O início do amor

* por Paulo Miranda

[dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uando falamos de Safo, é difícil distinguir o que é real do que é mito. Muito se perdeu dela, fundamentalmente devido à Igreja, que ordenou a destruição dos seus textos, que se encontravam na biblioteca de Alexandria. Mas para além de todas as controvérsias, Safo representa um momento da poesia lírica grega que ficou assinalado como uma etapa decisiva da construção da poesia europeia. Platão chamou-lhe a décima musa. Safo teve vários relacionamentos sexuais com homens e mulheres, e também se casou. Conta-se, inclusivamente, que o suicídio dela se dá pelo amor não correspondido de um jovem barqueiro.
Neste tempo, a poesia era um espectáculo, era para ser lida em público, cantada e até, por vezes, acompanhada com dança. Nada seria mais estranho a um grego, do tempo de Safo, do que ver alguém a ler poesia sozinho e em silêncio. Por mais estranho que possa parecer, a lírica grega tem semelhanças com a produção cinematográfica de Hollywood, dos chamados anos de ouro do cinema. Ambas as expressões artísticas fizeram um casamento perfeito entre o entretenimento e a elevação espiritual, tanto no sentido ontológico quanto ético. Vários são os filmes que poderíamos dar como exemplo, mas concentremo-nos apenas num desses exemplos: o filme Johnny Guitar, de Nicholas Ray. Trata-se de um western, género que de certo modo tem as características dos mitos, divididos entre o Deus bíblico, de vertente protestante, e a dos heróis, que cumpriam um destino acima dos seus interesses pessoais. E, como nos poemas de Safo, por exemplo, o filme conta também uma história de amor. Veja-se o fragmento 13, de Safo: “O seu coração arrefece e deixa tombar as asas…”. Este verso canta o desencontro amoroso. Mas não é um desencontro amoroso qualquer, é um desencontro amoroso que, antes, deu asas aos amantes. Porque, contrariamente ao que a publicidade nos quer fazer crer, não é o red bull que nos dá asas, mas o amor. Este verso de Safo mostra-nos que o amor nos torna acima de nós mesmos. Na cena de Johnny Guitar, quando Vienna encontra Johnny a meio da noite na cozinha a beber, o homem pede à mulher para reatarem a relação e escuta a seguinte resposta: “Quando um incêndio se apaga, o que sobra são cinzas.” Por outro lado, como perdoar a quem nos deixa de amar? E um dos temas centrais do filme de Nicholas Ray é precisamente este: o de uma mulher a quem um homem cortou as asas e depois retorna, para se desculpar, para reatar uma relação que ele mesmo interrompeu anos atrás. Escreve Safo, no fragmento 50: “Eros fustiga o meu coração como um vendaval os carvalhos no alto da montanha.” Não estamos aqui perante o sofrimento da vida enquanto vida; aqui, o nosso sofrimento é o sofrimento das coisas boas. “Eros revira o nosso pensamento.” (fr. 16) Vira-nos do avesso. Aquilo que a lírica traz de novo à escrita Ocidental é a consciência do sofrimento que as coisas melhores da vida nos podem causar, quer seja o amor, quer seja o belo, quer seja a amizade, através do canto e não de análises. E o sofrimento não advém somente da perda dessas coisas, depois de alcançadas, mas também por nunca as alcançarmos. Safo entende que o belo, a apreciação do belo pode ser um mal terrível. Veja este belo fragmento 2, que evoca uma bela jovem, numa reunião social, sentada junto a um homem: “Como faz lembrar os deuses, / esse homem, / sentado à tua frente, / nos muros da tua boca, / a ouvir-te palavras doces e a ver-te rir de maneira destruidora! / Sou incapaz de segurar o meu coração no peito. / Quando te olho, / por migalhas que sejam, / já não sou capaz de dizer nada, / a minha língua gela, / sou uma inextinguível fagulha de silêncio sob a minha pele. / Deixo de ver,/ os meus ouvidos zunem, / e um suor frio cobre todo o meu corpo, / estarrecido pela derrocada. / Torno-me mais verde do que a erva / e parece que estou prestes a morrer.” Repare-se como não há qualquer descrição da jovem, apenas aquilo que ela faz sentir na poetisa e, concomitantemente, no leitor. Não sabemos se a jovem é loura ou morena, se está bem ou mal vestida, se a sua pele é mais ou menos clara, se o seu cabelo é liso ou encaracolado, se está apanhado ou a cair sobre os ombros; nenhuma mancha do volume dos seus seios ou das suas pernas. A beleza dela faz-se sentir através do que outro sente. O belo faz doer. O belo faz-nos tanger como se fôssemos uma lira tocada por ele. A beleza da jovem transforma-nos em melodia. Repare-se ainda na particularidade do início e do fim do poema: o homem que parece um deus, por estar nos muros da boca dessa jovem, e ela, a poetisa, que parece estar prestes a morrer. A diferença abissal entre aquele que tem o belo junto a si e aquele que o vê de longe. Safo
O amor é a grande descoberta da lírica grega. Não a sua existência, evidentemente, mas torná-lo o centro do universo humano. E o que é este amor que a Safo canta, que parece ser o fundamento de estarmos a ser? Temos que afirmar, antes de mais, que se trata de um amor erótico, e não de um amor filial. Como ela escreve num verso do fragmento 16, Eros revira o nosso pensamento. O que nos leva a pensar que é fundamental a união carnal. Sem carne não há amor. Mas se é verdade que não há amor sem carne, também não o é menos que não o há sem afinidades electivas, para usar um termo do poeta alemão Goethe. O amor a que a lírica grega arcaica se refere é um amor pleno, um amor, como se usa dizer, de corpo e alma. E, aqui, não é difícil ver as estreitas relações entre o amor em Safo e o amor em Platão, que contrariamente ao que se usa dizer, não é platónico, é a união por inteiro, do corpo e da alma. Safo entende, literalmente, que o amor dá-nos asas. O amor faz com que os dias tenham sentido. Mas é a poesia que nos abre para o sentido do amor. Pois sem poesia, o humano não é uma sombra de Deus, como escreveu Píndaro, mas uma sombra de uma sombra. “Ficarás para sempre morta sob a terra e não deixarás memória nem saudade, / pois nunca cheiraste as rosas da Piéria. / Serás fantasma a errar pela casa de Hades / entre os tristes mortos, / depois de teres levantado voo da vida.” Sem poesia, sem o cheiro das rosas da Piéria, a vida humana está votada ao esquecimento. E este esquecimento não é apenas enquanto se morre, mas enquanto se vive. Porque, vida sem poesia, é já morte. A poesia abre-nos ao sentido do amor, mas também ao sentido da natureza, ao sentido pleno da vida. A expressão do amor humano como centro gravítico do sentido da vida é a grande novidade da lírica arcaica, e que encontra em Safo um dos seus expoentes máximos e primeiros. Em Safo, a poesia não é uma função; a poesia é a verdadeira dimensão humana. Esta é uma revolução enorme na mentalidade ocidental, não só no modo de pensar, mas no modo de entender a existência. Começava aqui, de algum modo, e ainda que sem a analítica filosófica, a consciência de que o humano é fundamentalmente palavra.

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