Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? 10. A empregada do bar * Por José Drummond [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]uarenta e cinco minutos e muitas bebidas depois, levantas-te. Dispersas-te até à varanda do bar e inclinas-te contra uma parede. Acendes um cigarro. Está abafado. Apesar disso tens um blusão de cabedal vestido sobre uma camisa preta. És um homem não muito alto e magro. Quando fumas dá ideia de que estás ainda mais perdido. Imagino que muitas vezes as tuas noites sejam completadas com prostitutas ou mulheres desesperadas e que tu entediado as permitas preencher os seus desejos. Não que me ache desesperada. Mas se calhar estou. Se calhar estamos todos. És um homem que, como defesa, irás ferir mais os outros do que curar as tuas feridas. Como se as tuas feridas se alimentassem das feridas que infliges. Como se essas feridas fossem a razão da tua existência. Sopras uma nuvem de fumo no ar e vejo-te em profundo suspiro. Vou ter contigo. Sorrio. Mas tu não me vês. Sorrio de novo. Nervosamente. Passando com a mão pelo meu longo cabelo preto que hoje está mais rebelde. Finalmente olhas para mim e é como se o tempo parasse. Sem que me dê realmente conta da sequência acabo no teu quarto. Um quarto confuso e desarrumado que espelha bem aquilo que sinto passar-se na tua cabeça. As tuas intenções são claras quando me agarras e me empurras para a cama. Tínhamos acabado de chegar, e, como que apanhado no rodopio da tua própria confusão, paras. Por um momento ficas imóvel como se não soubesses o que fazer de seguida. Tomo eu conta da situação e rapidamente liberto-me da minha camisa, expondo parte dos meus seios por entre as rendas do meu sutiã. Os teus olhos mudam de expressão, como que em surpresa pelo meu movimento rápido. Lanças-te na cama, cativado pelo inchaço dos meus seios, mal contidos no sutiã. Sem falar aproximas-te de mim e olhas-me profundamente nos meus olhos cor de avelã. Deixo os teus dedos frios acariciar o meu rosto. Os nossos lábios encontram-se, e tu, mordes-me gentilmente o lábio inferior. Sinto o sangue a fervilhar e não resisto ao impulso de te empurrar de leve e rodopiar sobre ti. Agarras a parte de trás da minha cabeça e puxas-me para ainda mais junto. Com dedos ágeis soltas-me o sutiã, deixando-o cair no chão. Os meus mamilos roçam endurecidos contra a tua camisa. Os teus lábios quentes beijam-me. Sinto o hálito a whisky e tabaco a inundar-me a boca. Os teus dedos acariciam-me os seios e descem lentamente até às minhas ancas. Sussurras que a minha pele macia e quente te está a pôr louco. Os teus lábios descem ao longo do meu pescoço e em modo animalesco voltas a rodopiar assumindo de novo a posição de topo. Eu tento empurrar-te em falso porque quero que me agarres ainda com mais força. Os teus dedos prosseguem de modo livre o reconhecimento do meu corpo. Solto um pequeno gemido e não consigo resistir à vontade de te desapertar a camisa e arranhar-te as costas. A tua boca desenha um círculo à volta do meu mamilo direito antes de o chupar fazendo-me gemer ainda mais. A minha mente está num sentido permanente de rebelião. Preciso disto. Preciso tanto disto. As tuas mãos não param e retiram-me a saia fazendo com que me contorça até aos tornozelos. As minhas cuecas rosa estão húmidas, e grito quando as tuas mãos acariciam delicadamente o clítoris. Vejo-te sorrir levemente. Pela primeira vez tens outra expressão e toda a tua dor parece momentaneamente esquecida. Observas-me a gemer. Voltas a beijar-me enquanto nos libertamos da roupa restante. A tua erecção está no auge, pressionando firmemente contra o meu corpo. As minhas mãos empurram-te um pouco até que te agarro o pénis. Sinto-o na minha mão a pulsar violentamente. Dirijo-o para o ponto certo. Mordes-me a língua com força quando me penetras. Começas a apertar-me o pescoço. Não consigo respirar. Não consigo gemer. Não consigo fazer nada. Os teus olhos são agora de um animal. Estou perto do clímax quando subitamente te retiras. Olho para ti confusa. Mas essa confusão dissipa-se quando me voltas a penetrar. Choramingo. Recomeças cuidadoso e lento mas, de repente, sinto -te ofegante a aumentar o ritmo, sorrindo, como um louco, sem retirar as tuas mãos do meu pescoço. É neste momento que tudo se torna vago e perco os sentidos… Dou comigo a abrir os olhos. Estás a olhar para mim. Choras. Como secar uma face cheia de lágrimas? Não sei quanto tempo estive inconsciente. Sinto uma dor na cabeça. As constelações impávidas que antes observei na varanda estão agora esquecidas. Os teus olhos não são duas luas cheias. Leio culpa nos teus olhos. Uma mulher sabe quando um homem olha nos seus olhos e vê outra pessoa. Tu tens problemas. És complicado como a maior parte das pessoas. Uma pessoa difícil de conhecer, de saber o que se passa no teu interior. Sinto os teus sentimentos como um turbilhão com imensas coisas. Ingredientes estragados de um qualquer prato amargo. Não é amor. Tu és o tipo de homem que magoa as pessoas, que as parte, que as danifica. És o tipo de homem do qual as mulheres devem ficar afastadas. Percebo que tudo foi um erro. Quero-me ir embora. Quero-me levantar. Não consigo. Não me consigo mexer.
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasDois filmes peculiares, Shirley und Victoria [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]hirley Visions of Reality, 2013, de Gustav Deutsch, é peculiar a vários níveis. O seu programa consiste na animação, lenta, de um grupo de 13 quadros de Edward Hopper. A partir de cada um deles o realizador inventou uma ficção que rodeou de apontamentos históricos de época, desde os anos 30 aos anos 60, e que no seu conjunto contam uma história atraente sobre uma mulher determinada. Uma peça de teatro para dizer a verdade – porque esta mulher é uma actriz de teatro. A introdução de uma dose significativa, num texto que não é muito extenso, de aspectos políticos, como referências à Guerra do Vietname ou às famosas delações de Elia Kazan, poderá chocar alguns puristas mas constitui uma adição enriquecedora a quem não se deixar prender por parvoíces. A outra peculiaridade, que é a mais impressionante e a que marca verdadeiramente o filme como um objecto fora do vulgar é o seu aspecto visual – um conjunto de quadros, feitos em estúdio, em que o cenário e as figuras têm uma textura impressionantemente pictórica. Por isso é que estas são visões, visões da realidade que Deustche constrói. Não sendo particularmente sensível à melancolia americana de Hopper, parece-me que prefiro a de Deutsche. Neles construiu-se um desenho cheio, de contornos muito bem definidos (mais do que os quadros de Hopper) que fazem lembrar a banda desenhada de linha clara e cores fortes, especialmente atraentes no efeito que a luz do sol imprime nos objectos dos vários lugares imaginados (vários deles quartos, lugares de trânsito e sonho). Se se insiste na descrição do desenho é porque esta é a especialidade que marca o filme, muito mais que a sua mecânica narrativa, e é ela que ficará para sempre na memória e na história. Shirley é um filme de actriz e a sensualidade e o calor rigoroso dos quadros de Hopper transpõem-se perfeitamente para a figura de Stephanie Cumming, muito bonita, quente mas com a determinação e firmeza de uma mulher com convicções fortes. Não há muito falou-se aqui de alguns filmes que se relacionam com pintores ou quadros, como sejam Caravaggio, de Derek Jarman, The Mill and the Cross, de Lech Majewski e Mr. Turner, de Mike Leigh e este filme de Gustav Deutsche, mais um filme de um austríaco de que se fala aqui, pode ser visto pensando naqueles e nos modos como o cinema pode falar da pintura (mais do que propriamente sobre os pintores, no fundo muito menos importantes que aquilo que fica). O que Shirley nos dá é, para além do efeito de novidade, a parte que tem que ver com o cinema, que é muito mais intensa que nos outros filmes que em cima se referem, muito mais que no filme de Lech Majewski (de 2011) que segue uma vontade que por vezes se assemelha a este. Victoria, 2015, de Sebastian Schipper, figura junto de Shirley porque vem igualmente acompanhado de uma curiosidade técnica, esta a de ter sido todo filmado num take de 138 minutos na madrugada de 27 de Abril de 2014 (Russian Ark, de Sokurov, tem 96 minutos e o filme iraniano de 2013 Fish and the Cat, de Shahram Mokri, tem 134. Há outros). Victoria passa-se durante parte de uma noite, uma concentração que notara num outro filme de interesse médio que também se prende com marginalidade e que foi há pouco aqui revisto, Catch me Daddy, de Daniel Wolfe. Para criar algum desconforto pode pensar-se igualmente em Kinatay, de B. Mendoza, que acompanha uma inquietante (e sangrenta) viagem perto de Manila e que termina igualmente de madrugada. Victoria, como o filme de Wolfe e Shirley giram em torno de uma mulher e os dois que aqui se apresentam são realizados por autores de origem germânica, austríaco o primeiro e alemão o segundo. O de Schipper parte da possibilidade de uma fragilidade, a fragilidade de Victoria, uma rapariga espanhola embriagada que não fala alemão e que se vê imersa em aspectos negros da noite berlinense. É um filme sobre Berlim, um filme sobre um aspecto da cidade, à noite, conduzida por um grupo de “verdadeiros” berlinenses – de Berlim Oriental. Seria interessante perceber a que outra Berlim, menos verdadeira, é que esta visão se opõe. O que se transforma é o tipo de fragilidades que encontramos ao longo da noite e o que parecia ser apenas uma noite de crime transforma-se numa vinheta comovente sobre a amizade e a fragilidade de quase todos os intervenientes numa dose suficiente de amargura e ingenuidade. No fim, fica a impressão que com as câmaras de hoje a euforia que se criou em redor do filme de Sokurov, de 2002, deixou de ter razão de ser. Por que não filmar em apenas um take e, como aqui acontece, com diálogos em grande parte improvisados? Já não parece um empreendimento tão difícil. Isto pode ser entendido como um elogio (porque no filme de Schipper não se nota nenhuma linha forçada de continuidade) ou uma leve desconsideração (porque afinal não é um problema técnico assim tão difícil de superar, as maiores dificuldades situando-se certamente a nível da manutenção de uniformidade a nível da iluminação e da cor e da organização das massas). Victoria vem provar mais que este é um processo a ser seguido (e se não for num take poderia ser em 2 ou 3 ou 4 como o autor considerou fazer enquanto plano B) do que vem provar que este é um grande acontecimento técnico. É difícil falar de Victoria sem rodar em torno da sua proeza técnica mas que isso não faça esquecer que tem qualidades a nível da firmeza do desenho da sua protagonista, da cidade de Berlim e dos seus habitantes que justificam a sua visionação. Aproveite-se este filme numa altura em que pouco de interessante parece vir da Alemanha em termos de filmes de larga circulação.
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias MancheteNa apresentação de Li Bai – A poesia é o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada Intervenção inédita de Natália Correia sobre o poeta Li Bai (701-762) e a poesia clássica chinesa, na apresentação dos Poemas de Li Bai, trad. António Graça de Abreu, na Missão de Macau em Lisboa, a 6 de Julho de 1990 [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ui convidada para dizer algumas palavras sobre Li Bai, mas eu não sou especialista em literatura chinesa, sou uma pessoa curiosa como qualquer poeta, e mais nada. Li na imprensa que vinha aqui fazer uma palestra sobre o poeta Li Bai, imaginoso exagero que me força a esclarecer que as palavras sobre esse magnífico anjo abolido da poesia chinesa, as palavras que ouvireis, nem de longe, nem de perto têm uma dimensão palestrante. Feito este esclarecimento que me iliba da precariedade do meu discurso, começo por lamentar que a actividade editorial portuguesa não venha acompanhando a larga difusão que editoras estrangeiras, nomeadamente em Inglaterra, têm dado à literatura chinesa, lacuna porventura ou certamente causada pelo velho fantasma da exiguidade de recursos económicos — para não dizer a palavra exacta que é miserabilismo —, que ensombra a nossa cultura. Contudo, em boa hora desta omissão nos vem ressalvar o Instituto Cultural de Macau, dando-nos a conhecer através da excelente tradução acompanhada de valioso prefácio e notas, de António Graça de Abreu, a poesia de Li Bai. Este poeta é considerado pelo seu tradutor “talvez” o maior poeta da China. A reserva do “talvez” não será alheia ao reconhecimento do génio de outro poeta, Du Fu, coevo de Li Bai no século VIII, ao tempo da dinastia Tang, período de “ouro” da poesia chinesa, florescendo num universo de paixões, refinamentos e extravagâncias que atingiu a perfeição numa produtividade espantosa. A China bem se podia orgulhar de possuir este extraordinário património poético quando o pensamento europeu obscuramente ruminava aristotelismos ou devocionismos agustinianos à volta de sentenças patrológicas. Mas não me cabe aqui dilatar conhecimentos em que não passo de modesta amadora, e que são da área de António Graça de Abreu a quem já devíamos, de resto, o grande préstimo cultural de dar a conhecer, por iniciativa do Instituto Cultural de Macau, a peça de Wang Shifu “O Pavilhão do Ocidente” que também nos convida à humildade de reconhecer que já no século XIII o teatro era um património da cultura chinesa quando na Europa germinava em dramas litúrgicos, tutelados pela igreja. Não resisto a realçar na poesia de Li Bai, esse grande poeta chinês, dois aspectos que algo têm a ver com a nossa literatura. O primeiro constitui um traço importante da poética chinesa enaltecendo como valor supremo da poesia a brevidade, valorizá-la-á mais pelo que sugere do que pelo que diz. A quadra tem assim um relevo muito significativo no discurso poético chinês, pois que cessando a palavra por imposição da economia formal, o sentido prossegue. Ora é de assinalar que esta valorização da quadra dentro do conceito do “pouco que diz muito” é idêntico ao critério que na nossa poética popular elege a estância de quatro versos, a redondilha menor, como a quinta essência da expressão lírica conceptualista e satírica, ou seja, tudo aquilo que realmente traduz o génio português, Um elemento que a sabedoria popular agrega ao valor da quadra é o dom de a improvisar. Do repentismo de Li Bai nos dá notícia o seu tradutor que nos informa que as quadras breves de cinco caracteres por verso eram improvisadas pelo poeta, sendo só depois passadas ao papel. Outro aspecto incide sobre Fernando Pessoa, sobretudo na sua hipóstase Alberto Caeiro. Observa com justeza António Graça de Abreu que este verso de Pessoa, enquanto Caeiro “a vida é sombra que passa sobre um rio” podia ser da autoria de Li Bai. Assim é. E direi mais, a identificação entre a temática da perenidade da sábia natureza e da fugacidade da vida no lirismo de Li Bai, e a tópica que caracteriza a poesia do heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro, mesmo a de Ricardo Reis, pode ser reduzida a este principio taoista “se queres conhecer o Tao, expulsa de ti o teu pensamento, tal como a serpente larga a sua pele.” É o que por outras palavras Caeiro nos diz “compreendi isto com os olhos, não com o pensamento.” Ora neste apelo ao outro compreender que o pensamento interdita, seria de estimar o vinho como desorganizador da máquina pensante. Li Bai – outro paralelo com Fernando Pessoa que era beberrão –, junta assim à glória de astro da poesia chinesa, a fama de emérito beberrão. Fama e proveito pois que na sua errática biografia são pitorescamente frequentes as bebedeiras que o poeta translada, de forma encomiástica, para os seus versos. E nisto, repelindo o moralismo confuciano como muito bem acentua António Graça de Abreu, o poeta Li Bai prossegue na senda da poesia dos taoistas em que anteriormente brilha entre os sete Sábios do Bosque de Bambus o amante do vinho Liu Ling, numa busca da evasão que liberta o espírito dos entraves da visão racional. O fundador do espírito da poética moderna, Arthur Rimbaud, far-se-á eco, sem o assumir, sem o conscencializar, desta conexão da embriaguez e do olhar poético ao dizer “Proceda-se ao desregramento dos sentidos para atingir o desconhecido.” A prática poética do surrealismo que em Portugal foi uma cumeada da poesia das últimas décadas seguiu esse princípio criador do desconcerto dos sentidos que, libertando a imaginação, a investe de plenos poderes. Por fim uma importantíssima e pouco conhecida identidade nos alvores do nosso lirismo, nas Cantigas de Amigo, as paralelísticas, com as poesias chinesas do Shi Jing, o clássico Livro das Odes. O processo rítmico é idêntico e para a semelhança ser perfeita ambas executavam-se por coros alternados. Nas poesias do Shi Jing, tal como nas Cantigas de Amigo, a voz era dada à mulher. Prova-o este poema traduzido para o francês por Marcel Granet: “Oh, tu, senhor de belo rosto, que me esperavas na rua, ai de mim, não te segui… Oh, tu, senhor bem talhado, que me esperavas na sala, ai de mim, não te segui… Compare-se com esta cantiga que Pêro Gonçalves Portocarrero pôs na boca da amiga, como era habitual nas cantigas de mulheres do nosso lirismo medieval, visto que não faziam mais do que reproduzir temas arcaicos, uma poesia arcaica em que era a mulher quem compunha as poesias. Os trovadores eram muito gentis com as damas, como se sabe, de maneira que lhes faziam essa homenagem. Eis, portanto a poesia comparada: O anel do meu amigo perdi-o sob o verde pino e choro, eu, bela. O anel do meu amado perdi-o sob o verde ramo e choro, eu, bela. O facto de uma poesia semelhante à nossa Cantiga de Amigo paralelística ter aparecido na China alguns séculos antes de Cristo tem causado perplexidade aos historiadores, aos investigadores dos cancioneiros medievais. Atenua-se porém essa perplexidade se averiguarmos, como eu averiguei em porfiados estudos, que a nossa cantiga paralelística tem remotas origens, o que é confirmado por Theodore Frinz que enriqueceu os estudos desse lirismo demonstrando que a cantiga feminina é o género lírico mais arcaico com que deparamos nas mais diversas culturas. Pergunto: Um ponto comum, esse perdido ponto do espírito? Um horizonte de poetas, uma desaparecida unidade, todos os povos despedaçados por catástrofes e guerras? A poesia tem direito a admitir que é sua vocação unir o que está separado. E a própria realidade histórica que vivemos nestes dias de aceleradas mudanças aconselha-nos, a nós ocidentais, que abdiquemos desse logocentrismo, dessa encapotada transferência do moribundo imperialismo histórico para o imperialismo do pensamento ocidental que tem dado frutos aberrantes. Vou citar só um. Recordarei o conceito de primitivo adoptado por Lévy Bruhl, nomeadamente no seu livro As Funções Mentais nas Sociedades Inferiores. Pois bem, esse pilar das teorias sobre a mentalidade primitiva tratou, por assim dizer, como primitivos e inferiores todos os antigos povos extra-europeus, incluindo nestes os chineses e japoneses. Importa pois varrer, de uma vez para sempre, das mentes europeias os resíduos deste dasaforado logocentrismo que até se metamorfoseia agora na inculcação de modelos políticos em territórios culturais a que eles são espúrios. O mesmo é dizer que devemos acolher as mensagens de outras culturas como uma dádiva feita ao universalismo que se alimenta de diversidades culturais, políticas e civilizacionais. É dentro deste espírito que deve iluminar todas as nações que saúdo o Instituto Cultural de Macau e o António Graça de Abreu por revelarem aos portugueses os Poemas de Li Bai, expoente da poesia dessa China que, passando por enigmática, nela, poesia, mostra a sua alma, porque a poesia é isso mesmo, o lugar do espírito onde a alma dos povos tem a sua morada. Lisboa, 6 de Julho de 1990 Por Natália Correia
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUma canção de gesta [dropcap style=’circle’]P[/dropcap]rimavera sabe a jograis e a mesteirais, a esta saga épica passada entre florestas europeias para ser cantada contra pagãos e muçulmanos a «Canção de Rolando» mais «El Cid o Campeador». A épica medieval sabe-nos sempre a flor de laranjeira e a frutos silvestres no tempo da “flor”. É bonita a ideia de canção, esta noção de que o poema é canto, ritmo e dança, combate, barca que abarca amantes no tempo gentil das cotovias, pois que ninguém vem a terreiro nos mosteiros que têm nome de Rosa nos Invernos duros, dado que aí brilham as sombras e as cinzas que vão também dar origem aos fertilizantes das «Coitas de Amor» fazendo parte da iniciação e do renascimento como um antigo culto Eleusino… Aqui estamos entre cavaleiros, homens de façanhas, servindo causas e combatendo bem ao jeito do belo livro de Sampaio Bruno «Os Cavaleiros do Amor». Numa época em que tudo avança desgovernadamente para uma reabilitação muçulmana, são estes cavaleiros, quase, uma doce memória… a Estação presente agudiza-nos estas temáticas, já que foram estes os Cantares que nos trouxeram até ao que somos e podemos vir a perder. Nós já não dimensionamos o Canto, nem o poema de agora, esse longo fonema, o deseja reabilitar, a nossa acústica está morta para o despertar dos longos encantos. Não há nada que nos sugira um sopro mais abrangente do que a nossa pequena evocação de entes perdidos entre muitos, nem o «Amor Cortês» está valorizado no seu mais nobre apelo de “courtoisie” um enamoramento da exaltação do romance na sua fórmula literária, nem tão pouco a delicadeza idílica parece uma suave explicação… Todos estes estilos se narram em paralelo numa muito feliz manifestação a que até hoje não somos indiferentes e tudo devemos de civilizado: amar, saber amar, era uma disciplina como outra qualquer, há seres com vocação, outros não: saber produzir estímulos será mais uma matéria Pavloviana. Efectivamente estamos num universo em que a noção sexualizante não era marcante, mas sim, o namoro, o desejo, a excelsitude do sentimento como força maior. O resto devia ser um segredo dos amantes. Nós que estamos atentos, entendemos por que é que o poema dura. Estamos na Primavera e longe andam os madrigais e esta «Coita de Amor» que quase nos parece “coito de amor” tal a simbiose fonética onde só o género muda, porém — coita — sofrimento amoroso, cantiga de amor, são os seus sinónimos, esta estrutura, este encaminhamento, e também organização emocional, são as bases da nossa natureza onírica que herdamos e não sabemos desvincular-nos, mesmo que queiramos ser outra coisa, por vários imperativos da vontade encontramo-nos nos “nichos” destes temas, agora tão floridos como outrora. Com o passar dos séculos estas estruturas ritualísticos pareceram-nos cada vez mais ténues, também é certo, quase mesmo, rasuradas, num clima de laicidade tamanha, qual “natureza-morta” cheia de frutos e troféus de caça, mas sem a seiva deste imenso legado: onde estivemos mais perto foi sem dúvida no 25 de Abril que é o grande «Cantar de Gesta» ressurgido, farto e pleno como a germinal Primavera. Muito mais que a queda de um regime, sim! Ali naquele espaço de tempo concentrámos todos os mitos, todas as heranças mais gentis, todo o legado mais civilizador e o amplo amor contido que se fez em todos carne e fruto. Os regimes pouco interessam quando temos a sorte de viver numa vida o conteúdo do melhor de uma Civilização. Sim, e cantámos, e houve Cânticos, e amámos, e houve seiva, e sonhámos, e éramos Gente, e as flores não nos deixavam… Quase digo adeus neste silêncio de barcas naufragadas a esse Touro bendito de escarlate vivo, e a tanta robustez sadia e boa. Todo este canto da «Canção de Gesta» nasce também da singularidade da cultura celta e do mito bretão: da Candelária até à Páscoa assistimos à morte de Artur e só depois ao enamoramento seguido de cópulas festivas, que estão absolutamente inseridas no contexto vibrante do momento. Nós tivemos tanta sorte que tivemos um Maia… nós somos o mito bretão numa alvorada redentora. Camões soube como nenhum esclarecer a boa chegada com sensibilidade medieval, e fê-lo com graça e ainda muito terreno livre para espraiar estes cânticos; campos que se estendem com verdura bela… Há poemas célticos que deviam ser gravados nas rochas… e nem uma folha de carvalho se perdeu em Yeats seu descendente directo. Não raro existe ainda um Mago Merlim viajante nos caminhos por onde passamos procurando o jovem amante, talvez ele se tenha transformado em mago e seja o mesmo em outro tempo. Por cá, fazia Afonso X as Cantigas de Santa Maria e a Primavera chegava para todos como se fosse afinal o verdadeiro Messias, o Cálice Sagrado, a nossa formosa vitória que tinha de ser servida rapidamente antes de tudo abrasar. As Primaveras hoje são árabes e também designam a libertação. Nós suavemente não temos Cânticos que nos retornem à vida dado que o amor nos abandonou (não compreendendo bem o porquê de uma tal desdita) pois não é por amor que as coisas se escrevem: acho que escrevemos para esconjurar o medo. A última grande Primavera foi a última vez que ouvimos a Canção de Gesta sobre a forma de retorno — a Primavera árabe — que tal como nós, algures, despontaram na grande alvorada do tempo. Se estivermos no meio de uma tormenta e a Primavera se for, talvez cantando, todos juntos, possamos trazer à praça do mundo outra realidade, de novo em Abril, e claro, Abril um mês em que se ensaiam os cantares de todos em volta, o mundo em volta chilreia, é uma ave que dança, um céu que acasala, um bosque que busca, e em buscando nos bebe como as coisas mais bonitas. Neste instante somos água correndo nas intempestivas chuvas do mês como lágrimas de uma fonte orgânica carregada de densas fomes, podem mesmo crescer-nos flores entre os cabelos, raízes no peito e ainda escutar um sussurrante Lancelot convidar-nos para a montaria entre um soberbo céu e um pasto verdejante. Como se um a um, os sentidos se organizassem, e todos juntos cantassem de novo um Hino de Vida tão distante… que a própria Primavera se nos consubstancia como um registo da eternidade. E se amor é assim, um duplo instinto melhorado, a Cultura que ele erigiu, fez-nos tão raros, que seria desassossego e praga esquecermo-nos das suas memórias neste momento. Mas lembro-me agora deste verso de Tagore «No Coração da Primavera». Noite de Abril. A lâmpada arde neste meu quarto Que a brisa do Sul Enche suavemente O meu vestido é azul como o pescoço de um pavão, E o manto verde como a erva nova. Sentada no chão, perto da janela, olho a rua deserta…. Passa a noite escura e não me esqueço de cantar: – Sou eu, caminhante sem esperança. sou eu.
