas alheios, pelas conversas dos outros, nem possamos saber que alguém está ao telefone. Dias de privacidade na rua. Em que não tenhamos a tentação de dizer a todos aquilo que só queremos dizer a alguém e em que não esqueçamos o valor da esfera do privado. Em que possamos gostar do que gostamos e não gostar das outras coisas sem que isso inclua uma mensagem subliminar. Em que sejamos libertos da nossa absurda curiosidade e da adição à possibilidade de a cultivar. Num tempo em que tudo se tornou mensagem e performance teatralizada. Em que tudo é manifestação da encenação de um estado. E em que começamos a ver-nos permanentemente de fora. Ao analisar o nosso eu íntimo na procura da vertente certa a expor. Em cada dia. Como se fosse essencial ao ser, ser em exposição. Ou aos outros. Vida em exposição. Exposição total e global.
Vida recoberta por uma camada que é discurso, e encenada com uma linguagem que incorpora todas as outras, próprias e alheias. Duas camadas de sentidos múltiplos. Mas às vezes o que me apetece mesmo é a vida dois andares abaixo. Claro que, dois andares acima é estar mais próximo do céu. Que se esquece facilmente e olhando-o mediatizado, não pelas janelas de casa mas da casa dos outros. Visto pelo olhar dos outros. Estar mais perto de que céu, então, senão aquele que é já refeito e condicionado a sentidos, interpretações e leituras, por outros olhares, reciclado, às vezes penso, como coisa imprestável em si mesmo. Abdicamos do olhar nú sobre a realidade em prol da representação. Poluídos por tanto registo e tanta informação. Gastos como gastas são as imagens que se mostram, a torto e a direito. Fazendo nossas e dedicadas ao nosso particular monólogo do dia. Imagens que se roubam e arrancam a um contexto e se fazem ao serviço dos nossos pequenos pensamentos. Fragmentos de imagens que são obras inteiras, imagens tornadas animadas de um movimento doentio e paranoico que refaz a nossa própria instabilidade doentia. Uma obra de arte intemporal passa a significar um momento particular, um humor e uma mensagem curta num diálogo em que tudo é descartável. Por vezes.
Em que mesmo cada silêncio parece encerrar uma mensagem de índole bélica. Cada silêncio esconde milhões de palavras não ditas mas fariam falta? Será o lugar descartável e passageiro a sua natureza? E uma foto mais triste significa que se está triste a tempo inteiro ou com alguém em particular. Ou um sorriso que se eterniza ao longo dos dias tem que ser atualizado em tempo real.
O tempo da reciclagem a que o planeta não beneficia mas também do lixo, o indominável lixo que desvaloriza cada objecto em si. A pós modernidade que tão discutíveis manifestações teve na arquitectura, também nesta arquitectura de relações supostamente sociais, e que mais ainda se revela na apropriação dos discursos. Na recombinação de referências, épocas, tudo na mesma amálgama ao serviço de um ego a expor. Somos amigos dos mortos e invocamos deus nas páginas virtuais. Sim estamos cada vez menos sós. Há sempre alguém que nos diz um olá, cruzando o espaço mais rápido que um super-herói. Costumamos dizer o contrário. Que estamos cada vez mais sós. Mas eu digo assim. Estamos cada vez menos sós. O que vendo bem é exactamente a mesma coisa nas contas da qualidade da solidão. Cada telefone com internet, a acompanhar os momentos que passamos com os nossos amados. Os nossos amantes e os nossos amigos. Cada olhar a desviar-nos da companhia concreta mas a repor em troca desta, várias outras. Os momentos a sucederem-se intercalados, sobrepostos, ou imediatamente sucessivos. Sem intervalo para sentir. Desfeito um abraço coloca-se um like nos braços alheios ao mesmo. Assim. Há um apelo enorme. Triste e divergente. Mas somos humanos. Fazemos escolhas quando conseguimos. Mas há o apelo. Eu sou triste desta modernidade que tento rejeitar na medida em que a minha fraqueza de humana me permite.
A intimidade em saldo, a nadar num aquário de águas saturadas. Ou peixes fora da água. Há que distinguir se possível.
Um pequeno vídeo: Pés que caminham sem mais. Na linguagem das performances em rede, deverá ter um sentido particular no momento e descartável no dia seguinte. Partimos da vida de alguém. Vamos ao seu encontro. A vida continua e é um olhar positivo. Estamos em fuga de algo. Perigoso de partilhar no momento errado de nós. Sujeito a tornar-se uma fala num diálogo impreciso. A fala errada. Uma letra de uma canção e quem é o sujeito. Quem a usa está a assumir a voz do outro ou a identificar-se na voz e a fazê-la sua… Uma realidade falível, difícil de medir e com a necessidade de ser renovada dia após dia. Para não gerar equívocos ou não se ser esquecido. Gostar é currículo e moeda de troca. Nesta troca ou compra e venda. E o ruido imenso. Visual, de sentidos. O excesso. A amálgama informe com que se alternam e sucedem…
Peixes fora de água. É o que sinto. Apanhados na rede e fora da água. Há dias em que convirjo mais para ali – demais – e me sinto morrer um pouco. O problema é nos dias em que começo a sentir que é ali que se vive. Nunca pensei suar com uma coisa destas. Passar uns dias sem as janelas da rede, as suas malhas, é a nova claustrofobia. Como se mundo nos fugisse das mãos que nunca o puderam agarrar, naquele intervalo de tempo e tudo acontecesse nas nossas costas. Mas é isso que deveria acontecer. Todas as cartas escritas que não são para nós. Como os telefonemas. Como na paragem do autocarro. Como se o mundo desse milhentas voltas mais do que os dias e se reposicionasse num outro ponto do espaço. Talvez seja assim, afinal. Seres de luz, fantasmas, com a ilusão da realidade. Ou como se se andasse com a intimidade na testa, ou dentro da malinha de mão e a deixássemos cair na rua. Exposto o conteúdo a quem passa.
Parar. Aí. Na rua. E sentir o gosto de não conhecer ninguém.
