Gorgani

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]egresso ao romance de Gorgani seduzido pelo gosto das romãs e pelo contraste entre o vermelho e o branco, símbolo de uma beleza que foi depois renascentista e de uma técnica poética de abuso do contraste. Mas tudo isto é muito anterior, o romance em si, do século XI, e o tempo pré-islâmico em que se passa esta saborosa e misteriosa história de amor persa.
Vis é a mulher que causa toda esta perturbação e não é de admirar pois seria difícil de imaginar mulher mais bela que esta princesa persa, alvo de um amor que ainda pode haver mas que já não se pode escrever. A focalização nesta figura feminina, que é a mais importante e a mais interessante da história, não se repete em outros romances que a este tradicionalmente se associam.
Numa altura em que transformações no relacionamento entre o Irão e o resto do mundo parecem ganhar um fôlego imprevisto há pouco tempo, contribui-se com esta chamada de atenção para um dos livros mais importantes da medievalidade médio-oriental (escrito entre 1050 e 1055), certamente conhecido na Europa desde muito cedo.
Assim se dispensa um pequeno acrescento ao que do Irão cada vez mais nos chega em expressão plástica, musical e, principalmente, cinematográfica. O cinema iraniano é hoje um dos mais importantes dos oriundos de países com capacidade de produção não muito alargada, um que tem, através do concurso dos grandes festivais internacionais, chegado a um público vasto.
Aqueles que à história deste país têm dedicado alguma atenção não deixam de admirar a continuidade do seu poderio cultural, espelhada na importância do persa como língua de cultura durante o império otomano, falada pelas classes educadas – assim como o árabe se utilizava como língua própria ao serviço religioso – e na influência que a sua arquitectura, música, poesia e arte da iluminura lançaram sobre o império.
Mas o famoso romance de Gorgani precede tudo isto e esta antiguidade será, hoje, uma das suas delícias, a que se acrescenta saber que a história inicial, coligida por 6 eruditos, é mais antiga ainda.
Pouco se sabe sobre a vida de Fakhraddin Gorgani, apenas que terá escrito este longo poema de amor sob o patrocínio de Amid Abul’l Fath Mozaffar, comandante de cidade de Isfahan no período entre 1050 e 1055, e que proviria da cidade ou da área de Gorgan, a este do Mar Cáspio.
No poema, Ramin, Vis e Mobad, as figuras principais deste mito de alternância que se desenha através de um triângulo amoroso, deslocam-se frequentemente entre locais que ficam perto da cidade de Gorgan. Este é também um poema de constantes deslocações e de indefinição dos resultados do amor, com muitas reviravoltas e situações inesperadas. Mas nada é tão intenso como a beleza de Vis, o seu corpo de cipreste.
O interesse por histórias passadas no período pré-islâmico é um interesse alargado no Irão no século XI, uma nostalgia que não impede que, no entanto, haja várias referências e figuras que sejam já islâmicas.
Shahnameh (Livro dos Reis, que conta a história do Irão e do Zoroastrianismo – ou Zoroastrismo – até à islamização), de Ferdowsi, é um poema épico composto quarenta anos antes de Vis e Ramin em que a nostalgia pelo mundo pré-islâmico (anterior ao século VII), em que o Irão atravessara uma época de inigualável esplendor, é um dos seus brilhos próprios.
O mundo de Vis e Ramin remonta ao século III a.c.*, e a estranheza de alguns dos costumes que se exibem na história – como o do casamento inicial de Vis com o irmão – que remontam às dinastias iranianas antigas em que o incesto era prática comum, é uma estranheza que contribui para a riqueza do romance.
Que Gorgani se não tenha deixado impressionar negativamente por este costume – numa altura em que já não se praticava – é um bom indicador de como através dele acedemos a um mundo perdido.
A mais voluptuária sobrevivência zoroastroanista do poema consiste (esta uma das suas grandes seduções) na importância dada ao prazer. É constante a descrição de tempo destinado à caça, ao pólo e a festas onde o álcool é presença abundante – associado não só aos guerreiros mas também aos amantes.
O vinho é uma das peças fundamentais da descrição do prazer de que os amantes usufruem e aparece associado às partes em que os festejantes atravessam um período de felicidade. O poema, muito longo, alterna momentos de fortuna e de miséria mas o vinho aparece como elemento da expressão do prazer sentido nos momentos de euforia. Quando os dois amantes se conhecem, Vis e Ramin, e depois do primeiro encontro sexual, seguem-se dois meses de luxo e de prazer.