António Conceição Júnior Contos e histórias h | Artes, Letras e IdeiasA bica de duas bocas [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]brisa marinha é sempre diversa. Com ela vem o sussurrar da proa, apartando as águas, e o ranger da madeira e do cordame que segura as velas enfunadas pelo vento. Os ouvidos e a experiência ditavam a rota no escuro da noite. Wong Siu Ieng, deitada no convés, já há muito deixara de sentir a maresia e o cheiro do peixe. Olhava o céu. A seu lado, Lai dormia a sono solto. Estavam no convés, em baixo fazia demasiado calor. Olhando as estrelas não encontrava as da sua aldeia. A memória era vaga, curta. Lembrava-se que dormia na barraca palafita quando uma vozearia estalou e, subitamente, agarrada por braços poderosos e coberta por um grande lenço foi levada para um baloiçante bote, enquanto outras vozes chorosas se lhe juntaram. Após curta viagem, ainda coberta, foi içada para uma amurada de onde a levaram. Ainda ouviu tiros e o estalar do fogo nos bambus. Era a sua aldeia, pensou. Depois, um vazio de memória, um breu como o da noite que atravessava. Lembrava-se de uma pequena praia onde, à vez, fundeavam juncos e onde contemplava, à distância, um perfil longínquo, habitado. Numa gruta, ao fundo da pequena praia, tinha o seu catre. Aí aprendera a manejar facas e espingardas. Os homens davam ordens, mandavam cozinhar peixe e arroz. Por vezes havia carne de porco ou galinha. Descobrira a existência de outras grutas, fendas na rocha banhadas pelas águas do rio. A maioria das outras crianças não crescera com ela. Por razões que desconhecia, fora adoptada por Lai Ma (mãe Lai) que, de cartucheiras à cintura mandava nos homens. Lai Chói Sán (Lai Montanha de Fortuna) tomara-a sob sua custódia e assim crescera. Os homens murmuravam que Lai Ma, ainda adolescente, tinha sido abusada por um bando e, como vingança, se tornara pirata, usando os seus homens quando a ela lhe apetecia, que era seca do útero. Talvez por isso a tivesse adoptado. “Wei”, sussurrou a sentinela, “estamos a chegar!”. Wong Siu Ieng interrompeu os pensamentos. Com os outros, levantou-se, pegou mecanicamente na espingarda, afivelou a cartucheira e dois tanka foram descidos. Primeiro desceram os homens, depois Lai Ma e Wong Siu Ieng. O junco seguiu caminho. O azul nascia no horizonte e aos poucos os olhos foram-se habituando. Estavam na nesga de rio de onde se acedia ao templo de Avalokiteshvara Kun Iam. Meteram-se os oito por uma rua traseira que dava para a vila de Coloane. Esgueiraram-se para dentro de uma casa na Rua do Meio. Bastou um toque no portal para, do outro lado, se ouvir a tranca de madeira correr. Entraram para um pátio cheio de plantas, seguindo por um curto caminho de pedra que dava acesso à casa de tijolo cinzento que despertava com o raiar do dia. Lao Wing Man mandou servir canja numa enorme mesa redonda de tampo metálico. Os convivas, em silêncio, sorveram a sopa e comeram vorazmente o que traziam, fosse soi kau ou nabo frito. De quando em vez, olhavam para fora, o pé marítimo em cima do banco. Lao Wing Man, reclinado, fumava ópio. De olhos semicerrados, esperava que acabassem o pequeno almoço. Lai Ma limpou os lábios com as costas da mão, pulso ornado de pulseira de jade e boca de dentes de ouro, e levantou-se. “Tim-a Lao Sôk?” (então tio Lao?), interrogou a mulher pirata, dirigindo-se ao velho que lhe respondeu com um sorriso desdentado, lançando uma baforada de fumo: “Sempre o mesmo”. Virou-se e chamou A-Weng. O empregado curvou-se. “Traz as coisas”, disse o velho. A-Weng dirigiu-se a outro compartimento fora do olhar dos visitantes e voltou, entregando a Lao um conjunto de envelopes chineses e uma cesta de vime. Lai Ma tirou de um dos envelopes notas enormes que verificou. Abriu a cesta de vime e espreitou para um montão de moedas. “Muito bem, Lao Sôk, bom trabalho. Ficas com as moedas” disse a mulher, perguntando de seguida “todos pagaram?”. O velho riu-se. “Claro, eles sabem que tem de ser assim” disse com a forma arrastada de quem quer, à maneira cantonense, vincar uma afirmação. Lai Ma virou-se para o grupo, mas dirigiu-se à rapariga. “A-Ieng, vamos dar uma volta. Traz o incenso”. Tirou os sapatos e ficou com o aspecto indistinguível de uma pescadora, pés chatos habituados a agarrar a teca do junco. Wong Sio Ieng desfez-se também da cartucheira, alisou a cabaia curta, manteve os sapatos de pano e ei-las, decididas, a encaminharem-se para o portão. Saíram de mãos dadas, os pauzinhos de incenso na mão e, na roupa interior, um bolso com sapecas. Caminharam sorridentes, seguindo em frente, passando por um templo ocidental. A aldeia ganhava vida à medida que crescia o dia. Passaram para a beira rio, onde palafitas davam para um terreiro arredondado. No chão, peixes secavam com sal. Um cão ladrou quando se cruzaram com um soldado sonolento, saindo de uma das barracas, ainda abotoando a farda. No terreiro vazio, um pequeno altar no chão. Lai Ma acendeu o incenso, agachou-se e iniciou, muito baixo, uma cantilena em língua estranha, inspirando repetidas vezes enquanto balanceava o tronco para a frente e para trás. Depois, espetou os paus de incenso entre os outros e ergueu-se, levando A-Ieng consigo. Esta nunca se atrevera a perguntar o que tudo aquilo significava, para além da oração a um tou tei (deus do lugar). Tomaram o caminho de regresso à casa de Lao Wing Man. Lai Ma reuniu os oito à volta da mesa e, sorvendo chá, anunciou que nessa noite partiriam para Macau. Um olhar de espanto invadiu os restantes. “Mas… o que vamos fazer?”. Lai Chói Sán olhou para o que tinha feito a pergunta e, enigmaticamente, respondeu: “Retribuir…”. Recolheu-se a um catre, com Lao a dormir o sono do opiómano. Os outros também se acomodaram aqui e ali, preparando-se para a saída nocturna. À hora combinada, pelo mesmo caminho, regressaram ao junco, que contornou a ilha. Do grupo, quatro passaram para outra embarcação de pesca, devidamente registada, que ancorou no Porto Interior, já passava das nove da noite. Num bote, chegaram a terra. Por baixo das arcadas, dirigiram-se a um homem que fumava cachimbo de água. Lai Ma falou em hakka, o homem ergueu-se indolentemente e dirigiram-se para o templo de A-Ma. No largo, o homem entregou às duas mulheres um varão de bambu e duas cestas. Lai Ma entregou o tam kón a A-Ieng, que o poisou sobre as cestas, atando-o com cordas. Subiram a rampa do Quartel dos Mouros, cestos ao ombro, desafiando as autoridades ali estacionadas. Foram subindo a estrada de terra batida, falando em hakka. A-Ieng procurava discernir alguma palavra, olhando o sentinela barbudo, que pouca importância deu ao trio. Avançaram até ao fim do caminho, subiram e desceram outro, e ei-los chegados a um templo ocidental com uma escadaria. Viraram à esquerda e entraram num casinhoto. O homem acendeu uma lamparina de óleo. Havia apenas um catre e uma mesa. Ao fundo, uma banca, um fogareiro a carvão e um abano. “Kan Sôk (tio Kan), preciso de ir até I Long Hâu (bica de duas bocas)”. Aquilo era zona guardada por fei tchâu lou (africanos, landins), avisou o homem. Lai Chói Sán sabia disso, “há vinte e um anos mataram o meu homem em Lu Wan (Coloane)…”. E por aí se ficou. Kan Sôk, meditabundo, insistia que era muito perigoso. “A ousadia é sempre inesperada”, respondeu-lhe a mulher, olhando-o nos olhos. Acabou por concordar. Foram-se pelo escuro da noite. A manhã daquele dia de 1931 rompeu demasiado cedo. Junto à bica de duas bocas, na zona da Flora, ao pé do Palacete da Flora, residência de Verão do Governador, uma forte explosão acordou a cidade. Num raio de 300 metros tudo ficou destruído. Registaram-se 41 mortos. Às 5:35 da manhã, inexplicavelmente, trinta toneladas de pólvora explodiram. Muito se especulou sobre as verdadeiras causas deste terrível acidente, aventando-se até ter sido obra de pirataria. As autoridades porém, negaram. Nota do autor: este texto, embora baseado em factos e personagens reais, é inteiramente ficcionado.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO cerco das Feitorias e a queima do ópio Tal como nos dois anteriores artigos, que tratavam sobre os antecedentes da Guerra do Ópio, onde como figuras principais aparecem Charles Elliot, o superintendente do comércio inglês na China e o Comissário Imperial Lin Zexu, o texto hoje aqui publicado está também baseado no que Marques Pereira e Luís Gonzaga Gomes escreveram sobre o assunto. Mas conta agora com mais uma fonte, Montalto de Jesus, que só começou a apresentar este período, no seu Macau Histórico, no momento em que na última semana deixamos a história, o dia 18 de Março de 1839. Num édito com essa data, o Comissário Imperial Lin Zexu, na qualidade de Qin Chai Da Chen, ordenou que lhe fosse entregue sem demora todo o ópio existente em navios. Esta é uma das datas para o início da Primeira Guerra do Ópio. O mandarim Lin Zexu, que em 1836 advogara a proibição do ópio, foi apontado no dia 15 da décima primeira Lua do 18º ano do reinado de Daoguang (Dezembro de 1838, ou Janeiro de 1839) para o cargo de comissário imperial, quando o Imperador se decidira pela proibição do consumo e tráfico de ópio, “embora os funcionários de alfândega fossem todos contra esta drástica medida”, como refere Montalto. Sabendo-se a data, pelo calendário lunar, de quando em Pequim foi nomeado Lin Zexu como Comissário Imperial para em Cantão tratar com os europeus, esta, pelo calendário solar corresponderá a 3 de Janeiro de 1839, para Marques Pereira e Alfredo Gomes Dias, apesar de haver quem dê o dia 6 de Janeiro. Já quanto à chegada do comissário imperial a Cantão, não há dúvidas, foi a 10 de Março de 1839. “Investido de plenos poderes para esmagar o mal, este estadista, o alto comissário imperial Lin, primeiro despertou nos mandarins o seu sentido do dever. Compete-vos governar o povo! Julgar os seus crimes e aplicar-lhes os castigos. Deixai-me perguntar-vos, supondo que fôsseis chamados a julgar os , por que lei ou estatuto os julgaríeis? Num apelo eloquente à rainha Vitória, que se presume nunca chegou ao seu destino, Lin queixosamente expôs que nos caminhos do Céu não existe parcialidade, e não é permitida sanção para lesar os outros em proveito próprio. Foi proposto erradicar o mal com medidas concertadas: a China proibiria o uso do ópio e a Inglaterra suspenderia o seu cultivo e a sua manufactura. Ao justificar a atitude da China, Lin anunciou as medidas drásticas a serem postas em vigor, não fosse alegado como desculpa não ter sido feito um aviso prévio. No édito aos estrangeiros de todas as nações, Lin perguntou: Porque trazeis para o nosso país o ópio que não usais no vosso próprio país, com isso defraudando os homens dos seus bens e causando dano às suas vidas? Acho que com esta coisa tendes seduzido e enganado o povo da China durante dezenas de anos, e inúmeros são os tesouros indevidos que adquiristes. Ao proclamar as extremas penalidades da lei agora em vigor, Lin exortou os mercadores estrangeiros a entregar quanto ópio possuíssem, em troca do que o imperador lhes concederia grandes favores”, Montalto de Jesus. No entanto, Marques Pereira data a carta à Rainha Vitória em 2 de Fevereiro de 1840. Desde a chegada do Comissário Lin Zuxe, Charles Elliot optara por uma atitude resistente, mas a 18 de Março de 1839, por Édito, o Comissário Lin ordenou que lhe fosse entregue sem demora todo o ópio existente nos navios. O Capitão Elliot assim o fez, levando mais de vinte mil arcas, avaliadas em seis milhões de dólares e que se encontravam armazenadas nos cascos dos navios ao largo de Lintin. Cerco às feitorias No dia seguinte, 19 de Março, Lin Zexu (Lint-sih-siu) mandou o seu exército cercar as feitorias e proibiu todos os residentes estrangeiros de daí saírem, sendo por ordem do Vice-Rei de Cantão, dois dias depois, interceptada toda a correspondência com as feitorias. Elliot, vendo o caso mal parado, enviou a Macau uma nota datada de 22 de Março pedindo ao Governador a protecção dos residentes ingleses da cidade. Recebeu de Silveira Pinto a promessa dessa protecção, com excepção dos que estivessem comprometidos no tráfico proibido. Dois dias depois de estarem presos na feitoria, a 23, o Capitão Elliot resolveu ir juntar-se aos seus compatriotas encerrados no seu interior e assim, a 24 de Março atravessou o cerco e ficou também prisioneiro. Interessante é ler o que o Capitão Elliot escreveu ao Lorde Palmerston: “Se os meus sentimentos pessoais tivessem a menor influência nos assuntos importantes de natureza pública, segura e justamente diria que nenhum homem tem maior abominação pela desgraça deste tráfico forçado na costa da China do que o humilde indivíduo que assina este despacho. Vejo pouca diferença entre isto e a pirataria. Contudo, o peso de três milhões de libras esterlinas para o tesouro público da Índia sobrepôs-se a todas as outras considerações, embora fosse óbvio que, se não fosse pelo escoamento financeiro que o ópio impunha à China, o comércio externo prosperaria consideravelmente e a China estaria mais receptiva aos estrangeiros em geral.” A 25 de Março os negociantes estrangeiros detidos nas feitorias de Cantão prometeram, sob penhor de avultada quantia de dinheiro, nunca mais negociarem em ópio com súbdito algum do Imperador da China e Elliot, no cargo de chefe superintendente do comércio inglês na China desde 1836, pediu passaportes para se retirar com todos os residentes ingleses. As autoridades chinesas recusaram e exigiram a entrega de todo a ópio guardado nos navios de depósito, como Marques Pereira refere citando a Chronology of Affairs in China. No dia seguinte repetiu-se a intimação de Lin para a entrega de todo o ópio existente em Cantão e nos navios de depósito. O capitão Elliot publicou um edital ordenando a todos os ingleses, em nome de governo de sua majestade britânica, a imediata obediência à mesma intimação e declarando-se responsável pela menor falta no cumprimento dela. A 27 de Março, o Comissário Imperial chinês fez queimar publicamente 20 289 caixas de ópio, confiscadas aos ingleses, tendo supervisionado pessoalmente a sua destruição. A seguir, aos comerciantes apanhados com ópio, o comissário Lin fê-los prometer solenemente nunca mais importarem a droga. Mas, como Montalto refere, “apenas uma firma manteve a palavra até ao fim, Wetmore & Co., uma firma americana; e também por algum tempo, Dent & Co.. Entre o grupo de importadores estavam os fundadores da Jardine Matheson & Co., que em vinte anos tirou três milhões de libras esterlinas do tráfico de ópio em Cantão”. “No seu muito autoritário despacho de 13 de Abril de 1839, Elliot colocou todos os súbitos, barcos e bens ingleses em Macau sob a protecção portuguesa; e em troca, ofereceu todo o crédito pretendido para uma eficaz defesa da colónia e do porto da Taipa; para o equipamento de embarcações da guarda costeira e, caso necessário, para reforçar e prover a colónia através de apelo imediato a Manila, ficando as condições de qualquer assistência mutuamente prestada para serem ajustadas pelos respectivos governos, e sendo todos os súbditos ingleses em Macau postos sob as ordens do governador para este o desejasse, defenderem os direitos da coroa, das vidas e dos bens portugueses.” E continuando em Montalto, “O governador Silveira Pinto explicou, em resposta, como a sua muito especial posição lhe impunha o sagrado dever de observar uma estrita neutralidade”, reiterando a protecção às “vidas e bens dos súbitos ingleses, com a única excepção aos que estivessem relacionados com o proibido comércio do ópio.” “Elliot advogou então a anexação de Macau; no seu despacho a Lorde Palmerston, então secretário de Estado para os Assuntos Exteriores, datado de 6 de Maio de 1839, pretendeu ser a segurança de Macau de importância secundária para o governo português e de necessidade indispensável para os ingleses, particularmente nessa crise; e, consequentemente, exigiu disposições imediatas, quer para a cedência dos direitos portugueses em Macau quer para a eficaz defesa do local e a sua apropriação para uso inglês mediante uma convenção subsidiária. Urgia a necessidade de radicais reformas civis, militares e fiscais, de forma a tornar o lugar, no mínimo, um entreposto seguro, ou para lhe dar uma verdadeira utilidade como protecção; mas havia pouca esperança neste propósito enquanto Macau estivesse nas mãos dos portugueses”, Montalto de Jesus. Por Edital de 8 de Maio, o Vice-rei de Cantão decretou a pena de morte a quaisquer novas tentativas de introdução, uso, ou negócio de ópio e permitiu ao superintendente do comércio britânico e aos cônsules americano e holandês saírem das feitorias com todos os seus compatriotas, não devendo jamais tornar à China. A 24 de Maio saem de Cantão para Macau o superintendente do comércio britânico Elliot e todos os negociantes ingleses, com promessa escrita de nunca mais voltarem à China. Ingleses em Macau Lin Zexu a 3 de Junho de 1839 mandou queimar vinte e duas mil caixas de ópio em Humen, actualmente Dongguan, província de Guangdong, tendo tal durado até 25 desse mês. Mil caixas eram de origem turca e pertenciam aos mercadores americanos. O mandarim da Casa Branca enviara ainda no dia 31 de Maio, um Ofício ao Procurador de Macau para lhe mandar as listas do recenseamento da população desta cidade, mas como estas demoravam a serem entregues, a 9 de Junho voltou a expedir um outro, dizendo estranhar a demora. Montalto refere, “Num édito publicado em Chinsan, Lin, ao prevenir os portugueses dos perigos que corriam ao abrigar em Macau ladrões ingleses, alegorizou-os como pássaros que queriam possuir o ninho dos outros; e proibiu o fornecimento de provisões, assim como de mão-de-obra chinesa, aos residentes ingleses em Macau, em represália por não terem entregue um marinheiro inglês que assassinara um nativo em Kowloon”. Como nota deste episódio, o China Year Book de 1924 refere: “Esta questão secundária da recusa serve agora para explicar a causa imediata da guerra geralmente conhecida como Guerra do Ópio”. A esse acontecimento deu Marques Pereira mais detalhes dizendo que, em consequência do assassinato de Lin-uei-hi, por Edital de 15 de Agosto de 1839, o Vice-Rei de Cantão proibiu o fornecimento de qualquer espécie de alimentos aos ingleses residentes na China. “Aos portugueses e outros estrangeiros, que o édito tinha poupado, foi pedido que entregassem ao tso-tang uma lista das suas necessidades diárias, para fornecimento, dando a entender claramente que a proibição seria estritamente observada. Foram os pobres, infelizmente, quem sofreu em consequência da proibição, pois as provisões, ao serem escassas, tornavam-se cada vez mais caras; e entre os chineses, em particular, grassava uma horrível miséria. Lin exigia, agora, a expulsão dos ingleses de Macau; e tendo a ordem sido ignorada, ameaçou a colónia. Por entre um infernal barulho de gongos e da gritaria de uma população enfurecida, tropas chinesas, em número considerável, juntaram-se à volta das instalações inglesas, perto da Gruta de Camões, de onde foram repelidas por um destacamento da guarnição, comandado pelo próprio Silveira Pinto”, Montalto. Como o Governo de Macau anunciara a neutralidade na disputa entre a Inglaterra e a China, por conselho de Elliot, a 26 de Agosto todos os súbditos ingleses que residiam nesta cidade retiraram-se para Hong Kong. Em Cantão, as autoridades chinesas fizeram uma proclamação ao povo no último dia de Agosto, chamando-o às armas contra os ingleses.