Unheimlich

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que se reconheceu como Homem, a espécie humana tem procurado distinguir-se das outras espécies animais, quer pela simples adição de atributos (do género “o homem é um animal racional”), quer pela constatação de um corte radical numa hipotética escala evolutiva (o homem é um animal com cultura). Mas, no fundo, parece existir uma remota e timorata consciência de que a distância que nos separa dos outros bichos não é tão grande quanto isso.

Um dos primeiros a escorregar na senda da confissão deste terror (em termos científicos) foi o naturalista Buffon. Dizia ele que se os animais não existissem o Homem seria ainda mais misterioso — o que indicia proximidade e semelhança.

Nalgumas das pinturas que o italiano Castiglione fez na corte de Pequim avultam a representação de cavalos e cães, desenhados ao modo ocidental; contudo, inseridos num contexto de pintura chinesa, o que imprime nas pinturas algo de inusual, para não falar de uma certa estranheza, um sentimento indefinível, próximo, se quisermos, do desconforto.

Tal é sobretudo verdadeiro quando contemplamos um certo cavalo, de cor castanha e proporções suaves. O mais extraordinário da besta é o seu olhar. Ao contrário do que se poderia pensar, jamais o classificaria de humano. A sua placidez e segurança situam-no, desde logo, num patamar que nos ultrapassa.

A estranheza, a que não é ausente um traço de temor, mede a altura do lance, desafia a capacidade da nossa perna.

12 Jul 2016

Patrícia Baltazar

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]atrícia Baltazar é uma poeta contemporânea, que vive no Barreiro, parte sul de Lisboa, do mesmo modo que Kadıköy fica na parte asiática da cidade de Istambul, ou a Lesbos de Safo ficava na parte asiática da Hélade. A poeta tem quatro livros publicados: Ré Menor (Língua Morta, 2010), Fumar Mata (Madrugadas, 2013), Catapulta (Do Lado Esquerdo) e A-Rh sanguis languae (Palavras Por Dentro, 2016). Aqui e agora, percorreremos apenas os caminhos de Fumar Mata. Chega-se a este livro de Patrícia Baltazar, como a uma casa arruinada, cansada de tempo e de miséria, sem ninguém, e passamos a sentir-nos como a ruína de um recordação que nunca foi, a ruína de uma vida por ser, porque “Não tenho de ser ninguém para perder a memória.” (XXXIII, p. 55) Aqui não nos encontramos face a face com a etiqueta de Aristóteles acerca da poesia, o que poderia ser, aqui ficamos face a face com o que nunca irá ser, a vida que poderíamos ter sido se houvesse vida. O livro começa com o verso “Precisamos de pássaros” (I, p. 7) e termina com um verso final, poema inteiro e sem número romano ou árabe “Que se foda.” Entre o que se precisa e o irremediável, o livro divide-se entre as “lâminas de algodão” (V, p. 15) da lírica e a realidade implacável de “45 quilos de ossos para uma tempestade” (XXII, p. 37). E muitos dos versos sucedem-se interrompidos, deixando eles também adivinhar a vida que poderia ter sido “De nada que me” (VI, p. 16) e “Fecha os olhos como se” (VII, p. 18) e “Não houvesse água que nos salvasse (…) Não houvesse absolutamente nada” (XXIV, p. 41). Somos incompletos como um verso inacabado. Mas pior, porque ninguém nos quis assim. Não é apenas para os outros que somos um discurso continuamente interrompido, também para nós mesmo o somos. A memória faz o que pode para nos conferir unidade, mas somos o que os outros fazem de nós, somos também o que não fazemos de nós, no fundo, “des-somos” mais do que somos. “Tenho várias salivas. Vários géneros. Acumulei rostos e corpos. E o teu, o teu, o teu, o teu e ainda o teu, continuam guardados, para sempre, em todos os meus lugares. Eu sou tudo o que vocês fizeram de mim.” (III, 10-1) Mas o humano que des-somos vê-se ainda melhor neste verso: “Ser uma cicatriz.” (X, 23)

Não se pense, contudo, que estamos diante de um livro que arrasta uma voz de queixume ou uma voz de vingança. Nada mais contrário a isto. Estamos antes diante de uma voz que ama as profundezas do mistério. E amar é já partilhar. Assim são vários os versos que iluminam esta ética “Se tenho 50 cêntimos num bolso e esse é o único dinheiro que me resta, então são 25 para ti e 25 para mim, que estás aqui à minha frente. Não importa quem és.” (XXXIII, 56) “Perdoo toda a gente que pensa que me magoou ou magoou mesmo.” (XXXIII, 57) E essa compreensão maior que é a dádiva que nos prende à vida, expressa num verso tão luminoso como uma estrela: “Uma dádiva, ter a vida presa por um filho.” (XXX, 52) É preciso ter-se perdido muito, quase tudo, e a nada e a nem ninguém culpar, para se chegar a este qualidade de verso. Estamos diante de um livro de amor. Não do amor inaugural de Safo, mas do amor ao próximo, um livro de amor à vida, aos confins da vida, um livro que vai do mistério de partilhar um prato de sopa, de fazer uma sopa que chegue para todos, essa verdadeira multiplicação dos alimentos – “Se tenho sopa feita, fiz com certeza para mais de 2 pessoas. Faço sempre isto. Tenho jantar para todos.” (XXXIII, 56) ou ainda este roçar de asas pela santidade, com que termina o poema XXII, “Quero que os meus irmãos me doam.” (XXII, 38) – até à transformação de tudo o que nos faz sofrer, “Engole tudo quanto se sofre.” (XXIX, 50)

No fundo, Fumar Mata trata-se de um livro que opera uma inversão completa do ponto de vista usual da poesia, que pode ser melhor entendida neste verso “Faltou-me o desânimo.” (XXXIII, 57) Assim, a vida em ruínas que percorre este livro é mais rica e mais sólida do que as vidas que percorrem a maioria de outros livros de poemas. Pois pode-se viver muito mais, do que nunca vivemos, do que se vive da própria vida, “Eu sou eles todos e as viagens que nunca fiz. Sou tudo isso.” (III, 10) Já Fernando Pessoa, por exemplo, nos tinha ensinado isso, mas aqui em Patrícia Baltazar a ultrapassagem da vida é na própria vida. Não temos vida, mas temos sopa, que chega para todos. Não temos vida, mas temos 50 cêntimos num dos bolsos, que se divide connosco, o leitor. Há nestes poemas da poeta uma espécie de alquimia ou de toque de Midas, uma transformação da dor em ouro em cada verso. Mesmo quando a poeta parece cair num banal queixume – “A minha infância está guardada na caixa das / fotografias antigas // É uma história para contar pouco. Uma coisa rápida. Uma bicicleta verde, a praia, as brincadeiras solitárias e caladas. // (…) Nunca fui uma rapariga. // Estes pés nunca andam juntos.” (XX, 34-5) – e, no poema imediatamente seguinte, lê-se este verso pujante, de apreço pela vida, de apreço pelo tempo de vida, por nada ser mais importante do que estar vivo e dar-se conta disso: “Mãe: não me dói nada.” Ainda que termine o poema pedindo novamente a atenção da mãe “Mãe? Estás? Mãe? Ouves-me, mãe? / Devolve-me, / A manta da tua ternura ou não sobrevivo.” (XXI, 36) A grande poesia faz com que a vida de quem a escreve seja soterrada nas vidas universal e de cada um que lê. E esta, de Patrícia Baltazar, não é diferente. Quem é a pessoa que escreve, não importa nada para este livro, para estes poemas. Eles são hoje património de estar vivo. Património daquele estar vivo entre a sobrevivência e a existência. Porque tudo poderia ser pior do que é, se não estivéssemos vivos, se não nos faltasse o desânimo. De que modo? A isso responde-nos Patrícia Baltazar, no final do seu poema XXIV: “Não houvesse água que nos salvasse. / Não houvesse vinte dedos para a realidade dos / corpos. // Não houvesse absolutamente nada.” (XXIV, 43) Mas há. “Eu e os meus poemas vamos fumar para longe. // Haverá uma árvore.” (XIII, 27) Entende-se que o livro nasce do centro de uma profunda dor. São vários os versos que iluminam essa dor. Mas esse centro, essa dor é apenas de onde se vem. Não é nem onde se fica nem para onde se vai. O final do poema XXII é o melhor exemplo desse entendimento da dor, como se ela existisse para nos rirmos dela: “Quero um grande relâmpago que me ilumine as / ancas. Que as estenda para o outro mundo. Que / as alargue até me sentir um cadeirão para Zeus se sentar.” (XXII, 37) Encontramos uma profunda união entre ética e estética, ao longo dos poemas de Patrícia Baltazar. E isto é, além de profundamente antigo, original, como se escrito em grego arcaico, ao tempo de Safo, e também uma viragem na poética actual.

12 Jul 2016

Diário (secreto) de Pequim – Outubro de 1977

Pequim, 10 de Outubro de 1977

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]nteontem espectáculo memorável pela companhia de Cantos e Danças Dongfeng (Oriente), no velho Teatro Tianqiao, lá para sul, para os lados do Templo do Céu.
Pleno o aproveitamento político que os camaradas chineses estão a fazer da reaparição, do renascer deste grupo artístico criado em Janeiro de 1962, por proposta de Zhou Enlai, primeiro-ministro, com o objectivo de “estimular e desenvolver a amizade entre o povo chinês e os povos dos países do Terceiro Mundo.”
Estes bailarinos, acrobatas, cantores encheram o palco durante quase três horas com um repertório que incluía temas musicais e danças folclóricas da Ásia, África e América Latina. Tudo muito bem imitado, tudo muito bem conseguido, tudo alegre, colorido e bonito. Dizem-me que nestes anos recentes de políticas e delírios esquerdistas, Jiang Qing, a viúva de Mao e membro principal do “bando dos quatro” terá afirmado que a música deste Grupo de Cantos e Danças “é decadente” e Zhang Chunjiao, outro figurão proeminente do execrável “bando” emitiu a seguinte opinião: “Afinal para que serve este conjunto artístico se eles se limitam a copiar os macacos de África? A dança africana e o rock and roll são uma e a mesma coisa.”
Este Grupo do Oriente reapareceu agora após quase dez anos de silêncio e apresentou um espectáculo de muita qualidade. Os números sucessivos, com inúmeros bailarinos e músicos em palco, mostraram não só o trabalho e as lutas do povo chinês mas também as de outros países. Assisti a cantos e danças do Kampuchea, do Mali, do Peru, da Birmânia, da Argentina, da Etiópia, do Vietname com os chineses bem ataviados e garbosos (até a cara pintaram de negro!) exemplarmente travestidos de gentes das nações do mundo. Foi um ar fresco a soprar na vida cultural tão limitada desta China.
A 1 e 2 de Outubro, feriados nacionais comemorativos da fundação da República Popular da China, tive também o privilégio de assistir em três parques diferentes de Pequim a dezenas e dezenas de espectáculos onde grupos de crianças e actores profissionais representavam, cantavam, dançavam. Muitas vezes a encenação tinha um forte objectivo político, a denúncia e combate ao “bando dos quatros”. Por exemplo, um grupo de crianças bailarinas, quase no final da dança, ia buscar pequenas granadas de mão, em madeira e, ritmando gestos e música, saltavam no ar e lançavam as granadas contra um grande painel com a figura pintada, velha e feia, exactamente da senhora Jiang Qing, quarta mulher de Mao Zedong e cabecilha do “bando dos quatro.”
Libertos do recente despotismo cultural, é verdade que escritores e artistas começam a aparecer um pouco por toda a parte. Do que me vou apercebendo aqui nas conversas com os dezanove camaradas chineses com quem trabalho e a quem ensino português, as diferentes editoras publicam outra vez livros de poesia, romances, teatro de autores que tiveram grande importância na história da moderna literatura, alguns deles muito próximos do Partido Comunista mas proibidos, censurados até há pouco. Homens como Tian Han, Cao Yu, Ai Qing, Mao Dun, Ba Jin.
O velho Mao Zedong indicava justamente que “o antigo deve servir o actual” e assim surgiram agora reedições de algumas das mais importantes obras clássicas da literatura chinesa, como a “Poesia Completa de Li Tai Bai” , e antologias de poemas das dinastia Tang, Song, Yuan, Ming e Qing, ou seja todos os ciclos dinásticos desde 618 a 1911.
Vão também ser reeditadas reproduções de pinturas célebres de diferentes dinastias, e também cópias de quadros de Rembrant. Reapareceram traduções para chinês de peças do teatro clássico grego, algumas comédias e tragédias de Shakespeare, obras de Heinrich Heine, Nicolau Gogol, Balzac e Vítor Hugo. Voltou também a música clássica ocidental. Já se podem comprar partituras e ouvir discos com música de Mozart, Beethoven, Chopin, Bach, etc.
Parece ser assim verdade que, aniquilado o “bando dos quatro” (a linha esquerdista radical de Jiang Qing, Zhang Chunqiao, Wang Honwen e Yao Wenyuan) a literatura, a dança, a música, a arte em geral retomam na China o importante lugar que lhes cabe na construção de uma sociedade mais justa, mais educada, mais fraterna, mais humana, mais livre.

Pequim, 15 de Outubro de 1977

Olha o muro e edifício nunca crido
Que entre um império e outro se edifica,
Certíssimo sinal e conhecido
Da potência real, soberba e rica

Os Lusíadas, canto X, 130

Luís de Camões, em pleno século XVI, dá testemunho da existência do “muro”, da vasta Grande Muralha da China.
Fernão Mendes Pinto dedica-lhe todo o capítulo 95 da Peregrinação e dá-se mesmo ao rigor de explicar:

“Este muro vi eu algumas vezes e o medi, que tem por todo em geral seis braças de alto e quarenta palmos de largo.”

Domingo passado, iluminado por um ameno sol de Outono, foi tempo de viagem curta até ao troço da Grande Muralha da China que passa oitenta quilómetros a norte de Pequim.
Por má estrada, são quase duas horas de caminho. O autocarro chinês, meio decrépito, avança por terras planas nos arredores da capital, com pomares, campos verdes de trigo, milho, sorgo, algodão, mais pequenos rios e lagos onde patinham grandes bandos de patos. Cruzamo-nos com milhares de bicicletas, camiões, carroças e inúmeros grupos de camponeses, indo e vindo da azáfama dos campos. Aqui e acolá umas bandeirolas vermelhas espetadas no terreno indicam grupos de trabalho. Na China, os domingos são dias normais para o labor agrícola, é preciso dar de comer a 900 milhões de almas e este velho império, com um quinto da população mundial, conta apenas com 1/14 avos da terra arável existente no globo.
Chegamos a Changping. Acabou a planície, a estrada começa a subir e a paisagem muda rapidamente. Estamos a entrar no maciço montanhoso, a Grande Muralha não está longe. As montanhas elevam-se abruptas e nuas, como que talhadas a cinzel entre o fundo de vales pedregosos e o céu azul.
O caminho que seguimos foi outrora uma via estratégica. Por aqui, vindos do norte passaram hordas de invasores mongóis que atravessaram a Muralha, conquistaram e governaram a China durante quase um século (dinastia Yuan, 1279-1368). Era também o percurso, o itinerário das caravanas que se dirigiam para norte. Caravanas autênticas de cavalos, camelos, carroças carregadas de “sacos de lã e peles da Mongólia a caminho de Pequim ou transportando volumes de folhas de chá de Tianjin, a caminho de Kiakhta, na fronteira da Sibéria”, (in Mournier, L’Émpire du Milieu, Paris, Plon, 1903).
Esta estrada continua a ser hoje uma importante via de comunicação. O trânsito é intenso, camionetas e camiões, de todos os tipos e formatos, sobem e descem, carregados dos mesmos produtos de outrora mas também de muitos outros. O dia está bonito por isso são incontáveis os autocarros de passageiros apinhados de chineses, que vão, tal como eu, de visita à Grande Muralha. Dizem-me que o troço de Badaling que vamos percorrer chega a receber mais de dez mil visitantes num só dia.
Paralela à estrada, mas do outro lado do estreito vale, segue a via férrea, furando túneis, escondendo-se debaixo das montanhas, reasparecendo, subindo, subindo sempre. Chegamos a uma aldeia chamada Juyongguan, com casas pobres dos camponeses, baixas, com janelas envidraçadas e, à volta, pedaços de terra encravados nos socalcos da montanha. À entrada da aldeia levanta-se um grandioso pórtico em pedra construído em 1345, no período mongol, com baixos relevos representando Buda e com inscrições em seis línguas, chinês, sânscrito, tibetano, mongol, uighur e targut. Nesses tempos recuados a estrada passava sob este pórtico, daí as frases que são uma espécie de encantamentos (dharani, em sânscrito) destinados a viajantes de tão longínquas paragens. Em Juyongguan encontramos ainda trepando pelas encostas um par de muralhas menores, muito destruídas pelos séculos. Trata-se de fortificações recuadas, antes da Grande Muralha que se situa uns dez quilómetros mais para norte.
A estrada continua a subir, as curvas sucedem-se em cotovelos apertados, um comboio avança pachorrentamente a nosso lado, cheio de chineses que espreitam às janelas e procuram, tal como eu, descobrir a Muralha. Mais uma curva, um chiar de travões, uma guinada do volante do autocarro e aí estão os topos das nervuras das montanhas devassados pelo engenho do homem. A Grande Muralha serpenteia um pouco por toda a parte, sobe, desce, volta a subir, flecte em ziguezagues, acompanha os picos e as quebras dos montes.
A construção da Muralha da China iniciou-se no século V antes da nossa era. Durante o período dos Reinos Combatentes (476 a.C.-221 a.C.) alguns príncipes feudais viam as suas terras constantemente invadidas por tribos nómadas vindas do norte. Para assegurar a defesa dos seus territórios, também nas lutas que travavam entre si, mandaram construir extensas muralhas para protecção das fronteiras. Mais tarde, o primeiro imperador da dinastia Qin, que se chamou Qin Shihuang, unificou a China pela primeira vez e deu ordens para se ligarem entre si as muralhas já existentes. Na dinastia Ming (1368-1644) foram construídas novas muralhas para delimitar, com rigor, as fronteiras do império. O resultado foi esta extraordinária obra que se estende por quatro províncias, duas regiões autónomas e dois municípios centrais, a saber, Hebei, Shanxi, Mongólia Interior, Shaanxi, Gansu, Ningxia, Pequim e Tianjin.
(continua)

António Graça de Abreu
11 Jul 2016

Vasco da Gama parte para a Índia

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, dia 8 de Julho, comemora-se a partida de Vasco da Gama para a Índia ocorrida em 1497.
No ano em que Bartolomeu Dias partia por mar, para desfazer “as ideias de Ptolomeu, que concebia o Atlântico e o Índico como mares interiores e sem qualquer comunicação entre si”, segundo refere Luís de Albuquerque, saía a 7 de Maio de 1487 de Santarém, Pêro da Covilhã. Se com a missão cumprida Bartolomeu Dias chegou a Lisboa em Dezembro de 1488, também Pêro da Covilhã, com todas as informações registadas, entregou-as em 1491 no Cairo ao mercador José de Lamego, que logo seguiu para Portugal levando-as em carta ao Rei D. João II. Desta constava o relato sobre os portos das especiarias por ele visitados, as técnicas de navegação no Oceano Índico e as rotas dos barcos comerciais muçulmanos com quem seguiu até Sofala. Confirmava que contornando a África se poderia chegar à Índia e não poder ser o Preste João outro que não o rei da Abissínia.
Em 1492, com essas informações de Pêro da Covilhã sobre o Mar Arábico e comércio muçulmano entre o porto de Sofala e a Índia, e após a viagem de Bartolomeu Dias, para se atingir a Índia faltava apenas a navegação entre o Rio do Infante e Sofala.
A Espanha começara em 1479 com o casamento do Rei Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os mais poderosos reinos católicos da Península Ibérica. Entretanto, o genovês Cristóvão Colombo, que estivera sempre ao serviço da marinha portuguesa e expusera o seu projecto ao Rei D. João II, mas face à recusa, ofereceu os seus préstimos aos Reis Católicos. Conquistada Granada aos muçulmanos Omíadas em 1492, partiu Cristóvão Colombo ao serviço de Espanha e navegando para o Ocidente, chegou ainda nesse ano à América Central, anunciando no regresso ter chegado às Índias. Era sim um novo mundo, até então desconhecido para os europeus.
Em 1493, o Papa Alexandre VI estabeleceu um meridiano a Ocidente de Cabo Verde cabendo a Portugal as descobertas a Leste do mesmo e a Castela as de Oeste. D. João II assentou directamente com os Reis Católicos o meridiano a dividir as zonas de influência dos dois povos peninsulares, desviando-o mais para Oeste de Cabo Verde, o suficiente para abranger no espaço português o nordeste do Brasil. Em 1494, com esta linha divisória, foi assinado o Tratado de Tordesilhas.
À caravela juntou-se em 1497 a nau e mais tarde o galeão. Segundo Veríssimo Serrão, “Como a estrutura da caravela não garantia o êxito de uma viagem de tamanho alcance, deu-se preferência a embarcações de maior equilíbrio e robustez para vencer as intempéries do oceano. Por isso se utilizaram naus de três mastros, com a vela triangular na mezena e pano redondo com duas quadrangulares nos mastros do meio e da proa. Tratava-se de uma inovação náutica que assegurava melhor os objectivos científicos que a viagem pressupunha”.

Vasco da Gama parte para a Índia

No prosseguimento das viagens encetadas, D. João II escolhe Estêvão da Gama para chefe da expedição por via marítima para a Índia. A 25 de Outubro de 1495 morreu o Rei e a 27 do mesmo mês subiu ao trono D. Manuel I, que decidiu continuar com o plano dos Descobrimentos. Tendo, entretanto, falecido Estêvão da Gama o rei encarregou Vasco da Gama, filho de Estêvão.
Veríssimo Serrão refere, ” Entregando a chefia da frota de 1497 a Vasco da Gama, a coroa nomeava pela primeira vez um fidalgo da Casa Real, a quem concedia um estatuto idêntico ao de embaixador extraordinário. O comandante nascera em Sines pelo ano de 1469, sendo o terceiro filho de D. Estêvão da Gama e, dado da maior importância, um homem da criação do rei D. Manuel I quando era ainda duque de Beja. Vasco da Gama substituía assim o progenitor, a quem o rei D. João II pouco antes de morrer dera o encargo de chefiar a grande expedição. Mas tanto a morte do Príncipe Perfeito como a do alcaide-mor de Sines tornaram inviável o projecto que D. Manuel I se apressou a executar”.
Vasco da Gama partiu a 8 de Julho de 1497 da praia do Restelo (Lisboa) com uma armada de quatro naus, após ter assistido junto com outros comandantes, tripulação, rei, fidalgos e povo a actos religiosos na ermida de Santa Maria de Belém.
“A frota era constituída pelas seguintes embarcações: a nau capitã S. Gabriel, onde embarcou Vasco da Gama; a S. Rafael, do comando de seu irmão Paulo da Gama, ao que se crê, com responsabilidades idênticas de mando; a Bérrio, confiado ao experiente nauta Nicolau Coelho; e um pequeno navio de mantimentos. Com um total de 148 homens, faziam parte da guarnição os pilotos Pêro de Alenquer e Álvaro Velho, homens adestrados na navegação atlântica, sendo também acompanhada por Bartolomeu Dias…”, V. Serrão.
Como rota habitual a frota passou pelas Canárias e em Cabo Verde, desembarcaram na ilha de Santiago, a 27 de Julho. “Ali fizeram aguada, repararam as velas e tomaram mantimentos (carne, água e lenha) para troço seguinte da viagem, porventura o mais decisivo para o êxito da expedição”. V. Serrão. Uma semana depois, saindo de Cabo Verde, a armada aproximou-se da Serra Leoa, para apanhar os ventos alísios adequados à navegação com naus. Aí se separou a caravela comandada por Bartolomeu Dias, que se dirigia a São Jorge da Mina, onde existia uma fortaleza e feitoria para comércio com as gentes da região.