Eu preciso de muito mais tempo para pensar do que para fazer. Pensar cria aquela sensação ilusória de entender. Não que isso aconteça de forma relevante, por vezes. Mas é um intervalo entre o caos e o ficar tudo quase igual. Mas sem a ansiedade impertinente do reagir à vida. A tempo inteiro e em directo. Sem a pressão. Com a resignação de que cada dado importante não pode depender do instante. Nem sempre. Que as coisas não são tão perecíveis que exigem de nós a vigilância constante ao que somos e dizemos. Esse intervalo de pensar entre as coisas serve melhor como simples espaço ou intervalo, do que pelo valor absoluto. É mais uma reorganização espacial. Uma pequena distanciação do momento que passa, na sua premência inglória e o reposicionamento numa sensação de calma e aceitação, de que o futuro não é hoje. Nem deve ser. Talvez a distância entre o agora e o futuro de que não quereria ter pressa. O que é, é. E não se pode querer mais do momento. Mas eu gosto de entender. E por isso tudo se me apresenta problemático muitas vezes. É disso que tenho nos outros momentos, uma enorme vontade de fugir. Dar uma volta pela vida. Não de horas mas de dias, meses anos. Uma enorme e saborosa volta pela vida.

22 Abr 2016

Cinza, amarelo. E a seguir o azul

Acendo o candeeiro como se abre a porta a um amigo. Luz doce. Quase espero que me acenda um cigarro para começar. Podia dizer assim porque das palavras e do que encobrem, por vezes pouco se sabe. Qualquer nudez. Todos os dias me sento ao lado dessa luz calorosa. Mas não agora. Mentia. É dia. E frio mas de céu azul. De vez em quando com um timbre quase lilás. E nuvens velozes. E esta luz ainda fina mas que, a adivinhar outra estação, começa a amarelar. Sigo o azul. Sigo o azul distante. O azul, que há-de ser sempre azul por mais que eu pinte a preto e branco. Sigo-o, mesmo à distância, para além de todas as nuvens e por detrás de todos os cinzentos possíveis e mesmo do plúmbeo da noite. Sem que os olhos me doam. O coração sim, às vezes. E afinal sempre acendo o candeeiro. Um cigarro. Pela companhia. Porque não sei quem está aí. Com que olhar. Com que desconforto ou interrogação. Quem vem sentar-se na minha frente.
A pensar se é daqueles dias em que estagnei no imenso lamaçal de um mundo agreste e escorregadio. Que olho por entre franjas de inércia. Agitada. Em frente, daqueles dias em que há uma casa amarela, uma risca negra e depois o céu. Que dizer daquela risca negra e dos dias em que é exactamente ao contrário tudo. A começar no azul em baixo, comprimido por uma listra negra e uma casa amarela empilhada por cima. Pelo meio a memória de uma mancha enorme de uma oxidação estranha, ou corrosão, no capô de um carro. De um azul estranho também, obscurecido pelos reflexos e pela noite, aclarando no céu, e com matizes quase invisíveis. E ali também um candeeiro a rivalizar com uma lua reflectida. Bela só porque é uma luz. Ali, na curvatura em que me inclino, ambas as luzes idênticas. Luzes. Um feitiço só por si. Um farol. E por outro lado, outro dia já, a casa amarela, com a sua risca larga e escura a encimar umas janelas sonolentas e deitado logo a seguir um céu rosa. Sujo escuro e desmaiado, mas céu. Quanto muito.
Daqueles dias em que sempre sabia que não sabia tanto, como não sabia agora e hoje. Em que os elementos não ajudam a clarear a mente nem o dia. Revolteando em redor, num redopio estonteante. Esvoaçantes os cabelos e os pedaços de pensamentos sempre quebrados num golpe de jeito dúbio do vento. Inimigo de caminhos pacíficos.
De vez em quando mergulhar a pique nas águas profundas. Tentando ver o que assentou no fundo, o que se perdeu, o que flutua e o que é demasiado pesado para voltar à tona. De vez em quando dar uma volta pelo lado b das coisas. Na correria dos dias que fogem sempre com mais marés do que aquelas em que um barco consegue navegar. E outras só porque demasiado alterosas. E depois voltar e ser tudo igual mas subtilmente diferente. Ser igual mas delicadamente outra. Continuar tudo por entender, exepto o que houver exacto no momento que passa. Os sinais do imediato. Não no seu sentido profundo mas na superfície de um léxico quase reduzido ao binómio O-1. Nada mais cortante. Nada mais do que o vazio que não é novo mas por vezes se adensa. Ou cabos e tormentas em que se desmultiplicam as intempéries de todos os invernos, unidas de repente, no rodopio de ondas que enrolam a areia, a desarrumam e nela rolam pedras. Demasiadas ventanias, demasiadas ondas e nenhuma que traga o marujo amado. Como mulher de pescador a sondar madrugadas ao longo de uma vida, até ao dia em que ele não vem. O seu barco não volta e acordar do sonho num quarto citadino e não haver pescador para com ele sonhar.
Depois é já esta hora crepuscular, que é talvez a mais bonita. Digo, em alguns dias. O tom de azul tão precário, é o da maior transparência. Soturna e triste. Dura pouco e de alguma forma ainda bem, porque é aquele momento do dia em que tudo em mim se escoa por aquele azul adentro sem retorno possível. A sensação de perda, de desnorteamento, como uma morte em que se separa o que houver de alma, do invólucro seguro. Momentos de transição não são bons. Passou o que passou sem redenção e o que se segue a parecer de momento triste. Depois aquele incendiar das cores como o acender de luzes a substituir o dia. Há que dar um passo para a noite escura, que depois por vezes é extensa e apaziguadora. Quando é. Algo regressa a este espaço ocupado e mesmo a tristeza volta ao sítio. E pode ser grande. Imensa e a subir de tom. Depois, há-de haver um momento num dia em que se acalma. E o tempo que nunca chega…
Aquela sensação recorrente de que a vida me ultrapassa. Não a vida em geral, não teria essa pretensão, a minha vida.