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasUma volta pela vida Às vezes estou aqui, irresoluta diante desta página, deambulando em torno de múltiplas ideias sobre as quais divagar um pouco, ou a pretexto da escrita, nelas fazer uma incursão um pouco mais ao fundo. A correr muitas outras em que já me debrucei só para o meu olhar, coisas que me vão escorrendo da alma para as teclas ou para folhas dispersas, pela emergência de dar um destino ao silêncio que me apetece, mas que nunca se esvazia de palavras. Como eu gostaria tanto, às vezes. Não que tenham necessariamente um sentido importante. Mas sobram-me. Não as quero. Não a estagnar e a reboarem-me na alma, cada uma a produzir dúvidas e afirmações. Demasiada actividade. Como se a cada momento fosse necessário entender e decidir. Mas não é. Não devia ser. E só nesses momentos em que me decido a enfrentar a futura página a ser ida, sinto a dúvida enorme e a angústia da página, mas não da página em branco. Antes de todas as que, cobertas de letrinhas, desfio indecisa até conseguir estacionar numa. E sempre, aquela dúvida sobre até que ponto os sentidos são importantes para os outros que não eu. Até que grau de excesso se afirma um eu privado. E como sempre, sobra-me a ligeira desconfiança de que do que posso ter a dizer, que não será muito, provavelmente já disse. No essencial. O que me remete para a questão de ser ou não relevante alimentar uma inércia de escrita em que muito se volta sobre um mesmo olhar e os mesmos objectos de afecto, de consternação ou de simples contexto dos dias. Tão iguais e diferentes em si como gotas de água. E a mesma dúvida sobre a transformação de tudo em discurso. Sobre a validade da representação. Sobre essa necessidade que se sobrepõe às coisas em si e à sua vivência. A minha angústia não é então nunca a da página em branco, mas a das inúmeras páginas que talvez devessem permanecer em branco. Numa agonia de excesso de sentidos a descodificar todos os dias em todos os lugares. Neste congestionamento de conhecidos e desconhecidos que hoje fazem, muito mais do que nunca, o dia. Que esbaram contra o nosso olhar ou o atraem. Numa enorme exaustão de expressão e significação em que todos parecem necessitar apresentar-se. E nesses dias o que me apetece mais, é deambular pela escrita como deambular pelas ruas, sem intencionalidade. Um molho de linhas e um molho de ruas a desfiar. Só pelo fluir de um discurso ameno e fluido. Só pelo embalo sem destino. Sem querer dizer mais do que as coisas em si. Passando por mim. Apresentá-las e dizer simplesmente: estas árvores. Bonitas. Este céu, do costume. Tão diferente, nas ínfimas hipóteses de variação. Como as palavras em infinitas combinações de tão poucas letras. Esta textura da parede. Diferente em todas as outras paredes e este tom de hoje. Que não deixassem mais do que um gosto a sensações leves. Como um dia primaveril já a anunciar o verão. Coisas assim. E ideias. Não faltam elas, mas a validade, a necessidade de as percorrer como de alimentar um Tamagotchi. Os mesmos dias em que apetece simplesmente dar uma voltinha pela vida, pela rua, sem procurar sentidos. Num tempo em que todos os dias somos voluntariamente acorrentados a uma exposição, a um encenar de centenas de vidas, ao encetar a performance do dia de cada um. Dar só uma grande volta por coisas que, de tão mudas, sejam repletas de uma plenitude que não ofereça questões. Dias em que não tenhamos passado por tanta gente nem sido levados pela possibilidade de ouvir preces alheias, diálogos com deus e com o diabo, encontros adiados. Em que não se oiça os vizinhos no seu amor nem nos seus amuos. Em que não se jante com quem não se senta do outro lado da mesa. Em que não vejamos cartas alheias e jogadas cruzadas sob o nosso olhar. Em que não escutamos às portas nem espreitamos às janelas. Em que não somos tomados pelo ruído de telefonemas alheios, pelas conversas dos outros, nem possamos saber que alguém está ao telefone. Dias de privacidade na rua. Em que não tenhamos a tentação de dizer a todos aquilo que só queremos dizer a alguém e em que não esqueçamos o valor da esfera do privado. Em que possamos gostar do que gostamos e não gostar das outras coisas sem que isso inclua uma mensagem subliminar. Em que sejamos libertos da nossa absurda curiosidade e da adição à possibilidade de a cultivar. Num tempo em que tudo se tornou mensagem e performance teatralizada. Em que tudo é manifestação da encenação de um estado. E em que começamos a ver-nos permanentemente de fora. Ao analisar o nosso eu íntimo na procura da vertente certa a expor. Em cada dia. Como se fosse essencial ao ser, ser em exposição. Ou aos outros. Vida em exposição. Exposição total e global. Vida recoberta por uma camada que é discurso, e encenada com uma linguagem que incorpora todas as outras, próprias e alheias. Duas camadas de sentidos múltiplos. Mas às vezes o que me apetece mesmo é a vida dois andares abaixo. Claro que, dois andares acima é estar mais próximo do céu. Que se esquece facilmente e olhando-o mediatizado, não pelas janelas de casa mas da casa dos outros. Visto pelo olhar dos outros. Estar mais perto de que céu, então, senão aquele que é já refeito e condicionado a sentidos, interpretações e leituras, por outros olhares, reciclado, às vezes penso, como coisa imprestável em si mesmo. Abdicamos do olhar nú sobre a realidade em prol da representação. Poluídos por tanto registo e tanta informação. Gastos como gastas são as imagens que se mostram, a torto e a direito. Fazendo nossas e dedicadas ao nosso particular monólogo do dia. Imagens que se roubam e arrancam a um contexto e se fazem ao serviço dos nossos pequenos pensamentos. Fragmentos de imagens que são obras inteiras, imagens tornadas animadas de um movimento doentio e paranoico que refaz a nossa própria instabilidade doentia. Uma obra de arte intemporal passa a significar um momento particular, um humor e uma mensagem curta num diálogo em que tudo é descartável. Por vezes. Em que mesmo cada silêncio parece encerrar uma mensagem de índole bélica. Cada silêncio esconde milhões de palavras não ditas mas fariam falta? Será o lugar descartável e passageiro a sua natureza? E uma foto mais triste significa que se está triste a tempo inteiro ou com alguém em particular. Ou um sorriso que se eterniza ao longo dos dias tem que ser atualizado em tempo real. O tempo da reciclagem a que o planeta não beneficia mas também do lixo, o indominável lixo que desvaloriza cada objecto em si. A pós modernidade que tão discutíveis manifestações teve na arquitectura, também nesta arquitectura de relações supostamente sociais, e que mais ainda se revela na apropriação dos discursos. Na recombinação de referências, épocas, tudo na mesma amálgama ao serviço de um ego a expor. Somos amigos dos mortos e invocamos deus nas páginas virtuais. Sim estamos cada vez menos sós. Há sempre alguém que nos diz um olá, cruzando o espaço mais rápido que um super-herói. Costumamos dizer o contrário. Que estamos cada vez mais sós. Mas eu digo assim. Estamos cada vez menos sós. O que vendo bem é exactamente a mesma coisa nas contas da qualidade da solidão. Cada telefone com internet, a acompanhar os momentos que passamos com os nossos amados. Os nossos amantes e os nossos amigos. Cada olhar a desviar-nos da companhia concreta mas a repor em troca desta, várias outras. Os momentos a sucederem-se intercalados, sobrepostos, ou imediatamente sucessivos. Sem intervalo para sentir. Desfeito um abraço coloca-se um like nos braços alheios ao mesmo. Assim. Há um apelo enorme. Triste e divergente. Mas somos humanos. Fazemos escolhas quando conseguimos. Mas há o apelo. Eu sou triste desta modernidade que tento rejeitar na medida em que a minha fraqueza de humana me permite. A intimidade em saldo, a nadar num aquário de águas saturadas. Ou peixes fora da água. Há que distinguir se possível. Um pequeno vídeo: Pés que caminham sem mais. Na linguagem das performances em rede, deverá ter um sentido particular no momento e descartável no dia seguinte. Partimos da vida de alguém. Vamos ao seu encontro. A vida continua e é um olhar positivo. Estamos em fuga de algo. Perigoso de partilhar no momento errado de nós. Sujeito a tornar-se uma fala num diálogo impreciso. A fala errada. Uma letra de uma canção e quem é o sujeito. Quem a usa está a assumir a voz do outro ou a identificar-se na voz e a fazê-la sua… Uma realidade falível, difícil de medir e com a necessidade de ser renovada dia após dia. Para não gerar equívocos ou não se ser esquecido. Gostar é currículo e moeda de troca. Nesta troca ou compra e venda. E o ruido imenso. Visual, de sentidos. O excesso. A amálgama informe com que se alternam e sucedem… Peixes fora de água. É o que sinto. Apanhados na rede e fora da água. Há dias em que convirjo mais para ali – demais – e me sinto morrer um pouco. O problema é nos dias em que começo a sentir que é ali que se vive. Nunca pensei suar com uma coisa destas. Passar uns dias sem as janelas da rede, as suas malhas, é a nova claustrofobia. Como se mundo nos fugisse das mãos que nunca o puderam agarrar, naquele intervalo de tempo e tudo acontecesse nas nossas costas. Mas é isso que deveria acontecer. Todas as cartas escritas que não são para nós. Como os telefonemas. Como na paragem do autocarro. Como se o mundo desse milhentas voltas mais do que os dias e se reposicionasse num outro ponto do espaço. Talvez seja assim, afinal. Seres de luz, fantasmas, com a ilusão da realidade. Ou como se se andasse com a intimidade na testa, ou dentro da malinha de mão e a deixássemos cair na rua. Exposto o conteúdo a quem passa. Parar. Aí. Na rua. E sentir o gosto de não conhecer ninguém. Eu preciso de muito mais tempo para pensar do que para fazer. Pensar cria aquela sensação ilusória de entender. Não que isso aconteça de forma relevante, por vezes. Mas é um intervalo entre o caos e o ficar tudo quase igual. Mas sem a ansiedade impertinente do reagir à vida. A tempo inteiro e em directo. Sem a pressão. Com a resignação de que cada dado importante não pode depender do instante. Nem sempre. Que as coisas não são tão perecíveis que exigem de nós a vigilância constante ao que somos e dizemos. Esse intervalo de pensar entre as coisas serve melhor como simples espaço ou intervalo, do que pelo valor absoluto. É mais uma reorganização espacial. Uma pequena distanciação do momento que passa, na sua premência inglória e o reposicionamento numa sensação de calma e aceitação, de que o futuro não é hoje. Nem deve ser. Talvez a distância entre o agora e o futuro de que não quereria ter pressa. O que é, é. E não se pode querer mais do momento. Mas eu gosto de entender. E por isso tudo se me apresenta problemático muitas vezes. É disso que tenho nos outros momentos, uma enorme vontade de fugir. Dar uma volta pela vida. Não de horas mas de dias, meses anos. Uma enorme e saborosa volta pela vida.
Manuel Afonso Costa h | Artes, Letras e IdeiasO tempo e a estética Ferreira, Virgílio, Mudança, Quetzal, Lisboa, 2009 Descritores: Romance, Rotura, Suicídio, 263 p.:21 cm, ISBN: 9789725647745 [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]ergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neo-realismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano. Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993). O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987. O tempo e a estética Será Mudança o romance de Vergílio Ferreira que assinala a mudança de campo, do Neo-realismo para o Existencialismo. Mudança poderia muito bem ser até para tornar o título mais emblemático. Mas seria muito prematuro, pois é de 1949. Para mim, de facto, nem é nada prematuro. Vergílio Ferreira apresenta sinais da sua voz, a voz que triunfou, desde muito cedo, eu diria desde sempre, e a verdade é que se sente que em Mudança, alguma coisa muda ou começa a mudar. O romance foi escrito para ser exemplar do ponto de vista da estética dominante, mas a voz do autor, tudo leva a crer, começava a impor-se ao próprio autor. Seria muito interessante elaborar uma odisseia das vozes nas vozes de todos os autores. Tentar descobrir o que é na elaboração de uma obra é da ordem do inconsciente em luta contra as disposições intencionais e programáticas da vontade. No caso de Vergílio Ferreira, sabe-se, é o tempo, o modo como é tratada essa variável determinante e a memória da infância os vectores através dos quais se começam a minar os alicerces neo-realistas. Com o tempo aparecerão nas suas obras progressivamente a náusea, a angústia e o absurdo. Carlos, o personagem principal, oriundo de uma família desafogada e ele mesmo advogado, casa com uma jovem muito simples e muito prática, que é justamente aquilo que ele não é. Após a falência dos negócios do pai irá desencadear-se uma turbulência existencial que contudo começará por uma crise de marasmo e indolência. É a partir daqui que a vida de Carlos irá mudar radicalmente promovida por um regresso ao interior de si mesmo e à consciência culpabilizadora. O suicídio desenha-se num horizonte não muito distante. A Questão do Estilo Uma questão que atravessa, como já insinuei e aludi, a recepção da obra de Vergílio Ferreira é o tema da fidelidade estética. Mas se havia pouca paciência para ouvir os arautos das manhãs que cantam em plenos anos cinquenta e sessenta, imagine-se agora. As críticas estéticas rapidamente se tornavam ideológicas, naquela época, e portanto libelos contra a liberdade e a consciência e verdadeiros processos de intenções. Qualquer intelectual ou artista que não seguisse escrupulosamente as regras da cartilha dominante mergulhava imediatamente numa espécie de índex, agravado pelo facto de que esse índex continha censura não apenas política mas sobretudo ética e moral, pois para que o ostracismo fosse verosímil e justificável, impunha-se que ele fosse também uma condenação ao nível da consciência. Isso favoreceu uma ampla literatura a montante onde se inventariavam as taras sociais e mentais que favoreciam a traição. Só o marxismo era considerado um método científico e só o proletariado era considerado uma classe revolucionária e digna. A suspeita era portanto sempre lançada a priori sobre as bases pouco científicas do pensamento quando se tratava da cultura das ciências sociais e sobre o estatuto de classe quando se tratava da arte. Mas esta última análise não se aguentava por si e era reforçada por uma análise mais psicológica do que económica ou sociológica. Era aí que entravam os conceitos de pequena burguesia, tão na moda, assim como de má consciência e de superioridade moral. Vergílio Ferreira esteve debaixo de fogo como estiveram muitos outros submetidos à lupa ideológica, porém travestida de ortodoxia científica. Não vou aqui deter-me na ingente questão da oposição estrutural entre ciência e ideologia desenvolvida de forma contrastiva por Althusser e Ricoeur, na mesma época e com uma larga história onde pesa sobretudo a obra de Karl Manhein. Diria apenas por agora que o clímax da ideologia reside no facto de ela se pretender uma ciência. Quando um pensamento que não pode ser senão ideológico se procura legitimar através da caução científica, pode-se dizer que esse pensamento atingiu o máximo estatuto ideológico que uma ideologia pode almejar. A ciência não aparece aqui como ciência mas apenas como má fé, ou seja de facto, agora sim, como má consciência. Esta pequena digressão serve apenas para dizer que não me interessa nada se a obra de Vergílio Ferreira evoluiu ou involuiu do neo-realismo para o existencialismo e, sobretudo a ser verdade essa trajectória, que também não me interessa saber em que momento a rotura deve ser assinalada. A maior prova da sua redundância e pouca seriedade reside no facto de que se referem várias obras para ser a charneira desse processo. Para uns o romance que assinala a transição, ou seja a traição, o desvio, etc. é Aparição, mas para outros é justamente Mudança e para alguns Manhã Submersa, e para outros ainda … e podia continuar. Depois há que considerar que o autor começa a desviar-se em romances que apesar de serem publicados depois começaram a ser escritos antes de Aparição, que é de 1969. Estou a referir-me ao Apelo da Noite e ao Cântico Final. Enfim, isso de facto interessa pouco, o que interessa mesmo é ler Vergílio Ferreira e começar a lê-lo com Mudança, não me parece nada mal. Deixem que vos diga uma coisa: do que eu gosto mesmo, e muito, em Vergílio Ferreira é da tetralogia final da sua obra, ou seja dos romances Para Sempre, Até ao Fim, Em Nome da Terra e Na Tua Face. Mas ler os anteriores será muito bom, uma vez que ainda ficaremos a apreciar mais o autor, a sua capacidade de superação permanente, até à morte.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasFilhos das montanhas, filhos do mar* 人山人海 * por Julie O’yang [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s carreiras com que sonham ou pais chineses, ou leste asiáticos, para os seus filhos. E porquê. Sou chinesa e vivo no Ocidente, e como tal sou uma destruidora de estereótipos. Há muito tempo atrás reconheci que, apesar de tudo, sou uma artista e que tenho desde sempre tentado suprimir a “cidadã responsável” que me habita. Ou seja: a cidadania existe em todos nós, e talvez seja por isso que o fenómeno da estereotipização me irrita. Estereotipar, na minha opinião, é uma espécie de lei natural em qualquer sistema social vigente, totalitário ou democrata e, como tal, os estereótipos fazem parte duma opressão consensual do dia a dia que ajudam a manter conceitos que reconhecemos. Em primeiro lugar vamos dar uma espreitadela às carreiras que um chinês, ou asiático em geral, mais ambiciona A saber: médico, investigador na área de bio-fármacos, engenheiro, programador informático, contabilista ou cirurgião. E o que têm estas profissões em comum? São estáveis e bem pagas. Mas, acima de tudo, são profissões que requerem especialização intensa e, como tal, são garantia de emprego. Em geral, os pais chineses/asiáticos acreditam piamente que profissões pouco técnicas envolvem qualquer coisa de obscuro e que estão dependentes de atributos nebulosos e ambíguos como a aparência, o talento, a personalidade ou mesmo os relacionamentos pessoais. Em muitos países do Leste asiático, onde se incluem a China e o Japão, quase não se ensina História nas escolas já que esta disciplina não parece ser relevante para formar as “competências” necessárias aos dias que correm. Os engenheiros e programadores asiáticos não possuem a cultura geral que se consideraria adequada na Europa. Para os asiáticos, um certo diletantismo europeu é indissociável de uma educação focada nas artes liberais. É talvez por isto que a maioria dos jovens chineses/asiáticos parecem apolíticos comparados com os seus congéneres europeus. A inércia cultural é um facto. No entanto é preciso recuar bastante para procurar as raízes históricas deste fenómeno recorrente, como foi o caso do comunismo chinês, caracterizado por uma intensificação do autoritarismo. A ausência de qualquer tradição de pluralismo marcou a China dinástica. A primeira dinastia Qin (séc. II AC) trouxe o fim de qualquer pluralismo cultural, artístico, ou político, entendido no sentido formal, e o impacto deste acontecimento fez-se sentir até aos dias de hoje. Durante os últimos dois milénios, os chineses sempre acreditaram que o povo vive sob o poder do Governo, sem esperança de um dia poder ter alguma influência, a menos que passe a fazer parte da classe dominante, o que pressupõe instrumentos. Ferramentas! A China não quer pensadores, pelos quais os chineses “filhos das montanhas, filhos do mar” sentem uma profunda desconfiança. No universo chinês, pensar equivale a ser irresponsável, e, infelizmente, os pensamentos cheiram a… esturro. *Em chinês significa muita gente no mesmo lugar, multidão. O Pidgin chinês exprime de forma dinâmica a ideia de multidão, de uma forma mais precisa. Em minha opinião, articula a preferência chinesa por uma noção de ego difusa, sem rosto, com uma energia anti-criativa e inexpressiva.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasQue estamos nós aqui a fazer, tão longe de casa? – A viúva * por José Drummond [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]ntes de começarmos, e enquanto ainda tens consciência, quero fazer-te uma proposta. Vai ser necessário que tenhas ambos os cotovelos apoiados naquela mesa baixa. Ali perto do braseiro de carvão quente. Anda, vamos até lá. Isso. Agora, estica os braços, assim, ao longo da mesa. Isso. Deste modo posso prender-te as mãos nestas grilhetas. Perfeito. Reparei como prestaste atenção a esta sala. Assim deste modo terás uma nova perspectiva. Sabes que também eu ouvi o canto de um pássaro. E o bater das suas asas. Oiço tudo. Tanto oiço o sangue a correr-te nas veias como quase sou capaz de ouvir os teus pensamentos. E até de os antecipar. Não acreditas? E se eu te disser que até oiço o som das garrafas que estão a ser descarregadas dos camiões, em frente ao supermercado na esquina. Mas mais importante que isso, oiço, em algum lugar, lá fora, na colina, o canto de cisne, murmúrio atormentado de uma mulher ainda assustada. Oiço o seu ventre aberto a bombear sangue para fora. Oiço o persistente assobio do assassino. Está à entrada ou à saída do túnel. Digo isto pelo ligeiro eco. Oiço o grito fino de um bebé. Oiço tudo. Mas sei que nada pode ser feito para salvá-lo. E nada pode ser feito para salvar a mãe. Já é demasiado tarde. Eu sei que neste momento pensas que eu sou um monstro do mesmo calibre como o deste estripador. Eu sei que neste momento estás pronto para desatar a chorar, implorar perdão, tentar suprimir aquilo que julgas ser raiva em mim. Devo voltar a dizer-te que não tenho qualquer ressentimento em relação a ti ou ao que fizeste. A tua mulher nunca foi realmente importante para mim e aquilo que aconteceu ao meu filho foi apenas resultado da sua fraqueza. Tu estás aqui porque alguém assim o quer. Mas talvez exista uma saída. Uma solução que não envolva eu ter que te fazer aquilo para a qual fui contratada. Tudo depende de ti realmente. Lembras-te que eu te disse que tenho uma filha. Pois bem ela é tudo o que tenho na vida. É realmente a única coisa que me preocupa neste momento. Por isso presta atenção. Presta muita atenção. A minha filha não sabe que eu sei que está grávida. Não existe problema nenhum para mim que ela esteja grávida. O problema é que o pai é um homem que já tem filhos de outra mulher. O problema é que este verme nunca irá proteger a minha filha. E ela precisa de protecção. Agora mais do que nunca. Presta atenção. Presta muita atenção. Os segredos só se contam uma vez e depois devem ficar enterrados. Tenta perceber que a tua capacidade de manter este segredo pode resultar num pacto entre nós. Um pacto que se cumprires a tua parte te pode devolver a liberdade. Presta atenção. Presta muita atenção. Como sabes existe um assassino à solta a estripar mulheres. A escolha dele recai em mulheres com pouco mais que trinta anos. Que idade tinha a tua mulher quando… Estás a tremer? Ahhh! Não sabes! Interessante. Pensei que isso pudesse ter sido a razão maior para fazeres aquilo que fizeste. Estou deliciada com a tua inocência. Sim. É isso mesmo que estás agora a pensar. A tua mulher estava grávida. E o pai do bebé era o meu filho. Dói, não é? Somos sempre os últimos a saber aquilo que se passa na nossa vida. Ela não ousou a injúria. Teve que fazer com que a gravidez ficasse em segredo. Ela não te ia deixar e tu irias ter um filho que não era teu. Quando ela morreu o meu filho ameaçou matar-se. Consegui que ele se acalmasse. Mas infelizmente um dia o segredo veio ao de cima quando a melhor amiga dela lhe contou tudo. Quando ele me encontrou os seus olhos tinham mudado para sempre. Aqueles olhos, que antes tinham lágrimas a brotar nos cantos, não eram olhos. Estavam vazios. Desprovidos de sentimento. “Ela estava grávida, não é? O bebé era meu e também está morto! Odeio-te! Não consigo respirar. Deixa-me ir.” Nunca mais o vi. A pouco e pouco tudo fará sentido. Eu não fui sempre assim. Vou agora contar-te outra coisa. Há muitos anos atrás existiu uma guerra entre as tríades. Ainda Macau era governado por portugueses e era um “território” – a palavra que usavam para disfarçar atitudes coloniais. Muito antes da Taipa ser um asilo psiquiátrico. Foi um dos meus primeiros trabalhos. A minha missão não era simples. Tinha que me infiltrar como se fosse uma jogadora de Xangai, conquistar o líder de determinado subgrupo, extrair informação e acabar com ele sem que ninguém percebesse. Na minha cabeça sabia que as coisas poderiam correr mal. Ainda me lembro de vacilar quando entrei no lobby do hotel com uma mala pequena. Na bagagem tinha uma pequena pistola automática com sete balas, um fio de aço, um pente que continha uma agulha fina e um batom de defesa com uma lâmina. Na minha cabeça repetia as palavras: “Calma. Respira fundo. Tudo vai correr bem. Este trabalho é importante e é mais difícil que o habitual mas tudo vai correr bem.” Mas na verdade não conseguia apagar a estranha sensação de que nada era normal e de que um movimento em falso resultaria na minha morte. A minha respiração, estranhamente controlada, não tinha nada a ver com a velocidade do meu coração. Um fio de suor humedeceu-me as axilas. Os dedos com formigueiros. A tensão transformou-se em premonição, em aviso repetido para eu sair. Mas era tarde demais. Olha há novidades na televisão… “A TDM recebeu um vídeo do “Estripador”. Neste vídeo vê-se uma mulher aprisionada num local indeterminado. O vídeo chegou à nossa redacção com a ameaça de que se não for passado no telejornal a mulher morre. A polícia foi informada de imediato. O governo reuniu-se de emergência e expressou extrema preocupação através do seu porta-voz. Espera-se que novas medidas de segurança sejam anunciadas dentro da próxima hora. O vídeo, que veremos de seguida, contém imagens altamente chocantes que podem ferir a susceptibilidades de pessoas mais sensíveis.”