O caminho marítimo para a Índia

A frota “seguiu, a 3 de Agosto, uma rota nunca antes praticada ou de que, a ter havido experiências anteriores, não chegaram quaisquer provas. (…), a armada tomou o caminho ainda hoje conhecido por , embrenhando-se por meio do Atlântico para evitar as correntes desfavoráveis do oceano. Três meses ficaram as quatro naus sem contacto com a terra, aproximando-se da costa brasileira e, descendo mais para o Sul, para tentar que os ventos do oeste as conduzissem à costa africana”. O almirante Gago Coutinho “definiu essa travessia como , o que punha a navegação portuguesa, prestes a abrirem-se as portas do século XVI, na vanguarda técnica da ciência naval.
O encontro com o litoral africano deu-se a 4 de Novembro, 120 dias passados sobre a partida do Tejo, quando Vasco da Gama ancorou na baía de Santa Helena, 30 léguas a norte do cabo da Boa Esperança. Ali fizeram a aguada e três semanas depois passavam, sem qualquer perigo, a ponta meridional da África. Dali seguiram para o rio de João Infante, limite da viagem que Bartolomeu Dias realizara um decénio antes. Mas já então escasseavam os mantimentos, começando alguns nautas a sofrer os efeitos do mal do escorbuto”, V. Serrão. Mas segundo Carlos Carrasco, “A 7 de Novembro alcançaram a baía de Santa Helena, já próximo do cabo, onde fundearam no dia seguinte. A 16 partiram e seis dias depois, após duas tentativas frustradas, passaram o cabo da Boa Esperança, fundeando na angra de S. Brás, onde destruíram o navio dos mantimentos, divididas que foram as suas reservas”.
Vasco da Gama só em 22 de Novembro de 1497 dobrou o Cabo de Boa Esperança e a 25 de Dezembro aportou no Sul da costa oriental africana tendo atribuído o nome de Natal àquela zona. Em 6 de Janeiro de 1498 descobriu Angra dos Reis e a 11 de Janeiro “a expedição ancorou no rio baptizado por Cobre, onde os nativos lhe fizeram tal acolhida que a terra passou a chamar-se da Boa Gente, que hoje corresponde a Inhambane. Onze dias depois chegavam ao rio dos Bons Sinais, mais tarde Quelimane, onde Vasco da Gama mandou colocar um padrão com o nome de São Rafael. A esquadra passou depois ao largo de Sofala e na quinta-feira 1 de Março avistou a terra e ilhas de Moçambique. O comandante esperava poder ali receber o apoio de um piloto para o ajudar na travessia do Índico. Mas os dois que foram indicados a Gama fugiram da armada no dia 7 de Abril, quando ela ancorou no porto de Mombaça. Também nesta cidade não se tornou possível obter a indispensável colaboração náutica, pois o piloto negro escolhido para o efeito concebeu o projecto de afundar a esquadra portuguesa”, segundo refere V. Serrão.
Chegados à Ilha de Moçambique a 2 de Março, atingiram Mombaça a 7 de Abril e Melinde a 13, ou no sábado 14. Nas primeiras duas cidades sofreram ciladas enquanto em Melinde foram bem recebidos. Segundo V. Serrão, o monarca de Melinde “foi ao ponto de colocar à disposição de Vasco da Gama o famoso Ibn-bem-Madjid, piloto árabe com larga experiência em rotas do oceano Índico. Era a estação oportuna para concluir a ligação com o Malabar, devido à monção de sudoeste que então se fazia sentir de apoio à navegação. O autor do Roteiro Antónimo esclarece: A travessia fez-se sem qualquer dificuldade, sempre com o vento à popa na direcção de sudoeste para nordeste. Tendo deixado Melinde a 24 de Abril, bastaram 23 dias de travessia para a frota, a 18 de Maio, avistar a terra da Índia”. Estava aberto o tão desejado caminho marítimo para a Índia, ligando-se pela Rota do Sul a Europa Ocidental com a Ásia.
A Calecut chegou Vasco da Gama a 20 de Maio de 1498, e foi inicialmente bem recebido pelo Samorim, a quem entregou as cartas do Rei de Portugal (D. Manuel I). Porém, este, influenciado pelos rumes (turcos), mudou de comportamento e começou a hostilizar os portugueses. Gama, não tendo meios militares para ripostar, levantou ferro a 29 de Agosto, ergueu depois um padrão entre Banacor e Baticala, fundeou em Angediva e a 15 de Outubro rumou para Lisboa. “Com dificuldades na travessia do Índico e durante a qual a nau S. Rafael (que teria sofrido um rombo) teve de ser destruída em Mombaça, . Já em Cabo Verde, Vasco da Gama, tendo o irmão doente, fretou uma caravela com que chegou aos Açores, falecendo Paulo da Gama na Ilha Terceira”, Carlos Carrasco.
Para transmitir a boa nova do caminho marítimo, Vasco da Gama enviara à frente a Bérrio sob o comando de Nicolau Coelho, que chegou a 9 de Julho de 1499. Amargurado com a morte do irmão e após o ter sepultado naquela ilha, Vasco da Gama partiu a 29 daquele mês e chegou a Lisboa a 18 Setembro, tendo sido recebido solenemente com as maiores honras e toda a pompa pelo Rei D. Manuel e sua corte, para o cumular de honras e benefícios.
“O carregamento de especiarias cobriu largamente os custos da expedição. Tinha-se aberto para a coroa portuguesa a época do monopólio do comércio oriental”, segundo Veríssimo Serrão e Oliveira Marques complementa, “Na primeira expedição de Vasco da Gama à Índia, em 1497-1499, morreram 63 % dos tripulantes: de 148 só voltaram 55”.
No Restelo, de onde Vasco de Gama partiu, ficou a assinalar o evento o Mosteiro dos Jerónimos mandado construir pelo rei em honra de Nossa Senhora de Belém.

8 Jul 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | 19 – A viúva

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]M[/dropcap]al o líder entrou murmurou algo ao ouvido do homem de rabo de cavalo. Um sinal com a cabeça e fui de seguida enviada para o quarto e obrigada a esperar. Um dos outros subalternos entrou comigo e fechou a porta atrás de si. Sentei-me na cama. Não sei quanto tempo esperei. Esperei até que se fez noite. Esperei até começar a adormecer. De repente ouvi um som. Estava já deitada. Era o líder que entrava no quarto enquanto o subalterno saia. Pensei rapidamente no que fazer. Por nenhuma razão queria ter sexo com este homem horrível. “Posso fazer alguma coisa por si?” perguntei. “Antes de mais preciso de uma massagem”, disse ele esticando-se na cama. “Muito trabalho? Precisa de relaxar?”, digo eu. “Sim, tem tudo sido demasiado intenso”, responde ele. Sorri e aproximei-me dele. “Sinto muito em dizer isto, mas temo que não que eu possa fazer muito pouco por si nessa área. As minhas qualidades são especialmente expressas na mesa de jogo. Tenho, no entanto, a esperança de o poder agradar”, disse-lhe.
“O meu problema é que os meus músculos ficam frequentemente duros, especialmente nos momentos em que tenho que tomar decisões”, disse ele. “Por vezes é tão intenso que não consigo literalmente mexer qualquer músculo”, continuou. “E fico assim durante horas. Tudo o que posso fazer nesses momentos é arranjar um pretexto junto dos outros para me retirar e rapidamente vir deitar-me”, rematou. “Eu não sou para este mundo”, pensei.

Não feches os olhos. Esta história é importante e tenho que a contar antes de um cliente que estou à espera chegar. O líder, pessoa temível estava ali à minha disposição e em posição vulnerável. No entanto eu não conseguiria escapar aos seus rapazes na sala. Tinha que tentar com que ficássemos sozinhos na suite, coisa que parecia impossível de acontecer. “Não sinto nenhuma dor em especial. É mesmo um bloqueio terrível. Todos os músculos do corpo ficam rígidos e eu tenho simplesmente que passar a uma posição imóvel. Por vezes nem sequer consigo mover um dedo”, disse ele. Eu nada disse olhando para ele com a doçura mais falsa com que consegui. Não é difícil mentir mas fazeres-te passar por outro tipo de pessoa é extremamente exigente. Não é coisa para todos. Tentei fazer conversa. “Talvez precise de uma mulher a tempo inteiro. Uma mulher que o faça esquecer de todas essas tensões e decisões difíceis a que está sujeito no dia a dia”, disse-lhe enquanto lhe comecei a massajar as costas. Comecei a ter uma estranha sensação que me percorria o corpo todo. Enquanto o massajava nas costas a minha cabeça começou a trair-me e os meus pensamentos começaram a tentar encontrar saídas para um labirinto de emoções que me surgiram inexplicavelmente. Um fio de suor começou a correr na minha fronte. Os nervos passaram a ligeira excitação. Aquele homem, sem que eu desse por isso, tinha conseguido cativar outras energias dentro de mim. Energias, para as quais eu não estava preparada. Aquele homem que eu tinha que matar estava ali à minha mercê e, sabe-se lá porquê, havia despertado em mim pensamentos sexuais. Os nossos destinos cruzados como que por mera casualidade e o meu corpo a trair-me. E a minha cabeça a trair-me. Eu tinha um papel naquela história e não passava por desenvolver qualquer tipo de atracção. “Não há nada neste mundo que substitua o que sentimos. Nada que ultrapasse a voz do coração”, disse ele como se conseguisse pressentir o meu corpo a tornar-se quente. Como se conseguisse ler os meus pensamentos. “Reparei, quando sorriu, que a sua boca é realmente muito bonita, muito bem desenhada”, continuou. Sem perceber tinha parado de o massajar, ele havia se virado e estávamos a beijar-mo-nos. Lágrimas derramaram pelos meus olhos sem ordem alguma. Chorava por tudo o que tinha perdido. Chorava por tudo o que estava prestes a perder. Ele nada fez. Continuou a beijar-me e acariciou-me com ternura até que chegou um ponto no qual eu não podia chorar mais. As minhas defesas estavam completamente em baixo e a minha máscara prestes a cair. Uma voz no fundo da cérebro começou a ecoar relembrando-me da minha missão. As lágrimas secaram numa parede invisível e fria. A assassina estava de volta. Lutava com a mulher que eu sempre escondi existir em mim. Uma mulher frágil. Vulnerável. Que deseja ser feliz. Que deseja amar. Que queria aquele homem naquele preciso momento. Imensamente. Que queria embarcar numa loucura. Ele abraçou-me e começou a despir-me. Aquela voz começou a lançar um alerta. Uma alerta incessante. Do outro lado uma outra voz se opunha. Questionava a missão. Queria acreditar no mundo e nas pessoas. No amor. Queria acreditar na possibilidade do amor. Da felicidade. O alerta recordou-me, enquanto as suas mãos desciam para me acariciar o sexo, de que existia algo escondido no seu interior. Dei um salto para trás e quase deitei tudo a perder. O penso higiénico com o batom de segurança. Tinha que o tirar. Ri-me nervosamente. “Estamos a ir muito rápido. Deixe-me vestir uma lingerie mais sensual”, e fugi para a casa de banho. E o resto é um dos meus maiores erros. Retirei o penso. Vesti uma lingerie super sexy e voltei à cama onde me deixei prolongar em espasmos. Ele foi o melhor amante que alguma vez tive. Porque hei-de eu de ficar sozinha na minha miséria?

Como vez a vida está cheia de mistérios. Quando ele adormeceu dei-lhe uma morte indolor utilizando a agulha fina do pente que trazia. Na sala os seus acólitos viam futebol na televisão. A custo levei o seu corpo até à banheira e abri as torneiras. Ainda nua entreabri a porta e chamei pelo homem de rabo de cavalo. Deixei a porta entreaberta e quando ele entrou fechei-a atrás de si. Ele ficou nervoso ao ver-me nua e antes que ele fizesse qualquer som cortei-lhe a carótida com o batom. Ainda nua e com o silenciador na pistola entrei na sala e antes que qualquer um dos outros tivesse tempo para reagir disparei tiros certeiros na testa de cada um. Vesti-me e abri a porta da suite. Mais um acólito esperava do lado de fora. A surpresa foi o factor chave que me permitiu usar o fio de aço e acabar com ele que estrebuchou por minutos. Nunca pensei ser tão forte fisicamente. Por vezes somos capazes do impossível. Escapei-me sorrateiramente do hotel. Tinha que desaparecer. Sair de Macau o mais rapidamente possível. Afinal parecia que havia conseguido cumprir a minha missão. Mas a que custo? O líder. O homem que foi o melhor amante da minha vida é também o pai da minha filha. A felicidade é uma mentira que contamos a nós próprios. E desapareci na província de Cantão para só regressar a Macau cinco anos depois. Oiço passos nas escadas. São horas. Vem aí um novo cliente. Tenho que te amordaçar e levar-te para outro quarto. O teu silêncio será de ouro e poderá salvar-te. Silêncio absoluto. Nem respires.

7 Jul 2016

Minimalismo e realismo

Carver, Raymond, A Catedral, Teorema, Lisboa 1987
Descritores: Literatura norteamericana, Contos, Stories without story, minimalismo, Tradução de Carlos Santos, 191, [5] p.:21 cm
Cota: C-10-5-222

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]aymond Carver nasceu no dia 25 de Maio de 1938 em Clatskanie no estado de Oregon e faleceu a 2 de Agosto de 1988 em Port Angeles, Washington DC. Cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories. A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo e ao chamado realismo sujo (Dirty Realism). O seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental no processo da escrita minimalista de Carver. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire.

Minimalismo e realismo

Da obra de Carver destaco os contos que em Portugal apareceram em colecções com títulos muito originais: Queres Fazer o Favor de te Calares, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, além da Catedral, e de Três Rosas Amarelas, título de um dos contos desta colecção, provavelmente o melhor conto de Carver e que glosa os últimos dias de vida de Anton Tchekov, na cama de um hospital em Badenweiler, na Floresta Negra. A sua mulher, Olga narrou assim os momentos finais: “Anton sentou-se extraordinariamente erecto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (“Estou morrendo”). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injecção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: ‘Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe. “Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para a esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direcção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança”. Mas o final, quer dizer as últimas dez páginas de Três Rosas Amarelas, é simplesmente sublime.
Mas não é desse livro, nem desse conto que se trata agora. Agora é de um realismo mais sujo e de contos mais minimalistas e mais americanos. Três Rosas Amarelas, provavelmente por causa do tema é uma digressão pelo realismo à maneira de Tchekhov, existencial mas limpo, minimalista o quanto baste, irónico, subtil, contudo intensamente lírico, como só o génio russo pôde dar. Os contos da Catedral são até literariamente mais difíceis de lograr, porque lhes falta o tema, nem me estou sequer a referir à elevação do tema. Não! Apenas ao tema tout court, quer dizer, um assunto simplesmente. Os contos da Catedral são sobre nada e coisa nenhuma, são sobre o vazio existencial, sendo eles mesmo vazios. Então como é que produzem um efeito não só literário como emotivo. Onde nos tocam, por onde nos tocam e como nos tocam os contos de Carver? Era sobre isso que eu gostaria de tentar dizer qualquer coisa. Não tenho sequer a ilusão de chegar a um porto desta vez, o deserto é imenso e é preciso atravessá-lo em condições difíceis. 7716P14T1
Ezra Pound disse algures, eu sigo umas notas avulsas que andam por aqui no meio dos meus livros, disse, dizia, que: “a precisão sem concessões é a única moralidade da escrita”. Ora nisso estaria Raymond Carver de acordo e o seu editor ainda mais, por maioria de razão. Quando portanto, e volto a repetir, Gardner disse a Carver, a propósito da análise de um parágrafo concreto de um manuscrito qualquer, que usasse 15 palavras em vez de 25 e o editor o aconselhou a usar apenas 5, estariam ambos a empurrar a obra de Raymond Carver para o domínio estético circunscrito pelo aforismo poundiano. Parece-me que ficamos assim conversados acerca desse ponto, do minimalismo e do rigor. Mais do que rigor é de puro ascetismo e disciplina que se trata.
A mim o que me cativa em Carver é assim o que fica por dizer, os buracos na narrativa, muitas vezes explícitos e essa pobreza quase ostentatória que tanto me comove. Há por outro lado brechas, rasgões por onde entra o frio e isso além do mais incomoda e pode fazer sofrer, talvez a meias com um desconforto tímido, porém as brechas no discurso acordam-nos e estimulam uma resistência ao cansaço e uma vontade de participação. Estou a ser lacónico, pois o que me cativa em Carver é afinal tudo e por isso ele ocupa um lugar nuclear na minha relação com a literatura contemporânea. Há uma época da minha vida, cujos contornos existenciais se adequavam às características destas short stories without story, na medida em que também a minha experiência vital ia no sentido de uma deriva com episódios inconclusivos. Quando por acaso os acasos me colocavam na senda de uma narratividade mais consistente e mais densa eu próprio me encarregava de a sincopar ou de a esvaziar até. Foi o tempo em que para além de Raymond Carver eu lia David Leavitt e Bret Easton Ellis e saía de salas de cinema a meio para voltar e acabar de ver os filmes dias mais tarde. A desestruturação da realidade, a sua desconstrução em partes, conferia ao meu modo de vida um sentimento que eu pensava na época que era mais intensamente poético. Mas de tudo o que ficou de uma forma mais perene foi afinal a leitura de Raymond Carver, e através dos seus textos, a cristalização de uma ideia de radical incomunicabilidade dos sentimentos, em particular e por maioria de razão, do sentimento de solidão.
Em Raymond Carver, nunca há foguetório e muito menos suspense e clímax final. O texto vai-se deixando ler por desfastio, porém deixar de ler nem pensar, como se o ‘nada acontecer’ fosse uma droga. Como, não sei. E já terei dito quase tudo o que sou capaz. Carver vai entrando e vai forçando uma conversa interior, um monólogo; as suas propostas são muito abertas e precisam de nós para adquirir, ganhar sentido, quando damos conta estamos atolados até ao pescoço. O conto, a Catedral, que dá nome ao conjunto é muito emblemático pois o personagem principal é cego e sendo amigo da mulher de Carver vai a sua casa para conversar. Carver não está nada à vontade a falar com um cego. Durante algum tempo os três, o anfitrião, a mulher e a visita, interagem, comendo, bebendo, fumando e conversando, depois a mulher adormece no sofá e ficam apenas os dois homens disponíveis para continuar a conversar, o anfitrião e a sua estranha visita. Nesta altura a interação torna-se mais complicada sobretudo quando a propósito de um programa de televisão em que se fala de catedrais, o cego interpela o anfitrião no sentido de que ele lhe fale de como são as catedrais, … É aí que a incomunicabilidade tão cara às personagens de Raymond Carver explode, mostrando neste caso que aquele que vê não é menos cego que o cego. É aliás o cego que, a dada altura, lhe guia a mão, para que ambos desenhem uma catedral de olhos fechados, digamos assim. De facto, o anfitrião fecha os olhos para conseguir adquirir a sensação de não estar dentro de nada, o que é muito expressivo, uma vez que é isso o que as personagens de Carver parecem exprimir habitualmente, que estão sempre à beira de naufragar, embora dentro de nada, ou seja, à beira de naufragar dentro do vazio, de um fluido que não existe e contudo, ao mesmo tempo, rodeadas de um excesso de tudo, de ruídos, de destroços, de objectos, de sentimentos excessivos, de frases sincopadas, de pedaços de comunicação apócrifa, metrópoles de adereços descontextualizados, de puros detritos sem sentido.

7 Jul 2016

O “monstro” 独秀

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre este homem, Mao Tsé Tung escreveu: “Assim que aprendemos a escrever em chinês vernáculo, ele ensinou-nos que era essencial usar a pontuação e não se cansava de repetir que a pontuação tinha sido uma grande invenção. Foi também através dele que soubemos da existência de “uma coisa” chamada Marxismo. A revista que dirigia, o Magazine da Nova Juventude, abriu as portas ao movimento 4 de Maio, que por sua vez conduziu à criação do Partido Comunista Chinês. O seu impacto era tal que, podemos mesmo dizer que fundou o Partido sozinho. Foi o meu professor e eu fui seu aluno.”
O seu nome era Chen Duxiu 陈独秀 (1879-1942).
A fundação do PCC é celebrada a 1 de Julho, desde a realização do primeiro Congresso do Partido em Xangai, em 1921. Este ano o seu nome foi mencionado numa das páginas oficiais do Partido: “Chen Duxiu, um antigo chefe do Partido, foi eleito líder por cinco vezes. Por favor, reparem no adjectivo: antigo.
Chen Duxiu, fundador do Partido Comunista Chinês e o seu primeiro secretário-geral, não esteve presente no primeiro Congresso do Partido. No entanto, quando olhamos para a História da China moderna, especialmente a História cultural e política, percebemos que Chen foi uma revelação bombástica para os intelectuais do seu tempo. Era admirado por amigos e inimigos e reconhecido como um pensador original e um homem corajoso, o seu carácter avesso a regras não deixou que fosse esquecido. O avô, responsável pela sua educação formal nos clássicos chineses, disse um dia: “Este rapaz nunca vai amadurecer, nunca se fará um homem. Vai ser pesadelo para todos nós. Um monstro!”
Tornou-se realmente um monstro que defendia novas ideias. Chen acreditava que, para estas ideias se imporem e frutificarem numa sociedade feudal, era necessário abater parte dos seus alicerces sem dó nem piedade. Defendeu o parricídio e rejeitava o Confucionismo de forma radical. Chegou a escrever na sua biografia: “Há muito tempo atrás, eu fui uma criança sem pai.”    
A suas ideias sobre a democracia nasceram num contexto de grande erudição. Era fluente em Japonês, Inglês e Francês, as línguas estrangeiras pareciam libertá-lo. A sua escrita era inteligente, incisiva, inovadora e profundamente política. Extrovertido, cultivava paixões e ódios e era muitíssimo obstinado nas suas crenças. Defendia que um homem que persegue um ideal tem constantemente de duvidar de si próprio. É possível que tenha sido o único pensador consciente da China moderna!
Em Janeiro de 1919, publicou a primeira edição do Magazine da Nova Juventude e deu início ao Novo Movimento Cultural (Movimento 4 de Maio). Chen deixou escrito: “Estamos convencidos que o Sr. Dee e o Sr. Sai (abreviaturas chinesas para Democracia e Ciência), são os únicos cavalheiros que nos podem guiar política, moral e ideologicamente. Devemos apoiar estes cavalheiros e combater uma sociedade e um governo opressivos. Devemos defender o Estado de Direito… se a China se quiser afirmar a nível mundial, os cidadãos têm de ser autónomos. Ter uma personalidade independente é sinónimo de liberdade. Não obedeçam a ordens de ninguém, não deem ordens a ninguém. Temos de ser os senhores do nosso próprio País.”
Hu Shi, seu contemporâneo, escreveu: “A única forma de termos democracia é termos democracia.” Chen Duxiu percebeu a ideia como ninguém. Também acreditava na democracia na China como ninguém. Morreu sem nunca se ter submetido aos compromissos e às regras do Partido.
Hoje prestou-lhe a minha homenagem. Que a estrela do verdadeiro pensador brilhe para sempre!