E, noutro dia, um frio maior. A névoa que, finalmente associada a este, traz o inverno em pleno. O inverno que já estava. Mas há uma beleza estranha nestes tons de formas aveludas não fora o cortante gume na pele. Pousada a bruma nas árvores, e a nelas encobrir mais ou menos de uma realidade bela ou não, não deixa de ser uma forma de acalmar a ansiedade. Que um excesso de recorte e nitidez deixaria sempre. Não quereria saber a totalidade do caminho em frente. A ilusão de nitidez do castelo sempre adiado para mais longe depois de uma curva. Eventualmente. E depois de uma curva outra curva, antes de se entrever aquele que se torna de novo distante. Eventualmente inalcançável no fim da história. É essa imagem focada que espero todos os dias e que, no entanto, traria mais ilusão. Continuo guiada como cega pelo desconhecido dos dias. De todos os dias e esperando que não se vá. O desconhecido que sou eu e tudo o resto de que sei parte e nunca todo. Excepto uma parte maior lá à frente mas que pela experiência dos dias passados será sempre parte do todo. Uma parte. Do mistério maior em que, mesmo querendo, se fica à porta. Ou então em sonhos.
Dessa névoa, não há nunca a dúvida de como tapa as cores e formas desenhadas antes dela e apesar dela. Esqueço por momentos e depois volta o saber do sol e de todas as coisas possíveis, que a névoa não faz desaparecer mesmo quebrando os olhos e a alma. E volta o saber de não saber nada. Mas de que nada lá estará, é uma ideia destrutiva que não pode guiar. Seria menos do que uma parada de cegos. O império do olhar é coisa a deixar por vezes ao olvido.
É desse desconhecido maior que espero a revelação dos dias. A pouco e pouco. Que me vá revelando a parte de desconhecido que me cabe. Essa que tento desesperadamente entender. E do dia de agora. Não mais. Talvez um pouco mais. Não quereria saber tudo de uma vez. Tudo o que ainda resta para viver. Não seria bom perder o sonho. Não seria bom não ter nada para que acordar. Do desconhecido que sou, tiro as medidas do desconhecido dos outros e bem maior. E do medo. Esse cão. Mas esse desconhecimento mútuo faz-se de pequenos clics que sentimos ou não no segundo certo de uma imagem, de uma mancha, de uma palavra, ou de um olhar. E nele não pode caber mais do que o que está à distância de um clic. Um arrepio. A sensação de queda. Um baque no peito. Um passo. A subir. Não se quer vogar para sempre, mesmo na matéria estética da profundidade de beleza de uma névoa. O céu azul de nuvens miudinhas. O céu de denso azul sobre o mar, ou o céu das estrelas têm outro sabor quando visíveis. O céu abismal onde vogam planetas, cometas, asteroides e meras poeiras cósmicas. Que somos. Armados de um ego que nos faz enormes e que devemos rebater em contraste com o todo, que como nós também está a morrer, mas a uma outra escala. Às vezes a vontade de acelerar o tempo. Que desperdício, esta lentidão. Não fora o facto irredutível de que esta retarda o fim. E o que importa não é o texto. É a caligrafia.
Às vezes chove. Mesmo isso me parece um desabafo da alma. Em espelho. Mas numa casa antiga uma pessoa sabe sempre que a chuva pode entrar por vias esconsas e fazer eclodir o salitre das paredes. Como a realidade de que se quer fugir correndo para casa. Às vezes. Mas é como uma sonata melancólica, que embala por empatia. Não há maneira de se querer contrariar o que estiver a colorir a alma no momento. A violência não é bem-vinda. Mas os elementos não têm culpa, é da sua natureza. A culpa é da razão humana. Como a construção das casas. Imperfeita e vulnerável. Independentemente de planos e plantas.
Adoro mapas. Cartas de marear. Esquemas de corte e costura. Um intrincado sistema de moldes sobrepostos pelos quais guiar a tesoura. Na realidade nunca o fiz. Corto sempre sem rede e por vezes estrago o tecido e isso obriga-me a mudar de planos. Mas as cartas, as mais antigas de grafismos mais imprecisos geograficamente mas de desenho mais bonito. E com mais margens de desconhecido. As cores, as manchas oxidadas como as da pele e o amarelado geral do papel. As linhas como um sistema venoso ou arterial. E as rotas conhecidas como a circulação de vida, a que uns mais do que outros são apegados como por uma questão de morte ou vida. E navegar pelas estrelas. Nunca gostei dos constructos abstratos do moderno conjunto de artérias. Uma autoestrada igual à outra e circuitos indirectos pela cidade. Gosto dos caminhos como se percorrem a pé. Virar sem sinais de trânsito. Mas por entre uma teia de opções, em que virar para um lado se faz virando para esse lado. Perco-me mesmo na minha cidade nas condicionantes do trânsito e perco o norte. Eu não sei ler as estrelas. Dos mapas de viajar também gosto mais em cima da mesa, do que para cumprir à risca como um esboço que se refaz a tinta. Gosto do risco directo sobre o papel.
Dos minutos muitas vezes não sei portanto, quem vem de facto sentar-se aqui. Na minha frente. As construções da memória e da motivação são estranhas e indomináveis.