Pedro Lystmann h | Artes, Letras e IdeiasBares novos: St. Regis e Premiere [dropcap style=’circle’]E[/dropcap]ste será o último artigo que integra uma apreciação e lista de bares de hotel de Macau. O assunto é fastidioso. Algumas das falhas que nesta selecção se descobrem são falhas que indicam insuficiências, de tipo rural, que são endémicas à cidade e cuja resolução se não vislumbra. A primeira prende-se com a continuada inexistência de um único bar em que o desenho mostre a mais pequena ousadia no seu modernismo. O mesmo defeito estende-se aos hotéis do território, a esmagadora maioria dos quais – com a pequena excepção do Altira e do Mandarim e talvez do Hyatt – vergados à necessidade de um gosto pacóvio e renitentes à educação das massas. Pergunto-me o que acontecerá ao edifício em construção desenhado por Zaha Hadid, recentemente falecida. Admita-se que esta falta de atrevimento no desenho pode ser uma propensão generalizada na Ásia, uma que em Macau se combina com a focalização num tipo de turismo de massas pouco educadas. Também neste sector quem acaba por sofrer as consequências da ignorância e do provincianismo é o bebente residente.* A segunda razão que torna os bares de Macau entediantes é a relutância da população local em frequentá-los. Existindo locais onde a oferta de bebidas e o serviço é mais que suficiente, estes tornam-se inúteis se continuarem vazios e sem animação. Há vários lugares em Macau em que as listas e a proficiência dos mixordeiros não fica atrás do que se pratica nos melhores lugares do resto do planeta. Relembra-se o conceito de proximidade, lido em Triumph of the City, de Edward Glaeser. Este aplica-se a uma concentração social promotora da troca de ideias e do avanço de projectos. Em Macau persiste a resistência à frequência dos bares antes das refeições, a desejada proximidade não se cumpre e a estagnação ou a regressão substituem-se ao avanço. No novo The St. Regis bar, no hotel do mesmo nome, identificam-se facilmente as falhas que aqui se expõem. Este é um lugar com um conjunto muito decente de bebidas, um que mostra profissionalismo, não só na escolha destas como na dos preparados que com elas se podem conseguir. Os barmen de serviço que conheci são muito competentes e o resto do pessoal muito simpático e de olho vivo e interessado. O balcão é atraente, de tamanho médio e altura capaz e aparece fronteiro a um painel autorizado por Gil Araújo relativo à coexistência harmoniosa dos chineses e dos portugueses em Macau ao longo dos anos (a sério). A zona de cadeiras é confortável e própria, quase elegante, e ao fundo existe uma área mais íntima, The Vault, que se utiliza para funções próprias ou para uso regular. Uma das vezes que o frequentei estava vazio, e em conversa com umas das funcionárias não me pareceu que houvesse muitas excepções. Numa outra, a uma sexta-feira, a zona de mesas estava cheia e com bom ambiente. A sala The Vault recebia um grupo grande. A frequência é a razão que mantém o bar do Hotel Star World em primeiro lugar da minha lista de preferências – a existência de um público regular. Admita-se igualmente (uma conversa que já tive com um empregado do Bar Azul, no Hotel Four Seasons) que a localização pode ser factor determinante na popularidade do bar do décimo sexto andar do Hotel Star World. Mas o que distingue o bar do St.Regis, carregado de boa vontade, de vários outros bares de hotel que se oferecem no território? Por enquanto não muito, para lá de uma genuína vontade de agradar e uma HH atraente em termos de preços. O serviço é tão bom como nos melhores. Este bar compete com o do Ritz-Carlton? Sim, compete no sentido da qualidade da oferta e do serviço própria a hotéis de alta gama. Mostra uma especialização numa bebida muito popular, o Bloody Mary. O bar Premiere fica num complexo turístico de gosto duvidoso e materiais de construção baratos, o Studio City. O bar continua a tendência de todo o complexo. O Premiere é apenas um lounge aberto aos corredores e não mereceria sequer aqui menção não fossem os barmen bastante competentes e interessados. Tem uma lista excelente, vasta, mas só a obrigação de uma visita ao complexo justifica que se patrocine o Premiere e não outros bares que ficam na mesma área. Encontra-se a uso público o bar China Rouge, no Complexo Galaxy, antes limitado à entrada de sócios. Mantém a geografia anterior que é mais a de um clube do que a de um bar e tem uma banda. Siga-se a sua carreira. Não o incluo na lista por não saber se está aberto para bebidas ante-prandiais. 1. Whisky bar, Hotel Star World – O que tem mais animação. Localização central. Taxa muito favorável de retenção do pessoal de serviço. Tem uma lista longa para lá da que o cliente normalmente recebe. Tem uma varanda muito boa. 2. Ritz-Carlton bar and Lounge, Hotel Ritz-Carlton – Bom nível de bebidas mesmo que não em quantidade. Pequena especialização numa bebida, o gin (20 diferentes), dá-lhe um rosto próprio. Abre às 10 da manhã, pormenor importante num território em que muitos dos outros bares de hotel só abrem pelas 5 da tarde.** 3. Macallan, Galaxy – Excelente serviço, boas bebidas feitas por barmen muito competentes e hospitaleiros num ambiente estranho a Macau. Lista de uísques inultrapassável, penso que mais de 400, coloca-o no terceiro lugar (isto o que o distingue). 4. St.Regis bar, Hotel St.Regis – Ainda em rodagem, uma ementa bastante completa e mixordeiros de qualidade, uma sentida vontade de agradar e uma pequena especialização em Bloody Mary. Pode subir de posição. Abre ao meio dia. Apreciado em cima. 5. Convívio Agradável, Hotel Sofitel, Ponte 16 – Excelente serviço e sentido de hospitalidade, bebidas de qualidade. Não é longe do centro. Muito feio mas muito acolhedor (eu não acredito que o kitsch seja a manifestação do mal). Por baixo da fealdade, que é quase comovente na sua inocência, nota-se a qualidade Sofitel. 6. Bar Azul, Hotel Four Seasons – Expressa desejo por um desenho próprio, boas bebidas, próprio para um encontro íntimo, injustamente desconhecido. 7. Vida Rica, Hotel Mandarin – Boa qualidade de serviço, fica num dos 2 hotéis de Macau que não é piroso e tem vista. Tem promovido eventos próprios, não só com provas de vinhos mas com mixologistas convidados – o que o traz a uma posição mais favorável. 8. Cinnebar, Hotel Wynn – tem espaço exterior, staff competentíssimo e amável, boas bebidas, excelente ginger margarita. 9. Lan, Hotel Crown Towers – Este bar cai vários lugares, vítima brutal das intermináveis obras que afligem a parte oeste do City of Dreams. Encolheu consideravelmente e já não tem janelas nem o pé direito quase gótico que o tornava amplo. Segundo o pessoal de serviço, em breve (?) ganhará novo espaço em que se inclui uma parte exterior. Se desce apenas para sétimo lugar é porque mantém a mesma lista e uma outra apenas de vinhos de mesa que é das melhores de Macau. 10. Heart, Hotel Ascott – Tem um terraço de sedução imbatível, o melhor entre estas entradas. Tem uma lista curta e sem grande imaginação. Excelente para grupos. A melhorar à medida que vai ganhando experiência. 11. 38 Lounge, Hotel Altira – tem vista e varanda, exibe vontade de mostrar desenho, fica num dos 2 hotéis de Macau que não é piroso. 12. Windsor, Hotel New Emperor – Tem um longo balcão e localização imbatível, no centro da cidade. As misturadoras, de Taiwan, eram muito simpáticas. 13. Premiere, Studio City – Sítio feio mas com uma lista longa e bem feita (está na internet). Bons barmen. 14. Cristal, Hotel Wynn Encore – desenho próprio, sofás confortáveis, excelente ginger margarita (partilha lista com o Cinnebar). 15. McSorley’s Ale House, Venetian – Não tem figurado nesta lista mas tecnicamente é um bar de hotel, mesmo que completamente aberto a um corredor feio e a massas barulhentas. Tem 17 marcas de cerveja. O resto é enfadonho, igual a tantos outros bares de temática irlandesa de desenho encomendado a uma empresa que os replica por todo o mundo. 16. Aba, Hotel MGM – não bem um bar, mais um espaço aberto junto de uma praça mas onde se conseguem bebidas boas e um serviço de simpatia e competência mais do que suficiente. Larga escolha de vinhos. 17. Lyon’s, Hotel MGM – pouco que se recomende para lá de ter um balcão enorme e ser relativamente central. A. Relembre-se que existem em Macau alguns bares/lounges de átrio de hotel que preenchem com suficiência necessidades de bebida, lugares de conforto e extrema conveniência, alguns mesmo de elegância decente. Noto, por ordem não muito rigorosa de preferência, os dos hotéis Mandarin, Okura, Banyan Tree e Marriott. O bar circular do Sheraton também é bom. B. Existem igualmente vários bares de piscina espalhados pela cidade. C. Vários restaurantes de hotel, como o Aurora, o Copa ou o Portofino, têm agregados bares. D. Noutra nota (não de bares de hotel) informe-se que têm aberto na zona norte da cidade (obrigados a esta escolha pelo preço das rendas) vários barzinhos de sabor local que podem vir a transformar esta área, anteriormente pouco associada ao sector. * também não noto uma vontade contrária em Hong Kong, admitindo uma pequena excepção no Ozone (Ritz-Carlton, cuja lista é praticamente igual à de Macau). Aliás, este é um caso paradigmático. O mesmo hotel Ritz-Carlton (pertencente ao gigantesco grupo Marriott) decidiu fazer em Hong Kong uma estalagem de aspecto moderno, mesmo que não muito ousado, mas em Macau escolheu uma moldada ao pobre gosto presidente, em tons pseudo-imperiais frios (gosto duvidoso que se repete em Kuala Lumpur e em Cantão). **alguns dos bares sitos em hotéis têm listas que se encontram acessíveis na internet. Recorde-se igualmente que certos bares têm listas de bebidas (por vezes comuns a outros serviços do hotel) mais vastas do que as que imediatamente se oferecem aos clientes.
Jorge Rodrigues Simão h | Artes, Letras e IdeiasOs Papéis do Panamá “Files reveal the offshore holdings of 140 politicians and public officials from around the world .Current and former world leaders in the data include prime ministers of Iceland and Pakistan, the president of Ukraine, and the king of Saudi Arabia. More than 214,000 offshore entities appear in the leak, connected to people in more than 200 countries and territories. Major Banks have driven the creation of hard-to-trace companies in offshore havens.” ICIJ · The International Consortium of Investigative Journalists – The Panama Papers [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]s consequências podem ser enormes e devastadores quando se souber todo o imbróglio do escândalo conhecido por “Papéis do Panamá (PP) ”. A iniciativa pertence a um “Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla inglesa) ”, com sede em Washington e constituído por jornalistas de setenta e oito países, que começaram a publicar casos de riqueza oculta, por pessoas famosas e políticos, e têm como base una filtração de onze milhões e quinhentos mil arquivos da base de dados do escritório de advogados do Panamá, Mossack Fonseca, especializada na gestão de capitais e de património. Os denominados PP, revelam que o escritório de advogados, Mossack Fonseca, criou uma rede de contas “offshore” durante quase quarenta anos, convertendo-se num dos escritórios de advogados mais encobertos do mundo, por cujas portas passaram milhões incontáveis de dólares. A lista contém detalhes sobre empresas “offshore” que são usadas, como meio para a realização de operações financeiras, ou que se mantém em estado latente para possível uso no futuro. As pessoas que aparecem ligadas a essas contas e que oficialmente se desconhece, parecem ir desde o presidente da Rússia, ao primeiro-ministro da Islândia, passando por futebolistas como Lionel Messi. A Suécia, Austrália, e outros países abriram entretanto, investigações para apuramento da realidade dos factos, quanto a cidadãos seus, presumivelmente implicados Os arquivos revelam que metade, ou seja mais de cento e treze mil empresas do escritório de advogados, Mossack Fonseca, tem domicílio nas Ilhas Virgens, que são um arquipélago, cuja parte ocidental é administrado pelos Estados Unidos, e conhecidas por Ilhas Virgens Americanas, e a parte oriental, pelo Reino Unido, e apelidadas de Ilhas Virgens Britânicas, conhecido por paraíso fiscal e detentor de uma das economias mais ricas das Caraíbas. A sede da empresa no Panamá, foi identificada pela “Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, (OCDE, na sigla inglesa) ”, como uma das que tem a menor protecção do mundo contra o branqueamento de capitais. Ainda que nenhum dos onze milhões de documentos, mencionem por exemplo, de forma directa o presidente da Rússia, como a exibição mais forte até o momento dos rumores sobre a sua imensa fortuna, a dúvida está lançada. O violoncelista Sergei Roldugin, padrinho da sua filha, entrou para a nova oligarquia e segundo os registos pode ser o músico mais rico do mundo, não se sabendo donde provêm tal riqueza. O primeiro-ministro da Islândia, alegadamente envolvido numa empresa nas Ilhas Virgens Britânicas que usou para gerir os investimentos de uma herança da sua mulher, demitiu-se a 5 de Abril de 2016, do seu cargo e do Partido Progressista que liderava a coligação no poder, e consta dos cento e quarenta líderes e políticos descobertos pela investigação. A investigação descobriu também, que bancos europeus trabalham com o escritório de advogados, Mossack Fonseca, criando milhares de empresas fictícias ou fantasmas para os seus clientes, encontrando-se entre outros, o Hong Kong and Shanghai Banking Corporation (HSBC), Coutts & Co., Rothschild Bank International, UBS AG, Société Générale e o Credit Suisse Group, mostrando as actividades dos bancos e as suas reacções, face aos esforços dos organismos reguladores nos Estados Unidos e na Europa para terminar com a evasão fiscal. O jornal inglês “Financial Times” a 6 de Abril de 2016, exigia que os bancos ingleses assumissem a responsabilidade que lhes cabia, afirmando que em 2005, por exemplo, os bancos ajudaram a criar mil oitocentas e catorze empresas fictícias ou intermediárias, traduzindo-se num grande aumento em relação às quinhentas e quarenta e três de 2004. O número de empresas deste tipo, criadas por bancos, manteve-se alto durante os anos seguintes, devido em parte, como resposta à Directiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Outubro de 2005, relativa à prevenção da utilização dos sistema financeiro para o branqueamento de capitais e para o financiamento do terrorismo, que exigia aos bancos a retenção de impostos de clientes com domicílio em países europeus, e como as normas não incluíam empresas, os bancos transferiram activos de pessoas a empresas “offshore” para fins de declaração de impostos. O círculo começou a fechar-se pouco depois, e o UBS AG, foi um dos doze bancos declarados estar sob investigação criminal, pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, por evasão fiscal dos seus clientes americanos. Os documentos confidenciais, têm um volume de 2,6 TB, traduzidos numa enorme quantidade de arquivos. Os PP são uma profunda e complicada teia internacional de finanças empresariais, corrupção e evasão fiscal. O núcleo de toda esta trama é um grupo de pessoas e organizações, que guardam o seu dinheiro em locais secretos “offshore”, como o Panamá, não sendo difícil de entender, pois em história para meninos, é como se uma criança tivesse uma moeda e a colocasse num porquinho que serve de mealheiro. O porquinho está na estante da sua secretária. A mãe sabe que está ali, e de quando em vez dá uma olhadela para ver quando a criança põe dinheiro ou o retira. Um dia a criança decide que a mãe não deve saber o dinheiro que tem, e vai à casa de um amigo com outro porquinho, escreve o seu nome, e coloca na sua estante de quarto. A mãe do amigo está sempre muito ocupada, e nunca tem tempo de ver o porquinho do filho, podendo assim, manter o seu porquinho seguro, pois será um segredo. Assim, todas as crianças do bairro acreditam que é uma boa ideia, e vão colocar o seu porquinho no quarto do amigo. A estante do amigo está cheia de porquinhos pertencentes a todas as crianças do bairro, mas um dia a mãe do amigo chega a casa e aborrece-se de ver todos os porquinhos, e decide convocar os pais de todas as crianças e contar-lhes a história. Todavia é preciso acreditar que nem todos fizeram por um mau motivo. O irmão mais velho de uma das crianças sempre retira moedas do seu porquinho, e ela teve de encontrar um esconderijo melhor para o seu porquinho. Esse irmão mais velho queria juntar dinheiro para comprar à mãe o presente de aniversário, sem que soubesse. Outra criança fê-lo, porque achou divertido. Mas muitas crianças fizeram por um mau motivo. Um estava a roubar dinheiro para o almoço de outros amigos, e não queria que os seus pais soubessem; outra estava a retirar dinheiro do porta-moedas da mãe; a um outro os pais tinham-no posto a dieta, e não queria que se dessem conta, quando retirava dinheiro para comprar guloseimas. Transportando a história de crianças para a vida real, muita gente importante foi descoberta a esconder os seus porquinhos na casa do amigo no Panamá, e todas as mães tiveram conhecimento ou estão em vias de ter. Quiçá, rapidamente, saberemos mais, sobre quais as pessoas que o fizeram por maus e bons motivos, mas em qualquer das situações, todos estão metidos em problemas, porque qualquer que seja a razão, manter segredos desta natureza é ilegal. A versão mais vendida é de que na grande maioria dos casos, as pessoas envolvidas escondiam o seu dinheiro, de forma que tecnicamente é legal para evadir ao pagamento de impostos, e que se tem vindo a fazer há décadas, devido a más políticas que permitem às grandes empresas evadir impostos de forma obscura, numa zona cinzenta, mas legalmente permitida. Porém, não é este tipo de conduta que se espera das grandes empresas porque o dinheiro ali depositado deveria ir para os cofres dos respectivos países. É de notar que igualmente, estão metidos em sarilhos, os que fizeram tudo de forma correcta. Os PP, ainda sem se saber a sua extensão, repercussão e reais consequências, são o escândalo económico do ano, e de filtração de documentos maior da história. Os 2,6 TB de dados, que contêm os onze milhões e quinhentos mil documentos tornam pequenas, todas as fugas de dados anteriores. Os dados, que mostram o uso de paraísos fiscais, é composto essencialmente de correios electrónicos, fotografias, arquivos no formato PDF, folhas de cálculo e os extractos de uma base de dados interna do escritório de advogados Mossack Fonseca, desde da década de 1970. A questão fundamental é a de saber como encontrar o significado a tamanha quantidade de informação, e do ainda pouco que se sabe depreende-se alguma informação essencial à compreensão desta embrulhada financeira. Os dados que se filtraram não são apenas de anos recentes, pois os documentos vão desde 1970 a 2015, o que significa que existem mais de quarenta anos de transacções financeiras, sociedades comerciais e empresas nos documentos de Panamá. O número de sociedades comerciais que aparecem com todo o seu historial é cerca de vinte e uma mil. A metade das sociedades comerciais tem a sua sede nas Ilhas Virgens Britânicas. O destino preferido dos clientes do escritório de advogados Mossack Fonseca é sem lugar a dúvidas, radicar as empresas e sociedades comerciais nas Ilhas Virgens Britânicas, e uma de cada duas empresas, ou seja, cento e treze mil incorporam-se nesse território. O segundo destino mais popular para as inscrições de empresas, constantes dos arquivos é o Panamá, onde se encontram registadas mais de quarenta e oito mil empresas. Os outros destinos escolhidos foram as Baamas, com dezasseis mil empresas e as Ilhas Seicheles, com quinze mil empresas registadas. A Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEK) lidera a lista dos envolvidos, onde mais intermediários operam, contando-se entre eles, bancos, escritórios de advogados e contabilistas. O ICIJ afirma que o escritório de advogados, Mossack Fonseca, trabalhou com mais de catorze mil bancos, escritórios de advogados, sócios fundadores das empresas, sociedades, fundações e fideicomissos para os seus clientes. A RAEK conta com mais de dois mil intermediários. O segundo lugar pertence ao Reino Unido, onde existiam mais de mil e novecentos intermediários, sendo o terceiro lugar ocupado pela Suíça, com cerca de mil e duzentos intermediários. Os países da região aparecem no final das tabelas dos dez países que mais colaboraram. O Brasil tem quatrocentos intermediários, Equador trezentos intermediários e o Uruguai com duzentos e noventa e oito intermediários. O Wikileaks, publicou cerca de 1,7 GB de informação, que é consideravelmente menor que a memória de um telefone inteligente de gama média, em 2010. Os arquivos do HSBC eram de 3,3 GB de informação, em 2015. Os arquivos sobre os impostos do Luxemburgo eram de 4 GB de informação, em 2014. Os PP são 2.6 TB de informação. A maior parte da informação é documentos de dois tipos, como afirmado, sendo correios electrónicos num total de cinco milhões e distintos arquivos de base de dados, que somam uma quantidade superior a três milhões, havendo mais dois milhões de arquivos no formato PDF (texto) e um milhão de imagens. Aos países cumpre descobrir, em cooperação, qual o montante de impostos não arrecadados. O mundo está repleto de esquemas desta natureza e mais sofisticados, que alimentam conflitos armados, pois o estudo do “Institute for Economics and Peace’s (IEP) ” efectuado em 2014, revelou que dos cento e sessenta e dois países estudados, apenas onze não estavam envolvidos em nenhum tipo de guerra.