Julie O’yang

6 Jul 2016

O início do amor

* por Paulo Miranda

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando falamos de Safo, é difícil distinguir o que é real do que é mito. Muito se perdeu dela, fundamentalmente devido à Igreja, que ordenou a destruição dos seus textos, que se encontravam na biblioteca de Alexandria. Mas para além de todas as controvérsias, Safo representa um momento da poesia lírica grega que ficou assinalado como uma etapa decisiva da construção da poesia europeia. Platão chamou-lhe a décima musa. Safo teve vários relacionamentos sexuais com homens e mulheres, e também se casou. Conta-se, inclusivamente, que o suicídio dela se dá pelo amor não correspondido de um jovem barqueiro.
Neste tempo, a poesia era um espectáculo, era para ser lida em público, cantada e até, por vezes, acompanhada com dança. Nada seria mais estranho a um grego, do tempo de Safo, do que ver alguém a ler poesia sozinho e em silêncio. Por mais estranho que possa parecer, a lírica grega tem semelhanças com a produção cinematográfica de Hollywood, dos chamados anos de ouro do cinema. Ambas as expressões artísticas fizeram um casamento perfeito entre o entretenimento e a elevação espiritual, tanto no sentido ontológico quanto ético. Vários são os filmes que poderíamos dar como exemplo, mas concentremo-nos apenas num desses exemplos: o filme Johnny Guitar, de Nicholas Ray. Trata-se de um western, género que de certo modo tem as características dos mitos, divididos entre o Deus bíblico, de vertente protestante, e a dos heróis, que cumpriam um destino acima dos seus interesses pessoais. E, como nos poemas de Safo, por exemplo, o filme conta também uma história de amor. Veja-se o fragmento 13, de Safo: “O seu coração arrefece e deixa tombar as asas…”. Este verso canta o desencontro amoroso. Mas não é um desencontro amoroso qualquer, é um desencontro amoroso que, antes, deu asas aos amantes. Porque, contrariamente ao que a publicidade nos quer fazer crer, não é o red bull que nos dá asas, mas o amor. Este verso de Safo mostra-nos que o amor nos torna acima de nós mesmos. Na cena de Johnny Guitar, quando Vienna encontra Johnny a meio da noite na cozinha a beber, o homem pede à mulher para reatarem a relação e escuta a seguinte resposta: “Quando um incêndio se apaga, o que sobra são cinzas.” Por outro lado, como perdoar a quem nos deixa de amar? E um dos temas centrais do filme de Nicholas Ray é precisamente este: o de uma mulher a quem um homem cortou as asas e depois retorna, para se desculpar, para reatar uma relação que ele mesmo interrompeu anos atrás. Escreve Safo, no fragmento 50: “Eros fustiga o meu coração como um vendaval os carvalhos no alto da montanha.” Não estamos aqui perante o sofrimento da vida enquanto vida; aqui, o nosso sofrimento é o sofrimento das coisas boas. “Eros revira o nosso pensamento.” (fr. 16) Vira-nos do avesso. Aquilo que a lírica traz de novo à escrita Ocidental é a consciência do sofrimento que as coisas melhores da vida nos podem causar, quer seja o amor, quer seja o belo, quer seja a amizade, através do canto e não de análises. E o sofrimento não advém somente da perda dessas coisas, depois de alcançadas, mas também por nunca as alcançarmos. Safo entende que o belo, a apreciação do belo pode ser um mal terrível. Veja este belo fragmento 2, que evoca uma bela jovem, numa reunião social, sentada junto a um homem: “Como faz lembrar os deuses, / esse homem, / sentado à tua frente, / nos muros da tua boca, / a ouvir-te palavras doces e a ver-te rir de maneira destruidora! / Sou incapaz de segurar o meu coração no peito. / Quando te olho, / por migalhas que sejam, / já não sou capaz de dizer nada, / a minha língua gela, / sou uma inextinguível fagulha de silêncio sob a minha pele. / Deixo de ver,/ os meus ouvidos zunem, / e um suor frio cobre todo o meu corpo, / estarrecido pela derrocada. / Torno-me mais verde do que a erva / e parece que estou prestes a morrer.” Repare-se como não há qualquer descrição da jovem, apenas aquilo que ela faz sentir na poetisa e, concomitantemente, no leitor. Não sabemos se a jovem é loura ou morena, se está bem ou mal vestida, se a sua pele é mais ou menos clara, se o seu cabelo é liso ou encaracolado, se está apanhado ou a cair sobre os ombros; nenhuma mancha do volume dos seus seios ou das suas pernas. A beleza dela faz-se sentir através do que outro sente. O belo faz doer. O belo faz-nos tanger como se fôssemos uma lira tocada por ele. A beleza da jovem transforma-nos em melodia. Repare-se ainda na particularidade do início e do fim do poema: o homem que parece um deus, por estar nos muros da boca dessa jovem, e ela, a poetisa, que parece estar prestes a morrer. A diferença abissal entre aquele que tem o belo junto a si e aquele que o vê de longe. Safo
O amor é a grande descoberta da lírica grega. Não a sua existência, evidentemente, mas torná-lo o centro do universo humano. E o que é este amor que a Safo canta, que parece ser o fundamento de estarmos a ser? Temos que afirmar, antes de mais, que se trata de um amor erótico, e não de um amor filial. Como ela escreve num verso do fragmento 16, Eros revira o nosso pensamento. O que nos leva a pensar que é fundamental a união carnal. Sem carne não há amor. Mas se é verdade que não há amor sem carne, também não o é menos que não o há sem afinidades electivas, para usar um termo do poeta alemão Goethe. O amor a que a lírica grega arcaica se refere é um amor pleno, um amor, como se usa dizer, de corpo e alma. E, aqui, não é difícil ver as estreitas relações entre o amor em Safo e o amor em Platão, que contrariamente ao que se usa dizer, não é platónico, é a união por inteiro, do corpo e da alma. Safo entende, literalmente, que o amor dá-nos asas. O amor faz com que os dias tenham sentido. Mas é a poesia que nos abre para o sentido do amor. Pois sem poesia, o humano não é uma sombra de Deus, como escreveu Píndaro, mas uma sombra de uma sombra. “Ficarás para sempre morta sob a terra e não deixarás memória nem saudade, / pois nunca cheiraste as rosas da Piéria. / Serás fantasma a errar pela casa de Hades / entre os tristes mortos, / depois de teres levantado voo da vida.” Sem poesia, sem o cheiro das rosas da Piéria, a vida humana está votada ao esquecimento. E este esquecimento não é apenas enquanto se morre, mas enquanto se vive. Porque, vida sem poesia, é já morte. A poesia abre-nos ao sentido do amor, mas também ao sentido da natureza, ao sentido pleno da vida. A expressão do amor humano como centro gravítico do sentido da vida é a grande novidade da lírica arcaica, e que encontra em Safo um dos seus expoentes máximos e primeiros. Em Safo, a poesia não é uma função; a poesia é a verdadeira dimensão humana. Esta é uma revolução enorme na mentalidade ocidental, não só no modo de pensar, mas no modo de entender a existência. Começava aqui, de algum modo, e ainda que sem a analítica filosófica, a consciência de que o humano é fundamentalmente palavra.

5 Jul 2016

Do Atlântico Fenício ao Cabo das Tormentas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] porta do Oceano Atlântico para o Índico foi reaberta em 1488 por Bartolomeu Dias, que lhe chamou Cabo das Tormentas. Passado doze anos, o destino deu-lhe razão! Aí morreu em 1500, aquando da sua viagem na frota de Pedro Álvares Cabral, já o nome tinha sido mudado por D. João II, para Cabo da Boa Esperança. Foi com muitas mortes que se aprendeu os tempos certos de entrada no Oceano Índico, após a aprendizagem feita no revoltoso Atlântico.
Segundo Joaquim Veríssimo Serrão em Portugal e o Mundo: “As frotas que iam regularmente a devassar o Atlântico, para a descoberta de novas ilhas e terras, tinham como capitães homens adestrados nos caminhos do oceano, portanto técnicos da ciência naval que cumpriam missões de carácter exploratório marítimo. Assim sucedeu com os maiores nomes da navegação quatrocentista de Portugal, desde Gil Eanes, descobridor do cabo Bojador, a Nuno Branco, que atingiu, pela primeira vez, o cabo Branco; desde João de Santarém e Pêro Escobar, que descobriram o arquipélago de São Tomé e Príncipe, a Rui de Sequeira a quem se deve a abordagem ao cabo Catarina; desde Diogo Cão, que chegou ao rio Zaire e atingiu o litoral de Angola, a Bartolomeu Dias, protagonista da temerária empresa de ultrapassar o cabo da Boa Esperança. Eram todos comandantes de navios e experientes na arte náutica, a quem a coroa atribuía o encargo de avançar o processo dos Descobrimentos, no que se atribui ao infante D. Henrique, o primeiro orientador da expansão atlântica”.
Partira Bartolomeu Dias de Lisboa em 1486 e no Sul do continente africano sofreu um violento temporal, andando à deriva com o mar encapelado e ondas alterosas. Procurou costa para Leste, mas só encontrou mar. Rumou para Norte e descobriu terra, navegando depois pela costa Oriental de África até ao chamado Rio do Infante. Devido ao temporal sofrido apelidou-se aquele promontório de Cabo das Tormentas. Bartolomeu Dias só chegou a Lisboa em Dezembro de 1488.

Os Fenícios pelo Atlântico

Os fenícios navegavam por todo o Mar Mediterrâneo no século X a.C., tendo-se aventurado depois pelo Oceano Atlântico. O rei fenício Hirão estabeleceu um acordo com Israel, para desenvolver o comércio. Assim, o auxílio a Israel com conhecimentos técnicos permitia aos fenícios o acesso ao Mar Vermelho. Com madeiras de cedro vindas da Fenícia (actual Líbano), construíram-se barcos de longo curso que, do porto de Asiongáber (talvez a actual cidade de Elath), no Golfo de Áqaba, partiram para expedições comerciais.
Os fenícios descobriram a utilidade da Estrela Polar para a navegação. Consta que no século VIII a.C., deram a volta a África, de Oriente para Ocidente, ao serviço do faraó Necao II. Descrita no século seguinte por Heródoto, a viagem que durou três anos, fez-se navegando para Sul ao longo da costa Oriental de África e regressou ao Egipto pelo Mediterrâneo. Com o tempo esta viagem perdeu-se da memória. O mesmo aconteceu ao navegador cartaginês, Hanon, que segundo Bartolomeu de Las Casas, transpôs o Cabo Hespéridas, mas outras fontes revelam que essa expedição de sessenta barcos, iniciada em 470 a.C. (ou 520 a.C.), teria saído de Gibraltar e desta vez pelo Ocidente navegou para criar colonatos pela costa Ocidental de África. Fundaram um entreposto na foz do Rio do Ouro, mas ao atingir as costas do actual país Camarões, aí encontraram um mar de fogo e por isso, não prosseguiram.
Os cartagineses visitavam com regularidade as costas da Península Ibérica e a céltica, indo à Cornualha para adquirir estanho. Já os gregos, para além do Mediterrâneo, tinham relações com os povos do Oceano Índico através do Mar Vermelho e da Península Arábica.
Alexandre da Macedónia usou os fenícios quando ocupou a Mesopotâmia e os conhecimentos marítimos deles para estabelecer colónias no Golfo Pérsico e em 323 a.n.E., quando morreu, o seu legado manteve-se Selêucida pela Ásia Central e no Egipto, com a dinastia dos Ptolomeus. A Ásia Central apresentava-se dividida, com os partos a separarem-se logo em meados do século III a.n.E. e no Oriente, com o reino da Báctria.
É com este panorama que no século II os chineses e romanos vão procurar encontrar-se pelo mar. Os romanos chegavam à China e os chineses andavam pela Pérsia a procurar conhecer os caminhos pelo mar para atingir o Mediterrâneo.
Assim, mais de dois mil anos antes da viagem de Bartolomeu Dias, já os fenícios tinham dobrado o Cabo que trouxe a Esperança aos portugueses. Daqui se percebe o legado dos fenícios para a navegação do Atlântico.

Preparação para navegar no Índico

Corria o ano de 1291, em Portugal reinava D. Dinis (1279-1325), O Lavrador, quando dois irmãos genoveses, Ugolino e Vadino Vivaldi, partiram no mês de Maio em uma ou duas galés de Génova no Mar Mediterrâneo. Tendo o promotor da viagem “Tedisio Doria, pertencente à burguesia endinheirada genovesa, que contraiu empréstimos avultados, já que se previa para a expedição um prazo de anos. Sabe-se que a viagem, depois de escalas em Maiorca e Ceuta, prosseguiu para sul, para lá do estreito de Gibraltar, até aproximadamente à latitude do cabo marroquino de Rhir (Guer), um pouco a norte de Agadir. Contudo, a partir daí, tudo se desvanece em conjecturas”, segundo A. H. de Oliveira Marques. Já outras fontes referem terem eles se aventurado a navegar pelo Atlântico, fizeram escala nas Canárias e seguindo para Sul, na tentativa de dobrar o continente africano e chegar à Índia, desapareceram. Estava na memória ainda fresca esta viagem, que o Rei D. Dinis seguramente tomara conhecimento e por isso, a organização do almirantado, cujas primeiras notícias remontam a 1288, com um tal Domingos Martins. Em 1317, o genovês Manuel Pessanha (Pezagno) foi contratado por D. Dinis como Almirante mor para reorganizar por completo a frota da marinha portuguesa.
Após a morte deste rei em 1325, sucedeu-lhe o seu filho D. Afonso IV, que governou Portugal entre 1325 a 1357. “Entre 1329 e 1336 os Portugueses, quer por iniciativa régia quer por resolução do almirantado, organizaram uma primeira expedição que alcançou o arquipélago das Canárias, visitando, pelo menos, Lanzarote e Fuerteventura com as ilhotas adjacentes”, segundo A. H. de Oliveira Marques que refere: “O arquipélago das Canárias era conhecido desde longa data, tendo sido povoado talvez em finais do IV milénio a.C. a partir de África, por povos etnicamente aparentados com os Berberes, a que se seguiram outras vagas de invasores nos III e II milénios a.C.. Depois, tanto Fenícios quanto Gregos e Romanos o devem ter conhecido e eventualmente escalado, atribuindo-lhe a designação de Ilhas Afortunadas (Fortunatae Insulae), com que passou à lenda”. O Rei D. Afonso IV diz ter enviado uma esquadra capitaneada por Nicolau de Recco a explorar as Ilhas Canárias em 1336, marcando essa data o início das descobertas portuguesas.
Os barcos usados pelos portugueses nas suas viagens marítimas foram evoluindo e se até 1436 se navegava em galés, nessa data apareceu a caravela, uma invenção portuguesa, produto de muito estudo e prática passada no mar, que permitiu navegar no alto-mar e em todos os oceanos. Era a embarcação mais adequada devido a ser ligeira com pequena calagem e facilidade de manobra, que não precisava de um grande número de homens.

Pêro da Covilhã e o Mar Arábico

Reinava já D. João II (1481-1495), quando este rei convocou Pêro da Covilhã dando-lhe uma secreta missão. Constava em ir até à Índia, saber de onde vinham as especiarias, de conhecer os métodos de navegação usados no Mar Arábico, as rotas comerciais muçulmanas e as ligações com a costa Oriental de África. Afonso Paiva, que acompanharia Pêro da Covilhã até ao Egipto, levava como missão entrar na Abissínia e encontrar-se com o Preste João.
Saíram de Santarém a 7 de Maio de 1487, ano em que Bartolomeu Dias partia por mar para dobrar o Cabo das Tormentas. Passando por Lisboa seguiram por terra até Barcelona, depois foram a Nápoles e daí continuaram até à ilha de Rhodes. Entraram disfarçados em território islâmico. Pêro da Covilhã falava árabe por ter vivido em Sevilha durante a sua juventude e o seu conhecimento da cultura muçulmana aliado ao aspecto físico, semelhante aos homens do Norte de África, permitiu-lhe confundir-se com os povos que a partir daí foi visitando. Disfarçados de mercadores de mel entraram em Alexandria, onde adoeceram e só de lá saíram quando se restabeleceram. Depois seguiram para o Cairo, onde Pêro da Covilhã encontrou comerciantes de Tremezém seus conhecidos, com quem continuaram viagem, já no ano de 1488 pelo Suez, até à cidade de Toro (ou Tur), na costa ocidental da península do Sinai. Daí atravessaram o Mar Vermelho e chegaram a Suaquém, na costa africana. No Verão de 1488, em Adém, Pêro da Covilhã separou-se de Afonso Paiva, com quem combinou uma data para se voltarem a encontrar no Cairo, quando cada um tivesse acabado de executar a sua missão.
Agora sozinho, Pêro da Covilhã foi o “primeiro” português a visitar a Índia. Desembarcou em Cananor, a terra do gengibre. Passou depois por Calicute, de onde eram exportadas a pimenta e outras especiarias para a Europa, nos barcos muçulmanos. Em 1489 vai a Goa, daí partindo pelo Mar Arábico até Ormuz, talvez integrado numa hajj, peregrinação a Meca. Nos finais de 1489 estava em Sofala, com mercadores muçulmanos e ficou a conhecer o local mais distanciado nas costas Orientais de África onde os barcos muçulmanos chegavam para comerciar. Era o primeiro europeu a visitar Sofala.
Com tudo registado e a missão cumprida, Pêro da Covilhã voltou a Adém em 1489 e no ano seguinte estava em Toro, chegando de novo ao Cairo em 1491, onde tinha combinado encontrar-se com Afonso Paiva. Aí ficou a saber, por dois emissários que D. João II tinha enviado à sua procura, da morte do companheiro. Entregando o que registara da sua viagem pelo Mar Arábico, desde Sofala, na costa Oriental de África, até ao Sul da Índia, partiu depois para a Etiópia, a fim de concluir a missão que o rei de Portugal dera a Afonso Paiva, mas daí, onde de novo se casou, nunca mais saiu.
Assim, para se atingir a Índia faltava a navegação entre o Rio do Infante e Sofala, apesar de constar que após 1488 e depois da viagem de Bartolomeu Dias ter passado o Cabo das Tormentas e chegado à costa Oriental da África, outras tinham sido secretamente realizadas, tendo conseguido viajar ainda mais para Norte. Sobre o Mar Arábico, D. João II tinha já desde 1492 as informações de Pêro da Covilhã sobre o comércio entre o porto de Sofala e a Índia.

