Pintura | Anabela Canas expõe novas obras em Almada

“É a primeira vez que trabalho a partir da memória de Macau”

Pintora, ex-residente de Macau e habitual colaboradora do HM, Anabela Canas regressa às exposições, desta vez para participar num programa de eventos que celebra Fernão Mendes Pinto, o Oriente e Macau. “Da viagem que achasse, antes que chegasse a ela” vai estar patente, a partir de amanhã, no Centro Cultural Fernão Mendes Pinto, em Almada, Portugal

 

Como descreve estas obras que apresenta nesta mostra? São novos trabalhos ou faz uma retrospectiva do seu percurso artístico?

O conjunto de pinturas que vou expor é novo e feito especialmente para esta programação de eventos que tem como tema “Almada na Rota do Oriente – Macau”. Nunca faço retrospectivas do meu trabalho, pelo menos por agora. A minha mente não me dá descanso e pede sempre um percurso de passos em frente. Cada nova oportunidade alimenta esse meu desejo e serve-me de estímulo. Estes trabalhos foram feitos a partir de um certo conceito de viagem, com ligação às viagens de Fernão Mendes Pinto, de quem tinha precisamente, um pouco antes, adquirido [a obra] Peregrinação. E, também pelas diferenças que há na interpretação da obra, da veracidade ou fantasia com que as narrativas correspondem a uma vivência directa ou de ouvir contar, por parte de Mendes Pinto, foi-me surgindo a ideia de quanto na nossa memória é refeito e deformado pelo tempo, tornando os lugares por onde passamos ou que sonhámos conhecer, pouco objectivos e sintetizados em paradigmas isolados de um contexto. Esta é a primeira vez que trabalho a partir da memória de Macau e das pequenas viagens sem sair do lugar, e de algumas viagens pela China. Por outro lado, sendo este evento dedicado aos poetas de Macau, evocados num poema de Jorge Arrimar, integrei também a pintura: “Deste interior não sai ninguém”, pela feliz coincidência de ter chegado de Macau e posteriormente de Dakar. [Esta] é também uma outra viagem ao interior, do espaço do corpo, da casa e da poesia, dedicado a Camilo Pessanha, e que fiz para a celebração em Macau, dos 150 anos do poeta, numa iniciativa do Carlos Morais José e do jornal Hoje Macau.

Que grandes mensagens ou ideias pretende transmitir a quem vê os seus trabalhos?

Na verdade, não tenho a pretensão de transmitir grandes mensagens, ou grandes ideias. Centro-me muitas vezes em coisas pequeninas, mas que me parecem ter algum grau de empatia com as pequenas coisas que fazem a mundividência de outras pessoas. Sensações que o mundo visível provoca e que nos deixam, mesmo sem um discurso verbal sobre isso, situados num determinado modo de sentir a existência, por exemplo. Porque de fragmentos de tempo, muito circunscritos, no nosso dia, acontece-nos mergulhar numa ilusão de lucidez, da qual se pode extrapolar para uma dimensão filosófica, por exemplo. Por outro lado, gosto de encontrar nas coisas anódinas a vocação para a metáfora. Portanto todo este universo que me interessa, da luz, da permanência do rio, da impermanência, que é um outro lado das coisas, da finitude e do seu contrário, pode ser muito pequenino, ou muito cósmico, que são duas vertentes igualmente abismais para a contemplação.

Nos últimos meses tem-se debruçado sobre a escrita de crónicas, exercício que faz nas páginas do HM, juntamente com ilustrações da sua autoria. Trata-se de um exercício que complementa a sua prática como pintora?

Escrevo as crónicas semanais desde 2015. Nestes anos mais recentes não tenho conseguido manter essa regularidade dos primeiros anos, porque o tempo é sempre menos do que preciso para tudo o que me inunda. Escrevo desde criança e sem objectivos a mais do que a necessidade de diálogo interior, que as palavras, porque económicas e imediatas, sempre me trouxeram. Essa necessidade que também tenho de produzir imagens, e outras coisas como objectos, são parte de um todo, que eu sou, com uma certa dose de compulsão, em que é necessária a produção, e toda ela produz reflexão e mais palavras, e é uma espécie de válvula que é necessária. Ter sempre uma saída para o que me inunda a cabeça. E que é excessivo para ficar retido dentro dela.

Viveu em Macau. Que memórias guarda do seu percurso artístico no território e do panorama das artes na altura?

Vivi 11 anos em Macau e tenho a memória grata das oportunidades que tive, de ir desenvolvendo os primeiros passos no meu ofício, o que se devia a uma escala que permitia, mesmo a uma pessoa um pouco tímida e insegura, como eu era, uma maior proximidade com instituições e pessoas. Das quais este ofício depende para a normal visibilidade. Por outro lado, sempre tive que conciliar a pintura com o ensino e isso nunca foi fácil. Mas o panorama artístico não tinha o dinamismo que tem hoje.

De que forma é que a sua vivência em Macau lhe moldou, ou mudou, a prática da pintura e da criatividade em termos gerais?

Qualquer detalhe ínfimo, sabemos, pode alterar todo o curso de uma existência e nós não o conseguimos muitas vezes determinar. Por outro lado, também não sabemos quem seríamos se não fossemos este produto de tantas pequenas ou grandes escolhas. Macau foi a grande viagem que fiz, não só pela distância e pela diferença, mas também porque foi um relativo corte ao meio na minha existência de jovem adulta. Mudei-me para Macau, fantasiei muito, antes de ir, tal como me deixei impregnar de um paradigma de “oriente”, pela proximidade com a grande China enigmática e antiga. E esse paradigma, das viagens feitas e daquelas em maior quantidade, sem sair da minha janela em Macau, até hoje alimentam os meus devaneios “poéticos”, ao ponto de a eles ter voltado como temas a trabalhar para esta exposição. Por isso, tal como acredito que Macau me mudou e acrescentou, como a qualquer pessoa que tenha o privilégio de ver a vida por um ângulo diferente, também acredito que algumas das ideias estruturantes que passam no meu trabalho, não têm a ver com nenhum lugar em particular.

Programa preenchido

“Almada na Rota do Oriente” tem levado à cidade portuguesa, desde Outubro do ano passado, um conjunto de eventos e actividades que celebram as viagens de Fernão Mendes Pinto contadas na sua “Peregrinação”, onde Macau surge representado. Esta quinta-feira, além da inauguração da exposição de Anabela Canas, irá decorrer também a sessão de leituras “Tributo aos Poetas de Macau: doze (re)cantos do poema”, baseada num poema de Jorge Arrimar, também ele ex-residente em Macau, escritor e poeta. Nesta sessão participam ainda António Fragoso e Joaquim Ng Pereira, declamador de poesia em patuá, docente deste dialecto e responsável pela Oficina de Patuá Macaísta do Centro Científico e Cultural de Macau.

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