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasBotticelli reimaginado no Victoria and Albert Museum [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]extraordinária visão artística de Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi, muito melhor conhecido como Sandro Boticelli, foi injustamente negligenciada durante três séculos antes de ser redescoberta no séc. XIX. Desde aí, o pintor italiano tem sido considerado um dos artistas mais importantes de hoje, cuja imagética do séc. XV ditou os padrões das interpretações da beleza clássica e penetrou em todas as esferas da vida contemporânea. Como tal, influenciou e inspirou um grande número de artistas e designers, que responderam ao notável legado eterno do artista, reimaginando Boticelli. Mais de 50 obras originais de Boticelli, e cerca de 100 criadas por talentos ao longo de 500 anos estão agora em exibição no Museu Victoria and Albert em Londres, numa exposição que representa uma homenagem incrível em todos os sentidos da palavra. Botticelli Reimagined (Boticelli Reimaginado), a maior exposição do artista no Reino Unido desde 1930, visa demonstrar como a sua imagética icónica penetrou e se fixou permanentemente na memória colectiva da sociedade e nos seus aspectos visuais. Mostra a arte de Boticelli como um fenómeno de design que se tornou parte integrante de tantas obras de arte desde a sua morte em 1510. Artistas como Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones, William Morris, René Magritte, Elsa Schiaparelli, Andy Warhol e Cindy Sherman exibem a suas próprias reinterpretações da Renascença de Boticelli, acrescentando-lhe o reflexo dos tempos em que foram criadas, através de obras de pintura, moda, cinema, desenho, fotografia, tapeçaria, escultura e gravura. A exposição esta dividida em três secções principais: “Gobal, Moderno, Contemporâneo”, que mostra como a imagística de Boticelli alcançou o nível actual de aclamação, é dominada por umas das obras mais famosas de Boticelli, O Nascimento de Vénus (de meados da década de 1480). A famosa imagem de uma Vénus emergindo de uma concha à beira mar (que não pode deixar a sua exibição permanente na Galeria Uffizi em Florença), tem sido revisitada e reimaginada por uma série de artistas contemporâneos, como David LaChapelle, em Renascimento de Vénus (2009), na qual aplicou a sua imagem de marca, a saturação e a superficialidade, ou Rineke Dijkstra e os seus Beach Portraits de 1992. Detalhes de Pinturas da Renascença (Sandro Boticelli, Nascimento de Vénus, 1482) (1984) de Andy Warhol acomoda o rosto e o cabelo solto do ícone de Boticelli no seu estilo liso e palete ousada, enquanto Vénus Segundo Boticelli (2008) de Yin Xin reinterpreta Vénus com uma aparência chinesa. A influência de Boticelli no cinema inclui a sequência de Ursula Andress a emergir do mar abraçada a uma concha no filme “Dr. No” (1962) e um excerto do filme “As Aventuras do Barão Munchausen” (1988) no qual Uma Thurman reconstitui O Nascimento de Vénus. Funcionando como os enormes frescos que estudou em Itália, Going Forth by Day de Bill Viola é um ciclo de imagens digitais inspirado nas invenções de Boticelli. Esta secção, entre outras obras, inclui ainda a obra trompe l’oeil de Tamara de Lempicka Painting with Boticelli (1946) que apresenta o pintor com o a chave para a arte, assim como obras chave de Robert Rauschenberg, René Magritte and Maurice Denis. Na secção “Redescoberta”, podem ver-se uma selecção de obras de arte criadas por Edgar Degas, Gustace Moreauand e John Ruskin, entre outros, que traçam o impacto da arte de Boticelli no círculo pré-Rafaelita em medos do séc. XIX. Dante Gabriel Rossetti, John Ruskin e Edward Burne-Jones, todos coleccionaram obras de Boticelli. E a sua estética foi reinterpretada em La Ghirlandata (1873) de Rossetti e em The Mill: Girls Dancing to Music by a River (1870-82) de Burne-Jones. A célebre Primavera do mestre florentino assombra esta secção, como é demonstrado por The Orchard (1890) de William Morris, uma tapeçaria que retrata senhoras medievais num cenário magnânimo, por Flora (1894) de Evelyn De Morgan, ilustrando uma ninfa de flores, e pelo único filme sobrevivente de Isadora Duncan a dançar. Cópias de O Nascimento de Vénus de Edgar Degas e Gustave Moreau (1859) assim como de Duas Mulheres a copiar o fresco de Botticelli de Vénus as Graças (1894) de Etienne Azambre, demonstram a popularidade de copiar a sua obra. A influência europeia de Boticelli é manifesta em pinturas importantes de Jean-Auguste-Dominique Ingres, Arnold Böcklin e Giulio Aristide Sartorio. Finalmente, “Boticelli no seu Próprio Tempo” mostra o artista tanto como um criador extremamente dotado como um designer de génio que dirigiu um atelier extremamente bem sucedido, incluindo a sua única pintura assinada e datada A Natividade Mística (1500), três retratos supostamente da beldade lendária Simonetta Vespucci, e a requintadamente detalhada Pallas e o Centauro (1482), que viaja para Londres pela primeira vez. Um número de variações sobre a temática da Virgem e do Menino em diferentes formatos ilustra a criatividade de Boticelli enquanto designer, enquanto um grupo espectacular do seu raro corpo gráfico, incluindo cinco dos seus desenhos da Divina Comédia de Dante, reflectem a sua técnica como desenhador. A mostra encerra com duas pinturas monumentais de corpo inteiro de Vénus, repetindo a heroína de O Nascimento de Vénus, e ainda o Retrato de Uma Senhora conhecido por Smeralda Bandinelli (c. 1470-5), do V&A, que pertenceu a Rossetti, restaurado especialmente para esta exposição, entre muitas outras obras. A exposição Botticelli Reimagined, em parceria com a Gemäldegalerie – Staatliche Museen zu Berlin e com o patrocínio da Société Générale, está patente no Victoria and Albert Museum em Londres, de 5 de Março a 3 de Julho de 2016.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Capitão Elliot e Lin Zexu magistrado do Império Celeste [dropcap style=’circle’]F[/dropcap]azendo um rápido resumo do artigo da semana passada, cuja história versou sobre a dificuldade de entrar em Cantão, para aí residir, do Capitão Charles Elliot, nomeado pelo governo inglês a 7 de Junho de 1836 para superintendente do comércio britânico na China. O governador de Cantão só a 18 de Março de 1837 lhe deferiu o pedido, pois apenas a 11, ou 14 de Dezembro do ano anterior, se recebeu essa nomeação em Macau. Assim, nesta cidade ficou Elliot até 11 de Abril, quando finalmente pode seguir para Cantão o Ministro da Inglaterra. Segundo Ângela Guimarães, o Sistema Comercial de Cantão “só se pode considerar completo e oficializado em 1757, quando o comércio com os ocidentais é legalmente limitado ao porto de Cantão” e “vai durar até à I Guerra do Ópio”, assente “na tradicional concepção chinesa do mundo.” Possuindo produtos cujos estrangeiros muito apreciavam, tinham “este comércio organizado de maneira monopolística, na qual 13 Hongs, dos mais sólidos comerciantes do ramo, concentram o privilégio de comerciar com as feitorias estrangeiras, mediante o pagamento de somas significativas à corte imperial. O conjunto dos Hongs formam o Co-hong que, ainda dentro das regras da harmonia do sistema, é o responsável superior de todos os estrangeiros e o seu único intermediário nas relações oficiais com o poder imperial”. “Nessa base, o comércio, sendo considerado uma actividade privada, entre privados, não pressupõe relações diplomáticas” e “assim, os comerciantes estrangeiros admitidos a comerciar em Cantão apenas se relacionam com os comerciantes locais e dentro de um conjunto de regras muito estritas que visam a que a sua presença não perturbe excessivamente a ordem social vigente”, retirado do excelente livro Uma Relação Especial – Macau e as relações luso-chinesas (1780-1844) de Ângela Guimarães. Ainda segundo esta historiadora, a balança do comércio sino-britânico era muito desfavorável aos ingleses que, para trocar pelo chá, porcelanas, seda e lacas, apenas tinham produtos de pouca relevância como, tecidos de lã e linho, ferro, cobre e quinquilharia provenientes de Inglaterra e da Índia traziam algodão bruto, marfim, sândalo, prata e ópio. A China exigia pagamento em prata, o que levou “à procura de um produto de compensação, que acabará por ser o ópio”. ópio como moeda de troca A importação de ópio foi alvo em 1729 de uma proibição oficial em Fujian e banida em todo o Império por Édito do Imperador Yongzheng (1722-1735) em 1731, segundo refere Jacques Gernet. Continuando com este sinólogo, “a cultura do ópio progride a partir do final do século XVIII depois da ocupação da Índia pelos Ingleses. A Companhia das Índias Orientais adquire os seus primeiros direitos territoriais no Bengala em 1757 e alargam-se ao Bihar em 1765. Em 1773, apodera-se do monopólio do contrabando de ópio para a China e desenvolve a cultura da papoila, primeiramente no Bengala e, depois, em Malwa, na Índia Central”. A Companhia Inglesa das Índias Orientais em 1781 começou a enviar unicamente ópio para a China e quinze anos depois, em 1796, a China proibia de novo a importação de ópio. Foi então que a Companhia Inglesa das Índias Orientais decidiu fazer de Macau o centro para o comércio desta droga e levada em contrabando, resultou, num crescimento das quantidades que entravam clandestinamente na China, no aumento do preço e em grandes fortunas para os contrabandistas, tanto ingleses, como alguns portugueses de Macau. Com a Revolução Francesa de 1789 ocorrera o desmoronamento das antigas instituições políticas e o monopólio das grandes companhias de privilégio estatal com o liberalismo, dominante a partir da década de 1830, deu acesso aos “comerciantes livres que, em regime de licença ou em contrabando, acabarão por dominar os sectores em que se envolvem”… e segundo Ângela Guimarães, são eles, “os comerciantes da country trade, que assumem uma importância cada vez maior na percentagem do comércio” e no uso dos mecanismos fora-de-lei. Devido à tarifa imposta em Macau aos estrangeiros por Arriaga, os importadores ingleses passaram desde 1821 a ancorar os seus barcos com ópio na ilha de Lintin. “Em 1834, o parlamento inglês aboliu o monopólio (da East India Company) e liberalizou o comércio em Cantão”, segundo refere H. Gelber. Já Marques Pereira diz que, a 22 de Abril de 1834 os privilégios da Companhia Inglesa das Índias Orientais na China (EIC, East India Company) foram extintos e suspensa a sua sucursal chinesa devido ao progresso do contrabando privado de ópio. A 7 de Novembro de 1834, o Imperador Tou-Kuóng (Daoguang, 1821-1850) decretou novamente a proibição do tráfico do ópio. Mesmo assim, algumas dezenas de caixas de ópio foram tomadas a embarcações de contrabandistas e em 23 de Fevereiro do ano seguinte foram publicamente queimadas, em Cantão. Como todo este artigo está baseado em Marques Pereira e Luís Gonzaga Gomes, não usamos aspas para os citar. Já quanto às datas referidas, encontramos algumas delas diferentes para os mesmos acontecimentos e fruto das que pudemos investigar, percebe-se ter Gonzaga Gomes corrigido muitas delas. DEIXAR ANDAR Em 29 de Setembro de 1837 o enviado Elliot foi intimado ao dever de expulsar todos os negociantes e navios ingleses que traficavam em ópio, mas, fazendo ouvidos de mercador, aconselhava-os a não levarem a sério tal proibição e essa ordem só deu aos seus concidadãos passado um ano, continuando assim o comércio a fazer-se. A 10 de Janeiro de 1838 foram apreendidas em Cantão algumas caixas de ópio a um residente inglês. Já os chineses apanhados no contrabando de ópio eram enforcados; tal aconteceu em 25 de Fevereiro em Cantão e a 5 de Abril, no lado de fora das muralhas de Macau, por ordem dos mandarins, ao chinês Kuo-Si-Peng, por ter sido apanhado, em flagrante delito, a vender ópio. O Governador de Cantão a 3 de Dezembro de 1838 ordenou a imediata suspensão do comércio estrangeiro, pois nesse mesmo dia fora apreendida uma porção de ópio, que se julgou haver sido importado pelo navio americano Thomas Perkins. O consignatário daquele navio e os europeus em cuja posse o ópio fôra descoberto foram expulsos. No dia 12, em frente das feitorias, por ordem das autoridades chinesas de Cantão, deu-se princípio à execução de um fumista de ópio. Opuseram-se ao acto os europeus e o padecente foi morrer noutro cadafalso. Assim, só em 18 de Dezembro de 1838, passado cerca de um ano após ser intimado, o plenipotenciário Elliot se apressou “a fazer uma intimação aos navios ingleses, empregados em comércio de ópio, para saírem do rio de Cantão no prazo de três dias”. Já desde 12 de Julho de 1838 tinha chegado a Macau, num navio de guerra, o Almirante Maitland, com instruções para proteger o comércio inglês. Jacques Gernet refere que “entre 1800 e 1820 tinham entrado na China 10 milhões de liang”, mas depois, só em três anos, entre 1831 e 1833, saíram 10 milhões. Os comerciantes ingleses em substituição da prata traziam como moeda de troca, o ópio cujo volume em 1834 era de vinte mil e quinhentas caixas e em apenas quatro anos subira para as quarenta mil caixas (variando cada caixa entre os 63 kg e os 71 kg). Perante tão assustador aumento exponencial do tráfico de ópio e a arrogância agressiva dos ingleses, que faziam tudo o que bem lhes apetecia e em constantes transgressões desafiavam à descarada o poder chinês, os governantes Qing consciencializaram-se do perigo que corriam. Por isso, em Dezembro de 1838 foi nomeado Lin Zexu (1785-1850) para acabar com tal comércio, maioritariamente feito pelo porto de Guangzhou. A 1 de Janeiro de 1839 foi restabelecimento temporariamente o comércio estrangeiro em Cantão, interrompido, por ordem das autoridades chinesas, em 3 de Dezembro do ano anterior. O COMISSÁRIO LIN Em 1836, o Imperador Daoguang (1821-1850) pedira aos seus principais ministros pareceres sobre como se deveria atacar o problema do ópio. Assim escutou quem defendesse a legalização do seu comércio, pois controlado acabava com o contrabando e a corrupção que daí advinha, podendo este ser uma importante fonte de receita. Houve quem propusesse o incentivo ao seu cultivo, mas a maioria foi pela sua proibição, já que o ópio vinha minando a estrutura social chinesa. O Imperador Daoguang decidiu-se pela proibição e no dia 15 da décima primeira Lua do 18º ano do seu reinado (Dezembro de 1838, ou Janeiro de 1839) apontou o então Vice-Rei de Hugang (Hunan e Hubei), Lin Zexu para na qualidade de Qin Chai Da Chen, magistrado especial da Corte imperial e seu representante directo, tentar acabar com o consumo recreativo de ópio e o seu clandestino tráfico. Lin Zexu, nascido a 30 de Agosto de 1785 em Houguan (actual Fuzhou, capital da província de Fujian) de uma família sem muitos recursos, pois o pai como professor não ganhava o suficiente para dar uma vida desafogada aos onze filhos, mostrou desde criança grande talento. Lin Zexu, com o nome de cortesia Yuanfu, aos dez anos escrevia poemas e em 1799, com a tese “Lealdade ao País, orientar o povo e obediência aos pais”, foi o primeiro nos exames preparatórios, que davam acesso aos Exames Imperiais. Aos dezanove anos tinha já o título de Juren e em 1807 foi seleccionado para assistente de Zhang Shicheng, o Governador de Fujian. Em 1811, após aprovado nos exames do Palácio, já com o título de Jinshi foi durante sete anos trabalhar na Academia Hanlin em Beijing, preparando-se em diferentes áreas para os futuros desafios. Apontado em 1820 como supervisor do Controlo de Cheias do Lago Hangjia, na província de Zhejiang, devido à sua intransigência contra os oficiais corruptos, o que lhe trouxe bastantes inimizades no seio dos oficiais civis, no ano seguinte deixou o cargo e regressou à terra natal. Alguns dos seus amigos oficiais reportaram a sua situação ao imperador Dauguang, que o apontou como Ancha da província de Jiangsu. Durante os trinta anos da sua brilhante carreira de Oficial Civil, passou pelo governo de catorze províncias e deu o seu melhor nos muitos altos cargos que exerceu, não se aproveitando deles para tirar partido e enriquecer. Vivendo com o espírito de abnegação, tentou disciplinar os seus subordinados contra a corrupção, que nessa altura grassava pela China da dinastia Qing. Foi um dos primeiros chineses a opor-se à política de fechar a China em si mesmo e procurou conhecer o pensamento e a tecnologia ocidental, para melhor resistir às incursões britânicas. Assim mandou traduzir os tratados estrangeiros sobre a produção de armas e barcos e, para saber o que eles pensavam e o que escreviam nos jornais tanto de Londres, como da Austrália, de Singapura, da Índia, assim como nos de Macau. Cidadão exemplar, Lin Zexu ficou conhecido por ter mandado queimar em Humen, na província de Guangdong, uma grande quantidade de ópio expropriado aos comerciantes ingleses, o que deu início à Guerra do Ópio. Mas ainda antes da chegada a Cantão de Lin Zexu, o Vice-Rei de Cantão, Deng Tingzhen, a 7 de Janeiro de 1839 ordenou que os seus meirinhos procedessem a uma busca em todas as habitações da cidade e apreendessem qualquer porção de ópio que nelas encontrassem, devendo ao mesmo tempo apoderar-se dos possuidores dessa droga proibida, para serem executados. É de notar neste facto que o povo de Cantão não consentiu que a busca se efectuasse sem que primeiro fossem vistas as habitações dos próprios meirinhos. A 26 de Fevereiro, defronte das feitorias europeias foi executado um chinês negociante de ópio e perante tal espectáculo os consulados arriaram, neste acto, as suas bandeiras. A 10 de Março de 1839 chegou a Cantão o célebre comissário imperial chinês Lint-sih-siu (Lin Zexu) e oito dias depois, por Édito ordenava que lhe fosse entregue sem demora todo o ópio existente em navios e na cidade.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasPonto cego [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]odo o espelho é terrível. Não o disse Rilke. E no entanto apetecia-me dizer. Não é inocente. A enorme ternura de Rilke pelas grandes amantes infelizes, o reconhecimento da impossibilidade de uma vida perpetuamente suspensa no abismo, e face a isso a síntese da afirmação de vida e morte como uma mesma coisa, nas suas Elegias, concentra nos anjos o paradigma. Belo e terrível, desejável e distante. Como se na inacessibilidade e só aí, pudesse dimensionar-se um amor desmedido. Talvez. A superação da miséria humana em transgressão, num voo pelas camadas de maior altitude rumo à descoberta da beleza sublime da alma. E eles, criaturas zelosas, redentoras ou monstruosamente e inacessivelmente narcísicas. Mesmo no seu olhar. Quando o que reflecte se espelha no reflectido. “Todo o anjo é terrível”. Foi o que ele disse. Na realidade o que poderá ser um anjo senão um espelho em que se reflecte de nós aquilo com que mais se identifica o nosso ser, de olhar e desejo, ou que mais gostamos de ver limpidamente reconhecido, aceite, amado e velado, de longe ou perto. Como só os anjos podem. Anjos como espelhos que escolhemos, às vezes, por defeito de inevitabilidade. A que nos prendemos mesmo sem querer. Que devolvem o que nunca lhes demos. Estranhos em que sem aceitar, reconhecemos uma imagem distorcida. As pessoas sentem-se espelhadas e espelham-se nisso. A prata límpida mesmo se falível. A limpidez do erro. Humano. Tornado transcendente. São belos os espelhos. Os anjos. Mas é de espelhos que falo. Imediatos e irreprimíveis. Imperfeitos e circunstanciais. No tempo, na luz, no desencanto, na suspeita. São belos mas abusivos por vezes. Os espelhos não conhecem a mais do que numa certa forma de ser prismática. Exacerbado o olhar no momento com uma distorção incontornável. Uma imagem parada. Etérea e desenraizada. Bidimensional, sem pontes entre as várias camadas de sentido. O sentido de si. A memória e as suas estranhas incursões a modelos, a conceitos e a padrões. Basta não olhar e desaparece esse olhar que nos não pertence, mas pelo contrário rouba. E refaz. Como num livro de imagens Pop up. Que é preciso abrir para que se construam. Naqueles é preciso olhar. E o olhar devolvido pode arrepiar, revoltar, entristecer. No que tem por defeito ou por excesso. Como vozes. Ecos. Devoluções enganosas. Que nos apanham desprevenidos. Como os espelhos nos conhecem mal. Por vezes passo por eles, superfícies estanhadas ou vidros numa rua, distraidamente e sem esperar, e mal me reconheço. Quase uma outra pessoa, uma outra idade, um outro momento de mim, uma outra tristeza que já não é. E no entanto, dados suficientes para me saber eu. Uma imagem do eu. Uma delas. No momento único, irrepetível e eterno em si. Como uma acentuação excessiva ou um nivelamento que modera aleatoriamente volumes, texturas e formas precisas que sei de mim. Uma imagem. Não mais que uma imagem. Incompleta. De que não me posso defender. Os espelhos têm essa liberdade absoluta de revelar sem perdão nem emenda. De magoar. De iludir. Como se tudo lhes fora permitido, roubam. Devolvem aquilo que lhes não foi cedido. Como os olhares de outro. Não cabe em nenhum lugar um ensaio sobre o espelho. E teria que falar de Borges. Não ter ilusões. Não mais do que aquelas que momentaneamente nos assaltam sobre a fiabilidade deste. Quando o perscrutamos interrogativamente, ansiosamente necessitados de uma resposta que cale uma voz qualquer. Que teima em moer e minar, de temor ou inevitabilidade, a própria mutável construção que vamos edificando de nós. O espelho, tão escrito e descrito, é o eu o que não sou eu. Tudo e a desmedida de tudo o que se lhe opõe por relação por empatia similitude reflexão, reacção. Discurso. Com ida e retorno sobre si. Tudo e tudo o resto que se lhe refere. Reflecte. Inspira. Sinuoso, enganador, sedutor. Próprio ou alheio. Abusivo ou desejado. O discurso, qualquer discurso em espelho. Identificação e rejeição. O ser, o parecer, o ver, o saber e o não querer. Quantos encontramos de nós ao olhar o espelho. De entre os que tememos os que amamos e os que rejeitamos. Que desconhecido coincidente de um ângulo de nós. Eu não posso em alguns dias julgar outra maldade que não a minha e qualquer outra complacência. Para além de toda a falibilidade humana, antes de saber se o outro é, há que saber ser. Se se é. Que relação ou elo há entre o momento do olhar e a eternidade de ser. Quanto de nós pomos no outro que nos olha e quanto dele. Quanto de nós é cru e violento e quanto fabricado no exílio da ficção. Nem sempre as partes permitem intuir a estrutura de um todo. Há por vezes vestígios de qualquer coisa atávica e visceral da memória do que somos, ao espelho. Sinto isso mesmo quando ela não me trata por tu. E me pergunta por alguém exterior que é ela, e alguém estranha que sou eu. Como nas fotografias do corredor. E eu vejo que no meio de tudo o que é perdido, há algo essencial que ainda estrutura, numa arquitectura de segurança, alguém que se perdeu e continua numa perda progressiva. Apesar de tudo, consola-me. Na medida do que ainda é possível. É que, comigo, ela dorme, nos intervalos das perguntas. Ela que foi mãe, memória e espelhos. Também. E dessa perda, é como se o essencial se filtrasse no que fica. E cada dia limpo e inicial a fluir na matéria do tempo. E dessa amálgama de memórias e de imagens refectidas, é por vezes a custo que não me confundo e afogo. Dissolução. Cada um sofre da sua em particular. Ou imune nas suas radicais contradições. Mas é uma forma de destruição perigosa. Sinto. Sinto-a como nunca. E paraliso. Sem meios de reunir as franjas que começam a escapar-me dos dedos. Cada vez mais dedos desprotegidos sem uma mão que os feche e una e aperte e junte e reúna no tacto a inúmeras sensações da proximidade, da familiaridade. O que é o olhar senão uma apropriação de algo ou de alguém com que nos cruzamos. Gosto de observar o olhar dos outros. Gosto de fruir as sensações que emanam das coisas através do olhar dos outros. O olhar é mágico na sua predação incontida. Não gosto daquelas pessoas que não conseguem fixar o olhar no olhar dos outros por uma fracção de segundo sequer. Em que as pálpebras se quebram de súbito e a íris rola para baixo e para os lados sem estabilizar. Há um limite para cada um. Há também o imite do respeito pelo conforto do outro. E que saber aliviar o outro da insistência de um olhar. Libertá-lo dessa inquisição ou dessa vigilância. O olhar do espelho. Do outro. I am silver and exact. I have no preconceptions. Whatever I see I swallow immediately Just as it