1 Jul 2016

Nome interior

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntranhado no cerne do texto como sob camadas e camadas. Ilegível. Podia ser crónica da cidade de K. Mas não uma referência à Trilogia da cidade de K. De A. Kristof. Simplesmente um paralelismo de título. Na Verdade a cidade de B – K, a cidade de B. Há um título. No interior do texto. No interior da cidade. Dessa cidade. No interior da casa, dessa casa. No interior. Um título difícil de dizer porque submerso. Ficou assim. Finalmente e bem, porque se trata do interior. Um título surge às vezes no início, vai mudando ao longo do texto e apresenta-se muitas vezes com a nitidez irremediável, no final. E com a naturalidade de núcleo em que quase podia resumir-se ali uma crónica. Não esta. Tanta dificuldade em definir um, não pela falta mas pelo excesso. Podia ser crónica da cidade de B. A cidade de K. Poderia ser uma trilogia das cidades de B., mas era uma outra crónica que não esta. Do muito antes, e esse seria um título possível, do muito depois, e seria outro. E de aí. E aqui vai. Do ver…
Lembro muitas vezes aquela imagem. Agora que me interrogo, tantas vezes perplexa, sobre as múltiplas camadas do ser. O ser ínfimo, pequenino bem lá no âmago da parte mais recôndida de nós. Disse-ma, desenhada no discurso, com aquela nitidez preciosa de uma pequena fotografia antiga a sépia, uma mulher que vi uma única vez há muitos anos, de quem não lembro o nome, amiga de B. na cidade de K. “That little inner self” ou “that little inner me”. O inglês, meu e dela, não eram de grande sofisticação e nenhuma de nós falava a língua da outra. Casa nova. Uma festa com tango. Inaugural também dessa paixão para sempre. O tecto longínquo, uma lareira enorme e os quadros cheios de seres, minúsculos também eles, nas paredes. Enormes os quadros, povoados de enormes pinceladas cheias de inquietação a negro, ínfimos, quase invisíveis, os seres. Numa contradição de escalas absurda. Veemente. Que só mais tarde vim a entender. E a imagem ficou para sempre. Uma e outra. Ela, essa mulher doce, séria, intensa. De voz baixa quase inaudível. E a imagem que me fez ver. É esse ser pequenino que colhe e que fere. De uma ternura que, maior que tudo, dói mais que tudo.
Naquele dia, acordei na sala grande, rodeada daqueles quadros enormes e incríveis e com Milena – o nome não foi um acaso – miúda, sete, oito anos talvez, já não sei, com aquele ar feliz, aquela voz, já então curiosamente rouca e grossa, aquelas covinhas no rosto liso e branco, de um brilho quase de porcelana. E uns sapatos indizíveis de camurça preta, enormes e de salto alto, calçados e acabados de apanhar do lixo. Para me mostrar. Pareceu-me. Talvez em troca das ervilhas e arroz que lhe cozinhei aqui, e a única coisa que comia num país estranho. Quando queria ficar a dormir na minha cama e achou tanta graça, no seu modo aparentemente distante, quando lhe apresentei as minhas bonecas, e ao facto de terem nome. Claro que as minhas bonecas têm nome. Mesmo Sissi, mais recentemente. A minha primeira boneca menina, oferecida por uma prima imigrante em França. De cabelos crespos aloirados e olhos azuis. E crioula – a boneca – realidade que só se impôs com toda a sua estrondosa evidência, como uma epifania há meia dúzia de anos. Como aquele meu tio-avô adorável e com nome de flor, alto, moreno, de olhos salientes e lábios enormes, cabelo frisadinho e músico de trompete…Tocava aos toiros nas horas vagas. E de resto contabilista como Pessoa. Mas como pessoa, um amor de energia, ternura e humor. Daquele se diz que a contabilidade traz o poeta à realidade. Deste, meu tio, talvez a música. O fizesse voar dali.
Aquele rés-do-chão alto em K., a lembrar uma imagem onírica, remota, bela. Montparnasse, uma janela, um quadro vivo, uma sala grande, um piano, livros, uma mesa enorme para dois, calmos, sós de aparência silenciosa, com todos os segredos e raivas possíveis para além daquele momento mudo entrevisto de baixo, de longe. À distância da utopia. Com B. ali também, os nossos seres pequeninos e grandes, de mão dada a olhar. Mas em K. agora, muito tempo depois, já não de mãos dadas, mas visíveis como sempre, uma cidade realmente triste e com um número contadinho sovinamente de horas de sol. Não semanais ou mensais. Anuais. Onde, mesmo assim aas pessoas conseguem ser felizes. Ou por um outro lado, talvez o contrário, talvez o oposto, a Islândia. Como se pode viver sem o lado escuro dos dias, sem o lado noctuno da alma, ou sem lhe encontrar o lugar de apaziguamento, de fechar as portas a recolher-se depois de toda a violência, de todo o conteúdo a extravasar dos dias. Altos e baixos como as vagas e mudar a folha do calendário. Como se consegue viver sem esse lado nocturno de nós e sem a empatia da noite, o ocultar progressivo do ruído, o sinal de que é bom apagar e reacender para outro dia mesmo se igual. Apagar em sintonia com o astro. Como cílio enorme que se fecha connosco no seu seio.
Mais tarde no dia, os miúdos todos do prédio sentados na cozinha a comer batatas. Cozidas e com azeite. Só. A maravilha das coisas pequenas. Mas não como aqueles comedores de batatas de Van Gogh, o chilreio era de alegria, e porque não havia tempo para mais nos preparativos da festa.
Ela, essa mulher nesse dia e de quem não lembro o nome, sensível, secreta e densa. Esqueci-lhe o nome e perdi-a de vista porque tem que ser assim com muitas pessoas que vão passando. Havia um papelinho fino, arrancado ao canto de uma página de qualquer coisa, um envelope, talvez, com uma morada ou talvez um endereço de email, já não sei. Mas a propósito de deixar de fumar, naquela sua voz baixa de uma enorme suavidade, seriedade e ponderação no peso com que dizia. Dizia ela, que isso acontece no dia em que conseguirmos ver com clareza esse ser pequenino, verdadeiro elementar e íntimo que transportamos em nós, e o virmos como um ser que se carateriza ou não por fumar. Penso muito nisso e agora, que vejo melhor esse ser pequeno, insignificante e escondido a boiar na imensidão de tudo o resto que sou no coração, vejo-o, a esse ser pequenino como uma criança que fuma. Sempre. É isso. Pequena, carente, indefesa, desesperada e dependente. Uma criança de três anos, que fuma. Nada é possível fazer. Dizendo o que ficou dito, ficou tudo o mais por dizer. Porque isso sou eu a dizê-lo. Eu que sou outra. E se eu fosse mais eu, dizia de maneira diferente. Noutro tempo noutras palavras. A forma, o recorte exacto, a cor, o aroma do medo, tudo. Tudo o que não sou porque não quero ser. Não posso e não quero ser. Mas sou lá no fundo. Bem lá no fundo. Um fundo longínquo mas como a crista da onda, sempre ciclicamente a alternar com a calmaria lisa suavemente curva e mansa chã. O chão da onda. Aquele movimento curvilíneo e largo de vai – vem. E dizendo, sou eu que o digo e não esse outro ser pequenino de mim. Essa é a voz que não se ouve. Talvez eu nunca me tenha afastado dessa figura pequenina mas vejo-a melhor agora. A propósito de uma outra imagem recorrente. Um núcleo central e centrado, ínfimo e irredutível, por detrás de todas as pessoas e personas que somos em camadas sucessivas, envolvendo de forma centrada ou dispersa esse centro essencial e original. De que partimos. Que abandonamos, esquecemos, odiamos, tememos, escondemos de tudo e todos e de nós. Também. Às vezes. Às vezes como uma pedra. Um seixo minúsculo e redondo por igual. Pesado como chumbo e ínfimo. E irredutível. E para dentro do qual não há mais nada do que a mesma matéria visível à superfície.
Não me afastei nunca demasiado. Os terrores nocturnos que me acompanham até hoje podem dizê-lo. Que me perseguem. Uma destas noites, um estrondo enorme e de seguida um outro estrondo enorme. Nunca é preciso tanto para aquela paralisia de que sempre me custo a libertar, até conseguir mover o braço e acender a luz do candeeiro amigo. Percorrer a casa como um cão a farejar todas as possibilidades fantasmagóricas e a garantir que nada se passou. Ninguém. Nenhum monstro indizível. Nenhuma presença intangível. Só a casa. Acordada pelas luzes que vou acendendo precipitadamente ao longo dos corredores. Espreitando atrás de cada porta e olhando para cima do ombro para prever todas as possibilidades. E desta vez os estrondos impuseram-se no momento exacto do acordar e retrospectivamente com uma enorme carga de realidade. Realidade de som mas não de causa. A causa, como sempre, apresentava-se atemorizante, desconhecida, com uma qualidade etérea de fantasmagoria, acentuada pavorosamente pela aparente e veemente realidade do som.
E os terrores nocturnos, sempre nocturnos. Mas não sempre, afinal. Com espaços, intervalos de não sei o quê. Basta um ruído desconhecido que me acorde, naquele pequeno desfasamento entre o acontecer, o acordar, e o perscrutar retrospectivo, e a angústia instala-se paralisante. Esta noite um estrondo forte. Ali por detrás da porta, irreconhecível, dramático fazedor de imagens. Possibilidades. E lá estava o terror. E, pela primeira vez, deixei-o ir passando quase com indiferença. Uma indiferença estranha. Como se houvesse algo maior a temer. Como se não fizesse mal o que quer que fosse. Nada importasse, nada valesse a pena.
E ao contrário de sempre fiquei ali, meio distraída, ao contrário das outras vezes, por pensamentos sobre a estranha indiferença que me assaltou e pensei, estou a crescer. Depois pensei, estou talvez a morrer. Isto não me pareceu um bom sinal. Não ter quase mais medo. Não me importar o medo. Essa analogia quase como um presságio nunca se daria não fossem os pensamentos que avançaram na noite depois dos estrondos. A estranha indiferença pelas causas e pelos efeitos imperscrutáveis. A possibilidade de dormir depois. E dormir, depois. De manhã constatar serenamente que não foram pedaços de tecto que caíram como de outras vezes, mas um quadro que caiu, como de outras vezes e arrastando uma pesada moldura de latão. O quadro, um sorriso gigante de adolescência. Impresso em tela. Para uma exposição. O retrato, de mim com metade da idade. Significados, significantes. Ligados aos pensamentos da noite. Tenho vários retratos meus espalhados por aí. Mais para me lembrar que existi do que por narcisismo. Acho. Que existo. Como espelhos.
Ela deixava-se ficar para trás. Lembra-se de si a olhar para o chão que ia percorrendo, a orla do vestido clarinho e os passos calçados de verniz preto. Mais abaixo no final das pernas pequeninas. E a pensar, que ela, a pessoa grande não se virava para esperar por si. Um pequeno pensamento velhaco de criança a precisar de um mimo. Um pequeno pensamento desonesto a explorar a diferença entre o caminhar de pernas grandes e pequeninas. De um teste à possibilidade da prova do amor. E hoje sabe que quando se deixa ficar para trás as pessoas não se voltam. E por isso fica simplesmente. Sabe que não se vão voltar, não é por isso. Como ela, a pessoa grande, embrenhada nos assuntos sérios, e na pressa da vida. Mas de noite aconchegava-lhe a roupa e chamava-lhe carocha. Com beijinhos no pescoço. Ou carochinha. Nome que ainda hoje está dissociado do bicho em si. E que fica para reler e de todas as vezes que tem dúvidas. Porque não o diz mais. E sabe-lhe bem. Nunca perguntou porquê nem adiantaria. Ela não se preocupava em pensar os porquês das coisas. Tinha mais que fazer e não era assim que era. Tomaram-lhe de assalto o quarto, quando a outra pessoa grande estava em África. No exacto dia em que partiu. Ela directamente para a sua cama e a outra pessoa pequena arrastando um divã para a nesga entalada entre a parede e a cama grande. E ali ficavam sozinhos uns com os outros. Não sei, não sabiam, se tinham medo das mesmas coisas. Ela, a pessoa grande, adormecia exausta e morta de um cansaço de nela e nos dias caberem coisas para cinquenta horas. E ela ficava ali sossegadinha a olhar de lado o monstro negro atrás da porta, desenhado pela pouquíssima luz da rua, coada pelos buraquinhos da persiana. E sempre sem se lembrar que de dia eram os roupões pendurados. Sabe-se lá se também de noite. Eram e não eram.
O ser ínfimo e pequeno, sem realidade e sem peso, denso como uma bolinha de chumbo. Daquelas, das espingardas de pressão de ar. Que um dia dispara sobre nós e atinge o coração. Em cheio e sem sangrar. E se aloja ali. Pequena, ínfima. Dor. E um dia acontece. Vê-se sem querer aquele ser pequenino de outra pessoa. No centro de tudo. Para além do gostar e do não gostar. Muito para lá atrás, por debaixo, detrás de todas as camadas contraditórias e dolorosas. Todas as feridas e todas as contradições. Um olhar mais que próximo por algo que querendo ou não, e por vezes abusivamente temos dentro de nós. Ver. Com toda a nitidez que se procurou intrincada no meio de todas as camadas. Debaixo de todas as sedimentações aleatórias. Sem esoterismo, só uma intuição com um desenho próprio. Ver. Então. Um ser pequenino e essencial. Nuclear. Ou porque conhecemos de criança, como Milena, ou porque nos aparece num primeiro olhar para além de uma estatura enorme como B. Outras vezes pode levar anos, décadas. A ver. E a partir daí, habita-nos, sem ruído e sem ferir como em roupas de flanela macia. Que queremos acarinhar e cujas dores doem nas nossas mesmo que nada tenham a ver com a possibilidade de as amenizarmos. É o amor. O encontro com o ser pequenino de alguém. Outras vezes é o encontro mas não o amor. E outras, ainda, é o amor mas não esse encontro. Que, quando é, habita, mesmo sem saber. Que fica ali escondido quando está e escondido quando não está. Que vem de mansinho por entre todos os retratos. Dolorosamente acarinhado pelos dedos da alma. Se existem. Uns e a outra. Não saber como se insinuou assim, aquele, quando. Quem o vê, ama ou detém o poder imenso de manipular. Ou ambas as coisas. Algumas pessoas são estranhas mesmo na natureza do seu modo de amar. O resto é por vezes ilusão de óptica. Aconteceu-me. Uma e outra das coisas. E outras coisas de outras coisas.
Ver. Mesmo que poucas pessoas, nessa qualidade-ser ínfima, despida e essencial, é privilégio e é imenso. Quem vi e vejo, caminha mesmo se à distância da saudade, “descalço e em pijama no meu coração”.

1 Jul 2016

Segredos da existência

Roy, Arundhati, O Deus das peguenas coisas, ASA, Porto, 1999
Descritores: Literatura, Índia, 301 p., ISBN: 9724119378 Cota: 821.21-31 Roy

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]elo e comovente, “O Deus das Pequenas Coisas” é a história de três gerações de uma família de Kerala, Índia. Os gémeos Estha e Rahel, a sua mãe, avó, tio, prima e Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. Mas, numa noite de Junho, os fantasmas regressam à casa da História.
A história começa no estado de Kerala, no Sul da Índia, onde coabitam grandes fés: cristianismo, hinduísmo, islamismo e marxismo. Ali, em 1969, na estrada para Cochim, um Plymouth azul fica retido no meio de uma manifestação de trabalhadores. No carro estão os gémeos Rahel e Estha, então com sete anos – e assim começa a sua história. Os dois crescem entre caldeirões de geleia de banana e pilhas de grãos de pimenta, na fábrica da avó cega. Armados com a inocência invencível das crianças, tentam inventar uma infância à sombra da ruína que é a sua família; a mãe, a solitária e adorável Ammu, o delicioso tio Chacho, a inimiga Baby Kochamma e o fantasma de uma mariposa que um dia pertenceu a um entomologista imperial. Rahel e Estha descobrem que As Coisas Podem mudar num só dia, que as vidas podem ter o seu rumo alterado e assumir novas, e feias, formas. Descobrem que elas podem até deixar de ser para sempre.
Aqui vai um cheirinho delicioso de O Deus das Pequenas Coisas:
“Rahel chega a Ayemenem numa tarde chuvosa de Junho – as monções começaram. Maio já vai longe e o cheiro dos frutos maduros também. A vegetação parece subir enroscada nas paredes quando Rahel entra em casa, uma casa vazia com «a varanda da frente deserta». «O Plymouth azul-celeste com barbatanas cromadas ainda estava parado lá fora e Baby Kochamma ainda estava viva lá dentro».
Rahel regressa a casa, vinda da América, para uma viagem pelo passado, as memórias que marcaram para sempre a família que a amou e a desprezou. Para lembrar a mãe, Ammu, que amava de noite o homem que os filhos amavam de dia – Velutha, o deus da perda e das pequenas coisas. E para reencontrar Estha, o irmão gémeo – «gémeos biovulares; ‘dizigóticos’, chamavam-lhes os médicos» –, que se refugiou numa pesada mudez desde que «tudo» aconteceu”.
Assim começa O Deus das Pequenas Coisas, …
Mas quem é esse Deus das Pequenas Coisas? “O deus das pequenas coisas é a inversão de Deus. Deus é uma coisa grande e está sempre numa posição de domínio e de controle. O deus das pequenas coisas pode ser a forma como as crianças vêem as coisas ou a vida dos insectos nos livros, os peixes ou as estrelas – é um não-aceitar do que pensamos ser as fronteiras dos adultos”, explica Roy.
Em resumo, O Deus das Pequenas Coisas é portanto a história de três gerações de uma família da região de Kerala, no sul da Índia, que se dispersa por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma história feita de muitas histórias. A história dos gémeos Estha e Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma, resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo Padre Mulligan. Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa época conturbada e de um país cuja essência parece eterna. Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas permanecem por dizer. O Deus das Pequenas Coisas é uma apaixonante saga familiar que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e García Márquez, e lhe valeu o Booker Prize.
Eu lembro-me da época em que eu próprio descobri a metafísica avassaladora das pequenas coisas e a paixão que passou a acompanhar-me nessa vertigem de nomear e descrever a realidade anódina e anónima, esse mundo que exige a nossa vocação para se tornar real, para existir enfim. Em boa verdade esse é o segredo da literatura no sentido genérico de poiesis. Novalis dizia que quanto mais poético, mais verdadeiro. E é este mundo das pequenas coisas, das coisas aparentemente sem importância que é o mais poético e até o mais autenticamente nosso. Ter acesso a esse mundo, aos segredos minúsculos da realidade é ter acesso aos segredos da existência, aos mistérios do mundo. Toda a grande poesia contemporânea, que é agora sempre uma poética da média rés, explora as criações demiúrgicas dos deuses das pequenas coisas. Arundhati Roy teve esse mérito, o de mostrar, sem equívocos, uma tendência generalizada da arte contemporânea, em particular das artes efabulatórias onde o dizer mais se confunde com o nomear, no sentido literal do verbo que será sempre como dar vida e evidenciar um mundo esquecido, apagado por detrás dos acontecimentos mais espectaculares embora muitas vezes redundantes no seu fulgor.
Vale a pena trazer aqui e agora a panóplia das coisas às quais muitas vezes pouco ligamos distraídos que estamos com as “grandes coisas”, digo-o ironicamente pois a minha vida enriqueceu-se com essas coisas como o cheiro dos frutos ou a memória de como chovia naquele certo dia em que muitas mais coisas aconteceram, grandes e pequenas, mas o que ficou foi a intensidade da chuva, a luz que ao chover se dissipava. As pequenas coisas são também as que por se dizerem impediram que outras se dissessem e ao adquirirem uma eleição votaram outras ao silêncio. Aqui para nós, as pequenas coisas acabam por ser as coisas que a argúcia e a imaginação promoveram e nesse sentido deram vida e é justamente por isso que um escritor é sempre um demiurgo, mas também um iconoclasta e um ser apocalíptico.

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]icenciada em arquitectura, Roy Arhundati nasceu em Kerala, na Índia, em 1961. Cedo se dedicou à escrita de guiões para cinema. O Deus das Pequenas Coisas, que foi publicado em 1997, é o seu primeiro romance e por enquanto o único e com ele a autora recebeu o Booker Prize do mesmo ano. “Este prémio é sobre o meu passado. Não sei se escreverei outro livro. Estou à espera que o barulho na minha cabeça pare”, disse, em várias entrevistas. Apesar de não ter, ainda, escrito e publicado mais romances ou novelas é abundante a sua actividade intelectual como o demonstra a sequência de obras que refiro a seguir:
The End of Imagination. Kottayam: D.C. Books, 1998. ISBN 81-7130-867-8; The Cost of Living. Flamingo, 1999. ISBN 0-375-75614-0. Contém os ensaios “The Greater Common Good” e “The End of Imagination”;
The Greater Common Good. Bombay: India Book Distributor, 1999;
The Algebra of Infinite Justice. Flamingo, 2002;
Collection of essays: “The End of Imagination”;
“The Greater Common Good”; Bombay, 1999;
“The Algebra of Infinite Justice,” Flamingo, 2002. Collection of essays: “The End of Imagination,” “The Greater Common Good,”,  “Power Politics”, “The Ladies Have Feelings, So…,” “The Algebra of Infinite Justice,” “War is Peace,” “Democracy,” “War Talk” e “Come September.”
“Power Politics”, Cambridge: South End Press, 2002;
“Power Politics. Cambridge: South End Press, 2002. 
Foreword to Noam Chomsky, For Reasons of State. 2003. 
An Ordinary Person’s Guide To Empire. Consortium, 2004. 
Public Power in the Age of Empire Seven Stories Press, 2004. 
The Checkbook and the Cruise Missile: Conversations with Arundhati Roy. Entrevista por David Barsamian. Cambridge: South End Press, 2004. 
Introduction to 13 December, a Reader: The Strange Case of the Attack on the Indian Parliament. New Delhi, New York: Penguin, 2006. 
The Shape of the Beast: Conversations with Arundhati Roy. New Delhi: Penguin, Viking, 2008. 
Listening to Grasshoppers: Field Notes on Democracy. New Delhi: Penguin, Hamish Hamilton, 2009. https://pt.wikipedia.org/wiki/Especial:Fontes_de_livros/9780670083794
Segredos da existência

30 Jun 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | O estripador

[dropcap style≠’circle’]“M[/dropcap]eu Amor.
Tenho tantas saudades tuas. Faz-me um favor. Coloca a minha música e canta comigo: “Yan jim jeui liu ye gang sam / Joi je yat hak do mo jip gan / Si seung fong chi joi yiu ham / Maau teun ya gang sam // Chang bei po seui gwo dik sam / Yeung nei gam tin hing hing tip gan / Do siu ngon wai kap yi man / Tau tau dik joi saang // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu dang / Je yat hak ching yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan // Chang hoi pa liu je yat saang / Si nei chi jung gam sam kaau gan / Ngo fong ji yung yau jeuk yun fan / Cheung gin ngo seun sam // Chang bei po seui gwo dik sam / Yeung nei gam tin hing hing tip gan / Do siu ngon wai kap yee man / Tau tau dik joi saang // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Jung chi yat saang ya fo bun dik yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan // Ching naan ji gam / Ngo keuk kei sat suk yu / Gik dou yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu bat yiu bat yiu jau loi jau heui / Ching jan sik ngo dik sam // Yu ming baak ngo / Gai juk ching yun yit lyun / Je go yung yi sau seung dik neui yan / Bat yiu dang / Je yat hak ching yit man // Cheung ye yau nei jeui ya jan / Yeung ngo jung yu jaau dou seun yam / Bat gun yat chai si yi man / Faai lok si ching yan. 1


Por vezes gostava de poder acreditar em cartomancia. Acreditar que existe algo premonitório numa coisa completamente alienatória como uma sequência de cartas. Ou em astrologia. Acreditar que de cada vez que olho para as constelações algo se mexe a meu favor. Ou numa outra coisa qualquer que me desse a sorte que nunca senti ter. Por vezes gostava de poder acreditar em tudo isto se realmente significasse felicidade. Quando assim o não é tenho medo e recuso-me a acreditar. Ontem cruzei-me com esta estranha mulher na casa de chá. Ela olhou para mim, deitou umas cartas na mesa e disse-me que tudo é em vão. Que a confirmação de reunião do meu coração com o da minha alma gémea precisa de dez anos de romance para se confirmar. Dez anos. Nós estamos assim escondidos vai para um ano e meio. Ainda falta muito. Ela disse-me que era tudo em vão porque esse ciclo iria ser quebrado. É inacreditável. Tudo o que tenho sofrido durante este período com este homem. Neste casamento. Onde tudo tem sido amargo ou sem sabor. E tu. Tu que me fazes acreditar na felicidade. Tu que adocicaste a minha vida. Tu, e só tu. E o acreditar que seremos felizes e que o seremos muito, muito felizes. Vou-te contar uma outra coisa para perceberes esta minha súbita ansiedade. É sobre a tua mãe. Mas não fiques triste com ela. Tenta perceber que ela é de outra geração e que, na realidade só quer o melhor para ti. A tua mãe sempre se opôs ao meu relacionamento contigo mas eu também sempre acreditei que com tempo a iria conquistar. Sabes que ela encontrou-se comigo antes de eu vir para o Japão e insistiu que a nossa reunião está errada. Mas está errada porque as estrelas o assim dizem. Porque as estrelas não o querem. Que as nossas datas de nascimento não se conjugam e que esta nossa insistência nos acabará por trazer má sorte. Tenta percebê-la. Tu és filho e ela quer proteger-te. Na altura disse-lhe a brincar que as estrelas estavam tontas e não voltei a pensar muito nisso. Mas ontem, com este estranho encontro, voltei a ouvir o eco da voz da tua mãe. Se assim for é realmente uma história triste. Na realidade sempre odiei esse tipo de adivinhação que não deixa espaço para nada mais. Como se o destino fosse a única coisa que conta. E o que é mesmo o destino? Pergunto eu. Com apenas algumas palavras pode-se arruinar uma pessoa. Pode-se arruinar um par de amantes profundos. E tu meu doce? Acreditas em superstições? ‘Baby’, vamos chegar a acordo, ok? Não importa quantos obstáculos tivermos diante de nós vamos sempre segurar a mão um do outro e passar o resto da nossa vida juntos, ok?
Casar, sei eu agora, que é uma coisa fácil. Mas casar com alguém que te ame a vida inteira, que te respeite, que respeite a tua família, que lute pelo amor todos os dias, que seja sempre compreensivo, isso é difícil. Estou tão ansiosa. Eu acredito em nós. Acredito que quando duas pessoas se apaixonam elas irão tentar o seu melhor para ficar juntos. Não importa o quão difícil a estrada é. Promete-me que não desistes de mim. Que se eu desaparecer tudo farás para me encontrar de novo. Querido, eu sou sincera. Aqui, nesta terra, tão longe de onde estás. Que não te posso ver se assim o quiser. Não quero acreditar nestas premonições. Querido, talvez em todo mundo as pessoas tenham que sofrer. Talvez em todo o mundo exista traição. Mas que digo eu que traio o meu marido contigo. Mas não posso considerar isto traição. A maior traição é ter-te encontrado e não fazer tudo para ficar contigo. A maior traição é para contigo. A maior traição é para comigo. Sabes que por vezes julgo que o meu marido é gay. O que realmente me choca. Como pôde ele casar-se comigo? Nada lhe interessa em mim. A ele só lhe interessa a carreira. E eu sou apenas uma capa. Um instrumento para o reconhecimento dele na sociedade. Porque passa ele mais tempo com o seu assistente que comigo? Tudo isto me deixa imensamente triste. Parece que tudo está errado. Mas serei tola? Mas estarei errada? Estarei errada porque te amo? Então que posso eu fazer? Quando penso em ti tudo é beleza. Tudo é tão puro a meus olhos. Meu amor eu ainda sou apenas uma menina. Uma menina simples que não se quer enganar. Por isso hoje vou-lhe dizer tudo e amanhã volto para ti. Volto para que me contes as tuas histórias. Para que suspires e me digas que me amas a cada frase. Para que me confortes sempre que eu estiver em baixo. E a fraude deste meu casamento terá os seus dias contados. E será mais fácil de o terminar. Porque não posso mais viver com esta dor. Não posso mais perder o nosso tempo. Porque este homem não me valoriza. Porque tu existes e eu quero desfrutar a minha vida feliz, a cantar e a dançar e a portar-me como uma adolescente. Para sempre adolescente. E acreditar que tanto a tua mãe como esta mulher com quem me cruzei estão erradas. E acreditar nas cores. E acreditar na aventura. E acreditar que o amor tudo conquista. E acreditar na beleza. E acreditar na juventude em diferentes idades. E acreditar. E acreditar.
Amanhã vou acordar e vou acreditar que sou muito bonita. Que sou positiva, activa e aberta e que enquanto estiveres a ler esta carta eu vou estar no avião que me levará de volta a ti. Vou acreditar que esta inquietação é por saudades. Tantas saudades. Amanhã vou acordar e serei apenas e só tua e quando chegar iremos nos beijar como fogo.
A tua princesa.
Daphne

1. “Mulher frágil” por Faye Wong – Ficamos lentamente bêbados à medida que a noite se adensa / Neste momento em que estamos tão perto um do outro / Trémulos parecem os meus pensamentos / Contradições que crescem profundas // Mesmo que o meu coração tenha sido quebrado uma vez / Hoje deixo-te gentilmente aproximares-te dele / Que reconfortante embora que também existam dúvidas / Secretamente a crescer dentro de mim // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Não esperes mais / Beija-me apaixonadamente // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes // Eu estive uma vez com medo desta vida / És tu quem eu posso finalmente apoiar-me / Eu sei que devo abraçar este destino / Que irá ajudar-me a reconstruir a minha confiança // Mesmo que o meu coração tenha sido quebrado uma vez / Hoje deixo-te gentilmente aproximares-te dele / Que reconfortante embora que também existam dúvidas / Secretamente a crescer dentro de mim // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Até ao fim desta vida a beijar-mo-nos como fogo // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes // O amor é difícil de resistir / Eu sou de facto / Uma mulher frágil que é realmente fácil de magoar / Por favor não, por favor não, por favor não apareças e de repente desapareças / Por favor tem pena e aprecia o meu coração // Se me compreendes / Então continua o teu amor / Com esta mulher frágil que facilmente se magoa / Não esperes mais / Beija-me apaixonadamente // Contigo hoje à noite. É difícil de acreditar mas é real / Eu sou finalmente capaz de recuperar a minha fé / Apesar de toda a incerteza / Na felicidade dos amantes (tradução livre)

