8 – Ela

* por José Drummond

[dropcap style=’circle’]T[/dropcap]ínhamos um plano. Casar, ter filhos e viver felizes para sempre. Lembras-te de como entretida me demorava a criar as casas nas quais iríamos viver e de como desenhei a nossa família naquele jogo de computador? Lembras-te de como descobrimos e nos ríamos com o aspecto dos nossos filhos naquela recreação? Lembras-te como eu sonhava? Lembras-te? Eu tinha fome de ti. Tinha uma fome e uma sede de ti que não parava. Nunca. Nunca parava. Parecia que não ia acabar nunca. Lembras-te?
Agora a única coisa que vejo é este monte de pus, esta secreção amarelada e viscosa que me infecta a existência. Tenho que conseguir atravessar a ponte! Não sei porque voltei para trás? Não sei porque voltei? Para me enterrar na cama onde fomos felizes? Porque quero acreditar que o facto de voltar à cama onde fomos felizes te irá trazer de novo? Como se isso de algum modo significasse voltar aquele momento de nós mesmos onde tudo existia em suspenso. Mas sempre que volto a esta cama desde que te foste embora é como voltar a uma parte que já não me pertence. É um voltar a uma parte que devo esquecer. A esta coisa interrompida. Porque esta cama é hoje o sítio onde sou infeliz. Porque a memória é uma construção labiríntica.
Nós poderíamos ser o que quiséssemos. Poderíamos ser o mundo inteiro ou simplesmente o nosso sonho. Poderíamos ser uma praia deserta com um eterno pôr-do-sol. Poderíamos ser um banco de jardim em Budapeste, uma mesa de café com poucos clientes em Viena ou um sino de igreja imóvel em Praga. Poderíamos ser pequenos gestos que se completam em diversos andamentos. Poderíamos ser tudo. E nunca importaria o frio. E nunca importaria o calor. Nada importaria desde que nos tivéssemos um ao outro. Porque nada muda de temperatura, perde a cor ou envelhece quando somos felizes. Mas hoje, que volto a esta cama, é como ela tivesse mudado de lugar. Nada é igual a quando aqui chegámos. Esta cama é hoje indiferente. Não é mais o berço de dois namorados apaixonados, ardentes. Aparentemente nem sente a nossa falta. Não é mais cama. Não existe. Foste-te, e contigo foram todos os espelhos, e contigo foram todos os espaços. O amor ficou para trás. Perdeu. Perdeu-se. Já passou. Foi bom enquanto durou.

E assim nos mataste. Agora podemos nos encontrar com estranhos, ter bebidas com eles, e acabar em quartos de hotel. De seguida, no quarto escuro, fechado, o jogo do sexo poderá começar. Elaborado ou impulsivo. Quem sabe com algemas, uma mordaça, uma venda nos olhos. Em pouco tempo poderá passar a selvagem e arriscado. O suor dos corpos em movimento. Consegues imaginar?… Ou ainda te causa tanta repulsa como me causa a mim? Porque sabes que isso vai acontecer e quando acontecer irá incorporar em si a tentação do abismo. Porque não importa quantas vezes forem necessárias. Porque todas elas terão uma razão exclusiva. Uma única intenção. O fazer apagar em nós o outro. Até que não exista mais nenhum traço de ti no meu corpo. Até que não exista nenhum traço de mim no teu. E os jogos irão ser perigosos, de modo a afirmar a diferença entre lascívia e amor. O cinto do roupão ao redor de um pescoço. E os nossos corpos a contorcer-se entre agonia e excitação. Até que cada orgasmo, rápido ou prolongado, nos fará esquecer um pouco mais quem somos. E iremos prosseguir assim, esperando que em cada orgasmo possamos renascer. E sei que vai ser intenso. Vai acontecer em crescendo até resultar com intervalos pequenos. Porque a carne precisa. Porque a mente precisa. E sei que não vamos querer um amante regular. Porque isso seria uma traição. É por isso que serão sempre estranhos a quem não devemos explicação. Pessoas que desaparecem das nossas vidas de seguida. Será impossível descobrir o que desejam, o que querem, o que têm escondido. E esse será o perigo real. O perigo de desaparecermos nesse momento. De nos deslocarmos tanto da realidade que poderemos ser feridos, ou até mortos, por alguém louco, alguém desconhecido. E quão melhor seria morrer nas tuas mãos.
Sei que saíste muitas vezes sozinho. Deixavas-me adormecer e saías. Deixavas-te perder na cidade sem mim. Tinhas em ti uma escuridão que te estrangulava, que te empurrava para a morte, como se não conseguisses evitar as correntes do aço frio do destino. 

Onde estás neste preciso momento? Em algum lugar seguro? Ao pé de alguém que amas? Que amas mais que tudo? E se tudo isso desaparecesse? E se, de repente, tudo o que tu pudesses fazer fosse sobreviver? Iria conseguir, certo? Tentarias pelo menos? Farias coisas, coisas horríveis, aquelas coisas horríveis. Farias essas coisas até perderes a última que realmente importa, a única que faz sentido, tu mesmo. Mas, e se pudesses voltar atrás? Se pudesses recuperar tudo? Se bastasse pressionar um botão para reiniciar tudo de novo? Pressionavas esse botão, certo? Eu quero acreditar que sim.
“A polícia acredita agora que o “estripador da Taipa” possa ser um visitante. Para além da vigilância nas ruas principais na Rua da Taipa a polícia aumentou a segurança nas fronteiras.”

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