Pequim, 15 de Outubro de 1977 ( continuação)

* por António Graça Abreu

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Grande Muralha correspondeu à execução de um projecto grandioso regado com o suor e o sangue de muitas centenas de milhar de chineses. O trabalho era forçado e as pessoas morriam de fadiga e exaustão, sendo enterradas nos alicerces da Muralha.
Decorreram muitos séculos e as fronteiras da China ultrapassaram a Grande Muralha que, no entanto, manteve até ao século XVIII a sua importância estratégica. Funcionou também como meio de comunicação entre regiões montanhosas, pois com os seus seis metros de largura pavimentados com grandes lajes permitia a passagem e o movimento de carroças e cavalos. Nalgumas regiões, em que tem uma altura média de sete metros e meio, a Muralha constitui uma barreira permanente que quebra os ventos frios vindos das estepes da Sibéria, o que possibilita melhores condições para o cultivo das terras.
A Grande Muralha da China é, pois, obra magnificente. Calcula-se que para a sua construção foram necessários 180 milhões de metros cúbicos de terra e 60 milhões de metros cúbicos de pedra e tijolo. Estas materiais são suficientes para circundar o globo terrestre com um muro de dois metros e meio de altura e um metro de largura.
Com o passar dos séculos, a Muralha foi-se naturalmente delapidando. Nestes últimos anos, foi objecto de obras de restauro na busca do esplendor monumental de outrora.
O autocarro onde viajo chega a um grande parque de estacionamento já apinhado de automóveis. Estamos em Badaling, uma das muitas passagens estratégicas no sopé da montanha. Os torreões com ameias quadradas, as portas duplas com grossíssimos portões de madeira lembram-me as praças fortes e os nossos castelos em Portugal. Mas aqui tudo é maior, mais pesado, os muros mais espessos e aparentemente intransponíveis. A Grande Muralha trepa em curvas para ambos os lados, o troço para a esquerda parece-me mais difícil de subir com uma inclinação muito acentuada, por vezes quase a pique. Decido subir por aí.
Há centenas e centenas de chineses espalhados por toda a parte. A maioria trepa como eu, alguns já vêm na caminhada de regresso. A visita à Muralha faz parte das excursões domingueiras de habitantes de Pequim e sobretudo de gentes vindas de outras regiões da China. Há famílias inteiras que trouxeram o farnel e vão merendar daqui a pouco. De resto, a escalada é óptima para abrir o apetite.
Subo, subo e o horizonte é cada vez mais vasto, a Muralha estende-se no seu serpentear abrupto, com curvas e ângulos inesperados. Este lugar faz a delícias dos fotógrafos e eu sigo o exemplo dos chineses que não param de se fotografar e escolho os melhores enquadramentos para disparar a minha máquina.
A ascensão é cada vez mais difícil, preciso de me agarrar ao corrimão lateral de ferro porque é real o perigo de escorregar e deslizar uns bons metros nas lajes de pedra. Imagino como não devia ser nada fácil o movimento de soldados e mercadorias neste troço. O torreão mais alto que domina todo o sector encontra-se agora mais próximo. Em mim, uma enorme caloraça, e quantos rostos afogueados à minha volta!
Estou a mais de mil metros de altitude, para baixo, na distância, tudo começa a desvanecer-se, vejo os autocarros e automóveis muito pequeninos no fundo da nervura do vale, em Badaling. Alcanço o topo do torreão e sinto a alegria que creio experimentarem os alpinistas após a escalada de um pico difícil. Adivinho um ar cansado mas satisfeito nesta gente toda que não pára de subir e descer, acredito que o meu sentir é compartilhado por muitas mais pessoas.
Permaneço longo tempo sentado nas ameias, no alto da montanha, enchendo os pulmões de ar puro, retratando com os olhos os homens e a paisagem. Fantástica, a China!
Descer a Grande Muralha será bem mais fácil do que subi-la, de resto “a descer todos os santos ajudam”. Como na China parece não existirem santos iguais aos nossos, não sei quem me levou a dar um valente trambolhão que me deixou o fundo das costas bastante maltratado. A culpa terá sido dos meus sapatos de sola lisa que deslizaram como patins nas pedras polidas.
Cá em baixo havia um excelente almoço à minha espera e depois foi o regresso a Pequim, com o trânsito praticamente paralisado. Um grande engarrafamento manteve-nos parados durante quase duas horas, carros para cima, mais carros e camionetas para baixo, tudo enviesado na estrada, atravancado e parado. À frente do nosso autocarro estava uma camioneta carregada de batatas, impedida tal como nós de avançar ou recuar. Porque a resolução do engarrafamento estava demorada, as pessoas passeavam-se fora dos carros. Fui até à grande carripana das batatas que não estavam metidas em sacos mas empilhadas a monte na caixa do veículo. Em cima das batatas sentavam-se três camponeses de meia idade.
Com a curiosidade e o gosto muito português de ver as coisas não só com os olhos mas também com as mãos, alcei a mão sobre o taipal da camioneta e peguei numa enorme batata. Mirei e apalpei. Era muito redonda, branca, de boa qualidade. Quando quis voltar a pôr a batata na camioneta, os camponeses, que não tinham tirado os olhos de mim e sorriam, não autorizaram. Já que tinha demonstrado tanto interesse pelos tubérculos, eles ofereciam-me não só aquela batata mas umas quantas mais. Foi difícil explicar-lhes na meia dúzia de palavras chinesas que conheço que, muito obrigado, mas eu só queria ver como eram as batatas. Eles insistiam na oferta e eu, delicadamente, agradeci e voltei ao autocarro. No regresso a Pequim, pensei mais maduramente no assunto. Será que os simpáticos camponeses ficaram ofendidos por eu ter recusado as batatas? Não teria sido mais correcto aceitar os tubérculos e, de volta a casa, fazer um jantarinho com batatas acabadas de chegar da Grande Muralha da China?

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