José Drummond

30 Jun 2016

Vernais

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m mil novecentos e noventa e quatro publiquei um livro com este título «Vernais» ponto vernal, os eixos, também os há, venais, e não são pontos, mas poças, lodo e caos. Mas acontece que nos pontos vernais também nos desintegramos quais agentes teletransportados em energia nova, cujo resultado físico nos molda os dias, os sonos e a mente. Chegados aqui, nem dos sonhos nos lembramos, pois que se dorme estranhamente e não fomos habituados a contemplar o fresco sabor das sombras, a sombra é tão imprescindível como as mais luminosas auroras.
Disse Heidegger: “A sombra profunda salva a palavra poética da demasiado grande claridade. A frescura e a sombra respondem ao Sagrado. Essa sobriedade não renega o espírito. A sobriedade é o acto fundamental, sempre pronto, da abertura ao Sagrado”. Mas ao atravessarmos o chão do vernal instante, elas quase se desfazem, e se a noite as traz não nos cobre de sossego, a noite é ainda um dia que se apagou ligeiramente, e de tão curta, nela se extinguem os sonhos.
O ciclo vernal das fogueiras no Hemisfério Norte e a combustão vivida neste instante faz-nos muito perto da combustão do Sol, pois de Solstícios se tratam, e se o de Dezembro nos religa ao velho culto de Mitra ainda na Caverna, agachados para a noite eterna, que subitamente não só desaparece, como volta a crescer, este é bem mais desabrido, magnânimo e até voraz.
Fogueiras no Verão, labaredas no calor… e a Europa está ainda repleta de altares para todos eles num rito de cromossoma memória como as enguias. São as rotas peregrinas desaguando nos antigos cultos primitivos onde, de forma velada ou explícita, muitos vão ainda prestar graças a essa força ígnea que terá a sua finitude, mas que atesta o enigma da felicidade de se estar vivo. Nós que ardemos, que somos combustão e fome, desejo e vontade, raiva e paixão, estamos muito atentos a esta “poeira” de Civilização dominante, e tal como a estrela, somos também áridos, quentes, ferventes, secamos, ficamos cinza, implodimos.
Dante sabia que o seu Inferno era o círculo mais baixo da graduação da matéria e que ao nono ciclo mudaria para a transmutação da manifestação da luz onde o esperava o seu Amor e a que chamou evidentemente de Paraíso. Apolo, em si, já é tão belo que a luz que representa e a sua varonil silhueta fazem do homem a parte eleita para os antigos gregos. Elas, as deusas, eram sempre cobertas com cabelos e mantos, a nudez solar sempre como símbolo do desassombro. Chamava-se Febo e os homens, os solares representantes do disco, iniciavam seus próprios efebos. Deviam ter sido lindas as festas em sua homenagem e o que restava de Lua era tapado nos gineceus das Ilhas. Depois, vieram as cinzas… e a imagem de Saturno parece imperar, Saturno o frio, o comedor dos filhos, o ancião de barba branca em contraste com o eternamente jovem deus sol. É um sol velho este Saturno, nascido das coisas do tempo e com ele as religiões abrâamicas ganham novo fôlego, se o velho pai se prepara para matar o filho, ele também marca o fim do rito do sacrifício infantil, mas eles já não são deuses, nem jovens, nem belos e atingem o seu cume na morte do Filho pelo Pai calado que insolitamente o fará ressuscitar. É um patriarcado de parricidas e filícidas, uma saga de homens que se eliminam, um masculino saturnino envelhecido pela combustão de um astro e, voltando a Dante, nele vamos encontrar a contemplação serena de um pai mais amoroso que lhe assegura o livre arbítrio no seu Canto XXVII do Purgatório: «A ajudar-te, deixa-te andar pelos campos por entre as flores e a verdura pois que não ouvirás mais os meus conselhos, conselhos de pai sábio ao seu menino. A tua vontade é livre inteira e pura; constituo-te senhor do teu destino.»
Ele agora há-de chegar ao rosto feliz da amada sem o rosto triste de Madalena e as formas de uma relação nunca esclarecida. Este “cordeiro” está também unido a um outro ponto vernal o Equinócio da Primavera e com as primícias do Outono vêm as festas do perdão, mas estas, tem um trago mais a sangue, esse elemento tão unido às estrelas e que não arde, e escorre, como os cultos do sacrifício, o vinho, a morte… Nos Solstícios, o sangue estanca, as labaredas avançam, as luzes somam-se em luz, e parece até secarem os pântanos. Os pontos Vernais com que se destilam os mais finos licores do Universo, sabem-nos bem.
Como este é um ponto onde a noção de uma força masculina está exaltada, a própria história de João Baptista, recai nesta data, afirma, é claro, um mito pagão de fartura e de colheitas, mas também a personalidade indómita do patriarcado face ao feminino que na busca de uma rigidez de princípios renuncia por puritanismo às tentativas de sedução de uma jovem mulher bela. A sua vingança é terrível, pois que ao rejeitar a vida que esta lhe oferece a dele foi ceifada. Este símbolo masculino que recai no ponto vernal parece não ser por isso muito solar, o Sol é “Invictus.” Festejava-se um aniversário nesta célebre dança.
E todos os pontos se juntam numa roda vernal com todas as promessas de uma vida eterna que não irá acontecer, a não ser, assim, no pico do astro que brilha enquanto ele mesmo não entrar na rota do seu desaparecimento. O Sol está mais velho! Ele também amadurece. Os seus cultos, menos expressivos, é certo, mas a memória é um zénite difícil de vencer por que ela é feita de todas estas partículas, e sabe bem ver o mundo girar, mesmo que saibamos que desaparecemos muito antes da data prometida que ele tem com todo o Universo. Acabamos cada vez mais por combustão, por inceneração, a arder no braseiro da fornalha, que o corpo é um vasto manto de líquidas lembranças que no fim convém esquecer.

30 Jun 2016

Stephen Hawking, aliens e clássicos chineses 中国古典文学与外星人

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] semana passada o meu lado europeu esteve absorvido com os debates deprimentes sobre o Brexit. No entanto, o meu lado chinês exultou com duas notícias vindas do meu País natal. Ambas demonstravam o empenho da China na procura de E.T.s.
No início da semana, o canal CCTV mostrou as fotos de um enorme telescópio de abertura esférica, com um prato de 500 metros de diâmetro, colocado no cimo de uma montanha na província de Guizhou. As instalações ocupam uma área equivalente a 30 campos de futebol, num perímetro de 1.6 quilómetros. Desde 2011, foi investido no projecto um total de 1.2 biliões de yuans. Ligado a um dos mais potentes computadores astronómicos, o Sky Eye 1 天眼 1, o rádio telescópio mais sensível do mundo, deixou a China mais perto de um sonho há muito ambicionado, a demanda por vida extra-terrestre através do espaço sideral.
A segunda notícia falava sobre o fim provável da exclusão da China da ISS (International Space Station), que vigora desde 2011 (por razões de “Segurança Nacional”, é a desculpa formal). Se as políticas terráqueas tiverem algum significado nas esferas celestes é bom ficar a saber que este mês, a Agência Espacial Chinesa e o Comité das Nações Unidas para os Assuntos do Espaço Exterior (UNOOSA) anunciaram uma parceria que permitirá aos cientistas de Países membros das Nações Unidas a realização de experiências e o envio de astronautas para a estação espacial chinesa, a partir de 2020.
Gostei do que li. A escritora que há em mim começou logo a brincar com as palavras e a criar metáforas alusivas à situação. Dei comigo a pensar que, de facto, a China por tradição procura identificar os territórios situados entre a ciência e o pensamento. A propósito, vale particularmente a pena mencionar dois clássicos da literatura.
O Guia das Montanhas e do Mar (山海经), de autor desconhecido. A maioria dos teóricos defende que esta colecção de 18 livros não foi escrita por uma só pessoa. O mais provável é ser a mais antiga colaboração colectiva, uma espécie de wikipédia da altura, que permitia que as pessoas comuns fossem acrescentando conteúdos ao longo dos anos, possivelmente desde a Dinastia Xia (2070 – 1600 AC) até à Dinastia Jin (265-420 DC). As ilustrações dos textos são a parte essencial da obra. Porque a mentalidade chinesa não procura construir e apresentar teorias precisas, o Guia vale sobretudo como um dos primeiros livros de pintura. Apresenta uma panóplia de criaturas míticas oriundas de uma cosmografia única e muito antiga; fantásticos encontros com aliens têm lugar em montanhas, rios, ilhas e mares alienígenas, num cenário decorado por plantas e minerais exóticos. Ao contrário dos seus congéneres europeus, do mesmo período medieval, as criaturas do Guia não são tratadas como figuras alegóricas, mas sim como entidades reais inseridas na paisagem e, é preciso salientar, este manual era originalmente um guia para viajantes. Contem algumas passagens indecifráveis que podem ser lidas como literatura nonsense, ou será que eram resultado dos efeitos de uma curvatura do tempo-espaço?!
Por puro acaso, – ou se calhar não, quem sabe? – em Abril, Stephen Hawking abriu uma conta no Weibo, a versão chinesa do Twitter. Para estabelecer contacto com os internautas chineses, Hawking utilizou uma das minhas histórias favoritas de sempre, que pertence a um outro clássico, Mestre Zhuang 庄子. Hawking escreveu “Mestre Zhuang sonhava transformar-se em borboleta – talvez por ser um homem que amava a liberdade. Eu posso sonhar com o Universo e depois ficar a pensar se o Universo sonha comigo.” Hawking comunicou com sucesso as suas dúvidas sobre a forma como a realidade se abatia sobre um antigo filósofo e cosmologista chinês, ligando a filosofia oriental e a ciência ocidental de uma forma contemporânea e não hierárquica. Conseguiu reunir mais de um milhão de seguidores, logo nas primeiras horas. Actualmente a sua base de fãs já atingiu os 3.4 milhões. Um fã chinês respondeu-lhe e falou sobre uma nova teoria do design que o levava a concluir que o Universo na sua globalidade é uma espécie de borboleta.
Master Zhuang é provavelmente a minha melhor descoberta de sempre dos antigos clássicos.

Julie O’yang
29 Jun 2016

A propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927, Walter Ruttmann

Crise, Assassinato, Bolsa, Casamento, Dinheiro, Dinheiro, Dinheiro . . .

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s capítulos que Georges Sadoul dedica, no seu livro Histoire du Cinéma Mondial, ao cinema mudo, lembram como esta arte se implantou com uma velocidade prodigiosa um pouco por todo o mundo assim que se ultrapassaram alguns problemas técnicos.
De algum modo, que não consigo definir, penso que o cinema mudo ganhou, nos dias de hoje, uma nova actualidade. A facilidade com que na era da tecnologia digital se produzem imagens reproduz uma inocência próxima à que envolve o cinema mudo.
O à-vontade no tratamento e na recepção da imagem vem igualmente integrar de uma maneira mais natural a produção antiga de imagens no mundo de hoje. O seu aspecto e a sua gramática parecem fazer mais sentido hoje do que em alturas da história do cinema em que a maioria da sua produção seguia modelos demasiado comerciais e, sobretudo, demasiado semelhantes na sua sintaxe e nos seus desígnios.
O digital veio igualmente libertar um pouco a produção da imagem (cinematográfica também) de uma obrigação lucrativa.
Tendo-se, afortunadamente, desenvolvido no início do século XX, o cinema pôde aproveitar outras energias que lhe eram exteriores e que à altura mostravam grande fulgor. O cinema, a pintura, a escultura, a fotografia, a música e o bailado andaram, nessa época de grande excitação estética, muito mais ligados do que andam hoje*. Assim, paralelamente ao cinema narrativo, permaneceu durante vários anos uma linha mais ligada àquilo que podemos chamar a avant-garde e o cinéma pur. A diferença para hoje é que o cinema avant-garde dos anos 10, 20 e 30 parece natural e perfeitamente integrado na estética da época. Seria fastidioso estar a listar nomes mas será útil lembrar que este cinema tem origem em vários países, Alemanha, França, Itália, Rússia (e U.R.S.S.), E.U.A. ou Japão, para lá de exemplos mais isolados em outros países.**
Há, nos anos 20, uma força dentro do cinema no sentido de o libertar do jugo da literatura e do teatro criando, ao invés, uma linguagem absoluta internacional para si próprio, um programa que se publicita abertamente num filme de que aqui se falará: Man with a Movie Camera, 1929, de Dziga Vertov – um filme sem guião, actores ou cenários, como no início se afirma inequivocamente. Walter Ruttmann juntou uma série de pontos programáticos semelhantes para a apresentação do seu filme de Berlim. Mas, como todos hoje sabemos, o cinema comum, ao tornar-se uma actividade para as massas, não se libertou nunca da literatura.
Mas tudo isto vem a propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt/Berlin – Symphonie of a Big City, 1927, de Walter Ruttmann, um elogio futurista (uma Ode) a Berlim e à ideia da grande cidade, assunto dilecto das elites vanguardistas da época.
Um amante desta mais extraordinária das criações humanas, a grande cidade, não pode deixar de integrar este filme no seu complexo admirativo.
Lembre-se e releia-se a – muito mais agressiva, muito mais diversificada nas imagens e muito mais sexual – Ode Triunfal de Pessoa/Álvaro de Campos, anterior cerca de 15 anos. Por vezes o filme alemão parece ser uma ilustração do poema de Pessoa.
O documentário foi desde cedo apontado como um dos géneros (para lá do Cinema Absoluto ou Puro) próprios à modernidade do cinema. Die Sinfonie…, estreado no mesmo ano de Metropolis, é um documentário, fácil de seguir se pensarmos que Ruttmann, que era inicialmente pintor e gráfico, se dedicara anteriormente ao filme abstracto (ver os seus pequenos Lichtspiel).
Ao longo dos seus 5 andamentos, é-nos mostrado um dia na vida da grande metrópole sob a perspectiva do elogio da modernidade e das possibilidades promovidas pelas novas tecnologias (filmado ao longo de 1 ano e montado para fingir 1 dia).
Exibe-se o gosto pelo movimento e pela velocidade. Neste conjunto de afirmações os transportes públicos (como acontece insistentemente na Ode… de Pessoa) têm um lugar de destaque – como meio de transporte das massas e como elogio à beleza da máquina e da velocidade – comboios (imensos, locais, nacionais e internacionais) táxis, autocarros, aviões (já a Lufthansa) eléctricos (como ainda hoje), metropolitano, alguns carros particulares. É uma imagética que encontramos em outros filmes da época com programa semelhante.
O espectáculo do movimento, objecto do cinema abstracto e do cinema de animação, não é aqui muito diferente.
Continua-se com a fábrica, a máquina e a sedução económica mas também estética das possibilidades ilimitadas da montagem em série, a reprodução infindável do produto que permite uma abundância que se acreditava vir a ser generalizada. No Acto II, a actividade frenética das primeiras horas da vida da cidade, a foule, as massas, a abertura dos estabelecimentos, etc. …hé-lá-hô la foule!
Berlim, como sabemos, é uma cidade de muitas faces. A guerra e a divisão em duas partes obrigou-a a permanecer num estado peculiar. Não transmite hoje – mesmo que seja uma cidade vibrante e bela a muitos níveis – o vigor do tipo de cidades que este filme, Metropolis, ou até o conhecido filme de Vertov, Man with a Movie Camera, prometiam. Isso vê-se hoje em Tóquio, Hong Kong ou Nova Iorque.
Man with a Movie Camera segue uma ideia muito parecida, mostrando o acordar da cidade e a sua agitação dando especial atenção à montagem e ao ritmo. No entanto, no filme soviético (filmado ao longo de 3 anos e montado para parecer 1 dia), são várias as cidades que se mostram, permanecendo o sentido de exaltação da vida urbana em geral.
São muitos os tipos sociais mostrados no filme alemão. Há muitos pobres e uma afirmação sólida de que a cidade é insaciável no seu desejo de juntar riqueza e que não se deterá em tentar os seus objectivos seja por que meios for. A parte que corresponde ao período da tarde (depois de uma hora de almoço despreocupada e quase lânguida) é de uma velocidade frenética, favorecida pelas técnicas de montagem em moda na altura, para, mais para o fim, abrandar de novo ao mostrar o lazer do fim de tarde (o desporto, especialmente as corridas)***. Peço de novo ao leitor que leia a ode de Pessoa/Campos em conjunto com esta sinfonia. Os pontos de contacto são, na verdade, inúmeros.
O último acto, o V, é dedicado ao lazer nocturno. Não vale a pena estar a adiantar uma descrição. Recorde-se apenas que este é um filme que mostra a cidade como ela é e não uma visão de uma cidade do futuro (como Metropolis). Antes a exibição de um orgulho e uma satisfação pela pertença a uma modernidade que Berlim demonstrava.
Por muito que se mostre como um filme de exaltação das energias da grande cidade (que Berlim nesta altura era) este prende-se muito com as pessoas que a povoam, descendo ao nível da rua e tornando-se muito físico e bondoso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Manhatta, 1921, de Paul Strand e Charles Sheeler, um dos mais antigos filmes sobre uma cidade. Nem todos concordam com esta afirmação.

Existe um filme de 2002, de Thomas Schadt, chamado Berlin. Sinfonie einer Grosstadt. Como o próprio nome indica é uma versão moderna do filme de Ruttmann. Deve ver-se. É inquietante, vagamente disfórico – o futuro do Futurismo já passou. Enquanto a demonstração da montagem em série, no filme de 1927, parece moderna, no de 2002 é sinistra, como se tudo – até os produtos de pastelaria – não passasse de uma conspiração. Cria uma desconfiança em relação à Bola de Berlim.
Foi filmado antes de Berlim se tornar numa cidade da moda, artística, gira e turística, durante os anos um pouco cinzentos de Gerhard Schröder.
Também se passa durante um dia, o que faz lembrar um outro filme muito recente (não documentário) de que já aqui se falou, Victoria, de Sebastian Schipper, cuja acção se passa em Berlim durante uma noite (filmado em apenas um take de 138 minutos).
(Finalmente. Lembre-se a existência um filme brasileiro não há muito tempo referido nesta página mas que eu nunca vi: São Paulo, A Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, fortemente inspirado no de Ruttmann).

* com excepção do período do mudo, o cinema nunca andou muito próximo da dança. Hoje em dia, tirando uns exemplos alemães, o desinteresse por esta arte continua. Um artigo de Robert Gottlieb, no primeiro número da N.Y.R.B. de 2016, chamado Dancing in the Dark, chama a atenção para o modo como a dança tem sido (mal) tratada pelo cinema e pela literatura. A única excepção que Gottlieb consegue apontar é o paradigmático Red Shoes, de Powell e Pressburger.

** os admiradores do cinema japonês não devem deixar de ver o tenebroso e inquietante Kurutta Ippeji/A Page of Madness, 1926, de Teinosuke Kinugasa, passado numa instituição para doentes mentais. Mesmo que não mantenha ao longo de tudo a história uma imagem ousada tem-nas suficientes para justificar um interesse enquanto filme de vanguarda. Jujiro/Crossroads, de 1928, tem algum interesse, deste ponto de vista, mas limitado a alguns planos.
Kinugasa é o realizador do conhecido Jigokumon/The Gate of Hell, de 1954.

*** Rien que les Heures, 1926, do realizador brasileiro Alberto Cavalcanti, é um documentário que se centra na exibição do quotidiano das classes desfavorecidas, interessante do ponto de vista de alguma imagética vanguardista. Tem a mesma estrutura na apresentação de um dia na cidade, neste caso Paris. Mais tarde, Cavalcanti, que foi colaborador de L’Herbier, viria a trabalhar com Ruttmann em Berlin – Die Sinfonie der Großstadt.

28 Jun 2016

O panorama artístico actual de Hong Kong

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão uma mas duas feiras de arte tiveram lugar recentemente em Hong Kong, a venerável Art Basel e a sua ousada congénere com apenas dois anos, Art Central. Foram preenchidas por um calendário superlotado de exibições em galerias como a Simon Lee e 10 Chancery Lane e espaços de exposição experimental como Para Site e Spring Workshop. O mundo da arte coroou definitivamente Hong Kong como o epicentro da arte na Ásia. E há mais no horizonte: duas importantes instituições novas – Tai Kwun no recinto da recentemente restaurada Esquadra de Polícia de Central e o M+ museum, praticamente concluídos, e mais galerias que se instalam ao longo das ruas inclinadas de Hong Kong todos os meses, contando-se entre as mais recentes a Massimo di Carlo e Sprüth Magers.
Hong Kong fez progressos notáveis no estabelecimento de um mercado de arte rentável e de um cenário artístico cada vez mais vibrante, na sua maior parte conseguido em menos de uma década. Mas conseguirá a cidade sustentar a sua classe criativa para alcançar a mistura de mercado e execução que impele a máquina de arte de Nova Iorque e Londres? Conseguirá saciar as exigências culturais não apenas de coleccionadores caprichosos, mas também de cerca de sete milhões de indivíduos que chama a Hong Kong a sua casa?
Muito antes das primeiras incarnações das agora estabelecidas feiras de arte, as leiloeiras fizeram o trabalho de sapa do vibrante mercado de arte da cidade. A Christie’s escolheu a Hong Kong de antes da transferência de soberania como catalista da sua subsequente expansão asiática, abrindo aí um escritório em 1984. Mais de 30 anos mais tarde, a empresa tem cerca de 180 funcionários nas suas instalações de 4800 m2. Em 1991, a Christie’s Hong Kong tornou-se a primeira leiloeira internacional a realizar um leilão inteiramente dedicado à pintura chinesa a óleo contemporânea, com vendas a somar 1.1 milhões de dólares americanos. Foi um momento decisivo, precursor do mercado para a arte contemporânea chinesa hoje, no qual obras individuais por pintores de Wu Guanzhong a Zao Wou-Ki frequentemente alcançam aquele montante no leilão – quando não 20 vezes esse valor.

Durante algum tempo, os leilões desfrutaram uma espécie de monopólio na compra e venda de arte em Hong Kong. Tudo isto mudou em 2008 com a estreia da ART HK, a feira de arte que estabeleceu as fundações da Art Basel de hoje em Hong Kong.
A feira pode gabar-se de ter tido ao leme uma equipa de peritos: Sandy Angus (cujas incursões seguintes incluem a India Art Fair, ArtInternational de Istanbul, Art16 de Londres, Photo Shanghai e Art Central), Tim Etchells (da Art Central, Art16, e Sydney Contemporary), Will Ramsay (das PULSE e Affordable Art Fairs), e Magnus Renfrew, que mais tarde dirigiria as duas primeiras edições da feira sob os auspícios da Art Basel. Renfrew continua a ser um membro influente do Hong Kong Arts Development Council e a dirigir o Conselho Consultivo de Para Site.
Havia de facto uma lacuna no que se refere a uma feira internacional importante que pudesse introduzir, ao mesmo tempo, uma base de coleccionadores da Ásia em rápida expansão e obras de arte de alto calibre de outras partes do mundo e também apresentar a arte da Ásia a um público global. As condições singulares de Hong Kong devido à sua história de mais de 150 anos sob domínio britânico, até à transferência histórica de soberania de 1997, tornou-a a capital asiática óbvia na qual localizar tal feira. A liberdade de expressão, protegida pela Lei Básica de Hong Kong e o facto da cidade ser um porto franco, ajudaram ao crescimento impressionante da ART HK e à sua posterior aquisição pelo Grupo MCH, a companhia mãe da Art Basel. A primeira edição de ART HK em 2008 acolheu 101 galerias e mais de 19,000 visitantes. Apenas quatro anos mais tarde, em 2011, a feira acolheu 260 expositores e mais de 63,000 visitantes. Nessa altura o Grupo MCH adquiriu a sua maioria.