is, unmisted by love or dislike. I am not cruel, only truthful ‚ The eye of a little god, four-cornered. Most of the time I meditate on the opposite wall. It is pink, with speckles. I have looked at it so long I think it is part of my heart. But it flickers. Faces and darkness separate us over and over. Now I am a lake. A woman bends over me, Searching my reaches for what she really is. Then she turns to those liars, the candles or the moon. I see her back, and reflect it faithfully. She rewards me with tears and an agitation of hands. I am important to her. She comes and goes. Each morning it is her face that replaces the darkness. In me she has drowned a young girl, and in me an old woman Rises toward her day after day, like a terrible fish. E no poema de Sylvia Plath, Mirror, ouve-se a voz do espelho. Porque é disso que se trata também. Da inevitável reciprocidade com que passamos. Olhando ou devolvendo um olhar. Espelhados nele ou difusamente distorcidos. E nesse espelho-olhar podemos morrer. Somos o que somos. Somos o que somos na vida em que passamos, dos outros que não nós. Nem sempre se gosta de admitir que somos em parte o que somos de acordo com o olhar do outro. Que somos diferentes pessoas – seres- com cada um dos outros e menos ainda que somos em parte corruptíveis pelo olhar do outro. Vendemo-nos por vezes por isso para isso. Ou tentamos não o fazer. Não mudar de roupa, de penteado e de andar. De leituras e de vícios. De olhar. Mas pode acontecer reconhecermo-nos nesse outro que passa e de passagem reflecte, de uma forma maior, um detalhe que ninguém viu, uma liberdade que ninguém deixou existir, uma admiração específica, um olhar que vê. E gostar desse olhar pelo que reflete de nós. E que honestamente somos, ou queremos ser. Ou uma coincidência de fantasias que se cruza feliz. Somos momentos na esteira universal de sensações e memórias dos outros. Momentos ínfimos, pontuais e descartados ou em continuidade. O conforto ou desconforto de sermos diferentes do somos com cada um e de sermos diferentes do que somos com alguns, de sermos de maneira forçada o que gostaríamos de ser ou de sermos sem mais delongas só o que nos saiu naquele momento reflectido. Um dia acontece vermo-nos ao espelho de algum olhar e sermos exactamente coincidentes, óbvios e assim naturalmente tão parecidos connosco, que se entende de repente que é em parte isso que procuramos. O exercício da autenticidade em luta de morte com as capas e as máscaras. Acontece por vezes esse olhar escravizante não ser o de quem se ama. Mas isso também é preciso que seja possível no rol de inúmeras combinações de possibilidades aleatórias. Circuitos viciosos que por vezes desgastam e confundem. Precisar de encontrar com mais nitidez uma nova imagem. Própria. Um grande círculo descrito em torno de um lado B da vida. Por vezes. Outros seres e outras emoções. O teste da liberdade de ser a partir do grau zero. As medidas. Depois, resta saber que parte de mim volta que parte de mim fica. A importância das partes no todo. E se por vezes os espelhos, em vez de oferecerem uma história e uma personagem, oferecem ao espectador a possibilidade de encarnar a sua história num personagem pré-dado, resta a resignação de se ser também aquilo que vive no olhar de outros. Questões de uma difícil e penosa identificação. Recriamos uma noção de ser em si que necessita de ser incorporada numa imagem que o espelho oferece, mas com muito a reelaborar. Será que somos quando ou o que não sabemos que somos? Ou o problema do ser passa simplesmente pelo assumir de uma certa consciência de si, sem que a questão da verosimilhança se coloque? Mas o ser é em si e não nos outros, no olhar e saber dos outros. Não é aí que se estrutura. Nem no querer ser. Os espelhos confundem mas não mudam. Não nos mudam. Na pose. No eco do espelho. Quando tenho dúvidas, penso em breve sei quem sou. É o que me faz suportar o tempo. É a idade. Esta idade estranha que resume tantas. Para trás e aproximadas pela frente. E misturadas. E dizer das idades é dizer o menos de tudo isto. E porque hoje em dia, há dias de eco, de sombra de reflexos e de nada. Dias do tempo do saber quem sou. A pose e a espera que se adianta no espelho. Antecipação. Porque o meu olhar como o do outro anda incompleto. Tal como na retina. Em cada olhar um ponto cego.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA sinopse dos dias [dropcap style=’circle’]M[/dropcap]ais atentados, mais Trump, mais e menos dinheiro, mais nada, mais isto, e nada do que possa ser aquilo, mais polícias, mais ladrões, uma chuva amena, e um vento forte, mais nada parece acontecer. Que este acontecer não é nada, dado que cada um no seu posto de comando nada faz acontecer para além de se inteirar que existiram aquelas coisas, com as quais se convive sem mais, e nos vamos adaptamos sem menos. Olhada assim, esta nossa condição cumpre sem dúvida a ausência confessional de um padre e dispensa um psicólogo. Nada que possa motivar mais que uma interjeição e, simultaneamente, o alívio de não termos estado em certos lugares. Efectivamente é um alívio! E é tanto mais aliviador se pensarmos que a Primavera está aqui e para terror já basta, ou bastou, o frio Inverno. Aqui, dado que o mundo é grande, e há muitas Primaveras: até árabes, que fizeram florescer aquelas lindas plantas que de tanto crescerem inundaram a nossa. A bem-dizer, ninguém sabe como tratar de certos problemas. Pensa-se que pela atenção, outros pela sugestão, ainda outros, imaginem, pela repressão, mas ninguém sabe o formato de um abcesso quando lhe dá a dor inflamatória do crescimento. A vida dos europeus é esmagadoramente marcial. Não que andem a matar de forma pensada, mas por que são activos guerreiros conquistadores e, de manhã à noite, pensam em como nunca perderem a forma vitoriosa das suas vidas. Daí que cada um que trate de si, se levante, e quanto muito todos juntos, contra e a favor não se sabe de quê. É de tal ordem um assunto problemático, que os atacantes são europeus. também, não lhes sendo reconhecido grandes méritos para tão elevada condição, mesmo assim eles podem andar entre os outros, o que define a nossa magnanimidade . Pois, mas há um instante em que de tão magnânimos ficamos longe da compreensão dos factos e, se por um lado a Europa sente no seu interior o resultado da destra forma de actuar ao longo de décadas, não é menos verdade que nunca estará preparada para aceitar o óbvio: vai lutar, tem de lutar com agentes de fora uma guerra que ela não sabe realizar. Nós estamos habituados a guerrear uns com os outros, é aí que as guerras sobem de preito, e fazem hinos, agora desta maneira, nem que estivéssemos armados até aos dentes teríamos qualquer reacção coordenada. O que estamos a assistir é apenas a um ataque artesanal, dado que o que se lhe segue será muito mais sofisticado e aí espero que haja cientistas que tenham capacidade de resolução imediata – o que há-de vir, já não é artesanal – nem a corrida é, de polícia para homem, creio mesmo, que existe um perigo iminente e que começa o processo sofisticado de algo que nunca assistimos. Ninguém, claro está, se sente preparado, até pela imprevisibilidade dos acontecimentos. Não sei quem dá ou tem as ordens das Centrais Nucleares, nem como se gere essa informação – os processos químicos. Sabe-se que o que se sabe, não é seguro, mas que muita coisa existe de forma prestes a eclodir. Numa atmosfera desta natureza em que todos os equilíbrios estão de facto comprometidos, nós não cruzamos os braços e ficamos chorando nos rios da Babilónia, nós estamos ainda vivos e, seguramente, interessados em evitar o pior, que não merecemos, não fizemos, não somos responsáveis. Não sei o que despoleta este exercício de atirar contra gente indefesa, mas não me parece uma preparação de expansionismo conquistador. Estas formas estão a ser demasiado aleatórias e não se pode extrair daqui uma estrutura de preparação com resultados, a não ser o medo, e depois o conformismo de com ele lidarmos. Os estímulos vão subindo à medida que nos vamos adaptando, o grau de exigência do embate vai mudando de graduação, até por que nesta vida, tal como a concebemos, tudo é um espectáculo, um testar do limite até ultrapassarmos o grau de surpresa. Creio que tenhamos um limite para conseguir ainda estar vivos perante as leis naturais e é por essas que me interesso neste momento, em que o ambiental pode estar sujeito a rupturas muito graves. Vamos adaptar-nos por compulsão, mas pode não haver um local estável… uma forma que nos deixe prosseguir. Foi assim que passámos um tempo de fronteira com toda a angústia, renovação, e sempre alguma secreta e profunda indignação. Dizem: e os outros? Há naturalmente a lei da empatia, aquela que faz com que nos reconheçamos no outro, por estilo de vida, locais comuns e sólidas conquistas. Mas nesta altura também exorcizam as vozes salvíficas, a de que a nossa vida ou a do vizinho mais acima, vale tanto como qualquer outra. É verdade! Mas nestas, muito próximas, estamos lá todos de forma que ainda não queremos pensar. Há sempre especialistas que vivem do dizer, mas não do bem-dizer. Dizem o que se passou por cima das notícias factuais o que faz com que muitos se especializem na ruína aparente com ideias vãs para causas cegas e, assim, de parecer em pareceres, se ditam as sortes que já foram melhores e nos desditam os Fados. Portugal, na sua soberba generosa de patologias sociais, chega-se sempre ao invasor ou aquele que anda na “berlinda” e é vê-los direitos à Mesquita, para dizerem agora laicamente que a paz que dali vem é um bem a preservar. Ora as três Religiões, com mais focagem para o Catolicismo e Islão, são organizações, também elas, guerreiras, e mesmo o Judaísmo na sua forma actual se armou até aos dentes. mas, por uma razão bizarra, há que saber engolir todos os dislates e participar na bandeira a meia haste não vá o morto ressurgir. Este mimetismo urgente, esta quase “enrascada” situação, firma-se por má memória e décadas longas, em que o mal era sempre o menos, se nos soubéssemos aliados. Com uma enumerada vida de banditismo dentro das instituições estatais, mais o risco de terrorismo a toda a hora – embora aqui não – por que isto e mais aquilo, somos brandos, mas não muito, a ver pelas mortes diárias dentro de casa, a sensação com que se fica é que não há fuga possível. Dentro de casa há mesmo guerras medonhas! Estamos num terreno íntimo de plena Guerra Civil dada a compasso pela degradação do estilo de vida e da dificuldade que afinal é estar junto, ou ter uma família, que essa, estranhamente é assassina. Cada vez se pode fazer menos, e ver mais, ver isto tudo como se estivéssemos num filme fantástico e nada nos sobrasse para a compostura dos dias. Ledos e quedos nos vamos mantendo, exercitando o já trazido de outras fontes e tentando rebater os dias com conclusões paradas. Toda esta orgânica não é a do Verbo, que esse verba, reverbera, isto é a insalubridade pós-vulcânica do grunhido desenfreado face ao pavor.«Os que vão morrer te saúdam». O cerimonial dos fortes cuja morte se dissipa em tamanha ousadia, usam agora os silenciosos bombistas não tementes: perante isto, o que resta dos efeitos colaterais tão do agrado da estratégia moral? Muito pouco. Se ao menos pudéssemos compreender como há gente que faz certas coisas a um bem tutelar como a vida, talvez estivéssemos menos confusos: dizem então: -pois, não têm nada a perder! – ! Não têm?! Então e a vida que têm dentro, não se perde? E assim de argumento patético em enumeradas vocações confrangedoras, nos vamos adentrando cada dia mais em tudo, mesmo tudo, que pensáramos impossível. Talvez já haja “bunkers” preparados para fugas e muito destes milhões, que se soltaram e subitamente desapareceram, estejam agora correndo em subsolos vocacionados para a salvação dos piores. Andando nesta estrada de todos, não vimos nada, dado que todos cegaram como nos ensaios, encolhemos mansamente os ombros pensando que vai cair o casaco que veste um cadáver adiado mas que já não procria e um cansaço qualquer nos doma e atordoa. Esta sinopse é incompleta porque vamos escrever coisas tais que corremos brevemente o risco de ser presos. Mais presos! Amordaçados. Mas não faz mal, agora é Primavera e ainda não é árabe, é a nossa Primavera, e até acabar temos de saber que há coisas e factos que são preciosos, fractais, fraccionados, mas, nós que assistimos a tanto, temos o direito de renascer por amor à estrela que nos guia. Imolámos o Cordeiro, a Primavera é nossa, e mansamente levaremos os rebanhos para o pasto verde enquanto nos deixar a transumância destas fontes. Destaque Talvez já haja “bunkers” preparados para fugas e muito destes milhões, que se soltaram e subitamente desapareceram, estejam agora correndo em subsolos vocacionados para a salvação dos piores. Andando nesta estrada de todos, não vimos nada, dado que todos cegaram como nos ensaios, encolhemos mansamente os ombros pensando que vai cair o casaco que veste um cadáver adiado mas que já não procria e um cansaço qualquer nos doma e atordoa
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasUm mau poema, as reformas da língua chinesa e a censura 誓食十獅 * por Julie O’Yang [dropcap style=’circle’]Q[/dropcap]ualquer chinês culto gostaria de proferir a seguinte afirmação: “Muita gente não se apercebe de que o sistema de escrita chinês é o principal sustentáculo de uma civilização que tem continuado ao longo de 5.000 anos”. Sendo falsa, é uma mentira com boas intenções, embora incultas. O que tem continuado não é uma civilização – as civilizações chinesas (plural) são suficientemente diversas para se afirmarem individualmente – mas sim um sistema de escrita único – o sistema hanzi 汉字: os caracteres chineses – que persistem há mais de 2.000 anos, desde o séc. III AC, até aos nossos dias. O primeiro imperador Qin, fundador desta Dinastia, introduziu várias reformas: a moeda e os pesos & medidas foram padronizados e um sistema de escrita uniforme foi estabelecido. Desde então, o sistema de escrita Qin tem funcionado como o cimento cultural que manteve, e continua a manter, unida uma vastidão de diferentes povos falantes de outras tantas línguas. (O Imperador Qin lançou também as bases do grande projecto de defesa do país, a famosa Muralha da China.) Mas então, o que vem a ser o Pinyin ou Hanyu Pinyin 汉语拼音? Pinyin é a forma romanizada dos caracteres chineses. O sistema Hanyu Pinyin foi desenvolvido na década de 50 do séc. XX, baseado em formas anteriores de romanização, que remontam aos finais do séc. XVI, quando os primeiros Jesuítas italianos chegaram à China. O sistema Pinyin oficial foi implementado pelo Governo chinês em 1958, tendo sido várias vezes revisto. Embora continue a ser controverso, o sistema Hanyu Pinyin não deixou de ser bem-sucedido. O Pinyin sem a sinalética dos tons é muitas vezes usado em publicações estrangeiras para soletrar nomes chineses e pode servir como método para introdução de caracteres chineses em computadores. E, no entanto, poucos sabem que a romanização foi de facto um dos sonhos da China moderna. Teve início quando um proeminente líder do Novo Movimento Cultural, Lu Xun (anos 10 e 20 do séc. XX), declarou: “Se os caracteres chineses não forem abolidos, a China irá sem dúvida falhar.” O movimento Latinista não teve nessa época tanto impacto como 100 anos antes, mas manteve um acentuado gosto esquerdista e, em Janeiro de 1941, o Presidente Mao escreveu a famosa frase: “Quanto mais implementarmos e divulgarmos o movimento Latinista, melhor!” O alcance das palavras de Mao manteve o seu impacto junto da intelligenzia chinesa até aos anos 80, altura da Reforma para a Abertura. O poema que transcrevo a seguir pode explicar porque é que a romanização não é uma ideia a reter: Chinês Tradicional 《施氏食獅史》 石室詩士施氏,嗜獅,誓食十獅。 氏時時適市視獅。 十時,適十獅適市。 是時,適施氏適市。 氏視是十獅,恃矢勢,使是十獅逝世。 氏拾是十獅屍,適石室。 石室濕,氏使侍拭石室。 石室拭,氏始試食是十獅。 食時,始識是十獅屍,實十石獅屍。 試釋是事。 Tradução «O Poeta que Comia Leões na Caverna de Pedra» Numa caverna de pedra vivia um poeta com o apelido Shi, viciado em carne de leão. Um dia resolveu comer dez. Ia muitas vezes ao mercado à procura de leões. Às dez horas da manhã, tinham acabado de chegar dez leões ao mercado. A essa hora, Shi chegou também. Ele viu os leões e, usando as suas fieis setas, matou-os a todos. Levou então os corpos dos leões para a caverna de pedra. A caverna estava suja. Pediu aos criados para a limparem. Depois da caverna ter sido limpa, tentou comer os dez leões. Quando os comeu, apercebeu-se que afinal os corpos eram de pedra. Tentem lá explicar este enigma. Em Pinyin «Shī Shì shí shī shǐ » Shíshì shīshì Shī Shì, shì shī, shì shí shí shī. Shì shíshí shì shì shì shī. Shí shí, shì shí shī shì shì. Shì shí, shì Shī Shì shì shì. Shì shì shì shí shī, shì shǐ shì, shǐ shì shí shī shìshì. Shì shí shì shí shī shī, shì shíshì. Shíshì shī, Shì shǐ shì shì shíshì. Shíshì shì, Shì shǐ shì shí shì shí shī. Shí shí, shǐ shí shì shí shī shī, shí shí shí shī shī. Shì shì shì shì. Fica assim provado que há muito mais caracteres do que sons. E é precisamente por isto que os expeditos cibernautas chineses, envolvidos em acções de cidadania, escapam à censura: substituindo caracteres censurados por outros com o mesmo som e, se dominarem bem esta técnica, esta linguagem é enriquecida com uma pitada de ironia. E este aspecto, estou convencida, representa um dos encantos dos antigos caracteres: podemos esconder-nos no nevoeiro e divertirmo-nos sem querer saber de responsabilidades! Para dar um cheirinho deste divertimento, praticado com perícia quer pelo Governo quer pelo povo chinês, ficam aqui 12 estranhas expressões banidas do Weibo em 2015: Tigre + vir à superfície 老虎+浮出水面 Possa o vento soprar as tuas velas 一帆风顺 Kang + massas instantâneas 康+方便面 Hoje, amanhã 今天,明天 Pato Amarelo 黄鸭子 Srª. Xi + iPhone 习夫人+iPhone Sapo 蛤蟆 Helicóptero 直升机 Deus da Praga 瘟神 Da Hun Jun 大荤君 Velas 蜡烛 Zhan Zhan Dian 占占点
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias8 – Ela * por José Drummond [dropcap style=’circle’]T[/dropcap]ínhamos um plano. Casar, ter filhos e viver felizes para sempre. Lembras-te de como entretida me demorava a criar as casas nas quais iríamos viver e de como desenhei a nossa família naquele jogo de computador? Lembras-te de como descobrimos e nos ríamos com o aspecto dos nossos filhos naquela recreação? Lembras-te como eu sonhava? Lembras-te? Eu tinha fome de ti. Tinha uma fome e uma sede de ti que não parava. Nunca. Nunca parava. Parecia que não ia acabar nunca. Lembras-te? Agora a única coisa que vejo é este monte de pus, esta secreção amarelada e viscosa que me infecta a existência. Tenho que conseguir atravessar a ponte! Não sei porque voltei para trás? Não sei porque voltei? Para me enterrar na cama onde fomos felizes? Porque quero acreditar que o facto de voltar à cama onde fomos felizes te irá trazer de novo? Como se isso de algum modo significasse voltar aquele momento de nós mesmos onde tudo existia em suspenso. Mas sempre que volto a esta cama desde que te foste embora é como voltar a uma parte que já não me pertence. É um voltar a uma parte que devo esquecer. A esta coisa interrompida. Porque esta cama é hoje o sítio onde sou infeliz. Porque a memória é uma construção labiríntica. Nós poderíamos ser o que quiséssemos. Poderíamos ser o mundo inteiro ou simplesmente o nosso sonho. Poderíamos ser uma praia deserta com um eterno pôr-do-sol. Poderíamos ser um banco de jardim em Budapeste, uma mesa de café com poucos clientes em Viena ou um sino de igreja imóvel em Praga. Poderíamos ser pequenos gestos que se completam em diversos andamentos. Poderíamos ser tudo. E nunca importaria o frio. E nunca importaria o calor. Nada importaria desde que nos tivéssemos um ao outro. Porque nada muda de temperatura, perde a cor ou envelhece quando somos felizes. Mas hoje, que volto a esta cama, é como ela tivesse mudado de lugar. Nada é igual a quando aqui chegámos. Esta cama é hoje indiferente. Não é mais o berço de dois namorados apaixonados, ardentes. Aparentemente nem sente a nossa falta. Não é mais cama. Não existe. Foste-te, e contigo foram todos os espelhos, e contigo foram todos os espaços. O amor ficou para trás. Perdeu. Perdeu-se. Já passou. Foi bom enquanto durou. E assim nos mataste. Agora podemos nos encontrar com estranhos, ter bebidas com eles, e acabar em quartos de hotel. De seguida, no quarto escuro, fechado, o jogo do sexo poderá começar. Elaborado ou impulsivo. Quem sabe com algemas, uma mordaça, uma venda nos olhos. Em pouco tempo poderá passar a selvagem e arriscado. O suor dos corpos em movimento. Consegues imaginar?… Ou ainda te causa tanta repulsa como me causa a mim? Porque sabes que isso vai acontecer e quando acontecer irá incorporar em si a tentação do abismo. Porque não importa quantas vezes forem necessárias. Porque todas elas terão uma razão exclusiva. Uma única intenção. O fazer apagar em nós o outro. Até que não exista mais nenhum traço de ti no meu corpo. Até que não exista nenhum traço de mim no teu. E os jogos irão ser perigosos, de modo a afirmar a diferença entre lascívia e amor. O cinto do roupão ao redor de um pescoço. E os nossos corpos a contorcer-se entre agonia e excitação. Até que cada orgasmo, rápido ou prolongado, nos fará esquecer um pouco mais quem somos. E iremos prosseguir assim, esperando que em cada orgasmo possamos renascer. E sei que vai ser intenso. Vai acontecer em crescendo até resultar com intervalos pequenos. Porque a carne precisa. Porque a mente precisa. E sei que não vamos querer um amante regular. Porque isso seria uma traição. É por isso que serão sempre estranhos a quem não devemos explicação. Pessoas que desaparecem das nossas vidas de seguida. Será impossível descobrir o que desejam, o que querem, o que têm escondido. E esse será o perigo real. O perigo de desaparecermos nesse momento. De nos deslocarmos tanto da realidade que poderemos ser feridos, ou até mortos, por alguém louco, alguém desconhecido. E quão melhor seria morrer nas tuas mãos. Sei que saíste muitas vezes sozinho. Deixavas-me adormecer e saías. Deixavas-te perder na cidade sem mim. Tinhas em ti uma escuridão que te estrangulava, que te empurrava para a morte, como se não conseguisses evitar as correntes do aço frio do destino. Onde estás neste preciso momento? Em algum lugar seguro? Ao pé de alguém que amas? Que amas mais que tudo? E se tudo isso desaparecesse? E se, de repente, tudo o que tu pudesses fazer fosse sobreviver? Iria conseguir, certo? Tentarias pelo menos? Farias coisas, coisas horríveis, aquelas coisas horríveis. Farias essas coisas até perderes a última que realmente importa, a única que faz sentido, tu mesmo. Mas, e se pudesses voltar atrás? Se pudesses recuperar tudo? Se bastasse pressionar um botão para reiniciar tudo de novo? Pressionavas esse botão, certo? Eu quero acreditar que sim. “A polícia acredita agora que o “estripador da Taipa” possa ser um visitante. Para além da vigilância nas ruas principais na Rua da Taipa a polícia aumentou a segurança nas fronteiras.”