Como em outros momentos, na verdade, me assalta a estranheza mesmo ao alcance dos sentidos. Sabia que mesmo as luzes coloridas de uma árvore de Natal conseguiam um efeito encantatório de escape a um lado mais negro. Mas no momento, as luzinhas mínimas e imensas eram estrelas e no céu. Numa aldeia cheia de portas e janelas fechadas sobre o silêncio, sobre o vazio e muitas ausências, em que o céu me fez lembrar que há muito não o via como se estivesse para baixo, cheio de estrelas e de imensidão…Deitada de costas no terreno áspero, incerto, um pouco húmido mesmo. Ou talvez simplesmente o frio. A tornar-se presente à medida que os minutos passavam. E a mão dada. Também. A tornar-se mais nítida. Até parecer uma entidade própria, solta, feita de duas e desligada dos dois corpos ali. Um animal pequeno adormecido e quente. Em silêncio que podia ser de tudo. Mas a pensar na enormidade do universo, naquela qualidade abismal do negro tão mais profundo quanto interrompido pelo cintilar de tantas estrelas como numa visão urbana raras vezes se vislumbra. E a sentir a vertigem de se abeirar desse imenso fundo negro, como se para baixo, para além de tudo. Como se habitar este ínfimo planeta, à escala de todo um universo, fosse estar na beira do precipício e não colada a um núcleo de força gravitacional que centra como se um bloco compacto. Uma mole de formigas em cima de um torrão de universo. Não por debaixo. À beira dele. Numa curiosa, estonteante e momentânea inversão do sentido de orientação. Abismal. Como um átomo de Hidrogénio que, de tão pouca densidade, facilmente escapa ao campo gravitacional.
Uma enorme melancolia quando leio notas científicas sobre as possibilidades de colisão de asteroides com este planeta pequeno e solitário. Não sei porquê, quando muitas das possibilidades mais não encerrem do que a certeza de que num momento outro todos vamos. Mas há mais do que cada um em si. A nossa cadeia por vezes inestimável de seres com continuidade é uma coisa frágil mesmo se tivermos descendência. O fim é frio e sem distinção de sentido quer seja um atropelamento súbito, o impacto de um amor, de um asteroide ou simplesmente o fim de um universo complexo de expectativas de permanência para além da vida terrena. Sim tudo e rigorosamente tudo pode acabar. Acaba. No fundo quando se apaga a consciência de ser. Esta é aquela perspectiva que deveria presidir a valores maiores do que aqueles que circunstancialmente nos tolhem no dia a dia-. Que mesquinhas limitações as nossas. Orgulho, previdência, calculismos pontuais, estratégias. Como asteroides são na realidade pensamentos que me bombardeiam com impacto, sem esperar. Possíveis todos os dias, mas de cujas cores, nem sempre sei o que esperar. Porque há dias de espuma e dias de lava.
E então, catapultada para baixo nessa imprevista alternância de sentir, de novo as costas no chão e o peso do universo pressentido além, agora em cima, penso: quem é esta pessoa ao meu lado e o que nos trouxe aqui. Os dois e não outra coisa. A doçura e a amargura não se podem anular. É talvez o agridoce doseado com mestria que harmoniza o paladar. E, na vastidão momentânea que a vista alcança, mergulhada para fora tanto como para dentro de mim – estranhas dinâmicas psíquicas a questionar talvez depois – sinto distância. O longe no perto. A distância confortável que só um fio ténue como aqueles que atam e prendem um balão, suportava. O fio da inércia de um lugar e um tempo fora daquele, e que aquele de algum modo questionava. Desconfortavelmente. A distância. De um momento. E na manhã de um outro momento ali, o ribeiro parado, um reflexo nítido e sombrio da ponte e aí, como se numa janela rasgada no negro do reflexo sombrio, o céu claro, como mergulhado num mundo ao contrário. Ou talvez não. Apenas um outro instante “em que (…) a ordem visível das esferas mais altas virá mirar-se na profundeza mais sombria da terra (…)” (M. Foucault).
E noutro momento ainda, e num lugar já não a norte, um de todos aqueles outros dias, na verdade, que são mais a sul, à beira das águas rumorosas e de novo deitada de costas, e só – agora só – o sol escaldante mesmo nos intervalos da aragem fria, e a ferir, excessivo mesmo através das pálpebras cerradas. Já não uma mão em outra, que não era a que não está agora, de qualquer modo. Nem a distância. Tudo ali. Sem saber de onde vem esta sensação de perto no longe. Sentido com sentido. Mesmo sem que o do tacto e os outros, possam comprovar a não distância. O abismo, a retórica, o paradoxo. Em que a ausência é um lugar pleno. De traços fortes. A cheio. Porque não é um daqueles dias. De Hidrogénio. Hoje Ósmio, elemento do grupo da platina. Metal azul acinzentado, e o mais denso de todos os elementos. Hoje cinzas tocados de luz. O amarelo na parede em frente, pausa, e a seguir o azul até longe.

11 Mar 2016

Partida da memória

Todos os dias a produzir passado. Actividade que nos indiferencia todos, e a todos remete para a mesma reflexão, se formos dados a ela. Uma espécie de economia existencial em forma de dilema. Deixar correr, morrer, ou cultivar. Deixar acumular, desarrumar, ocupar exponencialmente espaço de vida a viver, ou emparedar, guardar em caixas. Arrumadas com atenção e rigor. Datas, locais, pessoas. Passamos os dias a produzir passado, nessa lucidez infeliz que contamina o momento. Pensar é um acto barroco. Mesmo praticado à exaustão na sua forma mais quieta, repetitiva e atemporal. Poderia passar uma vida nisso. Uma delas. Ou, quando à beira do afogamento nas palavras, devolver o mais possível em dissolução e inexistência o imenso dano que fazem. Fragmentar, dividir, atenuar. A infelicidade é inimiga do tédio. E lucidez, por vezes, é assumir a decadência e fazer dela uma obra em grande. Ou o desespero. Matérias- primas preciosas.
