A utilidade da morte

Saramago, José, As Intermitências da Morte, Caminho, Lisboa, 2005.
Descritores: Morte, Sentido da Vida, Igreja, Estado, Ordem, 214 páginas, ISBN: 972-21-1738-6.

[dropcap style=’circle’]J[/dropcap]osé Saramago, poeta (Os Poemas Possíveis, 1966, Provavelmente Alegria, 1970, O Ano de 1993, 1975; dramaturgo ( A Noite, 1979, Que Farei com Este Livro?, 1980, A Segunda Vida de Francisco de Assis, 1987, In Nomine Dei, 1993, Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido, 2005 e romancista (Terra do Pecado, 1947, Manual de Pintura e Caligrafia, 1977, Levantado do Chão, 1980, Memorial do Convento, 1982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984, A Jangada de Pedra, 1986, História do Cerco de Lisboa, 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 1991, Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997, A Caverna, 2000, O Homem Duplicado, 2002, Ensaio Sobre a Lucidez, 2004, As Intermitências da Morte, 2005, A Viagem do Elefante, 2008, Caim, 2009, Claraboia, 2011), sobretudo, conduziu uma vida intelectual e cultural, marcada pelo auto didactismo e pelo comprometimento social e político. Nasceu no distrito de Santarém, na província geográfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu ateísmo e iberismo, foi membro do Partido Comunista Português e foi director-adjunto do Diário de Notícias. Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhães, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC). Casado, em segundas núpcias, com a espanhola Pilar del Río, Saramago viveu na ilha espanhola de Lanzarote, nas Ilhas Canárias. Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.

Esta obra evolui através de três tempos bem demarcados.
— Num primeiro instante a surpreendente constatação de que ninguém morre.
Este fenómeno, a todos os títulos incrível e inesperado provoca uma série de elocubrações intelectuais bastante interessantes e bem logradas por parte do autor. Trata-se enfim de explorar as consequências imprevisíveis de um acontecimento provocatório. Qualquer pessoa pode pensar, eu pelo menos já pensei, nos termos de como seria a existência se a morte não existisse. Todos podemos compreender que é a temporalidade e a finitude que conferem à vida o seu carácter de urgência e a sua importância radical. Tudo, as carreiras, as preocupações com a saúde, tão em voga hoje em dia, as ambições, o amor, tudo mesmo, se relativiza e perde a sua dimensão de necessidade, transformando-se em desejo muito vago se a morte não existisse e se portanto a vida fosse eterna. A vertigem existencial só existe porque a vida é breve, porque o tempo passa, porque o fim espreita. Em boa verdade a grandeza dos projectos, a própria ideia de projecto, a beleza, o sublime esvair-se-iam e tudo se tornaria redundante. 19516P14T1
O autor não deixa de explorar o tema, desta forma: Sendo a vida eterna, um dos desejos mais constantes e antigos da humanidade, o da vida eterna, porque é que afinal o seu desaparecimento pode ser tão conflituoso e provocar tanto desassossego. Porque como já salientei o grande sentido da vida reside na sua brevidade e a condição ontológica mais estável esteja afinal na finitude.
Contudo, ainda que José Saramago, aflore também, este tipo de explorações do tema, centra mais o seu texto, nas questões ideológicas de vária ordem, relacionadas com outro tipo de assuntos, estou a pensar nas preocupações dos políticos e dos dignitários da Igreja, por exemplo. E centra também a narrativa nas questões práticas e processuais inerentes ao tema, ou seja nas instituições que seriam afectadas com o fim da morte: As companhias de seguros, os agentes funerários, os asilos, os hospitais, por motivos, mais ou menos óbvios. Mas sobretudo, convenhamos, as religiões. O que seria das igrejas, seja de que credo forem, sem a presença benigna da morte. Como salienta Saramago:

“(…) a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido”.
— Depois, numa segunda parte, mais à frente, a morte anuncia o seu regresso, mas agora com novas regras:
“a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios (…) ofereci uma pequena amostra do que para eles seria viver para sempre (…) a partir de agora toda a gente passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida”.
Durante 50 páginas o autor diverte-se a explorar este novo sistema e as suas implicações controversas. Mas em boa verdade escapa-lhe de novo a ideia nuclear e que consiste no facto de que a morte só vale pelo seu carácter inesperado. O sentido existencial, na sua precariedade constitutiva não aceita nenhum tipo de previsões empíricas. A componente trágica da vida exige que ela conviva (paredes meias) com uma ideia difusa de eternidade. Todos somos apanhados de surpresa, independentemente de todas as variáveis prudenciais e de lucidez relativa. A vida é uma aventura carregada de perigos, mas que é vivida como se cada momento fosse eterno, apesar da consciência lúcida da finitude. É de um paradoxo que se trata e não adianta exacerbar as certezas ontológicas. Sabe-se da certeza da morte, mas a vida possui esse poder avassalador de a adiar sempre até ao derradeiro instante.

— Depois finalmente a terceira parte:
Para muitos leitores e críticos a terceira parte do romance, a partir do capítulo 10, chamemos-lhe assim, constitui o momento mais alto do texto, o momento da personificação da morte, que é aliás a personagem maior desta ficção. Compreende-se que o autor a queira personificar, isto é, humanizar. Ela é no fim de contas a heroína, até porque diante dela não haverá heróis dignos desse nome.

Uma nota pessoal:
Os livros de José Saramago, nesta fase mais recente, muitos deles posteriores à atribuição do Prémio Nobel, resolveram o que para mim era um dos problemas maiores na obra de José Saramago, o da economia de processos narrativos. Os livros da sua primeira fase, eram invariavelmente livros muitos volumosos, estou a pensar no Memorial do Convento, no Levantados do Chão, na Jangada de Pedra, na História do Cerco de Lisboa, no Ano da Morte de Ricardo Reis, etc. Nesse livros, a par de páginas de génio José Saramago dava por vezes a sensação de obedecer a um formato. Ora, curiosamente a partir de uma certa época, os seus livros tornaram-se mais ágeis e em larga medida mais objectivos, não perdendo porém a sua capacidade de efabulação.

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