Enquanto o mercado de arte de Hong Kong tomava forma, os artistas percorriam um caminho completamente diferente e mais modesto. Para além da escassez de opções de ensino superior para aqueles interessados nas artes, os preços notoriamente exorbitantes dos imóveis apresentavam um verdadeiro desafio aos artistas e continuam a fazê-lo. Os preços só arrefeceram um pouco no início do século, devido à recessão económica, o que fez os artistas mudarem-se para antigos espaços industriais, o que levou ao surgimento de uma comunidade criativa florescente no distrito de Fo Tan da cidade, e mais recentemente, em Wong Chuk Hang, no sul da ilha. O artista Leung Chi-wo, fundou Para Site em 1996, um dos primeiros espaços de exposição geridos por artistas da cidade, que ganhou reputação internacional como um dos mais progressistas de Hong Kong. A sua fundação, um ano depois da criação do Hong Kong Arts Development Council, que permitiu pela primeira vez a artistas e organizações independentes requererem financiamento para os seus projectos, é significativa, uma vez que os fundos recebidos do Conselho permitiram ao espaço crescer. Para Site foi o primeiro de uma rende em expansão de espaços geridos por artistas destinados a criar condições para a experimentação e criação em Hong Kong. O seu impacto na comunidade cultural da cidade continua ainda hoje a ressoar. Desde a emergência de Para Site que outros surgiram, como Spring Workshop, fundada por Mimi Brown em 2011, um local que oferece residências, programas públicos, educação e exposições, colaborando regularmente com uma nova geração de artistas e curadores que escolheram Hong Kong para ser a sua casa.

O sucesso da ART HK e, subsequentemente, da Art Basel em Hong Kong, desencadeou a chegada à cidade de uma série de galerias internacionais, como a Simon Lee, White Cube, Pearl Lam Galleries, Gallerie Perrotin, Gagosian, Ben Brown Fine Arts e da Sarthe Gallery, que liderou o assalto ao longo de vários anos, na sequência da implementação de várias estratégias pelo Governo de Hong Kong no sentido de transformar a região num fulcro de comércio, que tornaram abrir um negócio numa coisa fácil. Mas não foram apenas as galerias comerciais que capitalizaram rapidamente sobre o recente cachet comercial da cidade. Esta agitação deu origem à fundação de uma edição de Hong Kong da Affordable Art Fair em 2013. E dois anos mais tarde, a Art Central tornou-se outro actor importante, a rematar aquilo que amadureceu e se transformou numa paisagem de mercado dinâmica. A Art Basel cimentou a posição de Hong Kong como ponto central de arte da Ásia e destino global de artes.
Apesar das actividades de um punhado de pioneiros como Leung e Brown, a arte criada em e para Hong Kong – e o sector artístico não lucrativo como um todo – ficou atrás do crescimento comercial da cidade e do influxo de actores internacionais. Historicamente, as oportunidades públicas de se lançar na arte têm sido reduzidas em Hong Kong e o fosso entre ricos e pobres permanece significativo. Durante algum tempo, os domínios paralelos da exposição de arte comercial e não comercial permaneceram frustrantemente separados. A chegada de galerias reputadas lançou discussões sobre a relação de Hong Kong com os artistas locais e a comunidade, que era muito desarticulada e desligada, mas tal mudou quando as comunidades artísticas internacional e regional começaram a prestar mais atenção aos artistas de Hong Kong e com a ida de Lee Kit a Veneza em 2003 e subsequentemente de Tsang Kin Wah em 2015. Não se resolveram todos os problemas mas a relação é definitivamente mais saudável hoje do que era há cinco ou seis anos. Para além das galerias comerciais, as oportunidades para a criatividade trans-sectorial estão a crescer, injectando uma dose fértil de discurso cultural no negócio rendoso da arte, como por exemplo através da plataforma de discussão Intelligence Squared, que tem feito parte da ART HK e subsequentemente da Art Basel desde 2009.

Na verdade, os artistas têm beneficiado do poder de mercado aumentado de Hong Kong e não são apenas os artistas que podem beneficiar da presença de um sector comercial robusto na Região. O mercado tem sido um motor importante para aumentar o interesse geral e a consciência artística na cidade. Mesmo as organizações não lucrativas beneficiaram disto. O Asia Art Archive, fundado em 2000, nasceu da necessidade urgente de criar e partilhar da história recente da arte na Ásia para enriquecer e complicar as narrativas artísticas e históricas, e abrir novos pontos de referência para além dos já existentes e explorados. Um recurso respeitado em Hong Kong e no estrangeiro, o arquivo tem forjado ligações de sucesso entre as galerias da cidade, feiras e indivíduos. O Arquivo sustenta-se principalmente através de um leilão anual de obras a coleccionadores, um exemplo de mecenato artístico privado ainda muito incipiente em Hong Kong, mas há muito mais formas não-tradicionais de mecenato e popularização das artes que se podem explorar.

Tudo isto é louvável ainda mais que, para uma cidade com c. de sete milhões de habitantes, as instituições artísticas financiadas pelo governo têm sido notoriamente e lastimavelmente poucas. Tudo isto está para mudar, contudo, visto que dois novos projectos públicos encabeçam o que muitos esperam ser uma nova era de desenvolvimento cultural em Hong Kong: Tai Kwun (mais conhecida como a Esquadra de Polícia de Central) e o museu M+. A primeira, a abrir ainda este ano, trata-se da reutilização e transformação do recinto da antiga Esquadra de Polícia de Central, num hub cultural no coração da cidade, cuja programação artística de 2.1 biliões de dólares de Hong Kong é encabeçada pelo antigo director executivo e curador de Para Site, o alemão Tobias Berger, que foi também curador de artes visuais do M+ durante quatro anos, na sua fase inicial. Irá preencher a lacuna entre os espaços não lucrativos mais pequenos e os museus, sendo um local onde os artistas contemporâneos podem produzir exposições, experimentar e onde o público pode ver arte que é relevante para um discurso contemporâneo de Hong Kong. Planeado para albergar seis a oito exposições por ano, irá também incluir projecções de cinema, uma biblioteca, música, espectáculos e workshops. Enquanto a expectativa de abertura deste espaço é elevada, é o há muito esperado M+ que irá cimentar o estatuto de Hong Kong com um hub artístico de classe mundial com a sua abertura em 2019. A jóia da coroa do West Kowloon Cultural District – o qual, com 40 hectares, será o maior projecto cultural e artístico de Hong Kong até à data – este museu irá ficar situado no interior de um edifício concebido pelas firmas de arquitectura TFP Farrells e Herzog & de Meuron.

O M+ irá apresentar uma visão muito abrangente das intersecções entre a arte, a cultura e o design de Hong Kong e da região. O impacto potencial do M+ é de grande alcance. Apesar da explosão de museus na China, que viu milhares de novas instituições a abrir nos últimos anos sem, no entanto, se assistir a um investimento na formação em gestão de museus, a segunda maior economia do mundo ainda carece de um exemplo de classe mundial para os museus mais pequenos seguirem. E apesar da história de falsas partidas e demissões do M+ – a mais recente do Director Executivo, Lars Nittve – a expectativa continua a aumentar em relação ao que é confessadamente ainda um desenvolvimento distante e há ainda muito a fazer, nomeadamente cultivar um espírito de filantropia e doações privadas. Para além do seu local físico, o M+ desempenha um papel no ecossistema mais lato de Hong Kong, actualmente através de uma série de exposições itinerantes incluindo “M+ Sigg Collection: Quatro Décadas de Arte Contemporânea Chinesa” em ArtisTree. Em Julho um portal online irá forjar novos espaços acima e para além da densidade de Hong Kong.

Claramente, Hong Kong possui a energia, a intriga e crucialmente, o apoio adequado do governo para fazer as coisas acontecerem. No entanto, não deixam de existir riscos. A atitude agressiva de que Hong Kong se orgulha no passado tem sido cada vez mais testada, como se viu com o “Umbrella Movement” que dominou a cidade e champu a atenção de grande parte do mundo há pouco mais de um ano. À medida que a influência de Pequim se faz sentir na paisagem política, educacional e dos média de Hong Kong, muitos estão preocupados que a independência curatorial destas novas instituições possa também ser comprometida, seja através da auto-censura ou de uma mão externa. O tempo dirá como a cidade poderá elevar-se ainda mais para acomodar e facilitar publicamente a cultura.

*Este artigo baseia-se num editorial da publicação Artsy, Nova Iorque, de 22 de Março de 2016, por Francis Arnold

27 Jun 2016

Traços de eternidade

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s coisas chegam de assalto. Névoas de encantamento ou de perturbação, sempre e sempre, a recobrir as coisas que já de si são completas e inapropriáveis. Que já em si abrem universos de inquietação mesmo sem passar além da mais simples intuição. Aqueles pequenos, quase imperceptíveis sinais, que somados na mais remota cave do subconsciente, esculpem uma progressiva impressão de entendimento. Às vezes eu tenho pressa. As coisas que não são boas deviam chegar de uma vez. Não ir-se anunciando como maus presságios. Preparando terreno dúbio. Para o desconhecido das coisas boas tenho tempo de esperar. Paciência. Toda a do mundo. E todo o mundo num fragmento da cidade.
Pensar em sair e percorrer aquele curto, tão curto caminho até ao Jardim Botânico. Na verdade não é um caminho, quando me domina essa ideia fixa. Tão adiada como subitamente emerge de uma urgência, que já não é de ser mais do que ir. E este ir, sem caminho apreendido exepto pelo olhar, mas naquele plano em que, de imediato, se esquece. Uma consciência e uma memória provisórias e inúteis face ao importante que é chegar ali. Ou mais precisamente, estar aí. Um percurso inconsciente entre o início e o termo. E chegar é esquecer que houve a necessidade de ir, saltar sobre a ansiosa urgência de estar. E estar. E assim eu não fui ao Jardim Botânico porque o que queria era estar lá. Quando caminho, só quero que haja caminho e não destino. Mas não era assim hoje. Levei-me para lá. E fui estar no Jardim Botânico. Viver no Jardim Botânico. Como uma planta. Como amar. Ou como uma daquelas árvores que admiro.
Há o tempo para um amar animal e há o tempo para um amar vegetal. No esplêndido e específico modo de cada natureza. No discreto e instintivo fado de cada uma. E, se de ambas as acepções existem empregos menos nobres e mais pejorativos, diria que lhes aponto a luz mais confortável e nenhuma subtractiva metáfora. Das plantas, com as raízes na terra, e os rebentos mais leves no céu. Pés na terra, no negro da terra, e cabeça no céu, no branco da luz do céu, como os humanos e é aí que reside a razão e o lugar do sonho – a meio caminho, o coração, o corpo, territórios de todas as cores e de outras dores. Pelo caminho outras folhas. Muitas folhas de uma escrita agitada, em nervos que conduzem a seiva. E já ali, a surpreender-me e a ilustrar o que me tomava os pensamentos, no topo de um caminho, aqueles corpos. Aqueles corpos vegetais. Ambíguos, veementes, dramáticos de pose e insinuação. Depostos, sobrepostos. Aqueles corpos com referências visíveis a marcas de corpo, de pele e vísceras. Ocultas. Expostos. Incríveis corpos. Sensuais, mistos, matéria vegetal a insinuar uma vida sensível. Parciais, imiscuídos entre as raízes retorcidas do drama de se verem arrancadas à terra, e topos cortados rente às primeiras folhas. Como uma ilha. Como estigmas, que marcaram nas árvores mortas, sinais de uma transmutação possível. Uma antropomorfia póstuma. Como corpos caídos da cruz. De uma existência.
Levei os meus pensamentos tóxicos como crianças agitadas, fechadas, presas num apartamento ínfimo, ou animais, de trela, e soltei-os ali para que gastassem energias longe de mim. Deitada num banco e de olhos fechados já só para ouvir das árvores aquele rumor intenso e progressivo, à passagem de uma aragem mais forte. Quase um rumor marítimo. Intrigante a disposição dos bancos. Muitos virados para encruzilhadas. Mas eu sentei-me em vários, na minha procura. Elas, majestosas. Perfumadas. Imensas. Ouvi-as acalmarem-me, escutei as variações nos rumores, escolhi cuidadosamente um caminho de bambu, coisa de feiticismo. Grandes maciços a debruar um caminho, e pela primeira vez ouvi aqueles sons muito particulares que lembram cascos de navios antigos. O ranger e estalar das madeiras, guinchos de tensão, e o estralejar seco de uns contra os outros, aleatório e sem musicalidade, e sempre aquele rumor de todas as copas de todas as árvores em redor a lembrar ondas de mar. E navios pirata. Assim. E de novo Emilio Salgari, da infância. E foi grande a viagem. A Floresta Negra, Sintra ou o Camboja. E eu sei lá como são as florestas no Camboja. Mas este lugar com traços de irreconhecimento podia ser em todo o lado. Em todos os lugares menos ali. Incrustado no coração da cidade. Recoberto de muros como camadas de ser, as fibras de um coração. Escondido, a pulsar. Noutros lugares. Tudo e em tudo diferentes e dali. Mas ali era, foi, absolutamente um lugar distante. Qualquer. Qualquer coisa como a dizer entre um aqui e um aí, e o caminho será sempre curto. Entre uma sensação leve e límpida, e tudo o resto, um passo.
A pensar se será desta vez que mudo os meus pensamentos desta roda viciada e presa por um eixo fixo. Soldada a ele. Para lá. Eu não me farto das coisas de que gosto. Farto-me de mim nelas. E por isso mudo de cadeira e de candeeiro. De luz. E o mundo agradecido da casa, grato pela solução dessa quase injustiça, muda como para um bom dia.
Mas ainda sobre o lugar das coisas, dos percursos perto ou longe do lugar material. A casa. Cada lugar onde me encontro, encontro-me não como se fosse outra, mas uma mesma num lugar diferente de si. É esse o efeito de uma casa cheia de lugares. Penso que até mesmo uma casa pequenina. Basta o ângulo de uma cadeira, virada sobre a mesma parede, de uma mesma casa, qualquer casa que façamos habitar de tudo o que somos. Uma parede de frente ou oblíqua não se sente do mesmo ponto de vista. Uma, de uma equidistância elementar, estanca o olhar, a menos que tenha uma imagem de fuga, uma janela, ou uma imagem-janela. Outra é como um caminho mesmo que curto por onde o mesmo olhar, da mesma pessoa, no mesmo momento-tipo, flui até mais adiante e como rampa para prosseguir até longe, em caso de obstáculo. Tem o perto e o longe em si. Sento-me em lugares diferentes, diferentes mais ainda daquele que é o de sempre. Onde se concentra todo o peso de uma vida. Os nós. Os acontecimentos subliminares. Mudar de lugar dentro deste enorme potencial de universo é o efeito mágico que procuro. E resulta tantas vezes. Mesmo no interior. Da casa, também. Há um arrepanhar súbito de sobras e ponderações inúteis e uma limpeza momentânea que reenvia a um lugar, esse, interior. De essências. As que não podem deixar-se ferir do circunstancial. Ou que são o início. Como aquele grão de areia que fere a ostra e em torno do qual se constrói a pérola. Defensiva. E quando chega o anoitecer, perceber que nunca se saiu do mesmo lugar. Como a pérola nunca sairia da concha. Mas será o mesmo lugar? E nunca é. As correntes, as marés encarregam-se de que não o seja.
E de novo aqui, a ensaiar coragem de começar um destes diários, num dos grossos volumes que alguém me ofereceu. E a pensar, e se depois de tudo dito se esgotar o que sou. Sempre assaltada por palavras. As justas inteiras e perfeitas no que me dizem, as que me esqueço de imediato, as que me reviram a mente e sei que vou esquecer, as que não me deixam dormir. As que me levantam de um lugar em busca de um lápis. As que me desdobram e desembaraçam fibras enleadas em si próprias. Sempre digo, mas é tão verdade. Isso, o medo de enlouquecer nelas. Delas. Nesse absurdo. Penso se irei enlouquecer de palavras a inundar e a não dizer. Se isto é sintoma de silêncio. Ou de um excesso de absorção, que tem que ser conduzido por palavras até ao exterior. Como uma válvula de pressão. Como uma tentativa de conversa. Como uma limpeza que produz alívio. Como escolher tralha que tolhe e deitar no lixo. Como lastro. De dia viajo. Com Salgari. Na verdade, já não com Salgari como dantes, mas como Salgari. Sem sair do mesmo lugar. Que é dizer uma coisa de uma enorme imprecisão. Nunca se parte de um momento e chega a outro sem ter saído de um lugar, um lugar de nós, que pode até ser vizinho do outro mas não o mesmo exactamente. À noite afogo-me na insónia em palavras. E penso de novo se vou enlouquecer, de tantas…e dos rostos.
Sim, depois os rostos. Vejo-os por todo o lado sem entender se acompanham ou vigiam. Nos copos, por exemplo. Andam sempre copos em cima da mesa. Enormes, com água e sempre aqueles rostos a surpreender-me num olhar mais distraído, por detrás da superfície lapidada e por efeito dos objectos atrás. Rostos com olhares estranhos e definidos. Estão ali e depois não voltam mais, os mesmos. É uma potencialidade preferencial. Como aparecem, podiam ser outras coisas milímetros mais ao lado. Mas não. São sempre os rostos com que a minha alma prefere deixar-se surpreender. Assaltar. E tenho medo. De ver sempre umas coisas nas outras. Ou querer ver.
E a pensar que estarei de volta ao mesmo lugar e à mesma pele mas sempre num outro momento. O que será sempre um ser diferente. Em tudo o que fôr igual. E um ser igual em tudo o que fôr diferente, como sempre as coisas são. E que ambas são verdades entrecruzadas e nem sequer paradoxais. Porque subentendida nelas está a concreta existência de núcleos essenciais e, se bem que vivos nas suas metamorfoses necessárias, de algum modo imutáveis e estruturantes de todos os detalhes circunstanciais que numa roda-viva podem parecer mudar como com um vento, uma aragem mais forte, um esvoaçar fútil, uma onda de través, um apagamento súbito, ou um golpe mais cru.
E a pensar porque será que nestes anos todos nunca lá voltei. Nem acho que tenha lá ido alguma vez, e se fui, nem o facto na sua elementaridade ficou em memória. Portanto não fui. Não sei porquê. Mesmo se fui. Décadas de distância e mais de uma de vizinhança cúmplice. Penso nele. Muitas vezes. Talvez não tenha voltado por temor à desilusão. Mas desta vez fui. Para nada. Se esquecer o quanto gosto das árvores. E das plantas todas e de estar simplesmente. Na realidade fui para estar lá. Fui lá para estar. Mudei-me para lá. Por um tempo curto demais para ser apelidado de mudança. Mas não foi tanto ir como foi ficar, ali. Sentada. Gosto de estar sentada porque o corpo deixa de existir, de ser sentido. De ser acção. Utilidade. Pode-se deixar de o pensar. Como uma planta. É uma espécie de anseio, este. E sem ouvidos. Atemoriza-me pensar que haja gente. Muita gente, ruidosa, perto, sentada perto, ruidosa e nítida. Mas não havia. Não é tanto a possibilidade de haver gente, é mais a certeza de que a gente fala. Demais, demasiado alto. E eu não quero saber o que dizem. Não quero ser obrigada a ouvir o que dizem. Mesmo sós, as pessoas falam muito, hoje. Uma loucura vê-las a falar tanto. E os automóveis. Mas estes produzem ruído sem palavras. E palavras já me sobram as minhas. E a todos os que as gravaram nos troncos estoicos de bambu. Querendo ficar.
Como foi hoje. Quando estar é maior do que ir. Mas há estar e há caminhar e são coisas diferentes. Como diferentes, os modos de percorrer ou deixar escorrer o tempo. De um modo ou de outro foi uma bela viagem. Depois voltei porque não podia ficar para sempre. Naqueles traços de eternidade.

24 Jun 2016

Romance interminável

Zweig, Stefan, Caleidoscópio, Livraria Civilização, Porto, s/d
Descritores: Ficção, Literatura Austríaca, Tradução de Alice Ogando, 177 p.:19 cm
Cota:  A  LIT/Z960c.2

  

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vi o Grande Hotel Budapeste, mesmo não tendo ficado a morrer de amores pelo filme, houve qualquer coisa de vago que me intrigou no sentido de um fascínio inconclusivo.
Acontece – me muito agora, e só pode ser da idade, que confundo por vezes de uma forma que não deixa de ser atraente, memórias pessoais, com pedaços de sonhos, alguns visitam-me com regularidade, o que é obsidiante mas estranho também, e além disso trechos de romances que li e que não li, assim como planos-sequência de filmes que vi e que não vi também. Já disse, que só pode ser da idade, acho que isto, deste modo, não me acontecia quando era mais jovem, pelo menos assim. Quando vi, portanto, o filme de Wes Anderson, senti que o universo de Stefan Zweig estava todo ali. Eu não li tudo deste autor, nem pouco mais ou menos, a sua obra é vastíssima, dispersa por muitos géneros, mas se ficarmos apenas pelo género romanesco, e romanesco é uma palavra-conceito que assenta como uma luva a Zweig, tal como a Sandor Marai, por exemplo, e vocês sabem em que é que eu estou a pensar, ainda assim a obra do escritor judeu austríaco é vasta quanto baste. Mesmo não tendo lido tudo, o que li é o suficiente para ter tido esta espécie de sinestesia. Mas Zweig é muito cinematográfico e esse poderia ser um interessante tema de reflexão, o porquê dessa relação entre Stefan Zweig e a tela. Talvez seja justamente o seu lado romanesco e uma paixão, que é muito de época, pelos cenários interiores.
O conto Carta de uma Desconhecida inserido na colectânea Caleidoscópio de contos foi levado ao cinema pelo menos quatro vezes e uma delas por Max Ophuls, com Joan Fontaine no papel principal de Lisa, que é um daqueles filmes lendários que João Bénard da Costa terá considerado um dos filmes da sua vida, mas que pelo menos considerou o mais magoado papel de Joan Fontaine.
Eu sei que não devia, mas caramba a minha admiração, tão grande, por Bénard da Costa, autoriza-me a não acabar esta ficha de leitura e deixar que o acesso ao livro seja feito a partir do filme e no caso através da pluma do mestre:
“Lisa é uma rapariga da classe média que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre, Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o génio. Nunca lhe fala, poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo. Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o ‘filho do pecado’.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto, que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O desfecho é imaginável. Ah! Uma dica para o sucesso cinematográfico de Stefan Zweig, quer dizer, dos seus contos e novelas: ora, antes de tudo o mais as intrigas e os enredos, que são simultaneamente exteriores e interiores, ou seja, psicológicas. Essa fusão do mundo com a intimidade mais profunda e tantas vezes insondável do Eu é seguramente uma das chaves do sucesso. Não é seguramente acidental o facto de que Zweig e Freud alimentaram durante uma boa parte das suas vidas, uma sólida amizade baseada numa indesmentível admiração recíproca. Freud chegou a salientar a dimensão psicanalítica das novelas do grande escritor austríaco, hoje em dia um pouco esquecido, ele que chegou a ser, nos anos trinta do século passado, o mais traduzido escritor à escala mundial.