E ser-se o mesmo e ser outro. Em cada dia. A eterna roda da vida. Imparável. Uma inércia a que há quem chame destino, karma, sorte, inevitabilidade, ou construção subliminar. A levar-nos na sua engrenagem, sem que possamos reverter-lhe o mecanismo. Alterá-la em velocidade ou em sentido. Feita de sínteses intuitivas, balanços subterrâneos. Porque mecanismo com fôlego para nos levar de arrastão como um fardo pesado que apenas nós sentimos. Expostos à abrasão dos elementos rudes, ou pelo contrário, a incrustação de outros. Com brilho e colorido, ou a sóbria e estranha simplicidade dos grãos de terra, ou areia, ou sal. E de dia para dia, o olhar sobre o mundo em mutação. O olhar e o mundo. Porque do ponto de vista a que estamos amarrados, se prefiguraram, diferentes como cenários, ângulos de visão que se referem ao lugar para o qual a roda, rolando nos arrastou. As possibilidades são tantas, de abordagem ao mundo. Em que é necessária uma chave. E é difícil acertar na escolha, de entre as muitas que se acumulam no molho que carregamos na vida. Do qual muitas se perdem e outras são experimentadas no desconhecimento, e por tentativa e erro. Sem sucesso na maioria das vezes. Tão difícil encontrar o caminho para o destino impreciso que vislumbramos precário mas que seria uma mais valia abordar nem que fosse como estação de passagem. Mesmo que só para refazer forças e beber um copo de água. Vital, frugal e sem grandes custos. É assim a vida, feita de ínfimas necessidades. Mas que mesmo como tal, muitas vezes estão fora do alcance. Caminhar contra a corrente.
E quando a distância se impõe em todo o seu esplendor, se não há caminhos, não há percursos. Se falarmos da memória. De novo a opção de perder ou colecionar. Recordações. Ou a inevitabilidade de uma coisa e outra sem critério. Ou ainda e só a perda. Da memória. “A memória é a consciência inserida no tempo”, diz Pessoa, mas que tempo? O de âncora a barrar a corrente imparável, o de poço iniciático ou o de linha de pesca lançada na corrida do rio para o mar? Construir memória é complicar a questão da saudade. Às vezes, anseio por uma vida com a possibilidade de log in. Com a possibilidade de log out. Intermitentemente. Porque a violência está no limiar da emoção.
Sempre na minha vida, dia após dia, há uma mão que arruma e uma mão que desarruma. Que insiste em produzir passado a uma velocidade maior do que o tempo permita arrumar. Passado em escrita. Passado em imagens do momento que se torna passado. Pertinências ou impertinências para sempre. Digitais e voláteis como o espaço cibernético onde moram. Ou em papel. Ou tecido. Ou barro. Pedra. Make up. Sei lá. Um computar deveria ser mais facilmente um ordinateur, como na língua francesa. E facilita essa possibilidade. Mas também a de produzir demais. Desarrumação demais. Divergência. Que seria moroso colocar em ordem mas fica sempre para um dia. Sempre ontem ou amanhã. Ontem na emergência. Amanhã, na frustração. Ou o contrário. Que coisa é esta do tempo. Que não pára para receber passageiros. Que temos que apanhar em andamento, com movimentos sincronizados, afinados e precisos, como um automóvel. Ou um cavalo em corrida.
Mas passar os dias a construir futuro é uma actividade visionária, ou, pelo contrário de grande segurança e lucidez. Passar os dias a construir presente é o que requer uma dose maior de clarividência porque a ilusão de infalibilidade que deveria subjazer a cada palavra, acto, ou condição, é demolidora na maioria das vezes.
Mas os tempos são o presente efectivo de uns nos outros, como um vórtice perpétuo. Sem deixar poeiras de fora que não as irrelevâncias parasitas que se vão imiscuindo nos tempos sem filtros capazes de as limpar. Essas sim, exclusivas do universo sem tempo e sem qualidade. A depurar em cada momento fictício de paragem. A deixar em cada estação. No espaço próprio às inutilidades da memória não reciclável. Coisas que não servem para nada não tendo sequer a qualidade da simplicidade, da elementaridade ou, muito menos, da síntese. Ruídos ou poeiras que emperram a engrenagem de súbito. Com risco. Reconhecê-las não é trabalho fácil. São de uma enorme ambiguidade por vezes, parecendo oferecer contextos e explicações para a vida material. Haveria uma capa espessa e impenetrável possível. Mas o risco de ser impermeável é enorme naquilo que se perde. De valor, e sem valor. Eu quero sentir e sinto tantas vezes que o tempo é hoje. Não em depósito de economias para o futuro, mas como o único possível de anteceder tudo o resto. Há uma arquitectura, projecto e concretização no tempo próprio. E há o acampamento de qualidade. Acampamos no dia de hoje. Provisoriamente e com os recursos de que necessitamos para o imediato de uns dias. Ou simplesmente de hoje. O presente é o único tempo.
Aquela expressão peculiar, sete partidas. Antiga de séculos. Partes, regiões. Mundo do mundo do viajar, no desconhecido que foi e se foi desvendando e desenhando em mapas, de início visionários. E o número que não sendo o maior dos algarismos solitários, é de tantas formas, imagem e símbolo do muito. A violência das sete pedras na mão. O desconforto das pedras no sapato. A incredulidade das partidas da memória.
Sete partidas da memória. Ou muitas mais, as possíveis. Partidas do mundo. Interior. A partida da memória, e da de ser em si. O sentido de ser. O lugar que se esqueceu. O retorno inesperado. A do retorno indesejado. A do que se julgou morto. A do que volta do lugar errado, porque transitou em viagem autónoma. Do que volta sem ter partido. Sei lá que outras partidas. Ou chegadas.
Porque se desejaria de cada vez invocar uma emoção em forma de memória, mas, talvez como o facto ou a possibilidade de a alma não existir para além do fio ténue que a liga ao matérico carácter do corpo em que se transporta, o suporte de linguagem, mesmo visual, mesmo táctil, de que se faz a memória que se quereria presa aos objectos, às imagens. Querer exercer através do olhar a magia da reinvenção da memória como suporte de existência havida, é falível. Memória ou natureza morta pelo tempo.
Dizer que uma natureza morta é algo de doentio. Esquecer a intensidade de uma qualquer evocação, até porque na inércia dos dias, a habituação do olhar a torna quase invisível, ou quando o olhar foca com atenção sobrevém a estranheza do sentido e mesmo a distanciação do testemunho de meses passados ou anos ou décadas. Mesmo as cartas, os retratos antigos são naturezas mortas. Carregamos na memória afectiva uma mala cheia dessas naturezas mortas. E a alma não é território de conquista. Essa, não se arruma no sótão.