Amélia Vieira h | Artes, Letras e Ideias“O Fim” de António Patrício [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]eriam dez horas da manhã numa casa onde os gatos se movimentavam e nem sempre deslizam indeléveis por entre copos de cristal. Manhã do último dia dos Idos de Março, ventoso e lúgubre. Os gatos gostam de livros, vá-se lá saber porquê, gostam de estar nas bibliotecas em cima deles, dentro deles, é possível que gostem do contacto com o papel, mas, se formos para os ecrãs, eles são igualmente atentos e interessados. É bom ter gatos, não tanto pela delícia, mas por causa de uma frecha cósmica que não saberíamos abrir sem eles, quase sempre os seus dons nos iluminam em segundos, e assim lhes agradecemos o encanto das suas presenças. A mesa estava lá no meio da casa, como sempre está, mas naquela manhã resolvi mudá-la, e, no centro, no coração do” banquete” devia estar há muito o livro «O Fim», de António Patrício. É certo que deixara de ver esse livro numa procura sem conclusões. Fez lembrar-me aquela frase alquímica: “e de repente, lá estava a Roda.” O Fim? Que Fim? Que quererá dizer o acaso? Nessa manhã, mais atentados, os que se esperam, os inesperados… O fim, não é certamente, é mais do que se sabe e do que não desejávamos conhecer. Reli a peça de teatro, magistral. Encontrei-lhe novos ângulos, plataformas entendíveis e melodias internas, senti um frémito de comoção pela limpidez de descrição que antecede a tragédia, e dos sinais, vontades, decisões, que são quase equações matemáticas e nós as peças de um jogo cósmico de carácter derradeiro. Sempre premonitória e elegante, ela escalou a sua parte de tempo e veio até mim naquela manhã sombria. A Rainha é a figura central da peça, é ela que presencia a invasão do seu país e as batalhas mortais nas ruas como uma dança de um coro grego. Uma talvez emblemática e simbólica Merkel ou uma Europa transportada por um Touro… num meio apocalíptico e demencial. Ela só tinha querido uma festa, porém. O seu ministro diz aquilo que os nossos olhos não deixam de contemplar no centro da pupila, esse negro vivo da palavra; diz assim: “Foi o nosso maior vício a esperança. Há oito dias que já não existimos, desde que os representantes dos nossos credores, reunidos em conferência internacional, o decidiram. (…) vão dar-nos mesmo um parlamento… Só não existimos… De resto, um parlamento póstumo…. comícios póstumos…”. É surpreendente como nos abeiramos vertiginosamente daqui, como se as grandes obras tivessem uma janela muito aberta para a distância do seu momento e nos aparecessem por debaixo das mesas quando anunciam a chegada. Como se nós fossemos visitados de novo no instante imponderável e dele tivéssemos à espera como de uma revelação. Creio que os seres como Patrício, deixaram no éter partículas de imortalidade, este trabalho acrescenta alma, e essa é uma conquista do que se faz, dado que animados somos todos, mas podemos esquecer-nos dela ao longo do percurso. Por isso, esta obra que é seguida do «Diálogo na Alhambra»; é uma quase Anunciação do humilde poeta que sou, ao mestre que me dita. E no Al-Andaluz nos encontramos num diálogo: “A Alhambra agora está sob o Califado da Morte . Depois estes prodigiosos ciprestes… As laranjeiras estão em flor, p´ra que o silêncio se perfume. E enfim, ao centro a fonte morta, com as suas taças de alabastro esverdinhado, e os versos de amor que Abdallah mandou gravar. Choveu de noite. Há um pouco de água nas taças… E ainda, dizes tu: há rouxinóis. …» É assim em tudo, natureza ou arte. O «segredo aberto» do mundo é para quem tem ouvidos de adivinho. A arte é o segredo que exprime esse segredo. É absolutamente maravilhoso o mistério do mundo, ir buscar emoções longe pode nada resolver, é nas coisas perto que há milagres, e não só eles nos ilustram a cena como nos alertam para as coisas a acontecerem. Os ataques continuaram dia fora como uma ressonância, ou seja, os ataques tinham findado, ficou o lastro e o eco de um encadear de imagens repetidas e de uma Europa metida num túnel como os mais fantásticos filmes de ficção científica. Uma saga sem mistério e carregada de insuperável. Nós talvez não estejamos preparados para nada, e, o que vem aí, pode ser gigante. Também senti reactores… coisas… que começavam e punham fim a este sistema de ataque. Mas como o vislumbrei, é também o meu segredo. Estamos sem dúvida que confrontados com o desconhecido e nem sempre sabemos posicionar a barca dos nossos dias de forma a garantir uma noção de perspectiva. Também é certo que há um deus sedente de sangue, o sangue apazigua este deus que ainda não é de Amor. É belo, ele preside aos ciclos transformativos, mas nós nunca nos questionámos enquanto repasto. As nossas conquistas estão firmadas em bases que passaram há muito o estado do deus teutónico. Por estes dias Alhambra e Fim, e toda a música do Guadalquivir me sabem a laranjas e me vão cheirando a uma flor tão boa que me inebrio, por que por esta porta de Patrício, passaram as iluminações em trança dos tempos findos e idos. Idos, ainda de Março, que me trazem esta inesperada visita e que neste instante envio para aquela que fora a sua terra durante muitos anos. Quem se encontra tem sempre um trabalho para fazer, pode fazê-lo com a certeza que um laço é um bem precioso e que« O Fim» este Fim, é a peça mais tocante para esta situação. Montherlant, escreveu a propósito de uma figura central que é exactamente uma Rainha, «La Reine Morte». Patrício, do «Pedro o Cru», nem sequer foi mencionado pelo autor francês, que não pode ter feito aquela peça sem ter consultado a sua. Há muita coisa escondida que aparecerá na hora exacta . No tempo da sua revelação. – Cantarola – Rainha. – Dona Morte dorme Dorme sossegada Tem a foice ao lado. Brilha de afiada….. Dona morte dorme, dorme de mansinho Cresce, ó erva verde Mais devagarinho. Ó luar desliza com teus pés de neve, Dona morte dorme. Tem o sono leve….
Boi Luxo h | Artes, Letras e IdeiasKuroi Yuki, Black Snow, 1965, Takechi Tetsuji [dropcap style=’circle’]K[/dropcap]uroi Yuki, Black Snow, tem tudo o que se pode esperar de um filme japonês dos anos 60. É a preto e branco. Começa com a imagem de uma prostituta deitada numa cama, de barriga para cima, parcialmente coberta pelo corpo de um negro norte-americano da tropa. É um filme contra a presença dos americanos no Japão. Que mais querem? Não há dúvidas que esta é a década mais interessante da história do cinema do Japão, mesmo que na seguinte se tenham feito filmes inesquecíveis. Contudo, nos filmes da década de 60, muito mais do que na que se seguiu, identifica-se um espírito do tempo que posteriormente se esbate em v´ảios tipos de filmes. Não me estendo, já aqui se falou de mais de 20 filmes japoneses dessa altura e o isolamento das suas características está feito. O que o cinema niilista, desencantado e cheio de ennui dos anos 60 nos demonstra é que nada mudou para lá das circunstâncias históricas e que hoje o Japão continua, por trás da cortina de luz e profusão frenética de artefactos e comida com que se exibe a si próprio, a ser o mesmo país lânguido do aborrecimento, da neve e da vacuidade do destino – uma doce indecisão. Não escondo que por trás da minha dedicação ao cinema japonês está a dedicação ao próprio país. Não escondo que o cinema japonês é dos poucos que me transmite o cheiro da rotina doméstica e dos bares onde (ainda hoje) persiste um forte cheiro a tabaco. Como acontece normalmente com este tipo de produções, por vezes filmadas em dois ou três dias, o baixo orçamento disponível não permite senão contratar um pequeno número de actores e filmar muitos exteriores – a escassez de meios uma vantagem no seu aspecto final. As cenas seguintes ao genérico são muito sensuais: há um odor a tecidos de baixa qualidade impregnados de tabaco e humidade, enquanto se imagina um a perfume e a maquilhagem. O lugar é um de desolação e desafecto, um motel junto a uma base aérea americana ocupado por um pequeno grupo de prostitutas. Kuroi Yuki é um filme erótico. Takechi Tetsuji tem 12 filmes listados no livro já aqui profusamente citado Behind the Pink Curtain, de Jasper Sharp, um que fala de modo muito completo sobre o cinema erótico japonês, um fenómeno típico do Japão que, inexplicavelmente, perdura.* Repito. Não me alargo porque já aqui se falou várias vezes do cinema erótico dos anos 60, mas é útil lembrar que o erotismo aparece muitas vezes associado a preocupações estéticas e políticas radicais. É no cinema erótico que encontramos vários tipos de ousadias que estão muito para lá das sexuais. É fácil de entender porquê. Como ainda hoje acontece em muito menor escala, o cinema erótico tinha um circuito de distribuição muito bem montado, com muitas salas exclusivamente destinadas à exibição de filmes deste género. Ao realizador de intenções estéticas vanguardistas colocavam-se dois cenários: ou fazia um filme avant-garde para ser visto por meia dúzia de pessoas num circuito muito reduzido de distribuição (se o conseguisse) ou erotizava as suas propostas fílmicas e tinha à sua disposição uma rede impecavelmente montada de distribuição que garantia que os filmes fossem mostrados e até fizessem dinheiro. Lembre-se que a dada altura o cinema erótico popular perfazia mais de 50% de toda a produção nacional. Isto não invalida de modo algum a percepção generalizada de que uma parte muito significativa dos realizadores japoneses desta década e das seguintes não fossem obcecados por tudo o que tem a ver com o sexo (E a bebida. Um dos cheiros mais intensos do cinema japonês é o do uísque). Takechi é conhecido não apenas por ter feito vários filmes eróticos mas como produtor e crítico de teatro (a sua interpretação moderna de peças de kabuki é ainda referência central) e teórico. Este filme tem vários tipos de interesses e desinteresses. Um dos primeiros consiste em provocar a perturbação erótica não apenas através das imagens, como é corrente, mas igualmente através do discurso de algumas das suas personagens. Não há, aliás, tantas cenas de nudez e sexo como é normal, nem me parece que preencha à risca a obrigatoriedade de mostrar nudez de tantos em tantos minutos – uma estrutura que muitos outros passam a cumprir com rigor quando o género se formaliza. Tem também uma cena antológica, a do genérico. Como é sabido, até hoje é proibido mostrar genitália e pêlos púbicos no cinema. Takechi contorna a obsessiva proibição, cómica e ostensivamente, mostrando um peludo sovaco em substituição. Outro interesse reside no facto de que, ao contrário de outros autores de filmes eróticos da época que se apresentavam como revolucionários de esquerda, há uma envolvência de direita – segundo alguns até racista – nas ousadias de Takechi. Não é difícil de ver Kuroi Yuki como simplisticamente nacionalista se o virmos como veículo pouco subtil de culpabilização dos americanos pelos males japoneses. Takechi, no entanto, que pode ser entendido mais como um artista ligado ao teatro, é pouco conhecido hoje em dia, dentro e fora do Japão, não tendo sofrido a habilitação de autores de filmes semelhantes como Wakamatsu Koji ou Masao Adachi. Por outro lado há intenções que se sobrepõem. A reacção negativa à presença dos americanos em solo japonês (ainda lá continuam e eu acho que esta base militar, a de Yokota, perto de Tóquio, ainda está activa) é uma preocupação contada em muitos filmes da época e já aqui por demais referida, comum à esquerda mais e menos radical e à direita. Pouco interessa se nos lembrarmos da lindíssima cena horizontal em que uma das personagens corre nua ao longo da vedação da base Americana e que esteve na origem das objecções que foram levantadas ao filme e que se colocaram a nível político e a nível da moralidade. Da base vem constantemente – algo que atravessa o filme como uma ferida ou como um grito – o barulho cortante dos aviões a aterrar ou levantar voo. Vê-lo como uma exibição de feridas (como a ferida sexual, causada pelos americanos, que aflige a boca de uma das trabalhadoras do bordel) é uma maneira de tirar prazer do filme. A menor das quais não será a que se desprende do rapaz da casa, filho de uma das funcionárias, Jiro, o causador de quase tudo. Jiro e tudo o resto, que se passa muito longe do mar, causa a náusea e a ansiedade esperadas num filme desta época e com estas características a uma escala pequena, num lugar em que, apesar da imensidão horizontal da base (que não se mostra), tudo é pequeno. * Hakujitsumu/Daydream, também de Takechi, exibido em 1964, é um dos filmes eróticos japoneses mais conhecidos – por razões históricas que o leitor facilmente poderá encontrar em busca na internet. Kuroi Yuki é conhecido por ter sido causa de prisão para o realizador, processo que o leitor encontrará também explicado do mesmo modo. Oshima, Suzuki, Mishima e Kobo Abe testemunharam a favor de Takechi e esta mescla de gente intelectual mostra que o apoio que o favoreceu (e que no fim levou à vitória no processo que lhe foi movido) veio de fundos com inclinações políticas muito diferentes.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDo verbo amar [dropcap style=’circle’]H[/dropcap]á muitos instantes que podem inspirar para sempre as nossas vidas. Instantes como pactos gravados e por nós sentidos como se fossem presentes, dádivas. Quais altas instâncias que nos devolvem o bem que fizéramos e num relâmpago nos beneficia. Os milagres são acasos muito particulares, sem aviso prévio, nem aparente sentido, mas que na génese têm a sua razão de ser. Ao fazerem-se tais constatações somos nós também que definimos as benesses da mensagem gravada em rito. Nem sempre somos merecedores! A vida ardilosa e plena de trabalho asfixia o bom desenvolvimento de uma visão periférica dando como adquiridas as conclusões benignas. Mas nem tanto! Tudo o que está exposto ao grau da gravidade exulta em nós como queda contínua. Daí o caos permanente, a consequência errática, o labor em círculo, a não aquisição de outros “órgãos” que apenas e ainda nos estão prometidos como potências geradoras de coisas outras. Serão então tributos? Janelas mais além? Lampejos, cintilações, assombros? Serão talvez lembranças e recados, antevisões, merecimentos? Talvez isso tudo e um pouco mais. Possivelmente uma aritmética composta de subtis harmonias que se revela plataforma de um entendimento maior e nem sempre mesurável com o dom dos sentidos e da razão. Por que há efectivamente muita coisa que não sabemos de nós mesmos, e muitos de nós, gostaríamos para sempre desconhecer. Sabemo-nos falíveis, frágeis, ingratos, soberbos, tristes, incompreendidos, machucados, mas nunca sabemos até onde vai o dom de ser. A opacidade criou no Homem grutas de invisíveis recortes, cavernas de obscuridade, lesões da anima, e a alma não é um levante, trazemo-la até merecermos um sopro de incondicional amor que dentro das batalhas funciona como talismã. Se a Terra é cada vez mais igual, já o Homem é cada vez mais diferente. Muitos vivem no substracto da primeira essência como se de taumaturgos e lapas metabólicas de grandes quaternários se tratasse. Têm ardentes fomes, e desejos tamanhos, que não existe universo que os mantenha saciados. Outros, porém, renunciam, como se tivessem escalado o fardo de uma primeira etapa e fossem por umas escadas, tão altas como as de Jacob, que num sopro sonâmbulo, viu agitarem-se os que iam e os que vinham, numa dança imparável de Eternos Retornos. Outros, ainda, desenvolveram qualidades mediúnicas, outros geométricas, outros fixas, outros móveis. A Terra é regular, ao lado deste filho que não sustém a sua órbita. Uns são areia e magna, outros pedra e diamante, outros doença hereditária, outros, invencíveis. Mas há de facto os encontros. Encontros raiados de magia, de sagrado, que magicar nunca será o mesmo que consagrar (aqui, as palavras querem dizer coisas e não a mera técnica do exercício da escrita) que de tão preciosos, são remetidos e processados para um local, outro local. Há partes que se procuram como derivas de continentes que se encaixam, formas que se buscam, que têm saudades, nunca se sabendo como defini-las. Um puro momento alquímico pode encarnar naquilo que os olhos serão efectivamente os últimos a ver. Sabemos como os amantes se cansam da vida, a vida nunca é amante, a vida é mordaça, é ferida. Um impulso de rotinas, de grandes ciclos cansados, de partes massacrantes, de zonas viciadas, com tantas fantasias de felicidade quantas as desilusões. A nossa mente construiu o espectro da Felicidade, esse cenário invisível por onde ninguém passa e todos se esforçam por parecer habitá-lo, danificando-nos. Talvez seja por isso que no puro amor existe a única realidade possível, aquele acontecimento em que forjamos a nossa consciência humana transfigurada. Não é preciso sonhá-lo. Ele, a haver, manifestar-se-á. Também não parece emplumado nem ataviado de coisas, é fresco como as sombras- como a frescura das sombras- melhor dizendo, porque nos é desconhecido e temos de o viver com as túnicas do repouso. Quanto mais elaborada é a mente humana mais amorosa se torna a sua prática, é um tecido alvíssimo composto de um requinte tal, que nenhuma filigrana se lhe iguala. Nos interstícios tem a lucidez da mente e algo de tão perdoável que faz dos amorosos, aqueles grandes seres parados. Quando estamos perto sentimos-lhe o aroma, a dimensão sagrada, o dom maior, a bonança interna como um lago de luz… sentimos algo que milagrosamente nos harmoniza e orienta deixando para trás o entulho das defesas e o massacre dos sentidos. Estamos num campo abençoado! Manter tal situação como rotina exige entrega, exercício constante e ordem. Encontrar alguém nesta viagem ainda é mais bonito… é como a certeza de que fomos contemplados. Dizia Safo: «Vedado é o choro na casa de um poeta, nunca um tal pesar se apartará de nós». Entrar com botas cardadas nestes antros pode provocar catástrofes naturais, desabamentos de terra, chuvas incontroláveis e mudar alguma coisa no equilíbrio das forças naturais. Os muito amados nem sempre são os mais prováveis, mas, talvez os mais protegidos, os mais férteis em produzir reacções, e se de fora vierem agrestes, o fora que são se transformará na insolvência dos seus dias. Aliás, a Fé e o Amor, são a mesma gema de um Ovo duplo. Não se deve dar às sensações e aos sentimentos o epíteto de Amor, seria reduzi-lo a uma escala natural. Ora o Amor não é natural dado o seu carácter absolutamente excepcional. Está fora ainda da regra, não sendo contudo um desregramento. É uma simplicidade que enlouquece. Portugal é um país onde não se sonha, onde o amor é uma caricatura de um gemido fadista, de um passional informe, e onde até a palavra em si se fez tabu. Não sei o que buscam os poetas nem esta literatura descarnada, talvez dizer qualquer coisa que nem eles, nem ninguém entende. É uma vingança apelidar de poetas estes seres, cogumelos, a vingança contra o Poeta. A descrença democrática perante o seu labor, a usura mais ingénua, a indecência mais indecorosa, atacou as suas bases: «Para que serve afinal um poeta em termos de indigência?» já Holderlin perguntava. Eu acho que para nada, mesmo para nada. Mas, há um hiato aberto no tempo: os poetas servem para aperfeiçoar o Amor, não para o descobrirem, porque o Amor não se desoculta, mas pode ser visitado: “o amor que sinto por ti, é uma chama que ilumina a penumbra do que sou; a mão do Amor corrige a natureza”, Elizabeht Browning, in Sonetos Portugueses. São sonetos na bela forma Camoniana que dedicou àquele que viria a ser seu marido o também poeta Robert Browning. E diria mais: “pois que toda a lira, desde que é tocada por mão de mestre, é boa. E ser amada de um grande coração é ter valor.” Todo o valor do Amor é ser amor, mais nada. E nada o legitima mais que a própria inocência, a sua natureza alada, o seu enlace de matizes, a sua voz que chama e um ouvido atento à sua doce mensagem. Tudo desaparecerá e arrefecerá um dia, menos o amor que num tubo de ensaio irá intacto para o lugar de onde emanou, e aí, todos os nomes dos Amantes serão por fim revelados. Os amantes são as peças de um corpo incompleto, aqueles que liga a deidade aos canais da existência, nem sempre são as certas todas as formas de amor buscadas, mas são para nós as derivas de uma lembrança. Enquanto ele não chegar, a nossa vida também não nasceu. Por muitas vidas erraticamente o iremos buscar, até desvivermos nele toda a eternidade merecida. Porque, afinal, ele é merecimento. Conquista da luz sobre a obscura forma aceite, talvez mesmo o que contemplámos no fundo da nossa eternidade. Para compensar a fome temos a finança, para alargar as vistas os grandes horizontes, para saborear, os repastos, mas para amar não há ninguém. Ninguém que tivéssemos encontrado com esse dom, porque os dons se vão quando deixamos de os contemplar, ou até de acreditar neles. Creio no “cadáver adiado que procria” no equilibrado sentido das funções e essa certeza não me dá nada. As certezas são as coisas mais terríveis que inventamos. São espectros. Ninguém procura a morte, dado que nos está ainda reservada como certeza, ninguém ama a certeza. Certos de tantos efeitos, desfazemos longamente os véus destes teares que nos parecem defesas para tanta insatisfação. Porém, e como diria Catarina de Médicis em pleno massacre da Noite de São Bartolomeu, “haverá um dia em que o Homem será amigo de outro Homem.” Sem dúvida! No tempo do Amor.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasElliot pretende residir em Cantão A 8 de Abril de 1837, segundo o sinólogo macaense Luís Gonzaga Gomes, “O capitão Elliot, plenipotenciário da Inglaterra na China, que residia em Macau por não lhe ser permitida a sua estadia em território chinês, escreveu ao Governador de Cantão, informando-o de que um navio inglês salvara dezassete náufragos chineses e fazendo votos pela continuação da boa amizade entre as duas nações.” É sobre o desenvolvimento cronológico dessa pequena história, onde os ingleses pretendem ganhar a confiança dos chineses e irá terminar na I Guerra do Ópio, assim como o papel nela desempenhado pelo Capitão Elliot, que aqui iremos tratar. Mas antes disso, faremos referência à data de 8 de Abril de 1973 para invocar a morte em Mougins, França, de Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remédios Cipriano de la Santíssima Trinidad Ruiz y Picasso, artista espanhol nascido em Málaga a 25 de Outubro de 1881, que se dedicou à pintura e escultura e com Georges Braque foi o fundador do Cubismo. De salientar ter o desenho de Pablo Picasso a leitura do Espaço, versus a da forma que representa, pois é o ver pelo interior. Também neste dia, mas a 2013 morreu Margaret Thatcher, a “dama de ferro”. 