O prazer do sexo não é também um prazer escondido. A ama de Vis, uma figura fundamental para a urdidura de alguns dos nós mais densos do romance, a par das 3 centrais de Vis, Ramin e Mobad, não lhe esconde que este é um prazer de que se não pode fugir depois de experimentado: And you don’t know how vehemently sweet/The pleasure is when men and women meet;/If you can make love just once, I know that then/You won’t hold back from doing so again (trad. de Davis, p.121).
Os deleites do amor, do vinho, da caça, do pólo e da faustosa vida de corte vêm envolvidos por um estilo sumptuoso e florido que é comum ao estilo de peças gregas e latinas contemporâneas, e se esta consideração aqui se faz é como complemento da ideia de que Vis e Ramin poderá ter influenciado directamente uma das obras fundamentais da medievalidade europeia – a história de Tristão e Isolda.
Foi, aliás, através da teoria que defende esta possível influência que cheguei ao poema persa. Esta inscrever-se-ia num conjunto de outros possíveis pontos de contacto entre manifestações da literatura islâmica medieval e da literatura medieval (e de transição para o renascimento) europeia não-islâmica como, por exemplo, em Dante ou na lírica trovadoresca. A literatura que sugere a ligação de Tristão e Isolda a Vis e Ramin é vasta e tem origem em estudos de finais do século XIX, mas trazer aqui uma discussão das suas minudências seria fastidioso e desapropriado. Baste notar-se que as inúmeras semelhanças convidam a que se estabeleça esse paralelo.**
A propensão que no poema se encontra, de elogio do prazer, longe de qualquer crítica ao comportamento adúltero desta extraordinária figura romanesca que é Vis, não tem, no entanto, paralelo na subsequente literatura persa. Segundo Dick Davis, as personagens femininas do romance persa tornam-se cada vez menos carnais para se tornarem cada vez mais moralistas e, por fim, místicas.
O estilo florido parece por vezes comprazer-se numa longa languidez e quem procurar no romance um desenvolvimento narrativo fluido encontra, ao invés, quadros que valem por si só, quadros que têm um valor episódico. A sucessão de quadros líricos que atrasam a narrativa é uma das suas características fundamentais, que não agradará a todos e que promove uma disposição contemplativa.
Nesses episódios descobre-se a sua sedução principal – a extrema riqueza das imagens associadas ao amor, à guerra (mas há poucas cenas guerreiras), à tristeza, ao ódio, à música, à descrição da natureza ou à beleza feminina, muitas das quais certamente bem codificadas e de reconhecimento fácil para os leitores da altura***.
Descobre-se também a extrema importância dada aos poderes quase mágicos da oratória, o poder do discurso que consegue transformar o sentimento e os intentos das personagens, como é o caso da ama de leite de Vis e Ramin (que é a mesma), cujos poderes oratórios mágicos (que acompanha outras magias) ajudam a modificar o comportamento de algumas personagens, ou o caso do discurso de Ramin que, de outra feita, move a própria Ama: (…) “Who knew,/My lord, that you had such a tongue in you? (trad. de Davis, p.90).
Tão importante como o poder do Amor: When love has chosen you, your only plan/Is to accept its rule as best you can (trad. de Davis, p.100), é a consciência da fugacidade da vida: But joy is mixed with grief, as we draw breath/Life leads us all, inexorably, to death (trad. de Davis, p.37). Ou: Life lasts two days, and then, Vis, we depart-/Man’s life is like a roadside inn, and we/Soon leave this lodging for eternity; (trad. de Davis, p.93).
Também importante é a descrença no livre arbítrio que desculpa o comportamento de Vis e de Ramin: De leur mères toux deux n’étaient pas encor nés (…) que déjà le destin avait réglé leur sort et fixé par écrit leurs actes successifs (trad. de Massé p.35)

* estas informações retiram-se da introdução que acompanha a tradução para inglês de Dick Davis, de 2008, Vis and Ramin, e da tradução para francês de Henri Massé de 1959, Traductions de Textes Persans publiées sous le patronage de l’Association Guillaume Budé, Le Roman de Wîs et Râmîn.

** tanto no que respeita à versão de Béroul como a Cligès, de Chrétien de Troyes. A edição francesa a que em cima se alude inclui uma introdução que começa precisamente por lembrar como a após a divulgação de Le Roman de Wîs et Râmîn, no século XIX, se notaram de imediato as semelhanças com Tristan et Iseut. São várias as páginas que se dedicam a estas correspondências.

*** no fim do volume da tradução de Dick Davis oferece-se um apêndice onde se mostram algumas das comparações que se fazem a partir do corpo humano: coral, lábios; cacho de uvas, cabelo ondulado; mel, a doçura dos lábios; uma chave e um cadeado, os órgãos sexuais masculino e feminino; lua cheia ou o sol, rosto; entre muitas outras.

Ramin vive no espaço ocupado pelo Velho.

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