Toda a gente deveria ter um sótão. Umas águas furtadas – saboroso nome – roubadas ao espaço do real ou da casa, talvez, para manter circunscritos os vestígios sólidos da memória de vida e de vidas passadas. Pedaços de infelicidade soltos. Pequenos fragmentos felizes mas quebrados e desmaiados de cor. Fantasias. De carnaval e outras. Incongruências sólidas. Para reciclar, uma caixa. Para esquecer, uma outra. A de saber e não saber, uma única de difícil arrumação. A confusão instalada até um dia de maior paciência, de tempo, ou dominado por um ímpeto impulsivo, em que se deita tudo fora. Ou não.
Um sótão para desarrumar progressivamente sem que isso se estenda à casa. Definitivamente, mesmo. Se necessário. Nada mais intrigante do que o tempo dedicado à arrumação do passado. Objectos, memórias, recordações. De cada um e de outros. As cartas. Os diários. Provas de viagens. Notas em desuso de países distantes. Projectos e sonhos no papel. Aqueles desenhos eróticos sem destino recuperável. Fotografias de amigos mortos de parentes mortos. E tantas recordações mudas, excepto para nós. E mesmo aquelas que não o sendo antes, com o tempo se esvaziam e tornam, também aí, mudas, seráficas e insondáveis, mesmo para nós. Para sempre. Mesmo quando perscrutamos a memória, revolvendo detalhes, à procura de uma emoção, de um momento, de um nome. Mas que nome? Às vezes é assim. O nome já lá não está. Durante anos escrevia diários com aquela enorme preponderância do amor. De amores hoje insondáveis. Sem lhes referir o nome, na convicção de que sempre seriam óbvios. E não foram. Nem sempre. O que sobra são sentimentos que se repetem porque eu serei a mesma mesmo que eles o não forem já. E, indiscriminados tornam-se um nada que se reduz ao que senti. Muitas vezes sem mais. Outras vezes, não. Diários difíceis de reler. Cartas impossíveis de reler. Fotografias dolorosas de revisitar. Porque se guardam numa enorme necessidade de garantir a demonstração de que houve existência prévia. Mas no reino da nostalgia. E esse é o reino encantado que devia viver no sótão de cada um. Trancado a sete chaves. E visitá-lo, um dos sete pecados mortais.
E ali, no sótão da alma há também vestígios das sete partidas. Que a vida pregou, que o momento presente pregou ao futuro, torcendo e distorcendo. Sete mares de tormentas a descobrir ou a esquecer. Aquelas coisas tristes que nos perseguem inutilmente porque as sobrevivemos, porque as tornámos irrelevantes – tornámos? – mas encastradas num ponto qualquer da pele. Invisíveis aos olhos, numa actividade secreta, e que só a doença apaga. Quando o lugar morre. Ou se recolhe intransitável. O lugar da memória. E contudo, este é desarrumado por natureza e mistura ligações com dados puros. Parece. Cria acessos alternativos. Cópias. Coisas assim.
A plasticidade cerebral. Essa extraordinária capacidade de adaptação criativa e autónoma relativamente à razão, à vontade ou à expectativa. Habilidade para mudar se necessário a sua organização estrutural em adaptação a condições mutantes. A cada nova experiência e sobretudo a da morte de áreas, caixas de arrumação específicas, novas redes de neurónios, as ligações sinápticas a rearranjar-se ou reforçar-se de forma imprevista para dar resposta à novidade ou ausência. A recuperar funções perdidas ou a redefinir ligações. Partidas estranhas da memória. No fundo, estratégias motoras. Como usar as mãos para organizar caixas de memórias e vivências no sótão. Mas aí, pela magia da vontade. Na casa imaterial, não há domínio. O que fez bem ou mal no mesmo compartimento. A importância das coisas a reter ou a esquecer, sem possibilidade de escolha. O que volta ou o que fica para sempre como morto. O que morre de facto ou o que parece mas não é. E volta inteiro dos confins do sótão da memória ou da construção da vontade. Não há espaço na casa para tudo. Não há tempo nos dias para tudo polir. Por isso um sótão era o direito que todos teríamos a uma cafua caótica. A uma porta, um alçapão que se fecha até um dia. Se chegar. Quando se diz que se faz o luto de um morto querido, há o esquecimento progressivo. E quando a memória volta, num dia qualquer, tudo inteiro se apresenta. Quando se esquece um grande amor, esquece-se um grande amor. Até ao momento de distinguir se morreu ou não. E uma coisa não é a outra. Nem sempre.
Mas nem todos os dias, são dias de subir ao sótão. Uma cerimónia que se deveria querer rara, com todo o ritual e nostalgia. E raro o tempo de mergulhar na melancolia de um olhar em tudo é sempre perda ou sempre a taça cheia. A memória da própria memória persegue, contudo. Toda a gente sabe que tem um sótão, no fundo. E falta de tempo. Para trocar o estar aqui. E assim. Hoje. O único tempo. Mas entrançado nos outros, e voltar ao início. E lembrar que cada momento é tempo de produzir passado. E este desarrumar continuo.
No entanto, porque é noite, agora vou. Pousar a cabeça na pequenina almofada da avó. Que veio até mim já depois dela. Estranha recordação que mais ninguém a quis. E por pouco o desencontro também comigo. Ou então foi um daqueles actos de magia branca inadvertida. Não sei. E que tem um anjo bordado. Basta tão pouco das recordações para poisar a cabeça. E só um cantinho. Ao lado do anjo. Um pouco silenciosa. Magoada do meu próprio silêncio. E da memória. Por tê-los ocupado mal. Por vezes.

4 Mar 2016

Do horizonte, quase nada

[dropcap style=’circle’]E[/dropcap]u nasci no mês de Agosto. À noite, quase num dia de semana mas ainda nos restos nocturnos de domingo. Quase em noite de lua cheia. Tudo isto deve ter moldado a minha alma melancólica mas tão precisada de luz e calor. E da liberdade que, veio a verificar-se, só me espera neste mês do ano. O mês cheio de dias que rondam o dia em que nasci, desarrumação que, embora só a mim, ainda hoje me perturba.