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]tefan Zweig (1881-1942) faz parte da nata da intelectualidade judia vienense. Amigo de Richard Strauss, de Freud e de Artur Schnitzler, foi escritor, romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo. Deixa a Áustria em 1934 com a chegada do nazismo e refugia-se primeiro em Londres e depois no Brasil, onde se suicida, a 23 de Fevereiro de 1942, deprimido com a expansão da barbárie nazi pela Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Stefan Zweig foi, a partir da década de 1920 e até à sua morte, um dos escritores mais famosos e mais vendidos do mundo. Stefan Zweig estudou Filosofia na Universidade de Viena onde se viria a doutorar apresentando uma Dissertação sobre Taine.  Apesar da sua fidelidade ao judaísmo a verdade é que a religião nunca desempenhou um papel central na sua formação. Manteve-se sempre próximo e apaixonado pela grande cultura europeia e fiel à língua alemã, apesar do nazismo e do consequente exílio americano. A sua admiração pelas literaturas francesa e inglesa levou-o a traduzir para alemão Keats, Morris, Yeats, Verlaine e Baudelaire. Além disso privou de perto com grandes intelectuais franceses e naturalmente austríacos do seu tempo. Fizeram parte do seu círculo, Rimbaud, Romain Rolland, Rainer Maria Rilke, Thomas Mann e Sigmund Freud, com o qual se correspondeu entre 1908 e 1939. Durante o período áureo e feliz de Salzburgo, entre 1915 e 1930 escreveu as biografias de Dostoievski, Dickens, Balzac, Nietzsche, Tolstoi e Stendhal e escreveu alguns bons romances como Amok de 1922, Angústia de 1925 e Confusão de Sentimentos de 1927, baseados na psicanálise. Zweig foi um consequente pacifista desde a sua maturidade e defensor da unificação europeia. Em 1934 Stefan Zweig já no seu segundo casamento abandona o seu país e parte para Inglaterra onde se torna cidadão britânico e depois em 1940 segue para os Estados Unidos e finalmente para o Brasil onde se viria a suicidar. A partir de uma determinada época a diáspora de Zweig tem os contornos de uma fuga à Barbárie.

23 Jun 2016

Que estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? | A empregada do bar

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda atordoada tento perceber porque não me consigo mexer. Começo a sentir partes do corpo. Começo a sentir os meus seios inchados a serem pressionados por qualquer coisa. É uma corda. Estou toda atada. Não sei porque fiz isto. Porque vim contigo para o quarto. Agora sei porque não me consigo mexer. Mas porque estou atada deste modo estranho? Jamais alguém viu o frio na alma do outro. Jamais alguém viu o desencontro entre a mágoa e a máscara do outro. Jamais alguém viu o espasmo final do outro. Aquele espasmo trémulo, recolhido nos escombros da própria existência. Aquele espasmo turbulento que esconde pranto. Aquele espasmo de quando a esperança se apaga. Porque a esperança também se apaga. Por vezes apaga-se assim sem morte. Por ter sido apenas uma insinuação. Um golpe de asa. Um ‘one night stand’. Os meus olhos vagueiam em redor. Não é o fim da festa. Aqui não há traição. Pelo menos a isso poupas-me. Estás agora com um sorriso maldoso. Não é um sorriso de defesa. Dói-me este poder ser e não ser realmente. És um animal ferido. Mais ferido que eu. Existe tão pouco amor neste mundo.

Apontas para o pénis e forças-me a abrir a boca. Nunca fiz isto assim. Sem me conseguir mexer. Volto a tentar mexer-me. Os braços não respondem. Reparo agora que a corda me aperta outras partes do corpo. Arregalo os olhos quando me apercebo que estou no ar. Suspensa. Posição horizontal. Pernas abertas. Braços esticados. A cabeça puxada para trás. Sei disto. Sei do fetiche japonês. As cordas estão apertadas com tanta força que a minha circulação sanguínea demora a recuperar. Sinto um leve formigueiro aqui e ali. Sei disto mas nunca estive numa situação assim. Nunca fiz uma coisa destas nesta posição e muito menos sem me poder mexer. Terei certamente sonhado com isto. Estarei porventura a sonhar? Fazes com que perceba que esta é a realidade e que de algum modo irei ser castigada por acabar na cama com uma pessoa que não conheço. Abres-me a boca e forças a entrada. Sinto tudo no céu da boca. Tento acenar com a cabeça. Por uma razão qualquer fico extremamente húmida. Contra o que quero. Quero fugir. Não. Não quero. Não quero fugir. Quero ver o que me vais fazer. Quero sentir o que me vais fazer. Apertas os meus lábios enquanto introduzes o teu membro mais duro que nunca. Está mais quente do que eu estava realmente à espera. O sabor levemente salgado. Agarras-me a cabeça e lentamente começas a mover movê-la para trás e para a frente. E sorris. Continuas a sorrir. Acho que te odeio quando sorris. Toda a minha vida sexual passa diante de meus olhos num ápice. Não sou propriamente uma novata mas sinto-me como se o fosse. Lembro-me da primeira vez que dei prazer a um homem desta forma. Foi na praia. Tinha 15 anos. Em Boracay. Estava apaixonada por ele. Ele também se forçou. Era 10 anos mais velho que eu. Mas eu queria. Queria muito. Na minha inocência da adolescência acreditei que ele se iria casar comigo. Foi pouco tempo antes de o meu pai ter conseguido trabalho em Manila. Com ele a coisa foi bem diferente. Ele não se demorou. Ele não tinha truques como tu. Depois de o ter chupado continuou. Continuou e fez o que tinha que fazer na parte de baixo. Doeu-me. Saiu sangue. Não foi muito. Lembro-me de ter achado que não tive prazer nenhum. Duas semanas depois estava em Manila. Nove meses depois um bebé. Nunca mais o vi depois de nos termos mudado para capital. Hoje o bebé não é mais bebé. Hoje o meu pai já não tem trabalho. Hoje sou eu que tenho que enviar dinheiro para toda a família.

Deste vazio de dentro de mim algo nasceu que eu não posso tocar. Algo que eu não posso explicar. Uma dor que eu não consigo ilustrar. Que se esconde. Que me puxa para o abismo. E sei que tu também. Tu também tens um vazio que pariu algo que não podes tocar. Algo que devias deixar escondido. Mas não deixas. É o demónio. Decido que devo deixar tudo e fazer tudo. Decido mostrar que sei como fazer isto. E que gosto. E que estou a gostar. E que estou mesmo a gostar. Porque na realidade estou mesmo a gostar. Soltas um “mhhm” enquanto começas a girar os ancas para a frente e para trás com mais força. Com mais rapidez. Empurras-me a boca que deixo aberta. Suspendes o movimento por um momento. E lentamente, em crescendo, recomeças. Até que deixas de segurar na minha cabeça. E empurras o pénis até ao fundo da minha garganta. Sinto-me amordaçada pelo teu sexo. Lágrimas. Lágrimas rolam pelos meus olhos. Não por medo. Por prazer. Parte de mim gosta de ser usada desta forma. Estupidamente quero te dar prazer. Quero que te sintas bem. Estupidamente acredito que sentes algo por mim. Estupidamente acredito que me vais salvar. Que tudo se vai resolver e que temos um futuro em conjunto. Dás-me um estalo. E outro. E continuas o teu movimento. E rapidamente recuas e ordenas-me que te diga que és um homem horrível. “És um homem horrível” digo a medo. Mas o medo faz-me ficar mais húmida. Libertas-me apenas levemente. Apenas o suficiente para que eu me consiga apoiar de novo na cama. E ordenas-me para que estique os braços e me apoie bem. Viras-me o corpo. Reforças a posição das minhas pernas. Levantas-me o rabo. Tento esticá-lo. Faz tudo o que queres fazer. Oh, sim, faz tudo o que queres fazer de mim. Começas a dar palmadas, uma atrás da outra, na minha bunda redonda. Sinto o sangue a ferver. Os teus dedos brincam com a minha vagina. Os sucos escorrem. E penetras-me. Mais violentamente que nunca. Em estocadas precisas maceras-me o sexo. E em intensidade crescente sinto a vagina a dilatar-se. Transpiras. Transpiro. Paras antes do clímax. “Oh” sussurro. A minha voz é luxúria. Enfias dois dedos no meu ânus. “Ohhhh”. Seguras com força a carne nas bochechas do rabo e violentamente fazes aquilo que nunca antes algum homem tinha feito comigo. “Estou-me a vir” gritas. A tua voz é cortada por um grande gemido. É o ponto de ruptura. Dói. Dói-me tanto. Dói-me tanto, tanto, tanto. Mas não consigo dizer nada. Não consigo soltar um qualquer som. E, quando estás quase a vir-te, retiras o pénis de dentro de mim. “Ahhhhhhhh”. E o esperma que se vomita sobre o meu corpo. Sinto-me usada. Sinto-me tão usada. Tu ainda gemes. Levemente. Depois do orgasmo o sémen ainda pinga do teu pénis flácido. Reparo como pinga sobre o soalho do quarto. Não consigo pensar. Estou sem forças. Dás-me uns minutos antes de me voltares a suspender os braços e me colocares numa nova posição. Ainda nem te disse o meu nome. Sabes como me chamo? “Nicole” digo-te. Pareces surpreendido. Sorris. Ah como te odeio quando sorris. E desapareces. Quando voltas trazes uma garrafa de litro e meio de água. “isto ainda não acabou”, dizes, “agora vai ser a melhor parte”.

José Drummond
23 Jun 2016

A propósito de cinco realizadores

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m pouco em jeito de conclusão acho que Pasolini, Fassbinder e Bergman me bastavam. Juntando-se-lhes duas sensibilidades distantes geograficamente a este centro necessariamente europeu, Ray e Imamura. Em todos caberia o suficiente, a música e a poesia, a velocidade e o estrondo, a bondade e o corpo, um olhar distante e uma cítara e a dança.
Todos me parecem autores que não guardariam um segredo se algum valor mais alto se levantasse. Esta gente, sim, é a minha pátria de pederastas e curas, cantoras e ladrões, mães corajosas e soldados, a Capadócia, Munique, Fårö, Calcutá, Aomori.
Há num filme de Bergman duas pessoas vítimas de uma guerra civil que chega ao que eu penso ser a ilha de Fårö, a ilha onde o autor viveu grande parte da sua vida e cuja conotação bergmaniana continua a atrair forasteiros inclinados à sua memória e à meditação.
Não é dos seus filmes mais conhecidos mas é daqueles que deixam uma marca subtil mas indelével. É um filme, como o da hora do lobo, que contém cenas que usamos constantemente como termo de comparação. Por vezes acontece algo e nós pensamos que é como num filme de Bergman (por exemplo) mesmo que não o consigamos identificar. Neste é a instabilidade dos dois membros do casal, o medo mal escondido de participar na guerra, um comprazimento na incompreensão e no conflito ou apenas o patinar das rodas de um velho Volvo numa estrada lamacenta.
Quem quiser perceber até que ponto a análise e a exposição dos conflitos sociais é interior ao mundo de Bergman pode ler Laterna Magica, o livro em que Bergman expõe uma longa lista de situações conflituosas com membros da família, mulheres a que se associou, amigos e relacionamentos profissionais. Mas não é obrigatório. Começa bem, com a possibilidade do pequeno Ingmar morrer de malnutrição, como se logo de início houvesse alguém a quem fosse imperioso atribuir culpa. Álcool e silêncios, os mesmos silêncios dos seus filmes, pardos, indecisos e um pouco antes de haver mistério. Nos seus filmes realistas uma das suas qualidades reside em se deter antes do mistério.
Será tudo isto demasiadamente centrado nas suas obsessões pessoais? Sim, mas é esta fúria individualista que está na base da energia, da violência e da imensa nostalgia e sentido de desilusão que percorre o seu cinema e o torna belo.
Este é um filme realista. Outros serão menos. Mas em todos a emoção estética é intensa porque em todos os registos aquilo que Bergman filma – quase sempre bem mas nem sempre – são partes de nós em cuja existência não queremos acreditar ou não queremos lembrar. Fassbinder faz o mesmo mas do realizador alemão já aqui se falou muitas vezes, insistindo-se na sua urgência e na sinceridade da exposição.
Eu acho que os filmes de Bergman vão envelhecer mais depressa que os de Fassbinder. Isto é, vão continuar a ser admirados mas como objectos um pouco datados. A violência directa dos diálogos de Fassbinder não vai deixar que isso aconteça tão depressa. Além disso, há muitos bocados de filmes do autor alemão que vão continuar a desagradar a muitos, enquanto que os de Bergman continuarão a ser recebidos com boa vontade, cada vez mais, com condescendência.
Este é o meu corpo, este é o meu sangue. Se o cinema tivesse sido inventado muito antes seria provavelmente como o de Pasolini, apaixonado, com sentido do espectáculo, tocado pelo espírito santo ou outro pneuma de outro mundo. Este é o cinema que une os pobres ao céu, um que não se fará nunca mais, generoso como nenhum outro. Não há plano nenhum que Pasolini não tenha concebido como uma dádiva – pescador de homens. Fassbinder e Pasolini gostariam certamente de saber que os esperavam mortes com efeitos cinematográficos.
Lembrei-me que todos estes realizadores acompanharam a sua carreira no cinema com outras actividades, Bergman e Fassbinder muito ligados ao teatro, Pasolini à poesia, à prosa e ao teatro também, Ray (nascido numa família com ligações às artes) à música e também à escrita e à caligrafia. Imamura dedicou, na sua juventude, energias ao teatro e à actividade política mas parece-me que mais para o fim se inclinou para a vida boa dos copos e do convívio com os amigos. O melhor filme autobiográfico de Imamura não foi ele que fez. Foi, sem o saber, Paulo Rocha. Nele, o velho japonês parece pouco interessado no interesse que Rocha e o mundo lhe dedicou e não terá percebido o que viam nele. Talvez por esta razão estes autores parecem estar um pouco para lá do cinema.
Este um pormenor muito amusant. Imamura parece não ter percebido, de início, que os retratos tribalistas do Japão que compôs têm um forte apelo universal. Daí o seu agora famoso espanto. A sabedoria de Imamura consiste em mostrar o modo como o ser comum se insere na sociedade e na grande complexidade do mundo. As suas figuras são sempre o ser das camadas baixas e, muitas vezes, o retrato é o da personagem marginal e criminosa. Imperfeitos sobreviventes.
Todos estes realizadores, com a excepção de Pasolini, assassinado aos 53 anos com 12 filmes realizados, têm obras consideráveis, Ray e Fassbinder quase 40 filmes, Bergman perto de 50, Imamura mais de 20. São obras consideráveis, sólidas, consistentes, com poucos momentos baixos.
Conhecer a obra de Ray é um privilégio elevado, a sua poética dos injustiçados difícil de igualar. Não me parece que seja possível fazer uma ideia do que é a riqueza do cinema sem pensar na sua contribuição. Ainda hoje Pather Panchali, seu primeiro filme, parece um milagre. Tal como Imamura, Ray mostra o lugar que ocupamos no grande estado das coisas e essa é uma contribuição de que poucos conseguem igualar.
Eu sei que há muitos realizadores que faltam aqui, Godard, Resnais, Oliveira, Murnau, Buñuel, os russos, uns iranianos, Kurosawa, Dreyer, Fellini, Rossellini, etc., mas estes cinco constituem pilares suficientemente sólidos para fingir que se percebe o mundo e para se desejar o céu.

21 Jun 2016

W. B. Yeats versus Fernando Pessoa

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]ia 13 de Junho assinala o nascimento de dois poetas que marcaram o seu tempo e a modernidade da sua época: Yeats e Pessoa. O primeiro nasceu em 1865, o segundo em 1888; vinte e três anos de diferença na segunda metade de um século absolutamente prodigioso em gentes; um, irlandês protestante, outro, português com grande influência inglesa. Evidentemente que estamos na presença de dois co-aniversariantes lendários e com muitíssimas afinidades, não tanto na obra mas na maneira como a perspectivaram.
Yeats era um protestante de minoria, dado que era irlandês; Pessoa um judeu de origem beirã, outra minoria, ambos grandes esotéricos, fazendo parte, Yeats, da « Dublin Hermetic Society» e da rosacruciana «Hermetic Order Of Golden Dawn». Nestes temas se debruçou também até à saciedade Pessoa. Ambos politicamente conservadores tendo deixado testemunho nos ensaios de pensamento social. Este conservadorismo tem muito pouco de político, entenda-se, e nada de retrógrado no sentido documental. Têm da poesia uma concepção clara e leve, tanto, que o branco abunda em Yeats, a matéria de asa e de ave, e Pessoa, uma profunda harmonia transparente num descarnamento tão belo, que só quem está povoado de espírito pode assim manifestar-se. São por vezes um pouco magos quando apresentam os seus brancos fantasmas – pois que todos eles são brancos – e quase sempre essa figura demiúrgica do sábio nos avassala em várias destas leituras, tendo ficado a dever o segundo à influência anglo-saxónica nestas lides que o ligam ao outro. No nosso imaginário existe sempre um povo vestido de branco com transposições de Magos Merlin, Genevièves e cavaleiros…
E foi Afonso III quem nos legou em parte a matéria da Bretanha, até pela unificação do seu reinado. Com ela vieram os nevoeiros e também o leito do rio imaginário até Sebastião, embora muitos afirmem que é de origem messiânica, certo é que a luz se coou enquanto matéria onírica. Pessoa irá fazer dele um anátema – Portugal, hoje és nevoeiro. É a Hora ; Yeats, remete-nos para as “Aves Brancas voando sobre a espuma do mar”. Mais inefável que a imagem dos poetas não há, lembrar contudo que a Terra já fora algures um fino invólucro de gases e que essa memória pode ainda estar inscrita, também, em raros deles.” Encoberto” talvez, por uma matéria gasosa cuja finitude é igual a outra qualquer matéria.
Se para muitos o hermetismo Pessoano é quase severamente desconhecido, mesmo literalmente, certo é que o de Yeats não o é menos, e para tanto vamos a outra faceta que uniu também os dois homens: a escrita automática. Foi nela que eles permaneceram algum tempo como revelação conotados ao escritor desconhecido de si mesmos. Yeats desenvolve um sistema de símbolos geométricos apontando o que as “vozes” lhe ditavam e Pessoa descobre-a naquele 8 de Março depois de chegar a casa onde de um folego escreve então trinta e tal poemas. Os símbolos de Yeats dão lugar aos símbolos zodiacais de Pessoa e de tal ordem o paralelismo é grande que aqui, e sobretudo aqui, eles separam-se do resto das coisas vãs. Perscrutando, sabemos das suas ausências no meio de todos, pois que tinham estabelecido linguagens apuradíssimas com elementos onde alguma solidão impera. O mundo, e muito bem, não está para grandes desvios ou mesmo perda de tempo com o incognoscível. Daí ser tudo muito interessante, mas se há mais poetas para que complicar o que é simples? Não. Não há nada mais poetas, estes são-no, excepcionalmente, e por outro lado nada é simples, dado que nada das outras gentes assim catalogadas têm ou terão alguma coisa a ver com isto. Nesse lixo transversal que envergonhará certamente no além os seus nomes, o adjectivar quer dizer ainda alguma coisa.
A treze, sim, e sem Pastorinhos, que muito me admiro do silêncio de Pessoa perante tal fenómeno… talvez o ultrapassasse, um poeta é já uma aparição, um fenómeno no cimo da árvore da vida rodeado de meninos, dado que o melhor do mundo são as crianças, não será? Mas, e pensando no impacto social, não me espantaria se ainda pudesse aparecer qualquer coisa neste sentido, Pessoa, como sabem, está sempre a acontecer, a escrever, a dizer, o facto de ter morrido nada interessa, os poetas não morrem e mais outras verdades simples e muita frase errada tentado passar-se por ele.
Em «Uma Visão», Yeats cria uma chave interpretativa na forma de um sistema de símbolos e diagramas para a sua poesia, combinando também sistemas astrológicos, mas sobretudo ocultistas, sim, são tabelas inteiras com as fases da Lua, e com passagens iniciáticas por fases numéricas. Pessoa escreve versos na base do conhecimento da sua carta astral, sobretudo a posição de Saturno, e quando nos aparece a expressão súbita do “astro baço” ou os três anéis nós sabemos que pensa em Gomes Leal, nascido neste dia e à mesma hora e que Saturno está presente como uma lâmina e que ele não sai de um certo saturnismo.
Para tanto é preciso ir conhecê-los aos fundos abismos e estar com eles como se fôramos irmãos. Nada sei do Saturno de Yeats, mas parece-me bem mais feliz, ele, que viajou, casou, andou, proclamou, mas sempre com a alma branca de um fantasma celta, tão nórdico, como sefardita era a sombra de Pessoa, e nesta via mágica, neste deambular de sonhos, dado que vivemos por ele, há um dia que os une na encruzilhada de um desígnio. Pensei neles com carinho, como se faz com as sombras, indelevelmente e sem enunciar, não fosse trocar alguma pergunta que só um pudesse dar, afinal o dia é aziago.. E se o é, há azares muito bons, e males que felizmente perduram.
A nona sinfonia não é mais que uma fase da Lua, a virgindade renova-se com ela. E de sinfonia a novena, vai o olhar dos poetas caminhando. «Já chegou a tua hora, já sopram os teus ventos, Longínqua, tão secreta e inviolada Rosa?».

20 Jun 2016

O respirar de Portugal como território

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap] Bispo Idácio de Aquae Flaviae no século V mencionou a povoação de CALE, como o castro chamado Portucale, aparecendo documentalmente pela primeira vez este nome e onde não se faz referência a nenhum burgo ou povoação na margem direita e fronteira a Portugal. No concílio em Lugo, no ano de 568, Portugal, o Castelo antigo dos romanos, ficava sujeita à “Sé de Coimbra, a qual, jamais, superintendeu em igrejas além da margem esquerda do Douro”, Resenha Histórica de CALE, Vila de Portugal e Castelo de Gaia, na separata de Comunidades Portuguesas de 1970, onde não aparece o autor.
No século III fora constituída a província romana de Gallaecia et Asturica na Península Ibérica, tendo em 409 os Suevos ocupado a Galiza, onde estiveram até 585, e a Lusitânia passava em 409 para os Alanos, que oito anos mais tarde, em 417, foram derrotados pelos Visigodos.
Os suevos destruíram Conímbriga em 468, ano da morte do Bispo Idácio, o que faz Aeminium, situada na Via Olisipo-Bracara Augusta e a ocupar a Colina da Universidade, onde se situava o forum, ficar capital da região, ascendendo no século VI a sede do bispado de Conímbriga, ficando assim com esse nome.
Os Visigodos, povos germânicos cuja civilização era dominada pela guerra e armas, aos poucos expulsaram do Norte da Península Ibérica os Suevos e as tropas Romanas, ficando os únicos senhores dos territórios da actual Espanha e Portugal. O rei visigodo Leovigildo (569-586) realizou a unificação peninsular, vencendo em 586 os suevos e os bizantinos ficaram reduzidos a uma estreita franja do litoral Mediterrâneo. Este rei visigodo dividiu o reino em seis províncias e centralizou os serviços reais em Toledo.
Mas em 711, toda a Península Ibérica caiu em poder muçulmano.
A reconquista do Portus aos mouros em 868 pelo conde Vimara Peres, referida no Códice de Lorvão, Liber Testamentorum, antecedeu a de Braga e seguiu-se à conquista e despovoamento de Coimbra, cujos habitantes vieram repovoar a parte sul do Rio Douro.
“Não muito tempo depois, foram enviados outros condes ou os seus delegados para reorganizarem novos territórios, como os de Braga, Orense, Chaves, Emínio (ou seja, Coimbra), Viseu e Lamego. Conhecemos o nome do conde Odoário, que tomou conta de Chaves, e o conde Hermenegildo Guterres, que ocupou Coimbra em 878”, e prosseguindo com José Matoso, “Reconstituíam-se assim as bases nucleares da rede administrativa na antiga província da Galécia e ocupavam-se algumas das cidades do Norte da Lusitânia, que outrora tinham pertencido ainda ao reino suevo”.
“Transferida a corte régia para a cidade de León no início do século X, o agora reino de Leão (910-1037) foi-se expandindo e organizando muito para além dos limites asturianos iniciais. Em termos políticos, administrativos e militares o seu território dividia-se em condados, à frente dos quais se encontrava um conde (comes), com poderes delegados pelo rei. Isso mesmo ocorreu em Portucale, aí se formando um condado à frente do qual estiveram membros de uma mesma família, descendentes de Hermenegildo Gonçalves e de Mumadona Dias (926-968?), até 1071”, citado de Bernardo Vasconcelos e Sousa.