8 de Abril é o Dia Mundial da Astronomia, excelente para dar atenção ao Céu da humanidade, cuja consciência foge do animal e apenas em laboratório teorizado entra pelas leis científicas da máquina. Sendo ela o protótipo do Ser Humano, que a todo o custo os engenheiros tentam aperfeiçoar, é-nos a máquina agora servida como imagem modelo, e assim por elas normalizados. Observando-nos fora do todo, sem intuição alguma do ânimo, é nesse individual que colectivamente somos legislados. E dizem que andamos em Luta contra o Cancro, que hoje se celebra com um dia mundial e assim, complementamos os dias do calendário anual. Ingleses na China A história seguinte foi compilada pelas Efemérides de António Feliciano Marques Pereira e na Cronologia de Luís Gonzaga Gomes e o que delas citamos não leva aspas para não complicar a leitura, pois são muito frequentes neste texto e trazem muitas vezes as mesmas palavras. Muita água se tinha passado desde que em 1793, o rei britânico Jorge III tentou estabelecer relações comerciais com a China e para isso enviou uma embaixada de setecentas pessoas com inúmeros presentes entre os quais telescópios, cronómetros planetário e modelos de navios de guerra. Mas só dois anos depois da chegada a Beijing, foi concedida ao emissário Lorde Macartney uma audiência com o Imperador Qianlong, já que este não se entendia quanto ao ritual de submissão do ajoelhar e bater com a testa no chão nove vezes antes de falar com o imperador. Ajoelhando-se apenas sobre um joelho pediu que fosse dada permissão para representantes comerciais residirem na China. Num édito chinês foi-lhes recusada residência e a Grã-Bretanha, um potentado mercantil e em vias de industrialização, tendo a Armada mais poderosa do mundo, bombardeou Nanjing. Os manchus entram em decadência em 1796, quando na China foi pela primeira vez proibida a importação de ópio, o único produto que os britânicos desde 1781 traziam para comerciar nos portos chineses, substituindo-o à prata como pagamento do chá, seda, laca e porcelana. Então a Companhia Inglesa das Índias Orientais decide fazer de Macau o centro para o comércio desta droga. Local para o qual o seu pessoal tinha em 1772 recebido licença do Vice-Rei da Índia para residir, mas apenas no período de intervalo entre as feiras de Cantão. “Já desde o início da década de 1780 que os ingleses mostravam um evidente descontentamento com a submissão à jurisdição chinesa em Cantão, por um lado, e à jurisdição portuguesa mista em Macau, pelo outro. Daí que não tivessem levado muito tempo a empreender o projecto de conseguir um acordo entre Calcutá e Goa, de forma a tornear o problema e passarem a gozar do mesmo estatuto privilegiado de que já gozavam em Portugal”, como refere Jorge de Abreu Arrimar. E com ele continuando, “Fechada a China aos seus planos, os ingleses passaram então a exercer pressão sobre Lisboa e Goa, de forma a poderem vir a estabelecer-se em Macau.” Ainda numa nota citando Ângela Guimarães: “O período das duas primeiras décadas de Oitocentos é para Macau de permanente e intensa resistência ao avanço do expansionismo britânico na região, o qual se processa no contexto mais alargado da rivalidade imperialista franco-britânica.” A sorte de Macau Por três vezes a Inglaterra tentou tomar Macau, com o pretexto de vir ajudar os portugueses a se defenderem dos franceses mas, tal como os portugueses não viam com bons olhos esse auxílio, também os chineses se opunham. A primeira tentativa ocorreu em 1802, a segunda em 1807, tendo a 9 de Julho o Governador de Xiangshan enviado uma chapa ao Senado de Macau questionando a razão de aí haverem chegado tantos barcos de guerra ingleses. Por fim, no ano de 1808 vem a ocupação de Macau pelos Ingleses durante três meses. Aí desembarcaram a 21 de Setembro de 1808, com o intento de se apoderarem da cidade e estabelecerem uma grande feitoria da Companhia; e, tomando ao depois o porto de Vampú (Huangpo) para lugar de repouso e passagem, querem fazer subsequentemente outra feitoria da mesma Companhia na metrópole de Cantão, para tomarem a si todas as fazendas dos outros reinos e ficarem cobrando deles os direitos da alfândega. Pela chapa de 12 de Outubro de 1808 dirigida da Casa Branca ao Vice-Rei de Cantão, ao tempo em que o almirante Drury ocupara com tropas inglesas a cidade de Macau, fica-se a saber o que os chineses pensavam sobre o carácter dos ingleses e a diferenciação que faziam do dos portugueses. Texto publicado no ‘hojemacau’ em 4 de Dezembro de 2015. Ao fim de um mês de ocupação de Macau pelas forças inglesas, principiaram os distúrbios entre os chineses e os soldados da força inglesa. A 18 de Dezembro de 1808 o mandarim de Heangshan informou o procurador de que se à meia-noite ainda lá estivessem as tropas inglesas, o exército chinês entraria em Macau, em conformidade com o decreto imperial. No dia seguinte, para alívio e alegria da cidade partiu o esquadrão. Mas os barcos da Companhia Inglesa das Índias Orientais continuavam a fazer comércio em Macau, até que, devido à tarifa imposta aos estrangeiros por Arriaga, os importadores ingleses passam a ancorar os seus barcos com ópio na ilha de Lintin. Arriaga negoceia o tráfico português com os mandarins, mas sem grandes resultados e em 1823 foi tentado levantar as restrições sobre o ópio estrangeiro em Macau. Já os ingleses estavam consolidados em Lintin e por tal não se interessaram com a nova proposta de Arriaga. Tal foi a sorte de Macau, senão “a crise que levou à Guerra do Ópio teria acabado fatalmente com a histórica colónia como possessão portuguesa.” Montalto de Jesus Ir viver em Cantão É aqui que entra o Capitão Elliot, nomeado a 7 de Junho de 1836 pelo governo inglês para superintendente do comércio britânico na China, em substituição de Sir G. B. Robinson. De salientar que a 22 de Abril de 1834, os privilégios da Companhia Inglesa das Índias Orientais na China foram extintos e suspensa a sua sucursal chinesa “devido ao progresso do contrabando privado de ópio”, Jacques Gernet. No entanto, só em 14 de Dezembro é que tal nomeação chegou a Macau. Segundo Marques Pereira diz, “O capitão Elliot, nomeado pelo seu governo presidente da comissão de superintendência do comércio inglês na China, dirige de Macau ao governador da cidade de Cantão, um ofício, pedindo que se lhe permita mudar para aí a sua residência”. E com ele continuando, a 22 de Dezembro ainda desse ano, sem responder à carta que Elliot lhe dirigira, “o governador da cidade de Cantão envia a Macau dois delegados seus, com ordem de inquirirem tudo o que houvesse de verdade acerca da nomeação que Elliot dizia ter recebido do seu governo. Nas instruções dadas aos mesmos mandarins se ordenava também que Elliot fosse constantemente vigiado e que se lhe não permitisse sair de Macau.” O governador de Cantão só a 18 de Março de 1837 deferiu o pedido para Elliot residir naquela cidade. No fim desse mês, num ofício ao governo inglês, Elliot queixava-se da humilhação que sofre no modo de corresponder-se com as autoridades chinesas. – “Dirigem as suas respostas, – diz ele, – aos negociantes chinas, de sorte que falam de mim às vezes, mas nunca me falam a mim”. Uma semana depois, com votos pela continuação da boa amizade entre as duas nações, o capitão Elliot escreve uma carta ao governador de Cantão, informando-o de que um navio inglês salvara dezassete náufragos chineses. A 11 de Abril seguiu finalmente de Macau o capitão Elliot, Ministro da Inglaterra em Cantão para essa cidade. A 19 de Abril de 1837, “o governador da cidade de Cantão, mandou um edital aos negociantes chinas, denominados annistas, que instruíssem o enviado inglês Elliot sobre os termos de respeito que deveria empregar nas petições que houvesse de dirigir a ele governador, – convindo principalmente que nunca o mesmo Elliot se esquecesse de designar a China com as palavras Celeste Império, e bem assim que jamais se enfunasse, como tinha por costume, com a louca suposição de vínculos de paz e amizade entre o Grande Imperador e a pequena Inglaterra. Para evitar de futuro semelhantes ofensas da mais rudimentar cortesia, dispôs também este edital que as petições fossem previamente submetidas ao exame dos annistas, a quem pertenceria verificar se eram formuladas em termos devidos, rejeitando-as quando o não fossem”. Marques Pereira retirou estas informações do Chronology of affairs in China e adita: “Três dias depois Elliot enviou uma carta ao governador de Cantão, expondo a impossibilidade de sujeitar os seus escritos ao exame dos negociantes chinas”. Conseguirá em 25 de Abril, quando “o Governador de Cantão, depois de longas recusas, consente em receber ofícios do enviado Elliot, superintendente do comércio inglês na China, declarando porém que lhe não responderá directamente. Elliot concorda”. Mas seis meses depois, as autoridades de Cantão, isto é, do perfeito da cidade e do militar mais graduado do distrito, enviavam-lhe directamente uma primeira comunicação a 29 de Setembro de 1837. Já anteriormente, a 1 de Junho, tinha também obtido dos mandarins “licença para entrar e sair do porto de Cantão, numa embarcação própria, todas as vezes que assim lhe convenha, não podendo contudo fazê-lo sem lhes participar com antecedência os dias da sua partida e chegada provável”. O conteúdo da comunicação de 29 de Setembro intimava o enviado Elliot ao dever de expulsar desde logo todos os negociantes e navios ingleses que traficavam em ópio. Ordem que só passado um ano deu aos seus concidadãos pois, por intervenção secreta, o chefe superintendente do comércio britânico na China aconselhava os mercadores a não levarem a sério tal proibição e assim o comércio continuou a fazer-se. A 12 de Julho de 1838, chegou a Macau, num navio de guerra, o almirante Maitland, com instruções para proteger o comércio inglês. Encontrava-se já a Rainha Vitória no trono do Reino Unido. Os governantes Qing, apercebendo-se do perigo que corriam com os ingleses, nomearam Lin Zexu em Dezembro de 1838 para acabar com tal comércio, maioritariamente feito pelo porto de Guangzhou. Só a 18 de Dezembro de 1838 “o plenipotenciário Elliot faz uma intimação aos navios ingleses, empregados em comércio de ópio, para saírem do rio de Cantão no prazo de três dias”. A 31 de Dezembro de 1838, “vencido pela impossibilidade de, por outra forma, se dirigir por escrito às autoridades chinesas, Elliot sujeita-se a dar às suas representações a designação do caractere pân (requerimento) e a redacção que em tais documentos se emprega. (China, por Montgomery Martin, vol. II)”, como refere Marques Pereira. Já segundo Alfredo Gomes Dias, “O ano de 1839 iniciou-se com a nomeação, em 3 de Janeiro, do célebre comissário Lin Zexu para delegado imperial em Cantão, tendo por tarefa prioritária terminar de uma vez por todas com o tráfico do ópio. Sem perder tempo, logo no dia 10, as autoridades imperiais de Cantão publicaram uma nota onde proíbem o tráfico do ópio naquela vasta região triangular Cantão, Macau e Hong-Kong, cujo centro era a ilha de Linding (Lintin), base de toda a distribuição da droga naquela vasta região da China.” O confronto que se seguirá, conhecido pela I Guerra do Ópio, tem no início o comando de Lin Zexu, pela parte chinesa e da inglesa, o Capitão Elliot.
Hoje Macau h | Artes, Letras e Ideias“Os 500 Arhats” – A magnum opus de Takashi Murakami Michel Reis Takashi Murakami é um dos mais internacionalmente aclamados artistas contemporâneos dos nossos dias. Nascido em 1962 em Tóquio, estudou na Universidade de Artes desta cidade, onde concluiu a sua licenciatura, mestrado e doutoramento. Fundou a fábrica Hiropon em Tóquio em 1996, que mais tarde se transformou em Kaikai Kiki, uma corporação de produção e de gestão de arte. Para além da produção e marketing da arte de Murakami e trabalhos relacionados, Kaikai Kiki funciona com um ambiente que apoia e promove artistas emergentes, colabora com músicos e marcas corporativas e produz cinema e animação. Um autêntico pára-raios de diferentes valências culturais (antiga/moderna, oriental/ocidental), Takashi Marukami acredita que o artista é alguém que compreende as fronteiras entre os mundos e que faz um esforço para os conhecer. Com o seu distintivo estilo e etos “Superflat”, que emprega técnicas altamente refinadas de pintura japonesa clássica para retratar um conteúdo que mistura conteúdos sobrecarregados de Pop, anime e otaku (termo japonês para pessoas com interesses obsessivos, vulgarmente fãs de anime e manga) num plano figurativo representacional espalmado, Murakami movimenta-se livremente num campo sempre em expansão de questões estéticas e inspirações culturais. Paralelamente a temas utópicos e distópicos, evoca e revitaliza narrativas de transcendência e esclarecimento, envolvendo frequentemente especialistas alheios. Minando temas religiosos e seculares favorecidos pelos chamados “excêntricos japoneses” ou artistas não-conformistas do início da era moderna, comummente considerados como sendo homólogos à tradição romântica ocidental, Murakami situa-se a si mesmo no seio do seu legado de forte e activo individualismo de uma forma que é inteiramente sua e do seu tempo. Para além da uma exposição retrospectiva sua, que teve início no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (“©Murakami”) em 2007, e que viajou para museus proeminentes em todo o mundo, Murakami realizou instalações de grande escala em vários locais como o Palácio de Versailles (“Murakami Versailles”) em 2010, e no Qatar (“Murakami – Ego”) em 2012, deixando a audiência global perplexa com a escala massiva e a qualidade polida das suas obras. No entanto, tais exposições têm sido extremamente limitadas no Japão. Na sua há muito aguardada exposição a solo no Japão, no Museu Mori em Tóquio, que acaba de encerrar, a pintura de Murakami, “Os 500 Arhats” (os discípulos iluminados de Buda), com 100 metros de comprimento por 3 metros de altura, uma das maiores pinturas alguma vez produzidas na história global da arte, foi exposta no Japão pela primeira vez. A obra foi criada como prova de gratidão ao Qatar, um dos primeiros países a oferecer assistência na sequência do Grande Terramoto e Tsunami do Leste do Japão, revelado em Doha em 2012. A exposição integrou “Os 500 Arhats” e uma série de obras novas de pintura e escultura, nas quais este artista maduro, que trabalha com uma energia, talento artístico e escala surpreendente, continua a oferecer novos desafios à história da arte contemporânea. A exposição proporcionou ainda uma oportunidade de examinar o papel da arte e da religião no que respeita à agitação social e à mortalidade humana, assim como tomar contacto com a profunda exploração do poder da arte para iluminar a nossa compreensão da condição humana e das realidades do mundo em que vivemos. Recrutando mais de 200 alunos de universidades de arte japonesas, Takashi Murakami levou a cabo a árdua tarefa de completar a sua magnum opus “Os 500 Arhats”, num espaço de tempo muito curto. A obra consiste em quatro secções ostentando os nomes dos lendários guardiões chineses dos quatro pontos cardeais (Dragão Azul – este, Tigre Branco – oeste, Pássaro Escarlate – sul, e Tartaruga Negra – norte). Abordando os temas da religião e da arte, da mortalidade e das limitações, pode dizer-se que esta obra monumental abre um novo caminho na criatividade de Murakami. Revelada pela primeira vez fora do Japão, a exposição realizada no Museu Mori constituiu o “regresso a casa” e a estreia mundial da obra completa de “Os 500 Arhats”, visto que alguns elementos e detalhes lhe foram acrescentados. Além disso, ao expor partes de materiais vastos usados na produção, tais como desenhos, materiais de pesquisa, e instruções de esboços, a exposição permitiu ainda vislumbrar o sistema de produção de obras de arte de Murakami. Os 500 arhats são tidos como discípulos de Buda que espalharam os seus ensinamentos e conferem às pessoas comuns a salvação dos desejos mundanos. A fé nos arhats foi levada ao Japão durante o período Heian (sécs. VIII – XII) e floresceu através do país durante o período Edo (sécs. XVIII – XIX) na forma de pinturas e esculturas. Os Quinhentos Arhats de Kano Kazunobu (1816-63), que se encontram no tempo Zojoji em Shiba, em Tóquio, consistindo numa série de 100 pinturas em rolo que retratam as vidas e feitos dos lendários 500 discípulos budistas, foram expostos no Japão pela primeira vez na sua totalidade no Museu Edo de Tóquio imediatamente a seguir ao Grande Terramoto e Tsunami do Leste do Japão e na Galaria Arthur M. Sackler, do Museu Smithsonian em Washington D.C., em 2012. Ambas as exposições foram alvo de uma tremenda atenção do público. Desde o início da sua carreira que Takashi Murakami vem tentando capturar personagens de anime e manga como uma extensão da tradição Nihonga. A pintura com 30 metros de comprimento A Picture of Lives Wriggling in the Forest at the Deep End of the Universe, exibida na exposição, é a sua última variação sobre 727, uma importante obra anterior na qual surge a personagem original de Murakami, o Sr. DOB, montado numa nuvem de uma forma reminiscente à pintura em rolo do período Heian Shigisan Engi (A Lenda do Monte Shigi). Esta pintura recente, na qual as várias personagens e temas que Murakami retratou nos últimos 20 anos são combinados num único plano, pode ser comparada a um álbum dos “maiores êxitos” no qual as obras-primas do artista são coligidas. Tradicionalmente, os espectadores podem tentar discernir o significado de uma obra através do seu título, mas aqui, de facto, não há ligação entre as duas coisas. Murakami pretende que os espectadores imaginem a obra através da leitura do título e que então se achem perplexos com a pintura real, ou como ele próprio coloca a questão, “estar no limiar de compreender a obra mas acabar perplexo”. De acordo com Murakami, “guardar uma distância avassaladora da realidade quando se está a ver uma obra” é uma parte importante da arte. Nas quase psicadélicas pinturas abstractas de Murakami, podemos observar uma mistura de efeitos especiais tipo Star Wars, pintura japonesa e americana avant-garde do pós-guerra, e caligrafia, manifestando-se em formas da Nova Pintura dos anos 80 e em fantasmas do manga de Mizuki Shigeru. As suas pinturas ensō representam simbolicamente não apenas o esclarecimento, a verdade, e a natureza de Buda, mas também o universo na sua totalidade. Ao regressar a temas tradicionais como a transcendência e o esclarecimento e ao revisitar pinturas clássicas assim como o seu próprio trabalho, Murakami dá vida nova ao passado e afirma estar a “prolongar a vida da pintura”.
Manuel Afonso Costa Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasRealismo, mito e melopeia encantatória Riço Direitinho, José, Breviário das Más Inclinações, Asa, Porto, 1994. Descritores: Romance, Portugal, Tradição, Identidade, Ruralidade, Memória, Pathos. [dropcap style’circle’]J[/dropcap]osé Riço Direitinho nasceu em Lisboa no mês de Julho de 1965. Formou-se em Agronomia, e desenvolveu estudos em Economia e Sociologia Rural. A sua primeira produção significativa no plano literário foi a A casa do fim, obra que imediatamente revelou um escritor poderoso e original. Esta obra foi lançada em 1992, tendo-se seguido com curto espaço de tempo mais dois romances elaborados na mesma linha do romance de estreia e que foram os romances Breviário das más inclinações, em 1994, e O Relógio do cárcere, em 1997. José Riço Direitinho situa a sua obra romanesca num registo que oscila entre o realismo rural e o mítico; e é essa mistura de cultura popular com um sabor etnográfico, com uma memória que tende a mitificar as personagens que lhe confere a sua grande originalidade. Não será demais referir também uma poética do maravilhoso, ainda que ancorado num enorme acervo de superstições e crenças populares. Realismo, Mito e Melopeia Encantatória O livro começa muito bem como devem começar os bons livros, para aguçar o apetite e sobretudo estimular curiosidade e dúvida. O princípio de um livro pode tornar a sua leitura inevitável. Tudo deve ser dito e ao mesmo tempo nada. E isso não é fácil. Só os grandes livros, como o Pedro Páramo de Rulfo, a Conversa na Catedral de Llosa ou Heróis e Túmulos de Sábato, para só citar autores sul-americanos, com os quais Riço Direitinho tem afinidades. É verdade que tem também afinidades com autores galegos, como Valle Inclán ou Camilo José Cela e até mesmo com o transmontano Torga… O livro começa assim: “Depois de se ter deitado com um homem, lavava-se sempre numa infusão de folhas de arruda, apanhadas ao luar, e bebia tisanas com sementes de funcho e de sargacinha-dos-montes, para que as regras não lhe faltassem. De maneira que nos dois meses seguintes à noite em que encontrou na eira uma maçaroca de milho-rei, não acreditou que estivesse grávida…” (p. 11). Assim começa este romance que narra a vida e a morte (aos 33 anos, como Jesus) de José de Risso, um homem de virtude que nasceu marcado nas costas com um sinal em forma de folha de carvalho. Pelo meio há o enorme lobo de Espadañedo, um lobisomem que descia da serra quando a Lua lhe estava de feição; há receitas de chás e de tisanas que curam do mau-olhado, da má-sina com as mulheres, dos amores infelizes, das galhaduras, dos maus pensamentos; há chás e tisanas que fazem recobrar os ímpetos aos homens; há também Purísima de la Concepción, a muito bonita e alegre viúva galega, de quem se dizia (sem se ter a certeza) que encomendara a morte do marido a um matador de touros andaluz a quem as mulheres casadas chamavam, com disfarçado fervor e muita paixão contida, Niño del Teso. Este romance de José Riço Direitinho, o Breviário das Más Inclinações, destacado pela crítica e premiado com o Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores-APE, fala sem problemas de crenças, superstições e mundos envolvidos por atmosferas obscuras e estranhas. Jogando com efeitos elípticos e recorrendo a prolepses e analepses permanentes, as primeiras anunciadas no texto apócrifo que serve de guia para a acção, uma vez que todos os capítulos são precedidos de uma curta passagem de um outro texto, em edição fac-simile, intitulado Vida e Morte de José Risso, de autor anónimo, o nosso autor consegue pôr de pé uma história envolvente; insólita mas verosímil. Mas os livros de José Riço Direirinho começam várias vezes pois a sua ideia estilística de base assemelha-se às melopeias populares que circulam pelas feiras, ou circulavam, e que conferiam às histórias uma inequívoca aura mítica e ao mesmo tempo plenamente realista. O personagem central deste romance é José de Risso marcado por eventos que lhe conferem o estatuto. Antes de mais ele é fruto de uma única noite de amor de sua mãe. Depois essa noite de amor ocorre com um estranho, um estrangeiro digamos, que a engravida e a abandona sem saber que a engravidou. Depois ainda a mãe morre durante o parto, José de Risso nasce portanto já órfão, totalmente órfão, e finalmente nasce estigmatizado por um estranho sinal nas costas, como se fosse marcado à nascença, por uma mancha vermelha em forma de folha de carvalho. E é tudo isso; a que se acrescenta uma também estranha propensão para lidar com plantas medicinais e curativas; que compõe a sua aura e a sua sina, ou seja uma fama de curandeiro abençoado mas também de desgraçado e vítima de mau olhado. Um estatuto ambivalente que o autor do romance explora sempre muito bem. Por exemplo: “Nasceu com a cabeça envolta nos âmnios. Há-de ser sempre feliz e terá o dom da adivinhação”, isto apesar de ter nascido “no dia vinte e quatro, dia de S. Bartolomeu, em que o diabo anda à solta”. Pequena antologia de dizeres: Depois de saber que estava grávida, procurou cumprir tudo para que a criança nascesse sem problemas: deixou de usar o cordão de ouro ou outro qualquer fio, para o bebê não nascer com o cordão umbilical enrolado à volta do pescoço, que é sempre sinal de morte prematura […]. (p. 12) “antes de sair de casa, no começo desta noite irremediável, bebera chá de romã e loureiro para que o fel das entranhas não lhe subisse à boca. Esqueceu-se que essa infusão era também a mezinha das mulheres estéreis” (17). A mulher acordou com um pesado bater de asas sobre as telhas. Dormira toda a noite. Ao abrir os olhos viu, pelas frinchas das tábuas do telhado, a primeira claridade do dia. Sobressaltou-se com o rumor dos pássaros, e logo depois com a ausência do marido: a cama não tinha sido desmanchada do lado dele. Só nessa altura conseguiu perceber que os grifos tinham voltado a Vilarinho dos Loivos, e que, quase sempre, deviam estar a voar em círculos largos sobre um corpo morto, à espera. (p. 41) “uma insólita nuvem de pirilampos cobriu, pelo lado de fora, a janela do quarto.[…] Enterraram-na no final da tarde do dia seguinte, no canto do cemitério onde as mandrágoras e as beladonas teimavam em crescer durante todo o ano” (p. 61-62).