Esta é a semana do meu aniversário, rodeada para trás e para a frente do mês que sempre me remete para o lado tormentoso que me caracteriza. Vim à luz com um barómetro e um termómetro e vários outros instrumentos de medida exorbitantes para os quais passei todo este tempo, a ganhar aptidão para gerir os dados. Que me dão a percepção do facto de ter nascido, como um enorme turbilhão da natureza, uma tormenta de vagas alterosas da qual só eu sinto os efeitos e em particular nesta altura do ano. Abala-me, desorienta-me, derruba-me a partir do interior mas como se de forças naturais e com base nos elementos exteriores a mim, se tratasse. E ainda estivessem em rebuliço.
Quando é que isto começou, lembro-me muito bem. Quatro décadas lá atrás. Numa noite em que depois de uma festa familiar improvisada para celebrar o meu dia, deitada na cama me desfiz em lágrimas. E foi a primeira vez. E entendi. A falta de sentido que me iria assolar para sempre, como a muitos outros, e que se torna sempre presente infalível e pontualmente pela aproximação daquele dia. A angústia da vida a termo indefinido. Rilke disse que só a consciência da morte nos permite valorizar as coisas da vida, o amor. Terá razão em muitos dias do ano. Nos outros, será sempre every other day. Neste, muitas vezes ou sempre, só o atordoamento torna suportável o paradoxo por definição que é a vida. Em que existimos realmente e apenas no momento presente, não quantificável em qualquer tipo de duração. E para morrer. Vivemos no nada e partiremos para um nada mais denso que o nada. Não conhecendo então o paradoxo do niilismo universal, esforço inglório, foi o que pensei já nessa altura, em desalento.
A diferença é que, nessa altura e provavelmente sem o saber, eu me sentia o rio. Enquanto hoje, muitas vezes sou mais a margem e sento-me muitas vezes simplesmente na margem. Deste Tejo enorme que banha a cidade e desagua mais à frente. E de outras, acompanho-lhe o caminho final até à foz, e nela antevejo o que me espera. De diluição. Ou fixo-me na linha do horizonte a mais circunstancial de todas, intangível e fugidia. A fuga para a frente.
E a maior crueldade ou partida da memória, reside no facto de nunca se poder voltar ao lugar de onde nunca se partiu. Mesmo querendo desesperantemente. Não parti daquele ser que nasci, mas também não posso voltar a ele. Como se nunca tivesse existido.
Tudo tão fragmentado neste meio da vida. Meio como possibilidade teórica. Terei sempre que reconhecer que pelo menos um terço desse todo, será improvável. Um século de vida, é o limite daquilo a que na melhor das hipóteses, mas assustadoramente também por vezes na pior delas, um ser humano pode aspirar. Na verdade, as probabilidades estatísticas dizem-me que terei vivido já dois dos terços da vida.
E naqueles dias em que o maior anseio de alma é mergulhar sem retorno nas profundezas escuras do oceano, poisar no fundo e encalhar aí como um velho galeão, o único cuidado a ter é mantermo-nos cuidadosamente nas margens. De tudo. Não vá o elástico que nos catapulta e reenvia ao lugar soltar-se. A corda em que caminhamos em pontas, quebrar. E o abismo que visitamos, guardar-nos para sempre.
O abismo a simbolizar a profundidade interior do homem, a sua apetência e medo do conhecimento de si, em quem se reconhece uma necessidade de transcendência e em que se auto-representa por vezes como imenso, o que leva a uma outra consequência simbólica quase simétrica – O ser como símbolo de abismo. E a partir deste, a possível validade das formas enquanto símbolos do ser – presente na contemplação – do seu dinamismo psíquico, ou ainda do abismo como projecção ou símbolo deste. E porque o ser é redondo, redondas são por vezes as formas de lugares abismais…
O lugar sem fundo ou o não lugar.
Ou o vazio como lugar do todo em devaneios de infinito…Tantas citações de Nietzsche possíveis tantas páginas depois e vejo-me de novo à beira dele, de tão vasto e já escrito. Sinónimo de voragem, se se lhe der o poder da vertigem. Mas tirando os grandes abismos da terra, geologicamente falando, é sempre do ser que parte a inevitabilidade da formulação do abismo. Na sua irreprimível dimensão psíquica, e no seu alternado dinamismo no sentido do longínquo aparentemente exterior, reverso das profundezas íntimas de penoso acesso. Como sempre chega-se à ambiguidade inter-permutável dos opostos. O que é amplo e o que é confinado. O que é exterior e o que é profundamente interior e se vê no entanto de fora, à imagem de tantas metáforas nietzschianas. O que é o centro, a forma redonda centrada e centrífuga, e o que é a transcendência de si. E a instabilidade destas dinâmicas. Ou ambos nas duas extremidades de um elástico. O permanente desenvolvimento de um dinamismo psíquico inerente ao estado de consciência à imagem do movimento de um elástico em diferentes graus de tensão. Concentrado e identificável à forma circular. A imagem do elástico ou a vocação pendular da introspecção. O retorno como reflexo, e o retorno para detrás do olhar.
Um sentimento de que inevitavelmente o ser se confronta com uma dimensão interior de si que é abismal, em paralelo com uma visão do que é exterior a si – o universo – igualmente abismal, e como tal assustadora, a atracção para mergulhar nessas dimensões que o transcendem, e que é compulsiva, parece espelhar a absoluta consciência da sua finitude.
