Estrangeira para sempre

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]lora. Fugida das antigas Índias portuguesas, já não lembro de onde. Da desonra de um casamento desfeito, de um amor, ou de um azar qualquer que nunca era para ser casamento. Da vergonha. Da família. Ou a da família, dela. Renegada. Lavava a roupa por horas sem contar no tanque da varanda. Esfregava a roupa e revolvia-a envolvendo tudo no sabão azul e branco. Mesmo mágoas antigas, até sobrar só aquilo que a movia de uns dias para os outros. Dobrava e voltava e batia e espremia e desdobrava e molhava e ensaboava e enrolava de novo. E rolava a roupa em rolinhos nas caneluras gastas do tanque. Ou prendia com uma mão e estendia com a outra, a massa informe das roupas. Como massa de tender – como eu gostava dela. Esfalfava-se meticulosa, amorosamente e sem pressa. Comigo hipnotizada pela tarefa repetida e porque gostava dela. As mãos finas de unhas alongadas, murchas de tanta água e de horas. O futuro por companhia, as mãos como metáfora. E cantava. Com uma voz clara como uma pedra. Não melódica nem muito bela na musicalidade. Ela também. Não era bonita. Ou era, afinal. Antes com o som limpo e natural das coisas naturais. Cantava sempre e o rosto, mesmo fechado nunca transparecia tristeza. Tudo e nada abria ali um sorriso rasgado com uns dentes enormes e daquele tom particular de marfim na pele muito escura. Lustrosa. Falava a sorrir como se a alma nunca lhe coubesse. Os olhos de córnea amarelada, rasgados e dolentes, vítreos. Líquidos como vidro. Vivia num quarto, e depois noutro, e noutro. Todas as economias se transformavam num enxoval de colchas, toalhas e rendas, lençóis nunca estreados, cobertores. A sonhar com um casamento e voltar. Sempre só. Nos seus sonhos. Impecável, de roupa clara, severa, sem idade, quase como engomada e o eterno lenço de sair à rua. Claro, acetinado, sempre como novo e apertado com lassidão debaixo do queixo. Em torno de um cabelo espesso e negro apanhado e enrolado com ganchos. Tão lasso, o nó do lenço, que escorregava sempre. E ela ajeitava. Talvez um laivo de charme nesse deixar escorregar e compor. E deixar cobrir os ombros e subi-lo de novo. Apertar e depois afrouxar…Magra, tão magra. Com os malares volumosos a saltar da pele. A comer mal. Sempre. Para repartir desigualmente o que tinha, com o seu sonho remoto. Sem idade. Percebo agora que muito nova e já sem idade. Como da família mas sempre numa reserva de humildade estranha para quem nos tinha tanto afecto. Um certo orgulho. Ou a noção de que os sacrifícios na comida só a ela diziam respeito e viriam a tornar-lhe a felicidade possível. Um dia. Um dia que nunca chegou. Ela sim. Foi chegando. Cada vez mais longe e mais abaixo. Um dia, noutra década muito mais à frente. A uma barraca. Não uma casa decrépita ou sórdida. Uma barraca daquelas feitas de restos de coisas. Em que cada pedaço era o remendo do que nunca foi outra coisa. Arrendada. Também se arendam coisas assim. E sempre como se mesmo para além das intempéries reais dos invernos, só fosse importante para ainda guardar o enxoval e abrigar os cães. O cabo dos trabalhos para realojá-la depois já de toda a vizinhança desaparecer. Não havia lugar para ela com os cães. E sem eles, para ela também não. Eles e o enxoval do sonho. O sonho também de reaver poupanças confiadas ao empregado de um banco e desaparecidas em parte incerta da vida ao longo de anos. Enganada sempre e confiante o suficiente para voltar a ser. O enxoval renovado dos desaparecimentos sucessivos de quartos e portas mal seguras. Desapareceu, estrangeira como sempre, durante muitos anos, porque as pessoas desaparecem e a vida fecha-se sobre elas. E um dia fez dezenas de quilómetros para nos ver. A pé. Porque a terra anda-se a pé se não fôr possível de outra maneira. Que emoção. Incompreensível como sempre no mesmo português cantado e estrangeiro, ou pior. Muito silêncio pelo meio, a memória a recuar mais para perto do sonho. Suja como nunca tinha sido, envergonhada, carinhosa como sempre, mas veio pelos pêsames e não por ela. Soubera. Depois fomos nós os mesmos quilómetros para lá. Ver o que não se entendia do que dizia. E entender só o que era possível. Sem os cães, nunca. Revolvia os caixotes por comida para eles. Não precisava de mais nada e não queria mais nada. Só o que tinha sido dela. Tão sem idade como sempre mas muito mais ressequida, com muito menos dentes. E a cheirar mal. E os cães doentes. E sempre aquela desconfiança talvez real de que não se podia afastar muito dali para resolver a vida, porque alguém lhe rondava as tábuas mal acrescentadas da porta. O enxoval de novo e sempre em perigo. Os sonhos, não sei se ainda nítidos mas o enxoval, sim. Flora. Menina Flora, sempre tratada assim, com respeito e para todos, nunca de outra maneira, porque solteira. Para sempre solteira no sonho, cada vez mais casada com ele e menos com a realidade. E estrangeira para sempre.

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