Doações do Rei ao Bispo de Coimbra

O segundo Rei de Leão, D. Ordonho II (914-924), que no ano de 913 realizou uma incursão com um grande exército até Évora, provavelmente fazendo pilhagens em grande escala, veio em 922 a Portugal e daqui em barcos foi até Crestuma, a fim de visitar o Bispo de Coimbra, D. Gomado, que se encontrava no seu Mosteiro. Seguindo a Resenha Histórica de CALE, “Estando o bispo no seu convento, veio o Rei (Ordonho) a Portugal, e mandou dizer ao próprio bispo que viesse ter, com ele, Rei. O mesmo bispo não saiu do seu convento, como manda a regra. E o próprio rei, para lhe fazer mercê, e a rainha, armou navios em Portugal (Gaia) e, com os seus condes Lucido, Vimarano e Rodrigo Luci, foram em barcos à ermida do bispo, visitar o dito e fazer oração naquele lugar santo. Fizeram solenes festas em honra do bispo e de seus frades e sorores e permaneceu com sua comitiva no próprio mosteiro. Ainda naquele dia, o rei, com a sua comitiva reuniu em concílio, Mauro, os frades e a abadessa Elvira e se informou sobre a vida dos confessores e da congregação, onde eram servos pacientes no mesmo lugar. O rei e a sua comitiva decidiram oferecer-lhes a vila de Fermedo com os seus antigos limites. E deu-lhes o rei a navegação e portagem do rio Douro, no dia de sábado, do porto de qualquer rio e por todos os seus portos até à Foz do rio Douro, onde entra no mar, quanto o Senhor der naquele dia para remédio de suas almas e para as de sua geração. E no mesmo concílio, Lucido Vimarano deu vilas e igrejas ao mesmo mosteiro, na margem do rio Douro e outra, na margem do Mondego, creio, doada pelo Rei, que ali mesmo ofereceu-lhe muitas outras terras, tanto a Norte como a Sul do Rio Douro.
Verifica-se, pois, em face do documento da doação feita no ano de 922, pelo monarca de Leão, D. Ordonho II (914-924), que, naquela época, existia a povoação Portugal, a qual, entre as outras terras, foi doada àquele prelado, o Bispo de Coimbra, D. Gomado. Segundo a Resenha, “A Vila de Portugal estava dividida, pelos seus antigos termos, com a Vila de Mafamude e daí, pelo monte, desde o termo de Coimbrões, até Gaia. Aquela foi metade de seus parentes, Fulderon e Palma, e a outra metade a comprou por seu preço e suas cartas”.
Do Livro Preto da Sé de Coimbra, “Não, sofre dúvida e pelo contrário é bem manifesto e conhecido de muitos, que por ordem de Deus e para remédio da sua alma, o próprio Rei Ordonho deu ao grande Gomado o episcopado da Sé de Coimbra, com a sua diocese, como a obtiveram os outros bispos que antes dele tiveram o episcopado, por muitos anos, até Portugal. E, depois de algum tempo, foi o bispo à corte; e, ante o rei, despediu-se e deixou o grande episcopado para entrar no convento. E o próprio bispo procurou uma ermida, e a encontrou no lugar de Crestuma, junto àquela foz em que o rio cai do Douro. E entrou nela por mão de Arias Abederahemem e de Mauro, confrades, e de Elvira, abadessa, para ali passar a vida religiosa, e onde repousasse, à sua vontade, seu corpo, no lugar em que são venerados Santo Estevam, São Martinho, Santa Marinha, Santa Maria Virgem e São Salvador; e onde, na mesma ermida, estão sepultados companheiros mártires. E o mesmo bispo adquiriu o termo da mesma vila e do próprio mosteiro, de Crestuma, cujas demarcações do grande centro se estendia à margem direita e esquerda do rio Douro no ano de 922.
Fruela II (924-925) pouco tempo reinou e sucedeu-lhe D. Afonso VI (925-931), o Monge, que reconduziu no mesmo cargo (Bispo de Coimbra), D. Sisnando. Já toda a região entre os rios Mondego e Douro, era conhecida e designada como território portugalense e, também, como território de Portugal, consoante se comprova com bastantes documentos de escrituras de doações espécies, inseridos no Porto Mon. Hist. Dip. et Chart”.

Os normandos na Península

O Rei Ramiro II (931-951) de Leão protagoniza uma história, cerca de 932 com o mouro Al Boazar al Bucadan, emir de Gaia. Época já do Califado de Córdoba, da dinastia dos Banu Umayya (Omeya) (912-1031) cujo seu primeiro califa foi Abd al-Rahman III al-Nasir (912-961). Cristãos e muçulmanos mantinham uma boa convivência realizando festas e torneios em que participavam cavaleiros de ambas as fés. Certa vez, em 932, D. Ramiro II disfarçado de trovador numa dessas festas, raptou a irmã do emir, Zahara e converteu-a em cristã. Quando Al Boazar soube, resolveu fazer o mesmo e disfarçado também de trovador vai a Leão e rapta a esposa de Ramiro, D. Urraca. Esta enamorou-se verdadeiramente pelo emir muçulmano e com ele ficou a viver em Gaia. Só muito mais tarde o Rei Ramiro ficou a saber do paradeiro da sua esposa e chegado a Gaia, disfarçado entrou no castelo e após um enredo de filme, conseguiu-o conquistar num ataque surpresa. Aqui a lenda reconstituída pelo brazão da cidade, que tem um corneteiro no castelo. Entre duas colinas na margem esquerda do Rio Douro, reconhecidas como Castelo de Gaia (Gaia) e Serra do Pilar (Vila Nova), ficava a vila denominada Portugal.
Segundo José Matoso, “Os principais factores desta multiplicação da violência foram, em primeiro lugar, as incursões normandas, que se iniciaram já em meados do século IX, se intensificaram entre os anos de 961 e 971, e se prolongaram depois durante dezenas de anos, até meados do século XI. Os Normando trouxeram a insegurança a toda a antiga Galécia, penetrando ao longo dos rios, roubando, incendiando e matando sem dó nem piedade, e obrigando todos os chefes militares e eclesiásticos a organizar a defesa e a construir novas fortificações. Em segundo lugar, as revoltas de vários condes e magnatas contra os reis de Leão, ao longo da segunda metade do século X, e as guerras civis entre os pretendentes ao trono, que se intensificaram entre 953 e 960. Estas lutas atingiram o nosso território com as revoltas do conde Gonçalo Mendes de Portucale contra o rei de Leão, por volta de 962, e do conde Gonçalo Moniz de Coimbra, algum tempo depois” e cujos seus descendentes, depois vieram a colaborar activamente com Almançor, tendo com ele participado nas pilhagens a Santiago de Compostela, que foi incendiada.

Reino de Castela e Leão

“Não foram só os delegados régios asturianos e depois leoneses que impuseram uma certa organização às comunidades humanas do território português. O clero monástico e diocesano também contribuiu para isso”, segundo Matoso, mas refere que, “a vigilância episcopal sobre as igrejas paroquiais devia ter sido quase inexistente, antes da restauração definitiva destas dioceses (Porto Coimbra, Viseu e Lamego), nos séculos XI e XII”.
No reinado de Ramiro III (966-985), refere Matoso, “A partir de 978, prevaleceu de novo a guerra externa, com os violentos e destruidores ataques de Almançor, o hachib do califa Hisham II, às principais cidades dos reinos cristãos. Estes ataques atingiram o nosso território com a sua conquista de Coimbra, em 987, e com a sua grande expedição a Santiago de Compostela, em 997, com o apoio de vários magnates portugueses. Esta fase da guerra cessou praticamente com a morte de Almançor e pouco tempo depois, em 1008, com a morte do seu filho Abd al-Malik”. A assinalar, como caso curioso, o conflito sobre a tutela do condado de Portucale entre Afonso V e o conde Sancho Garcia de Castela ter sido arbitrado por Abd al-Malik. Ainda anteriormente, Bermudo II (985-999, o Gotoso) foi reconhecido no ano 982 Rei da Galícia e do Norte de Portugal.
“O reino de Leão estava profundamente desorganizado e foi necessário ao rei Afonso V (999-1028, o Nobre) reunir uma grande cúria na cidade de Leão” segundo refere Matoso, que segue, “o chamado Concílio de Leão de 1017, cujas decisões foram promulgadas em 1020 e que emitiram numerosas prescrições com o evidente intuito de reordenar uma sociedade perturbada por transformações profundas. Nesse ano de 1017, os Portucalenses davam provas da sua capacidade de reacção, pois o conde Mendo Luz (…) estabeleceu a sua autoridade efectiva sobre a região do Vouga e da Terra de Santa Maria”.
O Rei D. Fernando I (1035-1065), o primeiro do Reino de Castela e Leão (1035-1157), com as suas agressivas campanhas, fez a ocupação definitiva de Coimbra e “só a partir de então a fronteira se deslocou de maneira decisiva para além do vale do Douro e se iniciaram expedições de grande envergadura com o propósito de ocupar definitivamente as principais cidades do território andaluz e os seus respectivos alfozes. Se os primeiros reis asturiano-leoneses sempre se haviam ocupado intensamente da guerra, é duvidoso que se considerassem investidos na missão de recuperar para o Cristandade a maior extensão possível da Hispânia islâmica e tomassem tal missão como o mais importante dos seus deveres”. Coimbra, que caíra em poder muçulmano no ano de 711, fora em 878 reconquistada pelo Conde Hermenegildo Mendes, mas logo aí apareceu em 987 o Almançor a caminho da Galiza, que varreu com o seu grande exército os cristãos que se aventuraram a instalar a Sul do Rio Douro.
O Rei D. Fernando, o Magno, após reconquistar Coimbra em 1064, deu ao conde D. Sisnando a mesma jurisdição territorial, da Sé de Coimbra, que governava, eclesiasticamente, em todas as terras desde o Mondego a Portugal, e entregou-lhe o governo da cidade de Coimbra. Já os combates para Sul do Rio Douro iam fazendo variar o tamanho do condado de Portugal à medida dos avanços e recuos dos cristãos e partindo das margens desse rio variava o território nos seus limites até Coimbra.
Afonso VI (1072-1109) reinava Leão, Castela, Galiza e Portucale, quando em 1073 dividiu o seu reino pelos filhos. Em 1096, após o conde D. Henrique (sobrinho do Conde de Borgonha e do monge Hugo, o Abade dos Abades da comunidade do mosteiro de Cluny) casar no ano anterior com D. Teresa, filha ilegítima de Afonso VI, este Rei de Castela e Leão (1035-1157) incumbiu-o como seu vassalo da governação da Galiza, esta dividida em Condados, sendo um deles o Condado Portucale.
Pelo que acima ficou registado, a terra entre os rios Douro e Mondego era já conhecida como território portugalense e de Portugal, muitos anos antes da fundação da nacionalidade portuguesa. Tal é corroborado por Alexandre Herculano, que refere estar demonstrado, por autênticos documentos, que a região entre Coimbra e a margem esquerda do Douro, era conhecida e designada como território de Portugal e também que a margem direita do rio Douro limitava a Galiza, antes da fundação da nacionalidade portuguesa. «É vulgarmente sabido que desta povoação veio o nome do nosso país».

17 Jun 2016

Obsessão e vulgaridade

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]ara mim, quer dizer, literalmente, o que a literatura é como qualquer coisa que me é endereçada e enquanto direito de apropriação que pode ser vitalista, ao ponto de, glosando a Natália Correia, se poder comer. Para mim, dizia, escrever sobre ela é, por esse motivo, em larga medida vomitar. Meu deus, que coisa chocante! Agora a literatura dá vómitos, … Em que é que ficamos? Nada disso, o que eu quero dizer é que a literatura não é nunca um entretenimento, um fait divers para passar (consumir) o tempo, pelo contrário, é sempre coisa orgânica e vital. Fiquemos assim entendidos. E regresse-se ao Para mim. O que a expressão quer dizer é que não há neutralidade e pelo contrário, puro egoísmo, pura expressão, quase doentia de uma posse, de uma exclusividade, eventualmente até infantil, se se quiser, no sentido do carácter egocêntrico e do sentimento de posse da criança. Em resumo, na maior parte das vezes e dos casos, a obra foi escrita essencialmente para mim. Ora se foi criada para mim, expressamente, então é minha, posso fazer dela o que bem entender, até comê-la como dizia, (…)
O Para mim não significa portanto Em minha opinião, é algo de muito mais metabólico, aliás essencialmente metabólico e por vezes mesmo exclusivamente metabólico. Perceberam!? Voltemos ao vómito. Há aqui uma ambiguidade estrutural que é preciso dilucidar. Penso que serei capaz de demonstrar que o vómito é da ordem das sinestesias básicas, ou seja dos sentimentos ambivalentes. Eu não vomito a literatura, nem o autor, nem a obra, em particular ‘os’ ou ‘as’ de que mais gosto. Eu vomito o facto de ter de partilhar com idiotas a literatura e o facto de que hoje em dia a literatura se confunde com o que é digno de vómito e passa por ser literatura. E o mesmo acontece com muitas outras manifestações culturais ou pseudoculturais.
O que em geral provoca o vómito é biblicamente como se sabe, o morno, o que não é quente nem frio, o que é por natureza neutro. A Vox Populi costuma dizer de qualquer coisa que provoca desprezo, quiçá mesmo náusea, que não aquece nem arrefece. O fundamento é seguramente o mesmo que no Apocalipse:
Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca. Apocalipse 3:15,16
Interessa-me guardar este sentido, de que a literatura se pode vomitar, pois não sendo o meu, acaba por se insinuar em mim, através dos outros, das suas sabedorias estultas, das suas auto-satisfações académicas ou coloquiais, sabedorias essas, que não vislumbram sequer a maldição da poesia. A poesia e a arte em geral é e será sempre a única praga capaz de conspurcar as boas consciências e lançar dúvidas demoníacas em todos os crédulos. Por outro lado interessa-me reter também uma outra dimensão ainda mais radical, embora já implícita no que acabei de dizer. Como o cão torna ao seu vómito, assim o tolo repete a sua estultícia. Provérbios 26:11.
Assim vós que falais de literatura como coisa morna, nem quente, nem fria, acabais por ser os verdadeiros apóstatas da beleza, da arte e da poesia. Eu vos vomito. Podeis, como os cães voltar ao vosso vómito, ou como os porcos voltar a revolver de novo na lama.
Vem isto a propósito da leitura dos contos de Axilas e outras histórias indecorosas do escritor brasileiro, autor de uma obra prima designada a Grande Arte. Uso aqui esta citação de propósito e de forma acentuadamente irónica, pois a grande arte de que fala o autor é o homicídio. Adiante. Estes contos mostram uma obsessão com a decadência física e com a deficiência nas suas mais variadas formas, sempre assumidas por personagens impiedosos consigo mesmo e principalmente com os demais. Citemos o autor: “Um homem apaixonado é uma espécie de louco. É tipicamente um sentimento doloroso e patológico, porque, via de regra, o indivíduo perde a sua individualidade, a sua identidade e o seu poder de raciocínio”. O pensamento do narrador do conto “A Mulher do CEO”, um dos dezoito contos incluídos na antologia Axilas e Outras Histórias Indecorosas, resume bem a obra de Rubem Fonseca.
As narrativas de Rubem Fonseca exploram o pathos do calor e do frio, não são nunca mornas, tépidas, vomitáveis, e o que é mais importante impregnam no leitor a sua visão extrema, sem contemplações. É quando lemos obras como estas que melhor percebemos os estereótipos delicodoces, melodramáticos, abusivamente cheios de retórica sentimentalóide e nesse sentido indecente. É a pretensa decência que esconde e branqueia, que ignora a enorme miséria do mundo, que é a autêntica indecência. É o politicamente correcto que é criminoso nas suas mentiras descaradas, é a retórica artificial da bondade e da beleza que escamoteia as imensas pústulas, visíveis no entanto a céu aberto, que provoca desdém e repugnância, é o romantismo serôdio dos Nicolas Sparks, ou o erotismo burguês e de pacotilha das Sombras de não sei o quê e que afinal nem são sequer sombrias, que representam hoje a pornografia disfarçada. Perante uma obra como a de Rubem Fonseca, apetece dizer, eu vos vomito, vós que não sois nem frios, nem quentes, mas somente mornos.
Falemos agora do estilo. Dizer que é certeiro, rápido, incisivo, talvez se adeque. O autor cultiva a economia, de recursos e de páginas. Todos os contos são curtos. E não são assim os melhores contos desde Tchekhov a Raymond Carver? Os contos ao mesmo tempo que são curtos, directos e sucintos, são porém quase sempre desconcertantes. Contudo o que mais me atraiu neste conjunto de contos foi a vulgaridade estrutural dos personagens, protagonistas de quotidianos enviesados mas banais. Nem um só que fosse, poderia servir para ilustrar uma enciclopédia moral e de bons costumes. Eles não são paradigmas de coisa nenhuma, a não ser de uma certa indigência. A antologia é no fim de contas um bestiário não moral nem exemplar, tão somente de gente vulgar, às quais podem, no entanto, acontecer coisas invulgares, mas como se o não fossem; mas não é isso que as pessoas são na generalidade? Então perguntar-se-á porque razão, sendo aparentemente morno, este universo, nem frio em excesso e muito menos exaltante, não será a justo título vomitável. Por uma razão que em pleno o justifica: a autenticidade. Aqui não há modelos de plástico, caricaturas, aqui há a vida tal como ela é ou pode ser e na maior parte das grandes metrópoles, é mesmo, imenso universo de seres claudicantes, para não lhes chamar coxos ou rengos, e também de corcundas, vesgos, prostitutas, proxenetas, enfim deficientes numa panóplia de deficiência de largo espectro. E esse realismo sem dó, nem compaixão, nem mentiras é de uma luminosidade tão intensa que queima. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Não há na prosa de Rubem Fonseca digressões intelectuais, fluxos de consciência, que valha a verdade são por vezes tão aborrecidos e até mornos, não há também problematizações sociais de conveniência e morais muito menos. Pouca carne e muito osso, e um estilo direito à dor, que se faz tarde. Nós os leitores ficamos com os ossos moídos e com a alma cabisbaixa, mas literariamente exaltados, em fogo; com algumas cintilações obscenas, para quê negá-lo.

17 Jun 2016

Feira do Livro

Vejamos se nesta feira que Mercúrio aqui traz acharei a vender paz que me livre da canseira em que a fortuna me traz

Auto da Feira, Gil Vicente

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]om esta personagem alegórica do deus Mercúrio, tem lugar a Feira do Livro entre Maio e Junho, os meses consagrados a Mercúrio, e a transacção da palavra como comércio. As Feiras são para mim locais desabridos, muito abertos, populosos, arrivistas, cheios de entulho, pois que é certo que uma Feira, mesmo de hortaliças, é um microcosmos difícil de nos adentrarmos. Reconheço sem dúvida o lúdico, a quantidade, a variedade, o colorido mas, neste caso, prefiro então as pequenas Feiras com o pó das Estações que assentam nas dobradiças das tendas como as velhas carroças de ciganos abandonadas, continuando num canto com interessantes nichos abertos à voragem das aquisições.
Mas vamos para a Feira! Olhando ao redor não se sabe por onde entrar e o melhor é sempre o propósito fixo para não deambularmos diante de infindas florestas de nada, de livros infantis, de direito, das Testemunhas de Jeová, daqueles pobres escritores parados, sentados… o microfone, os discursos que se vão ouvindo de alguém que está lançando qualquer coisa, a fealdade alarmante das gentes que, coitadas, vão assim, à vontade, e se lhes nota o estado das suas carnes como um castigo a transportar.
Mais além, sim, um cheiro bom – são farturas – que o nome encanta só pela abastança, que nestes locais não há, dado que, como bem sabem, os pobres têm grandes dificuldades quase em comer, quanto mais para grandes sacadas de livros a bons preços, que por acaso até nem estão tanto assim. Enfim, é um equívoco na subida e uma desilusão na descida, de modo que a Feira seja apenas louvável como tradição e quase nunca como agente cultural.
Assina-se muito, assina-se para sempre, assinamos cheques, livros, registos, assinamos tudo inteligivelmente como fazendo parte da cultura dos assinantes. Depois de assinados, em pequeninas “bichas” que o tempo não está para “bicha” grande (revelando que esta tendência deve ser influência anglo-saxónica pela compostura) as pessoas escorregam suavemente para uma quase inexistente troca de palavras. Fala-se pouco, vê-se muito, cambaleia-se… Claro, é uma Feira, cada um faz como acha melhor e o melhor ainda não foi pensado, que é simples, tão simples que já nem se pensa nisso: a leitura é um exercício com regras como outra coisa qualquer, ou seja, um grande leitor é um metódico, tal qual como um sacerdote tem horas, há que ter método, postura física e um mundo que ele próprio define como propiciador de elemento ritualizante, dado que o livro é um elemento com aura e não raro tem até o poder de nos submeter à sua tirania tal como os ritmos da fé.
Pois bem, chegados aqui, toda este alienado e alienante propósito de leitura como elemento transportável, que ora serve para adormecer, levar para a praia, ler pelos cantos, torna a leitura quase um mau costume. Sabemos nós, os leitores por vocação, que só começamos a “ler” na releitura, que nessa actividade está o segredo do magistério da palavra, porque nada pode ser lido com carácter de urgência a menos que se trate de escrita informativa, jurídica, técnica; mas a literatura, mais propriamente aquela a que se dá tal epíteto, não é um receituário: está unida à inventividade que acrescenta mais espaço à capacidade onírica e mental, dado que é para isso que a palavra também serve, como um caminhar da transformação do Homem e da sua ampliação, na capacidade, evidentemente, de acrescentar esse novo, essa inquietação, esse despertar : o leitor deve sentir-se incomodado.
O leitor não pode deixar-se andar pela deambulação inconsciente do seu bem-estar, pois que o excesso de passividade torna a mente imprópria para estruturar uma leitura ou mesmo ter dela qualquer sentido crítico, a absorção das coisas fáceis é imprópria para a complexidade humana e, mais do que nunca, o leitor de agora devia ser iniciado e conduzido. Não influenciado, devia ser informado do mau uso e da má postura que está a dar à leitura.
Neste tempo de todas as epifanias das leituras não compreendemos que leitor é este. Há gente a morrer de trauma fonético… Nunca o delírio atingiu tanto o espectro auditivo e das sombras vêm vozes que nos mandam escrever sem noção da “bomba atómica” que pode ser um verbo mal rolado… Mas, dado que a inércia crassa entre os enfadonhos tratados, teses, invencionices sem mérito, pesporrências várias, e muito linguarejar, ainda há substrato para um cruzeiro a vapor. Há verbos que nem sussurrados já são possíveis ou mesmo escutados… como um – Amo-te – por exemplo. No entanto, é preciso escrever muito sobre o amor. O ventrículo de todas as vozes e de todos os sons e de todas as letras, visto nestas Feiras, parece ter produzido mais insanidade que saber e em locais inesperados, é certo, subitamente o revelado, o livro , a letra exacta, pode ser encontrado.

*

A personagem alegórica do início do texto é o Diabo de Gil Vicente, que parecendo esgotado do seu artifício, apela à paz , a tréguas, para o libertar do cansaço de uma busca indistinta, tão desorientada, a que o próprio chama Fortuna. Má Fortuna!
E também a «Biblioteca» de Umberto Eco um opúsculo muito bom sobre o objecto-livro, o elemento que se tira, que se desloca, que se vende, que se anseia, que se dá, que se partilha, as inúmeras formas de nos posicionarmos sobre ele apelando aos seu interesse gratuito.
Este é também mais ou menos um Auto e não creio que interesse muito numa qualquer Feira.
O que é certo é que a azáfama do interesse móvel, e a carga das editoras, deve predispor muito pouco tempo para algo parecido com a escrita que desejamos ler.
Há aquela feita nos lagares dos “Óleos” para Autos- de- Fé, que não são de Elias Canetti ,mas de escolas que despejaram a lengalenga que apetece, com certeza, sim, fazer fogueiras. Digo, acender Chamas.

16 Jun 2016