Mas a finitude pode ser apresentada como um sentimento incontornável enquanto contingência existencial embora não desesperado, na medida em promete o mesmo infinito que recusa. Assim, se por um lado o saber revela ao homem dados que lhe são de algum modo exteriores e anteriores, que o parecem situar como nada mais do que um “objecto da natureza” ou “um rasto que deve desvanecer-se na história”, por outro lado é no conjunto das positividades empíricas do homem e limitações concretas à existência humana – o corpo na sua espacialidade, como modo de ser da vida, o desejo enquanto “abertura” como modo de ser da produção, e a linguagem, veículo do pensamento suportada no tempo – que simultaneamente se revela a sua finitude mas também a esperança ou a superação desta mesma finitude. O corpo, porque na sua inexorável relação diária com a morte, que imperceptivelmente o consome, precisamente se apresenta como o veículo para a vida empírica, o desejo porque através dele o homem se relaciona com os outros e com sistemas de produção, mas também é através dele que as coisas se tornam desejáveis, a linguagem, porque é suportada pelo tempo, que simultaneamente a corrói e desgasta, mas também a estende para lá do dominável. Nestes fundamentos enraíza-se o sentimento de finitude, mas é também neles que o homem se transcende.
Por que terá o homem atracção pelo que é profundo, imenso ou mesmo infinito, a simbologia do abismo como estrutura de localização do eu individual, ou uma espécie de topografia do ser auto-consciente, o desconforto ontológico face às coordenadas espaço-tempo com que o ser se debate: onde habitar, como se situar, onde se refugiar, são as questões que se colocam neste trabalho.
Porque, no que é profundo dentro de si, no que é imenso dentro e fora de si, encontra os fundamentos da sua angústia fundamental, da sua finitude. E porque no que é assustador encontra também a única via de superação da angústia. Mascarada de domínio, coragem, ou somente de inevitabilidade, a apetência pelo abismo manifesta a possibilidade do homem, através dos seus mecanismos conscientes ou inconscientes, de se esquecer momentaneamente os seus limites e pela mesma lógica com que os apercebe, deles se libertar.
Tal como tem consciência da finitude, possui também uma enorme vontade de a superar ou, de se superar nessa finitude, mesmo que seja através do discurso, de qualquer discurso como alienação. Parece fazer parte da sua natureza sensível e intelectual exprimir e partilhar esses sentimentos traduzindo-os em diferentes linguagens, imbuindo-os de uma forma que os torna parcialmente comunicáveis. Onde se funda afinal a mais simples razão deste labor da escrita.
Aqui, todas as semanas a mesma coisa. Deveria escrever talvez mil palavras e começo por escrever duas mil. Repesco umas quinhentas daqui e dali. Recomeço noutro ângulo e são mais três mil. Das quais retiro mil e avanço até às quatro mil. Das quais recuo por excessivas. E apagando sucedem muitas outras. Até se definir o caminho que quero. Indecisa e insegura da pertinência de tudo. Vou percorrendo ao longo de um ou dois dias uma espécie de labirinto de fragmentos de textos, de lugares. Até ao momento em que lhe encontro a saída. Há luz do lado de fora. É luz natural, mas nem sempre sei em que país me encontro. Sei sempre, no entanto, em que casa estou.
Tantas coisas a dizer. Vivo cercada de pequenos papelinhos, cadernos bonitos e confortáveis, diários gráficos, documentos word abertos para apontar a vida. Palavras sempre a mais porque não há tempo de as completar a todas. E sempre a menos na sua imperfeição, comparando com as que me assolam a qualquer momento. Acabo por fazer proliferar cada vez mais papéis soltos, pedaços de folhas, cantos de listas da vida, envelopes de contas da casa. Contas da vida. Porque não lhes quero assumir algum carácter definitivo de importância. Essas palavras que caiem ali como lágrimas pontuais. Como suspiros. Como perguntas para pensar mais tarde. Perplexidades ou pretensões. Tudo com o mesmo valor à partida. Adiado. E há um propósito com que as desarrumo. Uma rejeição qualquer. São exponenciais como gavetas dentro de gavetas, dentro de gavetas. Ou dentro de mesas, de casas, de prédios, de cidades, de continentes. De… Outras vezes uma emergência. E essas presenças imperfeitas e condicionais, angustiam-me. A sua inutilidade. A sua fragmentação e nela a da minha vida, do meu dia. São esperas que se desmultiplicam.
Mente-se tanto. Mesmo quem tenha esta compulsão da sinceridade. Tudo o que se revela é insuficiente e carecia de um ‘mas’, a articular com a outra ou as outras faces de uma mesma lua. Quantas coisas que digo seriam igualmente rigorosas se pelo meio houvesse a palavra quase. Aquela que sendo a antecâmara de uma sala, seja qual fôr, é porventura em certos lugares capaz de mudar em tudo um sentido. Inverter mesmo. Quando se diz: esqueci, antecedido de um quase, produz-se aquela alquimia de passar a dizer que se recusa o esquecimento que está já ali. Que se tentou mas foi uma disposição fraca para tanto que a recordação evoca. Que se mudou a vontade de querer. Que não se conseguiu. E no entanto, ‘quase’ é aquele não chegar a ser. É o nada que não chegando a ser algo, reforça o seu oposto.
Nada definitivo, nada eventualmente perfeito, não conclusivo, mas tudo no estado de absoluta confusão ou arrumação possível para o momento da estreia. Quer-se o melhor, a perfeição dos meios, o apuro da expressão do sentido, mas o que está ao nosso alcance é justamente e só, o ponto a que se chegou no momento. Humildemente mas com as tripas na mão e o coração em desalinho, as roupas a maquilhagem os cabelos, todos os adereços de cena a postos para o ensaio geral. Mas a estreia sempre adiada. No último minuto.
Estes são dias em que me revolvo por dentro. Assaltada de todos os lados por recordações. Perdas. Pelo passado todo e pelo futuro tão pouco. Pela falta de sentido de tudo. Em que perco o equilíbrio. Em que o procuro apurar o segundo que passa, imparável, e divisível em três. Cada parte dessas igualmente divisível por três. E sempre cada uma das partes, passado presente e futuro. Em que o presente se vai substituindo ao futuro. Um comboio fantasma em movimento. O nada que não existe. Desfoco. E procuro no meio de tanta tralha e lastro existencial, alguma coisa. Indefinida. Sei que procuro. Sei que nunca encontrei. Mas não sei o quê…

21 Ago 2015